Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1015/06.0PDCSC.L2-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: ADVOGADO
SOLICITADOR
ACTO PRÓPRIO
COBRANÇA DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I- Na interpretação da expressão “negociação tendente à cobrança de créditos” como acto próprio dos advogados e solicitadores, definida pelo artº 1º nº. 6 b) da Lei 49/2004 deve entender-se que negociação não será o mesmo que cobrança.

II- Também uma interpelação unilateral para pagamento de dívida não pode, por si só, incluir-se na definição de negociação.

III- O Instituto dos Registos e Notariado ao autorizar a existência de empresas ou sociedades cujo objecto inclui a actividade de “cobrança de dívidas” ou “gestão e cobrança de créditos”, permite criar nos respectivos profissionais a confiança no exercício de uma actividade devidamente lícita.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I-RELATÓRIO.

No processo comum supra identificado, da Secção Criminal- Juiz 3 da Instância Local de Cascais- Comarca de Lisboa Oeste, foram julgados os arguidos:

C..., (…);

J..., (…), tendo ali sido proferida a decisão que se transcreve, na parte dispositiva:

Assim, pelo exposto, e tendo em conta as disposições legais consideradas, o Tribunal, decide julgar a pronúncia integralmente procedente, por integralmente provada, e decide julgar integralmente procedente, por integralmente provado, o pedido de indemnização cível deduzido pela assistente/demandante Ordem dos Advogados, e, consequentemente:

Condenar o arguido CJ... pela prática, em autoria material, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pela interpretação conjugada dos arts. 7.°, n.° 1, al. b) e 1.°, n.°s 1 e 6, al. b) da Lei n.° 49/2004, de 24/08, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz a multa de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

Condenar o arguido J... pela prática, em autoria material, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pela interpretação conjugada dos arts. 7.0, n.° 1, al. b) e 1.0, n.°s 1 e 6, al. b) da Lei n.° 49/2004, de 24/08, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz a multa de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);

Condenar o arguido/demandado C… a pagar à assistente/demandante civil Ordem dos Advogados, a quantia de € 1000,00 (mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais;

Condenar o arguido/demandado J... a pagar à assistente/demandante civil Ordem dos Advogados, a quantia de € 1000,00 (mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais. *

Mais condeno os arguidos C... e J... nas custas do processo, fixando a taxa de justiça individual em 4 U.C.'s.

Sem custas cíveis.

                                                   **

Inconformados, os arguidos vieram interpor recurso da sentença, com os fundamentos constantes das motivações de fls. 588 a 619 com as seguintes conclusões que vão transcritas:

I. Vem o presente recurso interposto da Sentença que condenou os ARGUIDOS, ora RECORRENTES, pela prática, em autoria material, de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelos artigos 7.°, n.º 1 alínea b), conjugado com o artigo 1.°, n.°s 1 e 6, alínea b), da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 25,00 (vinte e cinco euros), o que perfaz a multa de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), e, bem assim, no pagamento de indemnização cível por danos não patrimoniais, à ORDEM  DOS ADVOGADOS, no valor de € 1.000,00 (mil euros), cada um.

II. Sucede, porém que a Sentença padece de erros na apreciação da matéria de facto cuja correcção necessariamente obriga à absolvição dos RECORRENTES, padecendo, igualmente, de erros na aplicação do Direito.

III. O tribunal a quo julgou incorretamente os seguintes pontos da matéria de facto provada: 2. (ultima parte), 3. (primeira parte), 7., 8. (e, em consequência, 9 a 12), 13. e 14.; e, bem assim, os seguintes pontos da matéria de facto não provada: a) a e), g) a l).

IV. Sendo certo que deveria ter considerado outros factos relevantes para a boa decisão da causa.

V. O erro no julgamento da matéria de facto, decorrente de uma deficiente análise da prova, centra-se numa questão essencial: a prática, pelos RECORRENTES, de atos de negociação tendentes à cobrança de dívida de terceiro.

VI. Existe, desde logo, uma contradição entre os factos provados 2., 3. 7. e 8., os quais que indicam a existência de "negociação", e a matéria vertida nos números 21 a 24 da matéria de facto provada, aliás, em grande parte, alegada na Contestação.

