Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5235/06-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I Em sede de providência cautelar não especificada, cuja causa de pedir assenta no incumprimento de um contrato de aluguer de veículo, a Lei não dispensa a parte da prova dos factos constitutivos do «periculum in mora», e este não se retira automaticamente da circunstância de a Agravante ser proprietária do veículo, de dele se encontrar privada, e de o mesmo se poder depreciar, sendo certo que aquela poderá vir a ser ressarcida em sede própria pelos prejuízos causados, prejuízos esses que nem sequer demonstrou que não pudessem vir a ser colmatados.
II Os DL 54/75, de 12 de Fevereiro e o DL 149/95, de 24 de Junho, contêm normas excepcionais que não permitem aplicação analógica nos termos do artigo 11º do CCivil e por isso quando naqueles diplomas se faz referência aos «contrato de alienação» e de «locação financeira», não se poderá entender como abarcando outras realidades contratuais, vg, o contrato de aluguer de longa duração.
(A.P.B)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I G, SA, intentou providência cautelar não especificada contra R, pedindo que seja ordenada a imediata apreensão do veiculo automóvel de marca Peugeot, modelo 206 Black & Silver 1.1i 5p, com matrícula (…).

A final foi proferida decisão a indeferir a providência uma vez que não ficou suficientemente demonstrado que o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito da Requerente, tendo esta recorrido e apresentado, em síntese, as seguintes conclusões:
- Apesar de admitir a existência do direito da requerente, proprietária do veículo, e a sua lesão, entendeu-se que a Requerente não demonstrou o fundado receio de lesão grave a de difícil reparação do seu direito, e que "poderá sempre ser ressarcida pelos prejuízos causados e não demonstrou que esse ressarcimento seja impossível ou difícil também".
- Não só esse fundado receio resulta da matéria dada como provada (incumprimento do contrato, recusa de entrega do veículo, natureza do bem sujeito a rápida e continua desvalorização) como também da própria fundamentação da sentença (na qual se admite que o bem em causa que o requerido deveria ter restituido e de "contínuo desgaste" e de "rápida desvalorização"), que contradiz a decisão proferida.
- O requerido deduziu oposição na qual não alegou qualquer facto concreto que pusesse em causa o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação invocado pela requerente, apenas se limitando a dizer que não se verificava tal requisito.
- O fundado receio de lesão grave e de difícil reparação resulta também clarissimo do depoimento da testemunha do Requerido, supra transcrito a para o qual se remete.
- A prova sobre a capacidade financeira do Agravado de pagar as rendas do contrato e eventuais indemnizações, recai claramente no âmbito da "prova diabólica", que é aquela que abrange factos negativos cuja dificuldade é commumente reconhecida e aceite, donde a aceitação da inversão do seu ónus.
- No entanto, resulta, pelo menos indiciariamente demonstrada, essa incapacidade financeira do Agravado, tanto mais que na oposição que apresentou, não explica este, com alegação de factos concretos, como e quando pagará uma eventual indemnização quando nem sequer pagou as rendas do contrato, praticamente desde o seu início.
- "Na contestação deve o réu individualizar a acção e expor as razões de facto e de direito por que se opõe a pretensão do autor (...)" artº 488° CPC.
- A única testemunha apresentada pelo aqui Agravado foi, no seu depoimento, clarissima quanto à existência de graves problemas daquele em pagar fosse o que fosse a Agravante, o que só por si indicia a incapacidade do Agravante em reparar a lesão que causa à Agravante.
- A decisão proferida não toma em consideração o facto de estarmos perante um contrato de 72 meses, e que o requerido apenas pagou 5 prestações, 4 das quais pagas pelo seu Pai em virtude de "problemas" financeiros e de saúde do Agravado.
- A única prova produzida pelo Requerido através do depoimento da sua testemunha foi totalmente desconsiderado pelo Tribunal.
- O alegado receio de "lesão grave e de difícil reparação", foi corroborado pela única testemunha apresentada pelo aqui Agravado, que com ele vive, e que depôs de forma inequívoca sobre as enormes dificuldades do Agravado deste, o facto de ter sido ele próprio a pagar 4 prestações das únicas cinco pagas e o facto de estarem "numa situação um bocadinho dificil".
- Tais factos constam dos autos a resultam da instrução e discussão da causa e devem também ser considerados pelo Juiz na elaboração da sua decisão, que se quer de justiça material,
- Trata-se de factos que explicam e concretizam os factos já dados como provados nos autos, nomeadamente o incumprimento do contrato e a recusa na restituição do veículo.
- Dispõe o artº 264°/2 do CPC "O Juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos art°s 514° a 665° e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução a discussão da causa".
- O persistente incumprimento no pagamento dos alugueres provoca na Agravante o fundado receio de que o Agravado deixe de todo de cumprir com as suas obrigações.
- Receio que se veio a confirmar e a densificar em face da não entrega voluntária do veículo.
- É manifesto o fundado receio, que é subjectivamente avaliado pela requerente (uma viatura da sua propriedade, dada em aluguer, relativamente à qual não são pagos os alugueres logo no início do contrato, e que não foi entregue pelo locatário, quando para isso
instado e tal como é sua obrigação).
- Esperar a tramitação processual de uma acção ordinária, desde a sua interposição até à decisão, da sua execução até à sua efectivação, com os eventuais recursos de que o Agravado pode lançar mao, pole significar para Requerente vir a receber um veículo sem qualquer valor comercial e sem condições para voltar a ser vendido ou realugado.
- O tribunal, em vez de se centrar no direito de propriedade do veículo em causa, avaliou questões diferentes, como sendo a eventual indemnização pelo prejuízo decorrente do empate de capital despendido com a aquisição do veiculo.
- O que está em causa é a não restituição do veiculo, pretendendo-se evitar não só a sua perda como tambem possibilitar a Agravante o pleno exercício do direito de propriedade que detém sobre ele.
- A natureza perecivel do automóvel foi reconhecida pelo legislador nos decretos lei n° 54/75 de 24 de Fevereiro e 149/95 de 24 de Junho, que em ambos os diplomas previu e regulou providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, e que, inclusive, dispensam a prova do periculum in mora, por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação.
- Embora a situação em apreço não se enquadre no âmbito de aplicação destes diplomas, o perigo e a natureza da lesão para o locador é absolutamente idêntica.
- Nestes termos, é nosso entendimento, tal como a tese dominante na jurisprudência, que estão preenchidos todos os requisitos do art° 381° do CPC, pelo que não se vislumbra fundamento para o indeferimento da providência.

