Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3811/2008-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
DOCUMENTO PARTICULAR
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.Prescritos os cheques, podem os mesmos servir como documentos particulares nos quais não se constitui uma obrigação mas se presume a existência da mesma, nos termos do artº 458º nº 1 do Código Civil.

2.É a quem assinou os cheques que incumbe provar a inexistência da relação fundamental de onde emerge a obrigação.

3.Em acção declarativa ordinária, não tendo o Réu impugnado especificadamente os factos alegados pela Aª nem resultando tal impugnação do conjunto da sua defesa, devem tais factos ser considerados como admitidos por acordo e assim não devem integrar a base instrutória.

(AV)

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

"B…, L.da" intentou a presente acção com processo comum sob a forma de processo ordinário contra R….
Pede que se condene a R. a pagar-lhe 5.573 457$00 acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa de 15% ao ano, sobre o montante de capital de 4.612 024$00, desde 21-5-96 até pagamento.
Para tanto, e em síntese, alega:
- que vendeu peixe ao estabelecimento C…de L…, que o terá comprado, pela quantia de € 28 560, 63 e
- que o R., a pedido de L…, e com a anuência da A., aceitou pagar o preço do peixe, emitindo os cheques de fls. 7 a 12.
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Regularmente citado, contestou o R., arguindo a excepção de ineptidão da petição inicial, a excepção de prescrição da dívida por estar em causa dívida a comerciante e a excepção de prescrição dos juros vencidos há mais de cinco anos. Impugnou, além do mais, o alegado pela Aª.
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A A. replicou, pugnando pelo desatendimento das excepções e mantendo o por si anteriormente aduzido.

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Realizou-se o julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo o Réu do pedido.
Inconformada, recorre a Aª, concluindo que:
- A sentença viola o disposto no artº 458º do CC ao não valor os cheques como prestação unilateral de reconhecimento de dívida.
- Embora se trate de meros documentos particulares, os cheques corporizam uma ordem de pagamento dada à entidade bancária, pelo que constituem um reconhecimento unilateral de dívida.
- É o devedor que tem o ónus de provar a inexistência da relação material que determinou a emissão dos cheques.
- Era o Réu que tinha de provar a inexistência da dívida constante dos cheques, quer pela falta do negócio jurídico invocado pela Aª quer pela eventual extinção da mesma.
- O Réu não fez tal prova.

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Foram dados como provados os seguintes factos:
1 - O R. apôs a sua assinatura no local a ela destinado nos cheques da conta do R. no Montepio Geral, constantes de fls. 7 a 12.
2 - Os cheques vieram devolvidos na compensação do Banco de Portugal por falta de provisão.

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Cumpre apreciar.

Nenhuma das partes impugnou a decisão fáctica.

Por outro lado, foi decidido que os cheques estão prescritos, decisão com a qual as partes igualmente se conformaram.

A questão que se coloca é a de saber se, mesmo prescritos, os cheques podem, enquanto documentos particulares, validar a pretendida procedência da acção.

A Aª, como vimos, alegou ter vendido à empresa C… determinada quantidade de peixe pelo preço total de € 28.560,63. A pedido do gerente da Ré e com a anuência da Aª, e com vista ao pagamento dessa quantia, o ora Réu emitiu os cheques juntos aos autos, que vieram a ser devolvidos por falta de provisão.

Na contestação, e em sede de impugnação, o Réu limitou-se a negar ter celebrado qualquer negócio com a Aª, nunca lhe tendo comprado peixe.

Na base instrutória era perguntado se a Aª vendeu peixe ao estabelecimento C…, se o preço era de € 28.560,63 e se, a pedido do gerente da C… e com a anuência da Aª, o Réu aceitou pagar o preço do peixe emitindo os cheques juntos aos autos.

Todos os quesitos foram dados como “não provados” por falta de prova.

Uma vez que nunca se alegou que o Réu tivesse adquirido o peixe à Aª, estaríamos perante uma transmissão singular de dívidas, nos termos do artº 595º nº 1 a) do CC.

Sucede que a Aª não logrou provar tal transmissão singular de dívida, nem sequer a existência do negócio jurídico – a venda de peixe – de que teria resultado tal dívida.

O que temos são os cheques emitidos pelo Réu em favor da Aª, sendo que tais cheques estão prescritos.

Poderão os cheques enquanto documentos particulares consubstanciar um reconhecimento de dívida, nos termos do artº 458º nº 1 do CC?

Não temos dúvidas de que os cheques, mesmo que prescritos e como tal insusceptíveis de produzir efeitos cambiários, podem funcionar como quirógrafos da dívida que lhes deu origem.

Note-se que não foi posta em causa pelo Réu a a sua assinatura nos referidos cheques nem invocada a falsidade.

Os cheques valem assim como documentos particulares, nos termos do artº 373º nº 1 e376º nºs 1 e 2 do CC.

Um cheque é, basicamente, um meio de pagamento pelo qual o sacador ordena ao banco sacado o pagamento de dada quantia a seu favor ou a favor de um terceiro.

Uma vez prescrito, o cheque deixa de poder valer nesses termos, enquanto título de crédito, mas, enquanto documento particular continua a valer no âmbito da declaração que contém, ou seja, uma declaração de vontade de efectuar determinado pagamento, no caso dos autos, a favor da Aª.

