Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4158/15.6T8FNC-B.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DEFINIDA
CONFISSÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.De acordo com a regra da impugnação definida – cf. artº 572º, c) do CPC, impõe-se ao réu o ónus de discriminar as excepções, na contestação, sob pena de os factos que as integram não se considerarem admitidos por acordo se não forem impugnados pelo autor.
2.Tal como ocorre com as exceções previstas-artº568 do CPC- também a contestação dos factos pelo credor reclamente aproveita aos demais nos termos da alínea a) do preceito referido, pelo que não existirá a confissão para efeitos do disposto no artº 567º do CPC.
3. A regra ínsita no artigo 6.º, n.º3, 1ª parte, do CSC cede perante duas situações: justificado interesse próprio da garante e sociedade em relação de domínio ou de grupo, cujo ónus da prova recai sobre a sociedade garante, ou seja a executada impugnante dos créditos reclamados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
Por apenso à execução ordinária n.º 4158/15.6T8FNC, corre a presente reclamação de créditos em que é exequente Banco…, executado(a/s) A…, Lda, e reclamante(s) o Banco…, S.A., H... e o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional.
Por sentença de 19 de Fevereiro de 2019, com a referência 46766393 (fls. 95-97), oportunamente transitada em julgado, consideraram-se verificados os créditos reclamados pela Fazenda Nacional, remetendo-se para julgamento o apuramento da matéria alegada na reclamação de créditos deduzida pelos restantes reclamantes e oposição da reclamada/executada.
Na verdade, esta última impugnou tais créditos por considerar que os mesmos não existem, invocando o princípio da especialidade.
Invocou ainda que o crédito reclamado não seria passível de ser reclamado por a dívida não ser da sociedade executada, estarmos perante uma hipoteca genérica a favor de terceiro e as referidas reclamações constituírem um abuso de direito.
Com data de 19/02/2019, foi proferido despacho saneador, oportunamente transitado em julgado, no qual se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova, que não foi objecto de qualquer reclamação, tendo sido indeferida no mesmo a produção de determinada prova, bem como julgado improcedente a oposição no que concerne aos fundamentos plasmados no parágrafo que antecede.
Consta de tal despacho, além do mais, o seguinte:«(…)O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, veio reclamar os créditos constantes do(s) requerimento(s) com a(s) referência(s) 1742279, que aqui se dá(ão) por integralmente reproduzido(s), juntando certidão de dívidas fiscais, referente a Imposto Municipal Sobre Imóveis, relativo ao(s) bem(ns) imóvel(is) penhorado(s).
Este crédito, ao contrário do que sucede com os restantes, não veio a ser impugnado — artigo 789.º do Código de Processo Civil.
A penhora efectuada nos autos de execução incide sobre o(s) bem(ns) imóvel(is) melhor descrito(s) no auto de penhora junto aos autos principais, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
A instância é válida e regular, não existindo excepções ou nulidades de que cumpra conhecer.
Cumpre apreciar e decidir, nos termos do artigo 791.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil. Nos termos conjugados do disposto nos n.os 2 e 4 do artigo 791.º do Código de Processo Civil, não tendo sido impugnados os créditos reclamados pela Fazenda Pública Nacional e as respectivas garantias reais, e não ocorrendo nenhuma excepção ao efeito cominatório da revelia ou fundamento que devesse implicar a rejeição liminar da reclamação, julgam-se os mesmos reconhecidos.
No entanto, a sua graduação terá lugar na sentença final que julgue a matéria da existência dos restantes créditos reclamados nos termos do disposto no artigo 791,º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil.
VI — A sociedade executada veio impugnar os créditos reclamados pelo Banco Comercial Português, S.A. e H... invocando, que o crédito reclamado não seria passível de ser reclamado por a dívida não ser da sociedade executada, estarmos perante uma hipoteca genérica a favor de terceiro e as referidas reclamações constituírem um abuso de direito.
Porém, estes três fundamentos não são susceptíveis de pôr em causa os créditos reclamados.
Na verdade, dispõe o artigo 788.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que a reclamação de créditos tem como fundamento a existência de garantia real sobre o bem penhorado, não se prevendo que o crédito garantido tenha de onerar o executado.
Tal sucede para que seja dada a possibilidade ao credor beneficiário de garantia real não perca tal garantia com a venda judicial do bem penhorado. A venda do bem penhorado extingue todos os ónus existentes à data da penhora 824.º, n.º 2, do Código Civil. Mais, o produto da venda executiva somente será distribuído ao credor com garantia real incidente sobre o bem vendido se tiver reclamado o seu crédito na execução. Daí que seja adjectivamente lícito a credor reclamante beneficiário de garantia real incidente sobre bem penhorado reclamar o seu crédito nos termos do disposto no artigo 788.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, em acção executiva em que nenhum dos executados seja o devedor desse crédito reclamado. Por seu turno, o crédito garantido encontra-se determinável, não sendo a concessão de qualquer “carta branca” ao credor, por ter um limite máximo. Logo, não é nula por objecto indeterminável. Já no que concerne ao abuso de direito, trata-se de uma afirmação conclusiva e singela que, sem vir acompanhada da alegação dos demais requisitos desse instituto, não é passível de obstar ao reconhecimento dos créditos reclamados.
Porém, não obstante estes três fundamentos não serem susceptíveis de pôr em causa os créditos reclamados, a impugnante pôs ainda em causa a própria existência dos créditos e a outorga da hipoteca pela sociedade executada seja nula por violação do princípio da especialidade.
Por se tratar de matéria controvertida, carece de produção de prova com os inerentes ónus.».
No mesmo despacho foi ainda identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, da seguinte forma:
«Objecto do litígio Saber: se se verificam os créditos reclamados pelo Banco Comercial Português, S.A. e H... e, na afirmativa, qual a graduação que deverão ter.
Temas de prova: Face à posição das partes vertida nos articulados considera-se como controvertidos, carecendo de prova (seja a documental já junta aos autos, seja outra), os seguintes itens: 1.º existência dos créditos reclamados; 2.º violação do princípio da especialidade
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e proferida sentença que julgou verificados os créditos reclamados e procedeu à sua graduação da seguinte forma:
1.º — os créditos reclamados pela Fazenda Nacional no que concerne a IMI a que respeita o respectivo imóvel a que o crédito diz respeito;
2.º — os restantes créditos reclamados, com o limite de três anos para os juros vencidos e vincendos correspondentemente liquidados, sendo pago 1.º o crédito com registo de hipoteca mais antigo e assim sucessivamente segundo a antiguidade;
3.º — o crédito exequendo.