Nas contra alegações o Requerido conclui pela manutenção do despacho recorrido e este foi sustentado.

II A decisão recorrida deu como assentes os seguintes factos:
- No exercício da sua actividade, a requerente celebrou com o requerido, em 15.01.2005, o contrato de aluguer n°(…), cuja
cópia consta de fls.7 e 8 dos autos;
- Nos termos do acordado, a requerente deu de aluguer ao requerido o
veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 206 Black & Silver 1.11
5p, com matricula (…);
- O prazo do aluguer acordado foi de 72 meses, sendo mensal a periodicidade das rendas, no valor de 0247,54 cada, incluindo IVA;
- Como acordado, a importância de cada uma das referidas rendas deveria ser paga até ao dia 15 de cada mês, com início a 15.01.2005 e
termo a 15.12.2010;
- Após a celebração do contrato foi nessa mesma data entregue o veículo locado ao requerido, que o passou a utilizar;
- As partes acordaram que a falta de pagamento de qualquer das rendas implicava a possibilidade de resolução do contrato pela requerente, ficando o requerido não só obrigado a restituir a viatura, fazendo a requerente seus os alugueres pagos, como tendo ainda que pagar à requerente os alugueres em mora e a indemnização prevista na cláusula 10ª e 12ª do contrato;
- O requerido não pagou à requerente as rendas vencidas em 15.06.2005, 15.07.2005, 15.08.2005, no montante de €1.132,07, incluindo juros de mora;
- A requerente, por carta registada com aviso de recepção datada de 7.09.2005, resolveu o contrato;
- O requerido não restituiu o veículo locado;
- A requerente é proprietária do veículo.
Não se provou, mesmo que indiciariamente, que: a) o requerido utilize o veículo de forma deficiente e negligente; b) o requerido não tenha quaisquer cuidados com a utilização do veiculo; c) o requerido não dê assistência técnica ao veículo


1. Dos requisitos da providência cautelar não especificada.
Dispõe o artigo 381º, nº1 e 2 do CPCivil que constituem requisitos da providência cautelar não especificada a existência ou pelo menos a aparência do direito e o justo receio de que alguém venha a praticar actos capazes de causar lesão grave ou de difícil reparação nesse direito ou aparência de direito.

Isto é, para serem decretadas tais providências, inominadas ou atípicas, que a lei processual com a reforma substituiu por um «procedimento cautelar comum», exige-se, para além da circunstância de inexistir um procedimento típico, que o requerente mostre, com base em certos factos, um sério receio de que o futuramente (ou presentemente) demandado pratique actos ou violências susceptíveis de lesionar, grave ou irreparavelmente, o seu direito, cfr Rodrigues Bastos, Notas ao CPCivil II/256, J.A dos Reis, BMJ 3/58 e Relatório do DL 329-A/95 de 12 de Fevereiro.

No que tange ao primeiro pressuposto, a lei contenta-se com um juízo de verosimilhança ou probabilidade, no que toca ao segundo, necessário se torna um juízo de certeza, de verdade.

Por outra banda, há que ter em atenção que as providências cautelares não se destinam a dar imediata e directa realização ao direito substancial, mas tão só, a assegurar a eficácia da providência futura destinada a essa realização.

Acresce ainda a circunstância de o supra citado normativo nos falar em «fundado receio», de onde se dever concluir que o perigo de insatisfação do direito pressupõe que o seu titular se encontre perante simples ameaças de violação do mesmo. Se a ameaça já se consumou, então já não há perigo, mas sim violação efectiva.

