Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
430/07.7JDLSB-A.L2-9
Relator: TRIGO MESQUITA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
BURLA AGRAVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/03/2013
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO
Sumário: I - O momento da consumação do crime de burla é aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património
II - Assim, o crime de burla ficou consumado com a imediata transferência da quantia para outra conta de qualquer agência, em qualquer localidade, e bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I.

                  No processo nuipc. 430/07.7JDLSB-A foi deduzida acusação de fls. 3479 a 3505, da qual resulta que aos arguidos L..., F..., C..., M..., J... e N... é imputada a prática de crimes de burla qualificada, na forma continuada, previstos e punidos pelos artigos 217°e 218° n.° 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal; aos arguidos L... e F... ainda é imputada a prática de crimes de falsificação de documento, previstos e punidos pelos artigos 255°, alínea a) e 256°, n.° 1, alíneas c) e e), ambos do Código Penal; aos arguidos N... e F... é imputada a prática de crimes de burla qualificada; na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 217° e 218°,n.° 2, alíneas a) e b), por referência aos artigos 22°, 23° e 73°, todos do Código Penal; aos arguidos A..., C..., J..., F..., N... e R... é imputada a prática de crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 217° e 218°, n.° 2, alíneas a) e b), ambos do Código Penal.

                   Distribuído o processo para julgamento à 3.ª Vara Criminal de Lisboa, o Sr. juiz proferiu despacho em em 2013.05.17 declarando ser esse tribunal territorialmente incompetente para efectuar o julgamento considerando caber a competência ao Tribunal Judicial da Comarca de Loures.

                  Argumentou para tanto que para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação         e verificando-se  que os últimos actos ilícitos indiciados são os constantes dos arts. 78.° e ss., é de se concluir que o último acto ilícito indiciado, de acordo com a acusação, foi praticado em Famões - de acordo com o Mapa I do DL. 186-A/99 de 31.05, a localidade de Famões pertence à comarca de Loures, sendo por isso, o Tribunal Judicial da Comarca de Loures o competente para o conhecimento dos crimes indiciados nestes autos.

             Remetido o processo a este Tribunal e ali distribuído à 1.ª Vara de Competência Mista de Loures, o seu titular proferiu despacho, em 2013.05.31, no qual rejeitou a competência daquele tribunal para proceder ao julgamento.

                  Argumentou para tanto que considera que o momento da consumação do crime de burla se encontra quando as quantias pagas são retiradas das sedes das seguradoras e não, aquando da sua entrega efectiva - deve atender-se, para a consumação do crime de burla, à ocorrência do efectivo prejuízo na esfera patrimonial do lesado e não ao correspectivo enriquecimento do agente ou de terceiro. Concomitantemente, entende ser pacífico o entendimento de que a acção penal se inicia no momento em que o facto criminoso chega ao conhecimento da autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, pelo que, no caso presente, os autos tiveram início com uma denúncia formalizada em 15.03.2007 junto da Polícia Judiciária — Directoria de Lisboa que assim fixou a competência do tribunal da comarca de Lisboa.

                   Ambos os despachos transitaram em julgado gerando-se um conflito negativo de competência (art. 34º, nº 1 CPP).

                   Neste Tribunal foi cumprido o art. 36º, nº 1 CPP.

                  A Ilustre procuradora-geral adjunta pronunciou-se no sentido de se dirimir o conflito atribuindo a competência à 1.ª Vara de Competência Mista de Loures.

                   II.

          De acordo com o art. 19º, nº 1 CPP é competente para conhecer de um crime o tribunal da área em cuja comarca se tiver verificado a consumação desse mesmo crime.

 

O crime de burla é tido como um crime de forma vinculada, em virtude de o legislador descrever de forma minuciosa o modo executivo de consumação; de dano, por pressupor um prejuízo patrimonial de quem é sujeito passivo; de resultado, porque se consuma com a saída de bens da disponibilidade fáctica do sujeito passivo, e um crime de resultado parcial, caracterizando-se por uma descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipo subjectivo e objectivo, porque embora se exija no âmbito do primeiro que o agente actue com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, a consumação não depende de tal enriquecimento, bastando o empobrecimento do ofendido – Comentário ao Código Conimbricense, 11, 275-277 e J. António Barreiros, in "Crimes Contra o Património".

Efectivamente o resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele o crime se consuma.

             O momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudencial - ac do STJ de 21-06-2006 (relator Cons. Soreto de Barros) e de 04-06-2003 (relator Cons. Henriques Gaspar).

                  A consideração deste elemento subjectivo permite, como se salientou, qualificar a burla como um crime de resultado cortado ou parcial, não havendo «coincidência na extensão dos elementos objectivos e subjectivos do tipo: no plano objectivo basta o prejuízo patrimonial da vítima (ou de terceiro); ao nível subjectivo requer-se uma intenção de enriquecimento que não carece de concretização objectiva» (cfr., MARIA FERNANDA PALMA e RUI CARLOS PEREIRA, op. cit, pág. 323).

             A consumação do crime exige, pois, o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular, com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro» (cfr. A. M. ALMEIDA COSTA, op. cit., págs. 276-277).

                  Assim, o crime de burla ficou consumado com a imediata transferência da quantia para outra conta de qualquer agência, em qualquer localidade, e bastando que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima.

                  In casu, o que releva como local da consumação do crime de burla não é o local de destino da(s) quantias pagas pelas seguradoras lesadas mas o local onde se operou o débito (dano), ou seja, o local onde se sentiu o prejuízo, onde teve início a deslocação patrimonial (sede da seguradora/domicílio da conta bancária respectiva, etc.).

               Esse local não pode ser determinado a partir da acusação, sendo certo que dos respectivos pedidos de indemnização civil resulta que todas seguradoras lesadas têm sede em Lisboa, com excepção da Companhia de Seguros Açoreana, S.A., com sede em Ponta Delgada - Açores, da AXA Portugal, S.A e da Real Seguros, S.A., ambas com sede no Porto.

                 A jurisprudência, por seu turno, vem entendendo que a acção penal se inicia no momento em que é dado conhecimento do facto criminoso à autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédios dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. O que significa que o processo se inicia com a aquisição da notícia do crime, nos termos do art. 241º e ss CPP, pelo que a partir daí existe inequivocamente uma acção penal pendente.

                E, no caso presente, os autos tiveram início com uma denúncia formalizada em 15.03.2007 junto da Polícia Judiciária — Directoria de Lisboa (fls. 2) pelas onze seguradoras lesadas e a primeira intervenção do Ministério Público teve lugar na sequência do despacho do Sr. Coordenador de Investigação Criminal (fls. 2) que determinou a comunicação ao DIAP.

 

                   III.

              Decide-se por isso, dirimir o conflito negativo atribuindo a competência para a tramitação do processo nº 430/07.7JDLSB à 3.ª Vara Criminal de Lisboa

                   Sem tributação.

                   Cumpra o art. 36.º, n.º 3 CPP.

                   Lisboa, 03 de Setembro de 2013

  TRIGO MESQUITA.