Inconformada com tal decisão veio a executada recorrer, concluindo da seguinte forma:
«1º O Reclamante H... não apresentou qualquer resposta quanto à Impugnação deduzida contra a respectiva Reclamação de Créditos, pelo que se deve considerar como confessada a matéria de facto invocada para o efeito naquela (arts.8º a 16º).
2.º Assim, deve ser dado como provado que: Dava-se, em relação à sociedade L..., o procedimento de facturação de bens pagos e destinados à mencionada L..., mas com a intervenção meramente formal de uma sociedade C..., em offshore, com o fim de, através da mesma, e do empolamento dos valores daqueles nesta sociedade, encaminhar tais proveitos da dita L... para a mencionada sociedade offshore, de acordo com o Reclamante H...;
3.º Que: Essa foi a leitura de tais operações no âmbito da denominada Operação Furação, em acção inspectiva, que determinou a respectiva tributação como proveito da L... e como despesas confidenciais da mesma;
4.º Que: Concretizando, a sociedade austríaca Aucana era fornecedora regular de aditivos à mencionada L..., destinados ao comércio desta, mas, por indicação do Reclamante H..., os mesmos seriam facturados à dita sociedade offshore C...;
5.º Que: Os bens em causa eram remetidos à L..., e nunca à dita sociedade offshore C...;
6.º Que: A facturação em nome desta apenas se destinava ao encaminhamento para tal offshore, de acordo com o Reclamante H..., dos proveitos da L...;
7.º Que: Assim, e só nos anos de 2002 a 2004, verifica-se que foram dessa forma envolvidos € 1.095.405,44 de proveitos da L...:
Valor Fact  Valor Fact. Diferencial
Aucana      C...
3.640,00      37.709,         12 34.069,12
06-03-2002 26.784,00 176.117,76 149.333,76
17-07-2002 26.784,00 176.117,76 149.333,76
14-11-2002 26.784,00 176.117,76 149.333,76 482.070,40
11-03-2003 26.784,00 176.117,76 149.333,76
22-10-2003 26.784,00 176.117,76 149.333,76 298.667,52
23-02-2004 26.784,00 176.117,76 149.333,76
25-08-2004 7.400,00 23.400,00 16.000,00
23-02-2004 26.784,00 176.117,76 149.333,76 314.667,52
Total 1.095.405,44
8.º Que: Tal operação decorreu, durante vários anos, anteriores àqueles que foram objecto de fiscalização, sensivelmente desde 1996/1997, envolvendo, por norma e por quadrimestre, o diferencial de € 149.333,76 de proveitos devidos à L..., mas de que esta não beneficiou;
9.º E ainda, finalmente, que: Face a essa descapitalização da sociedade L..., esta via-se regularmente na contingência de recorrer ao crédito de ambos os Reclamantes, e, no caso do Reclamante H..., mediante suprimentos tributados à razão do juro anual de 18%.
10.º Assim, a hipoteca constituída a favor do Reclamante H..., sobre o imóvel da ora Recorrente, e que motivou a Reclamação daquele e a Impugnação desta, caso houvesse sido constituída pela sociedade L..., seria nula de acordo com o disposto no nº 6, do artigo 245º do C.S.Com..
11.º Tendo sido constituída pela ora Recorrente, que não se confunde com a L..., não se pode dizer que é nula ao abrigo do indicado normativo, mas sê-lo-á, nas circunstâncias acima descritas, por maioria de razão, por ofensa ao princípio da especialidade – o que expressamente se invoca para todos os efeitos.
12.º Finalmente, constitui abuso de direito a Reclamação de créditos apresentada pelo ora Recorrido, nas indicadas circunstâncias de facto – o que, a título subsidiário, expressamente se invoca para todos os efeitos.
13.º Ao assim não entender, violou o Tribunal a quo o disposto: no art. 574º, n.º 2, associado ao disposto no art. 790º, ambos do CPC; no nº 6, do artigo 245º do C.S.Com., associado ao princípio da especialidade; e no art. 334º do C. Civ.»
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são:
1ª Saber se é de julgar confessados os factos da oposição deduzida pela executada ao requerimento de reclamação do credor H..., por ausência de resposta deste;
2ª Saber se é de considerar e de conhecer a nulidade da hipoteca constituída a favor do mesmo por ofensa ao princípio da especialidade.
3ª Saber se é de conhecer o abuso de direito.
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II. Fundamentação:
Os elementos fácticos considerados na sentença são os seguintes:
1. A 26 de Agosto de 2016, foi penhorada nos autos principais os bens imóveis inscritos na respectiva matriz sob os n.os 504 e 505.
2. Por sentença de 19 de Fevereiro de 2019, com a referência 46766393 (fls. 95-97), oportunamente transitada em julgado, consideraram-se verificados os créditos reclamados pela Fazenda Nacional, respeitantes a IMI.
3. Por escritura pública denominada de “mútuo com hipoteca e hipoteca”, datada de 17 de Dezembro de 2003, no qual figura como primeira outorgante a sociedade “L..., Herdeiros, L.da”, segundo outorgante o reclamante H... e terceira outorgante a reclamada/executada, junta com a reclamação de créditos deste, que aqui se dá por integralmente reproduzida, consta que a primeira se confessa devedora do segundo das quantias aí melhor descriminadas.
4. Consta igualmente que como garantia do pagamento dessas quantias mutuadas pelo segundo à primeira a constituição de hipoteca sobre os mencionados prédios penhorados.
5. Por escritura pública denominada de “hipoteca”, datada de 14 de Julho de 1999, no qual figura como primeira outorgante a reclamada/executada e segundo outorgante o reclamante Banco…, S.A., junta com a reclamação de créditos deduzida por este último, que aqui se dá por integralmente reproduzida, consta que a primeira constitui a favor do segundo hipoteca sobre os mencionados prédios penhorados pelas responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade “L..., Herdeiros, L.da” perante esse banco até ao limite aí melhor descriminado.
6. Por escritura pública denominada de “ampliação de crédito”, datada de 03 de Maio de 2002, no qual figura como primeira outorgante a reclamada/executada e segundo outorgante o reclamante Banco Comercial Português, S.A., junta com a reclamação de créditos deduzida por este último, que aqui se dá por integralmente reproduzida, consta que a primeira amplia para o montante aí melhor discriminado a hipoteca constituída a favor do Banco Comercial Português, S.A. a que se alude no ponto anterior.
7. Nas livranças juntas como documentos n.os 3 e 4 com a reclamação de créditos do Banco Comercial Português, S.A., que aqui se dão por integralmente reproduzidas, consta como subscritora a mencionada sociedade “L..., Herdeiros, L.da”.
8. Trata-se de livranças já vencidas, nas quais consta como credor o Banco Comercial Português, S.A. pelos montantes aí melhor descriminados.
9. Do documento n.º 5, que aqui se dá por integralmente reproduzido, emitido pelo Banco Comercial Português, S.A., consta como a sociedade “L..., Herdeiros, L.da” tendo um saldo devedor de conta bancária no valor aí melhor discriminado.
10. As mencionadas hipotecas encontram-se registadas — cf. certidão de registo predial dos referidos bens junta aos autos principais.
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O Tribunal considerou como não provados os restantes factos alegados pelas partes, designadamente:
a) os artigos 8.º a 14.º da oposição de fls. 36 e seguintes;
b) as escrituras juntas com a respectiva petição inicial de reclamação de créditos são falsas;
c) as livranças e demais documentos juntos com a reclamação de créditos do Banco Comercial Português, S.A. sejam falsas.
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 III. O Direito:
O executado, ora apelante, pretende que o Tribunal considere confessados os factos alegados pelo mesmo em sede de oposição quanto ao credor reclamante H..., confissão essa que nos termos defendidos pela recorrente advém da falta de apresentação de resposta quanto à Impugnação deduzida contra a respectiva Reclamação de Créditos.
Sem por ora cuidar de aferir se se verifica ou não caso julgado quanto a esta questão, o que será abordado infra, pois no saneador julgou-se desde logo parcialmente improcedente tal oposição, não tendo tal despacho sido objecto de recurso, importa aferir se face à ausência de resposta à impugnação do crédito reclamado pelo credor H…, se consideram confessados os factos alegados pela oponente.
Tal apreciação implica ter presente as ocorrências processuais dos autos.
Com data de 28/10/2016, o credor referido apresentou nos termos do artº 788º e ss. requerimento do seguinte teor:« 1º Por escritura de 17 de Dezembro de 2003 a sociedade L... Herdeiros, Lda. confessou-se devedora ao reclamante do total de € 2.250.000,00, sendo € 1.750.000,00 acrescidos de juros à taxa anual de 4,5% (doc. n.º 1). 2.º Para garantia de cumprimento, em 7 de Janeiro de 2004 foi constituída hipoteca sobre o imóvel penhorado nos presentes autos. 3.º O valor actualmente em dívida é de 1.564,097,52. 4.º Ao valor em dívida acrescem juros vincendos até integral pagamento. Assim, deve ser reconhecido o crédito de H... sobre a Executada, no valor de € 1.564,097,52 acrescido de juros vincendos.».
Com data de 2/11/2016, veio o credor Banco Comercial Português reclamar o seu crédito, invocando, além do mais, a celebração de uma escritura pública denominada de “hipoteca”, datada de 14 de Julho de 1999, no qual figura como primeira outorgante a reclamada/executada e segundo outorgante o reclamante Banco Comercial Português, S.A., , consta que ora executada constitui a favor do BCP hipoteca sobre os mencionados prédios penhorados pelas responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade “L..., Herdeiros, L.da” perante esse banco até ao limite aí melhor descriminado. E por escritura pública denominada de “ampliação de crédito”, datada de 03 de Maio de 2002, no qual figura como primeira outorgante a reclamada/executada e segundo outorgante o reclamante Banco Comercial Português, S.A., junta com a reclamação de créditos deduzida por este último, que aqui se dá por integralmente reproduzida, consta que a primeira amplia para o montante aí melhor discriminado a hipoteca constituída a favor do Banco Comercial Português, S.A. a que se alude no ponto anterior.
A executada deduziu oposição em conjunto e relativamente a ambos os credores reclamantes, alegando que:« Em relação à hipoteca em que funda a respectiva reclamação de créditos, o reclamante Banco Comercial Português não é detentor de qualquer crédito sobre a Reclamada. 2º Nos próprios e expressos termos da respectiva reclamação estão em causa, pelo contrário, alegadas responsabilidades de outra sociedade, L..., perante o mencionado Banco, quaisquer que elas fossem, designadamente em termos de origem, finalidade, e data, até ao montante de € 4.445.793,00. 3º Ou seja, excepção feita a esse limite máximo, está em causa uma hipoteca absolutamente genérica a favor de terceiro. 4º A Reclamada não interveio nem beneficiou e, além do mais, objectivamente é alheia, a qualquer um dos alegados créditos devidos pela L..., os quais expressamente impugna. 5º Impugna, nessa sequência, o teor, autenticidade, as letras e as assinaturas dos documentos juntos pelo Reclamante Banco Comercial Português sob os nºs 3 a 5 da respectiva reclamação. Acresce que, 6º Tal hipoteca, por ofender o princípio da especialidade é nula, nulidade esta que a Reclamada argúi expressamente para todos os efeitos. 7º Tal nulidade, por manifesta ofensa ao fim da Reclamada, é do pleno conhecimento do mencionado Reclamante, que bem sabe que a mesma não interveio nem beneficiou de qualquer valor ao abrigo da mencionada hipoteca. 8º O Reclamante, pelo contrário, mesmo em relação à própria sociedade L... teve conhecimento do procedimento de facturação de bens pagos e destinados à mencionada L..., mas com a intervenção meramente formal de uma sociedade C..., em offshore, com o fim de, através da mesma, e do empolamento dos valores daqueles nesta sociedade, encaminhar tais proveitos da dita L... para a mencionada sociedade offshore, de acordo com o Reclamante H... – leitura essa pelo menos que terá sido a da denominada Operação Furação, em acção inspectiva, que determinou a tributação de tais operações como proveito da L... e como despesas confidenciais da mesma (cfr. docs. 1 a 13 que protesta juntar). Concretizando: 9º A sociedade austríaca Aucana era fornecedora regular de aditivos à mencionada L..., destinados ao comércio desta, mas, por indicação do Reclamante H..., os mesmos seriam facturados à dita sociedade offshore C.... 10º Os bens em causa eram remetidos à L..., e nunca à dita sociedade offshore C.... 11º A facturação em nome desta apenas se destinava ao encaminhamento para tal offshore, de acordo com o Reclamante, dos proveitos da L.... 12º Assim, e só nos anos de 2002 a 2004, verifica-se que foram dessa forma envolvidos € 1.095.405,44 de proveitos da L... (…). 13º Tal operação decorreu, durante vários anos, anteriores àqueles que foram objecto de fiscalização, sensivelmente desde 1996/1997, envolvendo, por norma e por quadrimestre, o diferencial de € 149.333,76 de proveitos devidos à L..., mas de que esta não beneficiou. 14º Face a essa descapitalização da sociedade L..., esta via-se regularmente na contingência de recorrer ao crédito de ambos os Reclamantes, e, no caso do Reclamante H..., mediante suprimentos tributados à razão do juro anual de 18%. 15º A hipoteca constituída a favor deste último, se houvesse sido constituída pela sociedade L..., seria nula de acordo com o disposto no nº 6, do artigo 245º do C.S.Com.. 16º Tendo sido constituída pela Reclamada, que não se confunde com a L..., sendo esta a única alegada devedora, não se pode dizer que é nula ao abrigo do indicado normativo, mas sê-lo-á, nas circunstâncias acima descritas, por maioria de razão, por ofensa ao princípio da especialidade, em relação à Reclamada. 17º Caso, por mera hipótese, e sem conceder, se entenda que não se verifica a nulidade da hipoteca constituída a favor do Reclamante BCP e do Reclamante H... por ofensa ao princípio da especialidade, sempre se dirá que, nas circunstâncias acima descritas, constitui abuso de direito a reclamação por aqueles de créditos com base nas mesmas, o que a Reclamada invoca expressamente e para todos os efeitos.».
A reclamante BCP veio responder além do mais, impugnando os factos alegados na oposição sob os artº 8º a 16º e nos termos do artº 574º nº 3 do CPC, e especificamente o constante dos artºs 5º, 17º e 18º da impugnação da executada – cf. fls. 45 a 50.
O credor H... veio em resposta dizer que considerando que a executada protestou juntar 13 documentos, o prazo a que alude o artº 790º do CPC deverá iniciar-se após tal junção ( cf. fls. 42 vº). Juntos os mesmos veio o credor, a 23/11/2016, requerer a respectiva tradução, o que foi deferido por despacho de fls. 90, a 18/07/2017 e reiterado com data de 29/06/2018 e com data de 8/10/2018, mas com a cominação de não serem aceites. A executada não procedeu à junção de tais traduções.
Ainda que no caso concreto importa ter presente os preceitos relativos à impugnação dos créditos e resposta – cf. artº 789º e 790º do CPC, sempre haverá que considerar que as disposições reguladoras do processo comum, pois estas são aplicáveis ao processo de execução por força do artº 551º do CPC. Logo, ainda que na impugnação tal como se encontra prevista e regulada no artº 789º do CPC não se preveja a cominação da falta de oposição, esta está contida na norma geral do artº 574º do CPC.
O art. 574.°, n.° 1 do CPC, impõe que o réu tome posição definida perante cada um dos factos que constituem a causa de pedir. Na falta de impugnação desses factos, os mesmos são considerados admitidos por acordo (art. 574.°, n.° 2). A exigência de que o réu tome posição definida sobre os factos alegados pelo autor como causa petendi significa que a mera negação global não é suficiente: a posição do réu tem de ser definida, isto é, tem de se reportar a factos concretos( cf. Miguel Teixeira de Sousa in “Scientia Iuridica”, tomo LXII/2013, pág. 408 e ss. “Algumas questões sobre o ónus de alegação e impugnação”).
Em regra, a impugnação do facto basta-se com a sua negação, não sendo necessária a apresentação de uma versão contrária dos factos impugnados. No entanto, o quantum da impugnação pode variar consoante as situações. Assim, no dizer de Miguel Teixeira de Sousa ( in ob. Cit. Pág. 409):« O quantum da impugnação é reduzido relativamente aos factos que o réu não tem obrigação de conhecer; em relação a estes factos, é suficiente a afirmação do desconhecimento do facto para que este deva ser considerado impugnado; portanto, relativamente a factos que não é exigível que o réu conheça, o ónus de impugnação é cumprido através da mera declaração evasiva; O quantum da impugnação aumenta em relação aos factos que o autor não tem a obrigação de conhecer e que o réu não pode deixar de conhecer; quanto a estes factos, o réu tem um ónus de contra-afirmação, pelo que lhe incumbe, se os quiser impugnar, dar uma outra versão dos mesmos; por exemplo: (i) o autor de uma acção de investigação da paternidade invoca que o réu viveu, durante algum tempo, numa certa cidade; se o réu quiser impugnar o facto, não basta negar que tenha vivido, nos referidos anos, nessa cidade, antes lhe cabendo alegar onde viveu durante esses anos; (ii) numa acção de responsabilidade civil médica, o autor alega que o médico usou uma determinada técnica terapêutica; se este réu quiser impugnar esse facto, não é suficiente que negue o uso dessa técnica, competindo-lhe antes o ónus de alegar qual a técnica terapêutica de que se socorreu; portanto, em relação a factos que não é exigível que o autor conheça e que é exigível que o réu não desconheça, o ónus de impugnação só é cumprido através de um ónus de contra-afirmação.»
O referido porém, reporta-se ao ónus de contra-afirmação imposto ao réu, pelo que não implica a atribuição de nenhum ónus da prova a esse réu. O autor continua a ter o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito (cf. art. 342.°, n.° 1, do Código Civil), cabendo-lhe provar a veracidade do facto que alega ou — o que pode ser mais frequente — a não veracidade do facto invocado pelo réu. O que varia é apenas o ónus de alegação, não o ónus da prova: aquele cabe ao réu, este continua a incumbir ao autor. Só assim não sucede se o réu tiver culposamente tornado impossível a prova ao autor, pois que, neste caso, verifica-se a inversão do ónus da prova (cf. art. 344.°, n.° 2, do Código Civil) ou outras circunstâncias previstas legalmente.
Princípio basilar do processo civil é ainda o que se prende com a oportunidade de dedução da defesa, sendo que esta deve ser deduzida na contestação – artº 573º do CPC- excepcionando-se apenas os meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou que se deva conhecer oficiosamente.
Como refere José Lebre de Freitas (in “A Ação Declarativa Comum – À Luz do Código de Processo Civil de 2013, pp. 97-98), estão em causa, no n.º 2 do artigo 573.º citado: «meios de defesa supervenientes, abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objetiva), quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação, mas só posteriormente é conhecido pelo réu (superveniência subjetiva), devendo em ambos os casos ser alegado em articulado superveniente (art. 588-2); meios de defesa que a lei expressamente admita posteriormente à contestação; meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, abrangendo a impugnação de direito (art. 5-3) e a maioria das exceções dilatórias (art. 578) e perentórias (art. 579), sem prejuízo de os factos em que as exceções se baseiem só poderem ser introduzidos no processo pelas partes (salvo os casos excecionais em que é permitido o seu conhecimento oficioso: art. 412), na fase dos articulados ou com os limites definidos para a alegação de facto em articulado superveniente […].»
Acresce que como menciona o mesmo autor: «Corolário do princípio da concentração é a preclusão. O réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (excetuadas apenas as que forem supervenientes) e deduzir as exceções não previstas na norma excecional do art. 573-2. Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer» (ob. cit., pp. 98-99).
Tais princípios são ainda aplicáveis  à resposta do autor, quanto aos factos novos por força da remissão do artº 587º para o artº 574º do CPC, ou seja neste caso para o artº 790º do CPC.
Com efeito, ainda que seja normalmente em relação à contestação que se trata da impugnação e do ónus da impugnação, esta não deixa de ser uma questão mais geral, que se coloca a ambas as partes e em relação aos factos alegados pela parte contrária. Daí que o artigo 587º estende a regra do ónus da impugnação à “falta de apresentação da réplica ou (à) falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu” .
Todavia, a posição do Autor é diferente caso estejamos perante a alegação de factos novos ou tenha sido invocada uma excepção, pois neste caso impõe-se ao réu o ónus de discriminar as excepções, na contestação, sob pena de os factos que as integram não se considerarem admitidos por acordo se não forem impugnados pelo autor, de acordo com a regra da impugnação definida – cf. artº 572º, c) do CPC.
No caso dos autos a recorrente pretende que se considere que face à ausência de resposta à matéria de excepção por parte de um dos credores reclamantes, tal tenha como consequência a confissão pelo mesmo de tais factos. Ora, no caso concreto não lhe assiste razão.
Em primeiro, lugar só no caso de impugnação definida, ou seja só se o reclamado tivesse na sua oposição discriminado a excepção, é que a falta de impugnação do reclamante determinaria a confissão dos factos que lhe subjazem, o que in casu não ocorre.
 Em segundo lugar, a impugnação dos créditos efectuada pela executada, ora apelante, foi feita ao conjunto dos credores BCP e Hugo Gomes, com os mesmos fundamentos factuais em termos de excepção. Ora, o credor reclamante BCP impugnou todos os factos constantes da oposição e que se reportam às excepções deduzidas pelo devedor.
Deste modo, tal como ocorre com as exceções previstas quanto aos efeitos da revelia, previstas no artº 568º do CPC, também a contestação dos factos pelo credor reclamente aproveita aos demais nos termos da alínea a) do preceito referido, pelo que não existirá a confissão para efeitos do disposto no artº 567º do CPC.
Acresce que in casu o credor reclamante Hugo Gomes veio desde logo anunciar nos autos que apenas estaria apto a cumprir o disposto no artº 790º do CPC e, logo, responder à oposição deduzida pela executada, juntos que fossem os documentos que a apelante protesto juntar e que alegadamente sustentavam a sua impugnação. E efectivamente a execuatda veio juntar tais documentos posteriormente, sem que tal requerimento tivesse sido apreciado, mas notificado o credor reclamante de tal junção, o mesmo apresentou requerimento a solicitar a tradução dos documentos, dado que redigidos em língua estrangeira. Foram proferidos despachos a notificar a executada para proceder à sua tradução idónea, o último dos quais sob pena de desentranhamento, mas sem que a executada tenha feito tal junção. Donde, não é imputável ao credor reclamante a falta de resposta nos termos do artº 790º do CPC e o seu eventual efeito cominatório, mas ainda que tal pudesse ser considerado, sempre aproveita ao mesmo a impugnação dos factos contidos na impugnação efectuada pelo outro reclamante, afastando assim a confissão dos mesmos. Além disso, não cumpriu a reclamante o ónus de impugnação  previsto no artº 572º alínea b), o que retira logo o efeito cominatório, mesmo no caso de falta de apresentação de resposta. 
Deste modo improcede nesta parte o recurso e que se reportava às conclusões 1º a 10º das alegações da apelante.
Quanto à violação do princípio da especialidade e do abuso de direito, haverá que considerar a decisão proferida em sede de saneador e que não foi objecto de recurso, pelo que transitou em julgado.
Senão vejamos.
No despacho saneador o tribunal recorrido, face às reclamações de crédito e que foram objecto de impugnação pela executada e que ora também se discute, veio decidir o seguinte:« A sociedade executada veio impugnar os créditos reclamados pelo Banco Comercial Português, S.A. e H... invocando, que o crédito reclamado não seria passível de ser reclamado por a dívida não ser da sociedade executada, estarmos perante uma hipoteca genérica a favor de terceiro e as referidas reclamações constituírem um abuso de direito.
Porém, estes três fundamentos não são susceptíveis de pôr em causa os créditos reclamados.
Na verdade, dispõe o artigo 788.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que a reclamação de créditos tem como fundamento a existência de garantia real sobre o bem penhorado, não se prevendo que o crédito garantido tenha de onerar o executado.
Tal sucede para que seja dada a possibilidade ao credor beneficiário de garantia real não perca tal garantia com a venda judicial do bem penhorado. A venda do bem penhorado extingue todos os ónus existentes à data da penhora 824.º, n.º 2, do Código Civil. Mais, o produto da venda executiva somente será distribuído ao credor com garantia real incidente sobre o bem vendido se tiver reclamado o seu crédito na execução. Daí que seja adjectivamente lícito a credor reclamante beneficiário de garantia real incidente sobre bem penhorado reclamar o seu crédito nos termos do disposto no artigo 788.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, em acção executiva em que nenhum dos executados seja o devedor desse crédito reclamado. Por seu turno, o crédito garantido encontra-se determinável, não sendo a concessão de qualquer “carta branca” ao credor, por ter um limite máximo.
Logo, não é nula por objecto indeterminável. Já no que concerne ao abuso de direito, trata-se de uma afirmação conclusiva e singela que, sem vir acompanhada da alegação dos demais requisitos desse instituto, não é passível de obstar ao reconhecimento dos créditos reclamados.
Porém, não obstante estes três fundamentos não serem susceptíveis de pôr em causa os créditos reclamados, a impugnante pôs ainda em causa a própria existência dos créditos e a outorga da hipoteca pela sociedade executada seja nula por violação do princípio da especialidade.
Por se tratar de matéria controvertida, carece de produção de prova com os inerentes ónus.».
No despacho transcrito o tribunal entendeu desde logo, que nem a garantia do crédito invocado era nulo, nem existia abuso de direito, e sobre esta decisão não foi apresentado recurso, pelo que a mesma transitou nos termos doas artº 627º e 628º ambos do CPC.
No entanto, mesmo que assim não se entenda e não existindo alterabilidade dos factos considerados na sentença a quo, dada a improcedência quanto à pretensão que fosse considerada a confissão do credor reclamante, manifestamente também não lhe assite razão.
Como bem se fundamenta pelo tribunal recorrido:«O crédito reclamado por H... encontra-se alicerçado em escritura pública na qual a sociedade executada se confessou devedora e se alude a mútuo.
Trata-se de título executivo no qual uma sociedade reconhece ser devedora da quantia mutuada, tendo, no mesmo acto, a sociedade executada constituído hipoteca a favor do mutuante/credor para garantir o pagamento da quantia cuja dívida foi confessada.
Não tendo a oponente/executada demonstrado que a mencionada escritura plasmava um documento falsificado, o título executivo que fundamenta a reclamação de créditos não é posto em causa — cf., nesse sentido, o ac. do STJ de 31.05.2011, processo n.º 4716/10.5TBMTS-A.S1, disponível in www.dgsi.pt. Como é referido no ac. do STJ de 28.09.2017, processo n.º 1570/13.9TBCSC-A, o título executivo extrajudicial constitui documento probatório da declaração de vontade constitutiva de uma obrigação, pelo que constando a obrigação exequenda do título — o embargante confessa-se aí devedor da quantia mutuada —, a efectiva existência da obrigação decorre, presuntivamente, daquele documento, não constituindo, portanto, o reconhecimento da correspondência do conteúdo daquele título com a realidade, pressuposto da execução.
Isto é, gozando o portador do título de uma presunção legal, está ele dispensado de provar o facto presumido, devendo a contra-parte ser admitida a provar o contrário (ou seja, a não verificação daquele facto presumido) — artigo 350.º, n.os 1 e 2, do Código Civil.
No fundo, a mencionada escritura pública é suficiente para alicerçar o crédito reclamado por H..., cabendo à oponente/reclamada, na qualidade de titular do bem hipotecado garante da dívida, impugnar o crédito reclamado, indicando em que medida o mesmo não corresponde à realidade e demonstrando tal factualidade.
Constituindo, pois, matéria de excepção eventuais pagamentos, cumprimento do contrato — artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
As considerações efectuadas tanto têm pertinência na versão do Código de Processo Civil anterior a 2013 — versão em vigor à data da constituição do título executivo — como à data de hoje, dado não ter havido alterações legislativas de relevo na matéria que nos ocupa além de renumeração dos preceitos legais em causa. Iguais considerações valem, mutatis mutandis, para o crédito reclamado pelo Banco Comercial Português, S.A.. A oponente, no momento em que assume a constituição de uma hipoteca para garantir créditos do Banco Comercial Português, S.A. sobre uma sociedade em concreto até determinado limite pecuniário — seja a título de créditos existentes, seja a título de créditos futuros — está a aceitar tal existência, não podendo escudar-se no desconhecimento da existência de eventuais títulos de câmbio para opor com sucesso ao credor o accionamento da hipoteca.(…).».
No que concerne à nulidade da garantia de hipoteca por violação do princípio da especialidade, alude-se na sentença sob recurso que: «Trata-se de princípio que determina os limites da capacidade de gozo de uma sociedade e que se encontra previsto para as pessoas colectivas em geral no artigo 160.º do Código Civil e, especificamente para as sociedades comerciais, como é o caso dos autos, no artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais.
Este preceito, que “tem sido objecto de inúmeros estudos”, nas palavras de PAULO OLAVO CUNHA (Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., Coimbra, 2012, pág. 81), cuida especialmente das liberalidades, e obriga à consideração concreta do seu significado no contexto global da actividade da sociedade que as pratica.
Pode todavia afirmar-se que “(…) de acordo com o (…) princípio da especialidade do fim (…), que integra o factor determinante e específico da constituição das sociedades, quer civis, quer comerciais, que os actos gratuitos, como ocorre relativamente à doação – art. 940. nº 1, do CC – se mostram, regra geral, excluídos da capacidade de gozo daquelas sociedades, por não necessários ou convenientes à prossecução do aludido fim [“obtenção de lucros a distribuir pelos respectivos sócios ou accionistas”], como se estatui no art. 160.º, n.º 1, a contrario, do CC, relativamente às sociedades civis, pelo que a sua prática por parte daquelas tem como directa e imediata consequência, que sobre os mesmos incida a ocorrência do vício respeitante à sua nulidade” — acórdão do STJ de 10.01.2010, processo n.º 2380/05.2TBOER.S1, disponível in www.dgsi.pt.
No entanto, tendo em conta os contornos com que a oponente invoca a violação do princípio da especialidade, a averiguação aprofundada da eventual desconformidade dos actos impugnados com o fim da sociedade oponente só teria utilidade se estivesse demonstrada a respectiva gratuitidade; mas essa prova não foi feita, nem invocada de forma suficiente.
Desconhece-se a que título a oponente aceitou constituir hipoteca sobre o seu património para garantir a dívida de terceira sociedade, nem por que o fez e se o fez a título de liberalidade ou por outra razão, designadamente vantagens para prosseguir o seu fim societário.