VII. Estes factos (21 a 24) estão suportados nos depoimentos de E…, ouvido na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h39 e A..., ouvida na mesma sessão e cuja gravação se inicia às 10h32 (na ata da audiência a gravação dos referidos depoimentos está identificada do seguinte modo E... - 00:00:00 a 00:06:19; A... - 00:00:00 a 00:10:54).

VIII. Os números 2., 3. 7 e 8. da matéria de facto provada, onde se refere que a G... podia aceitar o pagamento da forma que entendia conveniente, negociando com o devedor, estão em absoluta contradição com estes, devendo, ad limine, ser considerados como não provados.

IX. Em consequência, pelo menos, as alíneas a) a e), g) a l) da matéria de facto não provada devem ser consideradas provadas.

X. Seja como for, toda a prova produzida nos autos obriga a concluir pela não demonstração da matéria dos pontos da matéria de facto identificados sob os n.°s 2. (ultima parte), 3. (primeira parte), 7 a 14.

XI. Da mesma forma, e consequentemente, pela consideração como provados dos factos identificados sob as alíneas a) a e), g) a 1) da matéria de facto não provada.

XII. Sendo certo que é necessário nunca deixar de ter presente que a matéria que está a ser julgada nestes autos é a existência de um concreto ato de negociação, em especial relativamente ao Ofendido L..., não se se afere da legalidade da atividade da G..., em geral, no que respeita a atos próprios de advogados.

XIII. Outro entendimento sempre padeceria de inconstitucionalidade, isto é, a norma segundo a qual os administradores de uma sociedade cuja atividade, em abstrato, seja a cobrança de créditos de terceiro, por via da negociação, sem que se demonstre em concreto a existência de um ato de negociação, praticam o crime de procuradoria ilícita, é inconstitucional por violação dos artigos 18.°, n.° 2, e 29.° da CRP.

XIV. De todo modo, a verdade é que não há prova nos autos que permita concluir, como consta da última parte do ponto 2. da matéria de facto provada, ou seja, que fazia parte da atividade da G... a prática de atos reservados aos licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, nem tão pouco, que os ARGUIDOS propunham aos clientes a celebração de contratos de cobrança de créditos por via da negociação, como consta da primeira parte do facto elencado sob o n.° 3.

XV. A inexistência de tal prova decorre do teor dos depoimentos de L... (depoimento prestado na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se iniciou às 09h52 - identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:15:42), V…, I… (Testemunhas ouvidas na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h09, e 10h20, respetivamente, e identificados na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:15:55; 00:00:00 a 00:09:46, respetivamente), da Testemunha A... (ouvida na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h32 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:10:54), e, bem assim, da Testemunha E... (ouvido na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h39 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:06:19).

XVI. Não existe, assim, qualquer prova que possa demonstrar que a G... praticou, em geral, atos próprios de advogado, designadamente a cobrança de créditos por via da negociação, devendo considerar-se como não provados os factos n.° 2 (última parte), 3 (primeira parte) e provados os factos sob as alíneas a) a e), g) aj).

XVII. Seja como for, tal prova seria irrelevante, na medida em que, para a demonstração da existência do crime de procuradoria ilícita é necessário provar a prática de, pelo menos, um ato próprio de advogado.

XVIII. A única prova que revela um contacto da G... para com o OFENDIDO é a carta de fls. 5, não se podendo retirar do teor desta a existência de um ato de negociação.

XIX. Atente-se, mais uma vez, em primeiro lugar, às declarações do OFENDIDO L..., das quais se retira cristalinamente a prova de que o único contacto entre si e a G... foi a carta de fls. 5 (depoimento prestado na sessão de 21.11.2014, cuja gravação se iniciou às 09h52 - identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:15:42).

XX. Por outro lado, atente-se novamente às declarações das Testemunhas, produzidas em audiência de julgamento.

XXI. Confrontada com a carta, a Testemunha V... (ouvida na sessão realizada em 211.1.2014, cuja gravação se inicia às 10h09 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:15:55) limita-se a fazer uma interpretação da mesma, sem, contudo, conhecer qualquer ato concreto de negociação ocorrido antes ou depois do envio da carta.