2. Do direito da Requerente.

A requerente plasma o seu petitório nas seguintes circunstâncias: ter dado de aluguer ao Requerido um veículo automóvel, da sua propriedade, mediante a satisfação de prestações, sendo que este omitiu três; ter solicitado ao Requerido a satisfação das quantias em débito, o que este igualmente omitiu; ter resolvido o contrato de locação o que importava a devolução do veículo, o que o Requerido também veio a omitir; estar-se perante um bem de contínuo desgaste e de rápida desvalorização.

Insurge-se a Agravante contra a decisão recorrida uma vez que face àquela alegação factual e à prova produzida é manifesto o fundado receio, que é subjectivamente por si avaliado já que se trata de uma viatura da sua propriedade, dada em aluguer, relativamente à qual não são pagos os alugueres logo no início do contrato, e que não foi entregue pelo locatário, quando para isso instado e tal como é sua obrigação.

Como resulta inequivocamente do normativo inserto no artigo 381º, nº1 do CPCivil, a lesão cujo receio de verificação serve de fundamento à pretensão do Requerente da providência tem de ser grave ou de difícil reparação.

Ora, in casu, não ficou demonstrado tal requisito, pois a mera constatação de um automóvel ser um bem perecível e deteriorável não é bastante para se concluir que o direito da Agravante não possa vir a ser ressarcido, sendo certo que, além do mais, esta não logrou provar, tal como alegou, que o Agravado utilize o veículo de forma deficiente e negligente, não tenha quaisquer cuidados com a sua utilização ou que não lhe dê assistência técnica.

Nem esse alegado receio de lesão grave e de difícil reparação, pode ser retirado do depoimento da única testemunha apresentada pelo Agravado, e que depôs sobre as enormes dificuldades deste, por um lado porque em bom rigor processual, tendo a audiência sido gravada sem necessidade – já que o Requerido foi ouvido e a gravação apenas se impõe nos casos em que aquele o não seja, cfr artigo 386º, nº4 do CPCivil – deveria a Agravante, fazer referência ao depoimento da testemunha nos precisos termos do normativo inserto no artigo 690º-A, nº1, alínea b) e 2 do CPCivil, o que não fez, pelo que tudo se passa como se o mesmo tivesse sido oral; por outro lado, mesmo que se tenha em conta a transcrição do depoimento efectuada pela Agravante nas suas alegações, transcrição essa que não foi arguida de falsa pelo Agravado, o que deflui das declarações da testemunha é que este estaria em dificuldades económicas e não numa situação de completa impossibilidade de cumprimento.

Queremos nós dizer, malgrado a Agravante tenha provado o primeiro dos requisitos (a existência de um direito ameaçado) não logrou provar o segundo, isto é o fundado receio de lesão grave ou de difícil reparação.

Por outra banda, se é certo, como conclui a Agravante, a natureza perecivel do automóvel foi reconhecida pelo legislador nos decretos lei n° 54/75 de 24 de Fevereiro e 149/95 de 24 de Junho, que em ambos os diplomas previu e regulou providências que visam assegurar o não perecimento do direito de propriedade sobre automóveis, e que, inclusive, dispensam a prova do periculum in mora, por o legislador presumir que a demora da acção principal causa prejuízo grave e de difícil reparação, não menos correcto será também concluir que quer a providência cautelar de apreensão de veículo prevenida pelo DL 54/75, de 12 de Fevereiro, quer a prevenida pelo DL 149/95, de 24 de Junho, contêm normas excepcionais que não permitem aplicação analógica nos termos do artigo 11º do CCivil e por isso quando naqueles diplomas se faz referência aos «contrato de alienação» e de «locação financeira», não se poderá entender como abarcando outras realidades contratuais, vg, o contrato de aluguer de longa duração (não se podendo efectuar aqui uma interpretação extensiva), sob pena de se subverter o sistema instituído que está feito, em termos racionais e teleológicos, para abarcar situações particulares, sem embargo de se poder constatar que novas realidades se impuseram no comércio jurídico e que não se coadunam com o sistema em vigor.

Mas aqui, trata-se de um problema de jure constituendo, alheio aos Tribunais, que não têm por missão a criação de Leis (a não ser que se imponha por inexistência de Lei aplicável ao caso, nos termos do artigo 10º, nº3 do CCivil, o que não acontece no caso sub judicio).

In casu, a Lei não dispensa a Agravante da prova dos factos constitutivos do «periculum in mora», e este não se retira automaticamente da circunstância de a Agravante ser proprietária do veículo, de dele se encontrar privada, e de o mesmo se poder depreciar, sendo certo que aquela poderá vir a ser ressarcida em sede própria pelos prejuízos causados, prejuízos esses, que, como se diz na decisão recorrida, nem sequer demonstrou que não pudessem vir a ser colmatados.

As conclusões estão, assim, condenadas ao insucesso.

III Destarte, nega-se provimento ao Agravo, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Agravante.

Lisboa, 4 de Julho de 2006


(Ana Paula Boularot)


(Lúcia de Sousa)


(Luciano Farinha Alves)