Não é despiciendo que sociedades ajam entre si, beneficiando da acção de outra para lhe trazer mais clientes ou maiores oportunidades de negócio, o que não conduz a haver qualquer “animus donandi” subjacente a uma liberalidade. A oponente não invoca nem demonstra factualidade suficiente para se concluir que a hipoteca em causa tem a natureza de liberalidade, nem a ausência de contrapartida, nem muito menos “a intenção de proporcionar gratuitamente um enriquecimento a outrem” (CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª ed., Lisboa, 2010, pág. 82).
A ausência de prova e alegação não conduz necessariamente que a hipoteca tenha a natureza de liberalidade, pois para tal suceder, repita-se teria de ter sido invocado e demonstrado, o que não sucedeu, a constituição da hipoteca a título gratuito em relação à sociedade devedora e que a oponente o fez com a intenção de lhe proporcionar gratuitamente um enriquecimento a outrem, sem qualquer contrapartida, ainda que de almejar advir-lhe daí benefícios comerciais. É de notar que, enquanto matéria de excepção, cabia à oponente alegar e demonstrar tal natureza, intenção e ausência de qualquer contrapartida — cf. ac. do STJ de 18.10.2012, processo n.º 160-Q/2001.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt. Por essas razões não se conclui pela invocada nulidade da constituição da hipoteca.».
Com efeito, o artigo 160º Código Civil, com a epígrafe Capacidade, dispõe que “a capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins”, excetuando, porém, todos aqueles que sejam “vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular”. Quer isto dizer que, independentemente do recorte que seja dispensado, em termos definitórios, à capacidade de gozo das pessoas colectivas, o círculo de direitos e de obrigações que elas titulam se vê limitado por três vias: pela natureza das coisas; pelas disposições legais e pelo princípio da especialidade do fim ( cf. Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil” vol. I pág. 597).
No caso dos autos invoca o apelante, como fundamento da nulidade das hipotecas constituídas, o princípio da especialidade do fim. Sobre este existem três posições doutrinárias principais: os que negam a relevância do princípio, aos que a afirmam, e destes os que o ligam ao problema da capacidade de gozo das pessoas colectivas e os que o associam a uma ideia de legitimidade para agir ( seguimos de perto o estudo da profª Mafalda Miranda Barbosa “reflexões acerca do princípio da especialidade do fim”, pág. 16 e ss.).
Defende Menezes Cordeiro que “o denominado princípio não restringe hoje a capacidade das pessoas colectivas; tal como emerge do artigo 160º/1, ele diz-nos, no fundo, que todos os direitos e obrigações são, salvo raras exceções (…), acessíveis às pessoas colectivas” (in ob. Cit. Pág. 598).
Também Oliveira Ascensão vai no sentido da capacidade genérica das pessoas colectivas, dizendo que a consideração do fim não implica uma limitação daquela, ou só implicará quando “em hipóteses extremas, quando a prossecução do fim for incompatível com a titularidade de certas situações jurídicas. A eventual anomalia residirá no desvio em relação ao fim, e não na incapacidade. Pois a pessoa colectiva pode praticar actos daquela categoria e ser titular dos direitos dela derivados. O que não pode é praticá-los de maneira a afastar-se dos seus fins” (Direito Civil – Teoria Geral, págs. 275 s ). Logo, para este autor, as limitações decorrentes do artigo 160º/2 do CC não interferem na definição dos contornos da referida capacidade.
No mesmo sentido, Pais de Vasconcelos que expõe que “o fim, concretizado pelo objecto social, quer dizer, o fim social em sentido concreto, não tem a ver com o âmbito da capacidade de gozo das pessoas colectivas, mas antes com a legitimidade da pessoa coletiva para agir sobre bens, interesses e situações jurídicas que sejam alheias a esse mesmo fim. A questão que suscita não é de incapacidade, mas antes de ilegitimidade. Trata-se de ajuizar se certo ato ou certa atividade da pessoa colectiva tem com o fim social aquela especial relação que permite concluir sobre a legitimidade ou ilegitimidade do ato ou actividade”. E assim, o mesmo autor sustenta que, em caso de desvio do fim, a sanção mais adequada é a ineficácia, reservando-se a nulidade para as situações mais graves em que o ato é contrário à ordem pública. Nas suas palavras, “assim sucederá quando o objecto da pessoa colectiva esteja fora da sua disponibilidade, seja fixado por lei ou autorizado ou aprovado pelo Estado, com sentido de Ordem Pública, de tal modo que a prática do ato ultra vires se traduza numa ofensa à ordem pública subjacente à fixação (ou à aprovação ou autorização) do objeto social”. Do mesmo modo, a sanção deverá ser a nulidade quando a prática do ato seja proibida por lei. Simplesmente, “nestes casos, porém, a nulidade não é consequente da falta de capacidade de gozo da pessoa colectiva, mas antes de contrariedade a lei injuntiva ou à ordem pública do ato praticado (artigo 280º)”( P. Pais de Vasconcelos in “Teoria Geral do Direito Civil” pág. 171 ).
Na doutrina dita mais tradicional, seguida por norma pela jurisprudência, defende-se, todavia, que face ao este princípio a capacidade de gozo das pessoas colectivas fica limitada pela consideração dos actos que sejam necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, isto é, pelo princípio da especialidade do fim. Assim, sustentam Manuel de Andrade( in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, Coimbra, Almedina, 1997 págs. 112 ) Antunes Varela ( in Código Civil anotado, I, reimpressão 4ª ed., Coimbra Almedina, 2010, pág. 165), Mota Pinto ( in  Teoria Geral do Direito Civil, págs. 319) e Carvalho Fernandes ( in Teoria Geral do Direito Civil, I, Lisboa, Universidade Católica Editora, pág. 592 e ss.). Em termos jurisprudenciais, decidiu-se nomeadamente no Ac. do STJ de 13 de Abril de 1994, pela validade de um contrato de prestação de serviços celebrado por um sindicato, apesar da natureza lucrativa do mesmo. E no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1998, definindo o princípio da especialidade do fim como o que se “traduz na prática de atos adequados ao escopo, à razão de ser da pessoa coletiva”, sustenta que “tal princípio esbate-se no âmbito das sociedades comerciais, quando o artigo 4º CSC exara que as cláusulas contratuais e certas deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objeto ou proíbam a prática de certos atos não limitam a capacidade da sociedade”.