Nessa medida, os cheques dos autos integram um compromisso de pagamento a favor da Aª, que cabe perfeitamente na previsão do artº 458º nº 1 do CC. Como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, I, p. 307 - “não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (...) Neste sentido se entender o disposto na alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil, ao admitir como título executivo o escrito particular, assinado pelo devedor, do qual conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou de entrega de coisa fungível”.

Ou seja, prescrito o cheque cessa a sua natureza formal enquanto título de crédito, mas mantém-se o compromisso de efectuar determinado pagamento, enquanto declaração dele constante. É por isso, que prescrito, o cheque já não pode funcionar como fonte autónoma de uma obrigação, mas apenas como meio de presumir a existência de uma relação jurídica, negocial ou não, de que decorra tal obrigação.

Aderimos aqui a uma das principais orientações doutrinárias e jurisprudenciais sobre esta matéria, destacando-se o Acórdão do STJ de 11/5/99, in CJ/STJ 1999, II, p. 88/92 e que vimos seguindo de perto.

Ao invés, na douta sentença recorrida, segue-se uma orientação diversa. Afirma o Mº juiz que os cheques, “pela sua estrutura, não inserem declarações de constituição ou reconhecimento de alguma obrigação pecuniária (...) Enunciam uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro”.

Supondo que o Exº magistrado se está a reportar aos cheques prescritos, ninguém contestará que estes não são constitutivos de uma obrigação pecuniária. Mas também não é disso que se trata no artº 458º nº 1 do CC. O compromisso, ou promessa de pagamento inserido no quirógrafo, faz presumir uma relação fundamental e é esta a relação causal da obrigação.

E porquê tal presunção? Pensamos que a razão evidente e decorrente do mero senso comum é a de que ninguém assume um pagamento sem ter, ou julgar ter, o dever de o efectuar. É claro que nada obsta que o suposto devedor venha provar que a obrigação fundamental não existe ou se extinguiu por qualquer modo. Simplesmente, é a ele que incumbe tal prova.

Na realidade, um cheque, na sua simples materialidade, ordena que se pague a determinada pessoa uma determinada quantia. Essa quantia será disponibilizada por um banqueiro e retirada da conta de quem fez a declaração de pagamento.

Como tal, a declaração contida no cheque é uma promessa de efectuar determinada prestação pecuniária. Destruída a sua validade enquanto título de crédito,devido, por exemplo, à prescrição, tal promessa não é a causa da obrigação. É uma mera declaração inserida num documento particular que apenas serve para fazer presumir que, na sua origem, existe uma relação jurídica que deu causa a tal declaração.

No caso dos autos, a Aª alegou que essa relação fundamental assentou na existência de uma transmissão singular de dívida. Diz que vendeu peixe à empresa C… e que o ora Réu, a pedido da C… e com o assentimento da Aª, aceitou pagar o respectivo preço, emitindo os cheques juntos aos autos.

Na sua contestação, o Réu começa por invocar a prescrição da dívida e dos respectivos juros (arts. 4º a 16º). Em seguida invoca a ineptidão da petição inicial. Por impugnação diz que não é comerciante, que está desempregado, que não destinou peixe à sua actividade e que a Aª não lhe forneceu peixe algum.

Mas não nega que tenha assumido o pagamento da dívida da C… ou que tal dívida não existisse.

Não existe qualquer impugnação, por parte do Réu dos factos alegados pela Aª. E, contrariamente ao sustentado pelo mesmo Réu, esses factos são claros e estão expressos nos arts. 2º, 3º e 4º e 5º da petição inicial.

Na falta de impugnação, dever-se-iam considerar tais factos admitidos por acordo, nos termos do artº 490º nº 2 do CPC.

E não se diga que o fornecimento de peixe mediante um dado preço, causa da obrigação, não é do conhecimento pessoal do Réu, para efeitos do artº 490º nº 3 do CPC. Ao assumir o pagamento da dívida da C…r, o Réu substituiu-se-lhe no lado passivo da relação jurídica com a Aª, fazendo sua a posição do primitivo devedor. Cabia-lhe assim, nos termos do artº 490º impugnar os factos alegados pela Aª. Não o tendo feito, esses factos deviam ter sido considerados como admitidos por acordo em vez de levados à base instrutória.

Até por isto, parece evidente que a acção terá de proceder.

Podemos pois concluir que:
- Prescritos os cheques, podem os mesmos servir como documentos particulares nos quais não se constitui uma obrigação mas se presume a existência da mesma, nos termos do artº 458º nº 1 do Código Civil.
- É a quem assinou os cheques que incumbe provar a inexistência da relação fundamental de onde emerge a obrigação.
- Em acção declarativa ordinária, não tendo o Réu impugnado especificadamente os factos alegados pela Aª nem resultando tal impugnação do conjunto da sua defesa, devem tais factos ser considerados como admitidos por acordo e assim não devem integrar a base instrutória.

Nestes termos, julga-se procedente a apelação, condenando-se o Réu a pagar à Aª a quantia global de € 28.560,63 acrescida de juros vencidos à taxa legal, contados desde 24/10/2001.

Custas pelo Réu.
LISBOA, 5/6/2008
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais