Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4021/2004-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE ADOLESCENTES
INTERESSE PROTEGIDO
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
INVALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O procedimento criminal pelo crime de abuso sexual de crianças pode ter início por iniciativa do MºPº se o interesse da vítima assim o impuser – artº 178º, nº 4 do C.Penal;
II – Prevalecendo, assim, o interesse da vítima o procedimento criminal deixou de estar na disponibilidade dos ofendidos ou de quem os represente sendo portanto o crime de natureza atípica o que determina a invalidade da desistência das queixas apresentadas pelas vítimas ainda que tenham completado 16 anos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5 ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. No processo de inquérito n.º 101/03.3 PDL do 4º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, em que é arguido L., iniciado com base na iniciativa processual do MºPº nos termos do art.º 178º, n.º4 CPP, conforme resulta do despacho de fls. 8 e ss. do processo em causa, foi proferido, no seguimento dos requerimentos de desistência de queixa apresentados por S. e M., despacho que julgou válidas e relevantes as referidas desistências de queixa e declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido, relativamente aos crimes de acto sexual com adolescente p.p. pelo art.º 174º CP, abuso sexual de criança p.p. pelo art.º 172º, n.º1 CP e acto homossexual com adolescente p.p. pelo art.º 175º CP.

Inconformado com esta decisão, interpôs recurso o MºPº junto do Tribunal “a quo” motivando-o com as conclusões:
- Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual previstos no CP têm, em regra natureza semi-pública, uma vez que o procedimento criminal depende de queixa do ofendido ou de outras pessoas ;
- É o caso dos crimes de abuso sexual de criança e actos sexuais e homossexuais com adolescentes p.p. pelos art.ºs 172º, n.º1, 174º e 175º CP de que se encontra acusado o arguido Luís Arruda ;
- Quando os crimes forem praticados contra menor de 16 anos de idade pode o MºPº dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser (art.º 178º, n.º4 CP);
- No caso presente foi o MºPº que, depois de ter tomado conhecimento dos factos pela imprensa e, depois através de uma participação da Comissão de Protecção de Menores e Jovens de Lagoa, deu início ao procedimento criminal contra o arguido L. e outros, ao abrigo do disposto no art.º 178º, n.º4 CP, invocando o interesse das vítimas, menores de 16 anos de idade e fundamentando a sua posição (cfr. fls 8 e ss.);
- Não podem pois relevar as desistências de queixa dos menores S. e M.;
- É que, nos termos do art.º 116º, n.º2 CP, só o queixoso, isto é quem tenha legitimamente exercido o direito de queixa, pode desistir dela;
- Tendo o processo sido iniciado, oficiosamente, pelo MºPº, no interesse das vítimas, o respectivo procedimento criminal deixou de estar na disponibilidade dos ofendidos, isto é da S. e do M. ou dos seus representantes legais ;
- Nesta conformidade, as desistências de queixa apresentadas são irrelevantes;
- A Mm.ª Juiz de instrução não podia considerara as desistências válidas e relevantes declarando extinto o procedimento criminal contra o arguido sem ter em atenção a forma como foi iniciado o processo e sem ter atenção se tais desistências iam ao encontro dos interesses dos menores como fundadamente o MºPº referiu no despacho em que se opôs à sua homologação;
- O despacho recorrido interpretou erradamente a lei violando o disposto nos art.ºs 178º, n.º1, 116º, n.º2 e 113, n.º6 CP;
- Pelo que deve nessa parte ser revogado requerendo-se que sejam consideradas irrelevantes as desistências de queixa dos menores S. e M..

Admitido o recurso com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, respondeu o arguido pugnando pela improcedência do recurso por as desistências de queixa em causa terem sido apresentadas após a maioridade penal dos ofendidos e face ao disposto no art.º 178º, n.º1 CP.
Neste Tribunal, o Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto apôs visto nos autos, sufragando as motivações de recurso da Exm.ª Magistrada do MºPº recorrente.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.

2. O objecto do recurso, tal como se mostra configurado pelas conclusões da motivação, reporta-se a uma única questão : a definição da natureza dos crimes em causa, imputados ao arguido, com efeitos na decisão de apreciação da validade e relevância processual das declarações de desistência de queixa dos ofendidos.

3.
3.1. Mostra-se definida, perante a acusação proferida já nos autos a base indiciária, que irá definir a factualidade em que assentará a presente decisão posto que, quer no âmbito do recurso, quer perante a resposta ao mesmo, não se suscitam questões a apreciar nessa sede. Assim, a factualidade imputada ao arguido e que respeita aos ofendidos S. e M. são os acima referidos crimes de de abuso sexual de criança e actos sexuais e homossexuais com adolescentes p.p. pelos art.ºs 172º, n.º1, 174º e 175º CP que se imputa ao arguido como praticados entre 2001 e Novembro de 2003.
Tal como resulta dos autos, o que também não foi posto em causa pelos intervenientes processuais do recurso, a presente investigação teve início em Abril de 2003, com a comunicação dos factos ao MºPº pela Comissão de Protecção de Menores e Jovens de Lagoa e do conhecimento que lhe adveio ainda da notícia dos mesmos através de órgãos da comunicação social.
É o MºP quem o diz, ao justificar a iniciativa processual nos termos do art.º 178º, n.º4 CPP e 113º, n.º6 CPP.
No que ao caso interessa, tratava-se de factualidade susceptível de integrar crimes de abuso sexual de criança, de actos homossexuais com adolescente e de actos sexuais com adolescente, crimes sexuais que envolviam os ofendidos S. e M., então com idades inferiores a 16 anos, relativamente aos quais se entendeu estar em causa o interesse das vítimas, susceptível de legitimar a intervenção do MºPº, com vista à investigação das situações de pedofilia, dada a gravidade dos crimes e o eventual desconhecimento dos representantes legais das vítimas.
Não foi até ao momento posta em causa a legitimidade processual do MºPº para impulsionar o inquérito, sem que os menores ou seus representantes legais manifestassem qualquer intenção nesse sentido ou sem que tivessem formalmente deduzido as suas queixas.
Resulta dos autos que foram juntas aos mesmos, com datas respectivamente de 23.2.2004 e 25.2.2004, declarações assinadas pelos referidos ofendidos S. nascida a 11.12.87) e M.(nascido a 18.2.88) em que dizem renunciar às queixas contra o arguido L., declarações apresentadas depois de os menores terem completado 16 anos de idade.

3.2. Na versão original do CP 1982, os crimes sexuais que tivessem por vítima menor de 12 anos possuíam natureza pública (art.º 211º, n.º2 CP) podendo o MºPº desencadear oficiosamente o procedimento criminal e exercer com total autonomia a acção penal.
Tal como refere o MºPº, na actual legislação penal, os crimes sexuais têm em regra natureza semi pública, dependendo o procedimento criminal da queixa do ofendido ou de outras pessoas definidas por lei.
Essa natureza foi reforçada pela reforma do CP de 1995 (DL 48/95) que permitiu (art.º 178ºCP) que o MºPº desse início ao processo “se especiais razões de interesse público o impuserem”, no tocante a crimes previstos no seu n.º 1 e se a vítima fosse menor de 12 anos. E o art.º 113º, n.º5 CP dispunha igualmente que o MºPº poderia dar início ao processo se especiais razões de interesse público o impusessem sempre que o direito de queixa não pudesse ser exercido por a sua titularidade caber ao agente do crime.

Resultava do preâmbulo do DL 48/95 de 15.3 :

“Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foram objecto de particular atenção, especialmente quando praticados contra menor.

Nessa conformidade, o crime sexual praticado contra menor é objecto de uma dupla agravação: por um lado a que resulta de elevação geral das molduras penais dos crimes de violação e coacção sexual, quer no limite mínimo, quer no máximo; e, por outro, a agravação estabelecida para os casos em que tais crimes sejam praticados contra menor de 14 anos. Donde resulta que o crime praticado contra menor de 14 anos é sempre punido mais severamente que o crime praticado contra um adulto, atenta a especial vulnerabilidade da vítima.

Uma outra nota que acentua a protecção do menor é a possibilidade de o Ministério Público, sempre que especiais razões de interesse público o justifiquem, poder desencadear a acção penal quando a vítima for menor de 12 anos”.
Esta fórmula foi substituída, com as alterações operadas pelo DL 65/98 de 2.9., passando a referir-se a razões relacionadas com o interesse do menor - “se o interesse do menor o impuser”- e elevaram a idade das vítimas dos crimes em causa em que tal definição era possível de 12 para 16 anos.

Os crimes semi-públicos, natureza que lhes é conferida em função da natureza dos interesses que tutelam traduzem-se, no essencial, numa redução do princípio da oficialidade ou oficiosidade, podendo o MºP impulsionar o procedimento criminal apenas se o ofendido ou outras as pessoas com legitimidade para tal lhe darem conhecimento do facto ou depois de o terem feito perante qualquer outra entidade com obrigação legal de transmitir a queixa ao MºPº (art.ºs 48º, 49º, 242º e 248 CPP) e permitem que, perante a desistência de queixa dos respectivos titulares até à publicação da sentença em 1ª instância, se possa pôr termo a um processo criminal (art.º 116º CP e 51º CPP).
Conforme resulta do art.º 178º, n.º4CP, na redacção dada pela Lei 99/2001 de 25.8, quando os crimes previstos nos art.ºs 163º a 165º , 167º, 168º e 171º 1 175º CP forem praticados contra menor de 16 anos pode o MºPº dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser.
Quer a presente redacção quer a que resultava da redacção do DL 65/98 representam uma restrição dos casos em que é permitida a promoção pública do processo penal. A anterior expressão que assentava na ponderação das razões de especiais interesse público permitia o entendimento de que seria este o prevalecente na ponderação da iniciativa processual independentemente das razões relacionadas com o interesse da vítima.
Actualmente acentua-se o interesse da vítima, vulnerável por natureza e possivelmente carecida de protecção familiar, em detrimento de motivos de interesse público, ligados a razões de política criminal, como os de prevenção de crimes ou de repressão da criminalidade.
Sempre se poderá entender, porém, que a interpretação do conceito de interesse público, poderia ser definido, perante a averiguação e ponderação dos interesses tutelados pela comunidade, em sintonia com os interesses das vítimas, menores de 16 anos, que competia à sociedade salvaguardar sob pena de se colocarem em crise os próprios interesses públicos. Nesta perspectiva seria desejável que tais interesses se entendessem e avaliassem como coincidentes.
De todo o modo, para que não pudesse ser dada prevalência a um “interesse público”, entendido de forma a não atender satisfatoriamente ao interesse do menor, o legislador veio a acolher a fórmula que preferiu a referência clara ao interesse deste.
A razão de ser da natureza semi-pública nestes casos, visa essencialmente a protecção dos interesses da vítima do crime.
A questão que fundamentalmente se coloca neste recurso é a de definir a natureza dos citados crimes sexuais cometidos contra menores de 16 anos e em que o interesse do menor impõe a intervenção e iniciativa do MºPº, no sentido da sua investigação com vista à eventual aplicação futura de uma reacção penal, na perspectiva de realizar os fins de tutela dos valores fundamentais que o direito penal visa assegurar.
Quer a motivação de recurso quer a resposta, à semelhança do que aconteceu com a decisão recorrida, enunciaram razões várias e alinharam decisões jurisprudenciais e reflexões doutrinais acerca da questão aqui suscitada. Nessa medida, mostram-se exaustivamente sustentadas as teses defendidas a propósito da presente questão.
Em síntese, as posições que se têm delineado acerca desta questão são as seguintes :
- a que admite a desistência de queixa por os crimes manterem a sua natureza semi-pública o que não é alterado pelo facto de nos casos em apreço – de menores de 16 anos em que o interesse dos menores o impuser – o MºPº poder dar início ao procedimento criminal sem que tenha sido deduzida queixa por quem para tal tem legitimidade;
- uma que entende que, desde que reúnidas as condições para a referida intervenção do MºPº e iniciado o processo nos termos do art.º 178º, n.º4 CP, deixa de estar na disponibilidade das vítimas ou dos seus representantes legais a possibilidade de pôr termo ao processo por acto da sua vontade, ora porque o crime adquire natureza pública ora porque embora sendo atípica a sua natureza ( com características dos crimes semi-públicos e outras de crimes públicos) deixa de estar na disponibilidade do ofendido ou de quem o represente por não sido queixa apresentada por estes que tenha dado origem ao processo;
- outra que, embora admitindo esta iniciativa do MºPº e admitindo embora a impossibilidade de menores de 16 anos porem termo ao processo, entende que poderão fazê-lo terminar ao atingirem a “maioridade processual” definida no art.º 113º 1 e 3 CP por terem readquirido a disponibilidade da definição do seu interesse e como tal a disponibilidade do processo.

Uma análise transversal da questão e das normas subjacentes permitirá questionar o seguinte: Se para o procedimento criminal não é exigível a queixa, em virtude se a lei permitir ao MºPº a iniciativa e continuação do processo pelos referidos crimes sexuais contra menor de 16 anos (art.º 113º, n.º6 e 178º, n .º4 CP) se o seu interesse o justificar, como é que, perante a norma do art.º 116º que prevê a possibilidade de o queixoso desistir de queixa apresentada, se pode permitir que quem não apresentou queixa possa dela desistir. A única resposta será que a de não o pode fazer, porque não a tendo apresentado a lei previu que essa falta fosse colmatada em certos casos pela iniciativa pública, perante o interesse do menor de 16 anos. Este argumento, aparentemente formal, poderia ser ultrapassado pela substituição da declaração de desistência ou renúncia de queixa por uma declaração de vontade de oposição ao seu prosseguimento. Vejamos mais adiante se a lei a prevê ou permite.

De facto, como sustenta o recorrente não faz sentido que se defina a iniciativa e autonomia processual do MºPº, desde que estas visem realizar o interesse do menor de 16 anos, vítima de actos que violam a sua liberdade de determinação sexual e se admita a possibilidade de o ofendido ou o seu representante legal – que provavelmente não acautelou devidamente os interesses do menor, não avaliando a situação em que este estava envolvido ou sendo sabedor dela mas nada fazendo, por razões várias, contra o seu agressor – vir a pôr termo à investigação por motivos que podem colidir com tal interesse.
Assim, não nos merece qualquer aceitação a primeira tese delineada.

A favor da segunda, se referirão obviamente as razões contrárias às entendidas como inadmissíveis quanto à primeira.
E, não obstante as razões sobejamente expostas pelo Exm.ª Magistrada do MºPº junto do tribunal “a quo” de forma clara e exaustiva para as quais remetemos e que bastariam para justificar esta posição, não deixaremos de tentar demonstrar o nosso ponto de vista, por ser essa a função da instância de recurso perante as questões suscitadas face à decisão recorrida.
À semelhança do pensamento da Prof. Maria João Antunes, expresso na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, 2º, 327, em comentário ao ARP de 10.2.99, relatado pelo Desembargador Marques Salgueiro – que decidiu no sentido da possibilidade de o ofendido vir desistir de queixa mesmo quando foi o MºPº a dar início ao procedimento – são vários os argumentos para esta interpretação sendo um deles o de que “os crimes previstos no art.º 178º, n.º1 CP não têm natureza pública quando sendo a vítima menor de 16 anos o interesse desta impuser o início do procedimento criminal ou a continuação deste. Mas os crimes previstos no art.º 178º, n.º1 também não mantêm natureza semi-pública quando, sendo a vítima menor de 16 anos, o interesse desta impuser o início do procedimento criminal”.
Com efeito, o procedimento criminal pode decorrer à revelia de qualquer queixa, o que o afasta dos crimes semi-públicos; mas não basta a notícia do crime para que ele se inicie e prossiga mesmo contra a vontade do seu titular, o que lhe confere uma natureza atípica.
Também segundo a mesma autora, a promoção processual pelo MºPº é subsidiária pois é duplamente condicionada : ao facto de o titular do direito de queixa o não exercer e de tal não exercício se dever a razões alheias - ou mesmo, diremos nós, contrárias - ao interesse da vítima. Não se trata de mera intervenção, se e enquanto o titular do direito não agir. É uma intervenção que se justifica mesmo contra a vontade desse titular, se o interesse da vítima o exigir. Assim sendo, pergunta-se: como pode coexistir a legitimidade da iniciativa do MºPº com a possibilidade de o titular do direito dele continuar a dispor, se a abstenção do titular é que justifica equacionar tal iniciativa, por razões de tutela do interesse da vítima, menor de 16 anos.
E a possibilidade de o MºPº iniciar e continuar o procedimento criminal precisamente nos casos em que “as razões justificativas da natureza semi-pública dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual não presidem à não apresentação ou à desistência da queixa” ( obra citada, fls. 328).
Também se entende que o art.º 178º, n.4 CP é um dos casos previstos na lei em que o MºPº pode dar início ao procedimento em nome do interesse da vítima, não obstante o procedimento criminal depender de queixa.
O n.º6 do art.º 113º CP que prevê “ que quando o procedimento criminal depender de queixa, o MºPº pode, nos casos previstos na lei, dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser “não é uma norma geral no sentido de valer para todos os crimes semi-públicos (também neste sentido Maia Gonçalves, C.P. 1999, em nota ao art.º 113º). “Pelo contrário, a legitimidade excepcional que neste número é conferida ao MºPº depende de uma previsão expressa na lei”. De outro modo, diremos nós, seria norma aplicável a todos os crimes semi-públicos, o que não acontece. Assim se refuta o argumento usado em abono da tese adversa, no sentido de que a norma do art.º 113º CP, por ser genérica, transformaria todos os crimes semi-públicos em públicos sempre que o MºPº interviesse por entender estar em causa o interesse da vítima.
Em abono da tese contrária tem-se dito que, se fosse vontade do legislador transformar o crime em crime público, bastaria ter introduzido uma reserva no n.º 1. Este argumento não é decisivo nem se pode concluir que a forma que encontrou não seja a mais adequada para expressar a realidade que quis implantar. Porém, entendemos que o legislador não transformou o crime em crime público; apenas o quis afastar do regime dos crimes semi-públicos, pois caso contrário e, a ter por boa a interpretação, segundo a qual a norma do n.º 4 do art.º 178º apenas visa permitir o início da investigação até que o titular do direito de queixa a apresente, haveria que ter-se por processualmente ineficaz toda esta investigação se esse titular a não apresentasse, o que nitidamente não foi a vontade do legislador, nem encontra expressão no texto legal, nem na apreciação do regime legal aplicável. O contrário seria uma forma de subverter essa vontade e espírito legislativo sem contexto na letra da lei, além de que traduziria uma inversão dos valores que se quiseram ver protegidos.

Foi clara a intenção do legislador de conceder ao MºPº a prevalência na apreciação do interesse da vítima sobre a capacidade geralmente conferida, a esse propósito, aos seus representantes legais porque não confiou que estes pudessem sempre fazê-lo com isenção e de forma a acautelar os superiores interesses do menor, por razões relacionadas com a natureza destes crimes e com as circunstâncias que as mais das vezes os rodeiam e que poderiam determinar a não apresentação de queixa, paralisando assim o desencadeamento do procedimento criminal. Por outro lado, entregou ao MºPº a função de realizar o interesse do menor, conferindo-lhe uma natureza não compatível com a sua mera gestão particular. Neste capítulo e com tal finalidade, verificadas que sejam as condicionantes de actuação que consagrou no art. 178º,n.º4 CP, passou a ter por público o interesse do menor, o que não surpreende se reputarmos este como um dos valores que a Lei Fundamental quis proteger.
Este entendimento resulta, assim o cremos, do sentido e da finalidade para que a norma foi criada a que não será alheia a comparação com outras situações legais que possam ter algum paralelismo com a presente.
Será o caso do art.º 152º, n.º2 CP que tinha natureza semi-pública em 1995, em 1998 e passou a ter natureza pública com a alteração da Lei 7/2000 de 27.5 - o que é a regra geral de procedimento devendo a natureza semi-pública e particular dos crimes ser devida e expressamente assinalada na lei – por ter o legislador sentido a necessidade de uma tutela pública dos valores em causa.
Porém, com a redacção do art.º 152º, n.º2 CP, na versão do DL 65/98 de 2.9, em que detinha expressa natureza semi-pública, mas em que era permitida a iniciativa processual do MºPº condicionada ao interesse da vítima, decerto por não ser insensível à natureza do crime e das circunstâncias em que estes se verificavam habitualmente e permitindo ao ofendido uma gestão do seu próprio interesse, previu expressamente que o ofendido de maus tratos conjugais ou equiparados pudesse opor-se à continuação do processo antes de ser deduzida a acusação.
Pode-se pois concluir que, quanto aos crimes sexuais cometidos contra menores de 16 anos em que, por motivos concretos e pontuais apreciados pelo MºPº, foi equiparado a público o interesse do menor o legislador não quis acautelar a gestão e disponibilidade do seu próprio interesse, prevendo a possibilidade de a vítima, mesmo depois de atingida a maioridade penal, se opor à continuação do procedimento.
A decisão do Tribunal de Ribeira Grande, proferida pelo Juiz Pedro Soares de Albergaria, publicada na Revista Subjudice, n.º26 (totalmente dedicada a questões relacionas com os crimes sexuais ), p.152 ss., e cuja posição sufragamos até este momento, refere que “parece a todos os níveis óbvio que, atingindo a vítima os 16 anos, não só cessa o pressuposto formal da idade, como aquela ipso facto ganha plena autonomia na definição do seu próprio interesse nada podendo justificar nesse caso uma heterodeterminação provinda do MºPº. Razão pela qual pode, a partir daí, opor-se validamente ao prosseguimento do processo”. Este entendimento é secundado pelo trabalho do Juiz Moreira das Neves, publicado em Dezembro de 2003, em www.verbojuridico.net/com/org.
Porém, salvo o respeito que merece uma abordagem tão exaustiva e reflectida da matéria, não podemos seguir tal entendimento.
Uma questão que se afigura pertinente colocar perante tal conclusão será a de saber, se atingida a maioridade penal pela vítima, não deveria então prever-se a necessidade de o MºPº assegurar a sua legitimidade para a continuação do processo através da exigência de declaração expressa da vítima a manifestar vontade nesse prosseguimento? Afigurando-se-nos que não se mostra prevista nem necessária tal declaração de vontade, então também se não mostrará relevante a declaração de oposição.
Outra seria a de saber se, caso no decurso do processo se alterasse a ponderação do interesse do menor por forma a concluir pela investigação feita que tal interesse passou a impor o não prosseguimento do processo, o MºPº poderia ou deveria fazer cessar o processo perante tal reavaliação. Pronunciam-se no sentido de tal possibilidade no devir processual, os já referenciados Juízes de Direito Pedro Soares de Albergaria e Moreira das Neves nos trabalhos citados.
Trata-se de uma das vertentes que decorre da natureza “atípica” dos crimes que não nos repugna e que não colide com o demais entendimento por nós perfilhado.

Do texto legal e da sua análise sistemática e reflectida na interpretação que fazemos do espírito do legislador, dado por tal texto e contexto, não se pode concluir, tão seguramente como o fazem os autores dos ditos trabalhos, pela possibilidade de oposição ao procedimento se não se previu, em geral, nem em caso algum, para processos desencadeados oficiosamente sem necessidade de queixa, uma forma de manifestação de oposição ao procedimento criminal nem se previu, em particular, para este tipo de crimes, ao contrário da previsão expressa que fez, por exemplo, para o crime do art.º 152ºn.º2 CP, na redacção de 1998, relativamente a crime cuja natureza definiu como semi-pública, mas em que previu a possibilidade de o MºPº desencadear o processo, sem queixa, se o interesse da vítima o impusesse mas definindo claramente que antes da acusação, poderia prevalecer a vontade e manifestação por esta do seu interesse de se opor à continuação do procedimento.
Porque não o fez então quanto aos crimes em causa ?
Afastada a posição que considera a manutenção da natureza semi-pública dos mesmos, o que o próprio recorrido excluiu, e tendo por atípica a sua natureza pelas razões já desenvolvidas, não se vê como deixar de concluir pela não previsibilidade legal e, como tal, pela impossibilidade de validamente se aceitar uma oposição válida ao prosseguimento do processo iniciado por aferição do interesse do menor por parte do órgão público a quem cabe a legitimidade para, nesses termos, desencadear o processo.
Relembre-se o DL 65/84 de 24.2 que atribui a natureza de crime público aos crimes de difamação e injúrias, (crimes até então e, em regra, de natureza particular ou semipública se atingissem titulares de órgãos de soberania), contra órgãos de soberania e seus membros, mas não deixou de consagrar a possibilidade de o ofendido expressamente declarar que desiste do procedimento criminal, embora condicionando tal possibilidade se se tratar de membro de órgão colegial.
Com esta argumentação se reage igualmente à última das teses definidas.

Como se disse anteriormente, a iniciativa processual do MºPº, embora subsidiária, é plenamente admissível mesmo que o titular do direito de queixa não queira o procedimento.
E não obstante ser subsidiária, tal subsidariedade define-se definitivamente.
Assim entendeu o Acórdão R.C. de 25.02.2004, relatado pelo Desembargador Serafim Alexandre, in www.dgsi.pt, proc.n.º 364/04, salientando que “... não há aqui qualquer razão subsidiária no sentido de que o MºPº intervém enquanto e só porque o menor não quer ou não pode fazer queixa. É subsidiária no sentido de que se substitui definitivamente ao menor. O interesse público subjacente às referidas normas legais não é subsidiário dos interesses particulares. Não se trata de qualquer critério de mera oportunidade como é bem evidente. É uma razão de política criminal. É o interesse público que está em causa”. E ainda “... a possibilidade de o MºPº iniciar o processo independentemente de queixa torna-o parte legitima para acusar, independentemente dessa mesma queixa. O interesse público subjacente a tal possibilidade supera o interesse particular típico da necessidade de queixa”.

Não é relevante, pois, falar-se da validade da desistência de queixa por o ofendido, que atingiu os 16 anos, manifestar interesse em desistir da queixa.
Os factos foram cometidos quando ele tinha menos de 16 anos e num quadro de circunstâncias que permitiram ao MºPº agir em defesa dos seus interesses sem necessidade de queixa, por relevarem então interesses de quem se presume não ter o discernimento e experiência sexual suficiente para se determinar sexualmente e, depois de devidamente ponderada a desvantagem que pode acompanhar a divulgação de factos como os presentes em contraponto com o interesse de perseguir o crime. Neste momento, aliás, já não é possível acautelar aquele perigo perante a divulgação feita da situação.

Não faz pois sentido, repete-se, desistir do direito que não foi exercido nem foi necessário para o princípio e decurso da investigação e introdução dos factos em juízo.
Verificados os pressupostos para que o procedimento de desencadeie independentemente da existência de queixa, sem esta ou mesmo contra a vontade dos titulares dela, o crime afasta-se definitivamente (sem qualquer retrocesso legalmente admitido ou previsto) da sua natureza de crime semi-público e não admite a desistência de queixa, que não foi deduzida nem foi legalmente exigível para que o processo se iniciasse com autonomia do MºPº para o seu início e continuação, norteado agora por interesses que, porque relacionados com o menor, passaram também a ser os interesses públicos e sem possibilidade legal de manifestação de oposição à sua continuação.

Neste sentido também se pronunciou o ARP de 31.01.2001, relatado pelo Desembargador Esteves Marques, in www.dgsi.pt/, proc. n.º11239 e CJ XXVI, 1º,232 que, embora com argumentação diferente da apontada e por nós defendida, defende que o legislador da Reforma de 1995, relativamente ao legislador de 1982, não pretendeu retirar a natureza pública dos crimes em causa quando o direito de queixa não for exercido e o MºPº der início ao processo se o interesse da vítima o impuser, seguindo o pensamento de Maia Gonçalves, CódigoPenal Português,13ª edição, em nota ao art.º 113º CP, “este dispositivo veio permitir que os crimes semi-públicos, em casos previstos na lei, como os dos art.ºs 152º, n.º2 e 178º, n.º2 passem a ter a natureza de públicos, embora de modo condicionado no caso do art.º 152º, n.º2.”
Será o caso ainda de decisões como as proferidas pelo STJ de 31.5.2000 e 30.11.2000 respectivamente nos proc. 272/00 e 2761/00 e da R.L. de 9.5.2000, no proc. n.º 21515 relatado pelo Desembargador Gaspar de Almeida.
Em sentido contrário, alinham-se os Acórdãos da Relação do Porto de 3.12.97, relatado pelo Desembargador Correia de Paiva, CJ XXII,5º, 233 e de 23.5.2001, www.dgsi.pt, proc. 140198, relatado pelo Desembargador Neves Magalhães.


4. Pelo exposto, acordam os juízes nesta secção em conceder provimento ao recurso revogando a decisão recorrida que substituem por outra que declara irrelevantes as declarações dos ofendidos S. e M. de que renunciam ao procedimento criminal devendo os autos prosseguir nessa parte os seus ulteriores termos.
Sem tributação.


Lisboa, 11 de Maio de 2004

Filomena Clemente Lima
Ana Sebastião
Pereira da Rocha