Também no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República de 27 de Abril de 1995, considerou-se que, “de acordo com o princípio da especialidade do fim, (…) a actividade jurídica das pessoas colectivas não pode ultrapassar os limites do escopo que lhes está assinalado, pelo que só para a satisfação dos interesses que constituem fins ou atribuições do ente jurídico podem ser exercitados direitos e contraídas obrigações”.
Mas como refere Mafalda Miranda Barbosa depois de analisar várias decisões judicias «(…)  afirmar-se que, se é certo que os vários operadores judiciários continuam fiéis a uma ideia de especialidade do fim, compreendida ao nível da capacidade de gozo das pessoas coletivas, não é menos seguro que se assiste a um alargamento dos contornos do princípio que, ganhando elasticidade, perde o seu caráter rígido, ao ponto de alguns autores falarem da sua erosão.» ( in ob. Cit. Pág. 23 )
Concluindo a mesma autora que há «(…)uma íntima conexão entre a natureza e o fundamento da personalidade colectiva e o círculo de direitos e obrigações que a pessoa titula, donde se pode concluir que o princípio da especialidade do fim, plasmado no artigo 160º C. Civ., encontra o seu fundamento na natureza da personalidade colectiva» mas prosseguindo ainda que « Com o regime contido no artigo 160º C. Civ. não se estão, de facto, a proteger, em primeira linha, os interesses dos credores da pessoa coletiva ou dos membros – pessoas singulares – que as integram, mas a garantir a incolumidade do substrato que serviu de base à personificação.». ( ob. Cit. Pág. 31 e ss.)
Face a esta conclusão no caso de sociedades comerciais acabou por ficar plasmado no artigo 6º CSC que “a capacidade das sociedades compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular”, explicitando-se no nº 2 que “as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta”. Quer isto dizer, ao contrário, que o artigo 6º/2 conjugado com o artigo 6º/1 CSC vem considerar que as liberalidades, em regra, estão excluídas da capacidade das sociedades, por contrariarem o seu fim. Porém, haverá que aferir do acto praticado pela sociedade, em todas as suas nuances ou particularidades do caso concreto, por forma a poder concluir se determinado acto integra ou não a categoria de acto a que abstratamente pertence e que estará excluído da capacidade e, logo, será nulo.
Cassiano dos Santos sustenta, porém, que haverá que temperar o princípio da especialidade do fim com o princípio da proteção da confiança de terceiros. Assim sendo, em nome dessa confiança e segundo a posição do comercialista, não podemos considerar que um ato em abstrato integrado na capacidade de gozo de uma pessoa colectiva possa depois vir a ser dela excluído e, portanto, considerado nulo ( in “Estrutura associativa e participação societária capitalística, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, págs. 245-257), porém tal teria interesse caso estivéssemos perante um acto gratuito, o que não resulta dos autos.
 Logo, tendo por base o mesmo princípio haverá que considerar o artigo 6º/3 CSC, que dispõe que as sociedades comerciais não têm capacidade para prestar garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir um justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de uma sociedade em relação de domínio ou de grupo. No fundo, articulando com o nº1 do artigo 6º CSC, o artigo 6º/3 CSC vem dizer-nos que a prestação de garantias, em abstrato integradas na categoria das liberalidades (por referência à pessoa garantida), não deve ser vista como tal em dadas circunstâncias.
Acresce que a regra ínsita no artigo 6.º, n.º3, 1ª parte, do CSC - falta de capacidade jurídica das sociedades comerciais para prestarem garantias a favor de outras entidades –, cede perante duas situações: justificado interesse próprio da garante e sociedade em relação de domínio ou de grupo. Ora, o ónus da prova de inexistência de justificado interesse da sociedade recai sobre a sociedade garante, ou seja a executada impugnante dos créditos reclamados e dada a posição que assume nestes autos. Pois como se decidiu no Acórdão do STJ de 16/11/2017 « a questão de saber a quem incumbe fazer a prova de determinado facto não é apriorística pois que, sendo decidida pelo tribunal no caso de não ter sido feita a demonstração do facto, é sempre avaliada, na situação concreta, em função do direito invocado e da pretensão deduzida.».
Assim, no caso dos autos a sociedade garante, face ao direito invocado pelos credores reclamantes e as garantias prestadas pela mesma nas escrituras públicas que alicerçavam os seus direitos, bem como o registo constitutivo das hipotecas, ou seja situações abrangidas pela força probatória plena do documento autêntico (artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil), invocou como excepção o princípio da especialidade e a subsequente nulidade dos actos –cf. Artº 494º do CC e 6º nº 3 do CSC. Porém, os elementos constitutivos de tal princípio que serviriam de agasalho à nulidade das garantias teriam de resultar demonstrados pela executada, como beneficiária da nulidade, competindo-lhe assim o ónus de demonstrar a inexistência de justificado interesse próprio. (Nesse sentido Acórdãos do STJ de 30-09-2004, de 07-10-2010, de 28-05-2013 e de 26-09-2013, entre outros- todos in www.dgsi.pt/jstj).
Tem sido assim entendido que pelo facto de a sociedade ter tomado posições contrárias à boa fé, a sancionar com a inversão do ónus da prova, quer ainda por a sociedade se encontrar em posição privilegiada para fazer prova de tal facto – artigo 344.º, do Código Civil.
Acresce que a capacidade de gozo da sociedade comercial abrange os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do fim lucrativo, visando a limitação legal na actuação da sociedade a protecção dos interesses de terceiros, designadamente dos credores. Logo, competiria á executada fazer prova dos facos que consubstanciariam a nulidade dos autos, o que não logrou fazer, pelo que improcede também o recurso quer nesta parte, quer no alegado em termos puramente conclusivo em relação ao abuso de direito e sobre o qual aliás, já havia recaído decisão, transitada em julgado.
Quanto à alegada situação de abuso de direito, inexistem factos que nos permitam concluir pela sua existência, e além disso, já em sede de saneador tal questão havia sido abordada, pelo que há caso julgado quanto à mesma.
Assim, quer pelos fundamentos constantes da decisão recorrida, cujo acerto quanto à solução jurídica não nos merece qualquer reparo, quer pelos fundamentos referidos, o recurso é improcedente na íntegra.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso improcedente interposto pela executada/reclamada, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
                                                                                  Lisboa, 21 de Novembro de 2019
Gabriela Fátima Marques
Adeodato Brotas
Fátima Galante