XXII. A Testemunha I…, por sua vez, perguntado sobre a "interpretação" da carta (que não se lembrava sequer se constava do processo da Ordem do qual foi instrutor), imediatamente a descreveu como "interpelação para cobrança de um valor" (Testemunha ouvida na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h20 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:09:46), afirmando expressamente: "não sei o que se passará depois daqui"

XXIII. A... (ouvido na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h32 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:10:54) declarou não ter ideia de contactos na sequência da carta no que respeita a este cliente em particular.

XXIV. E... (ouvido na sessão realizada em 21.11.2014, cuja gravação se inicia às 10h,39 e identificado na ata do seguinte modo - 00:00:00 a 00:06:19) declarou não se recordar se falou com L... Eventualmente terá falado, mas não foi capaz de reproduzir o teor de tal contacto ou sequer confirmar a sua existência.

XXV. Em suma, (i) do depoimento do OFENDIDO e do funcionário da G... E..., no que respeita a atos praticados relativamente à cobrança da dívida do primeiro, apenas resulta o envio da carta de fls, 5, ii) do depoimento da Testemunha A... que declarou ter conhecimento sobre o contrato celebrado entre a G... e o X…, decorre que a G... não procedia à negociação das dívidas com os devedores, sendo que quanto a este cliente não conseguiu confirmar qualquer outro contacto, iii) as testemunhas da ORDEM DOS ADVOGADOS apenas se limitaram a fazer juízos interpretativos da carta de fls. 5, não podendo o seu depoimento fundamentar a prova no que respeita a esta matéria.

XXVI. Assim, não resultando da prova produzida a existência de nenhum ato de negociação, a decisão de facto tem que ser alterada também quanto aos pontos 7. a 11(primeira parte), considerando-os não provados, e dando como provado que

- As formas de pagamento possíveis, transmitidas na carta de fls. 5, foram previamente definidas pelo X..., e

- O único contacto existente entre a G... e o Ofendido no sentido da cobrança da dívida foi a carta de fls. 5.

XXVII. Não estando em causa a prática de atos de negociação tendentes à cobrança de créditos, não é possível afirmar que o ato aqui descrito (o envio da carta) seria lesivo do interesse público que a incriminação visa tutelar, não tendo as Testemunhas V... e I... identificado qualquer dano em concreto decorrente do envio da carta em causa, o que obriga à consideração como não provados dos factos n.°s 11 (segunda parte), 12, 13 e 14.

XXVIII. Alterando-se a decisão de facto nestes termos, outra não poderá ser a decisão senão a de absolver os ARGUIDOS, tanto da condenação penal como cível, na medida em que de nenhum facto resulta a existência da prática de atos próprios de advogados, em especial, de atos de negociação de dívida de terceiro.

XXIX. Nos termos do artigo 1º., nº. 6, alínea h), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, são atos próprios dos advogados "a negociação tendente à cobrança de créditos". Daqui resulta claro que não é todo e qualquer ato relacionado com a mera existência de créditos vencidos, ou mesmo com a sua cobrança, que está reservado a advogados e solicitadores - "a simples cobrança de dívidas não está abrangida nessa legislação"

XXX. O único ato que se encontra demonstrado, nos termos da alteração à matéria de facto requerida supra, é o envio da carta de fls. 5. E o teor dessa carta, em nenhum passo, se pode caracterizar como consubstanciando urna negociação.

XXXI. Com efeito, é estritamente necessário que o ato em questão se enquadre no conceito de "negociação", para que caiba no âmbito da reserva de atuação dos advogados e dos solicitadores, tal como consta delimitada pelo artigo nº. 6, alínea b,), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto.

XXXII. "Negociar" pressupõe necessariamente, e apenas, intervir diretamente na definição e na caracterização de uma dada relação jurídica.

XXXIII. E isso não aconteceu no presente caso. A. G... limitou-se a informar o devedor da existência da dívida e a forma como poderia proceder ao seu pagamento, dentro do que foi estabelecido previamente pelo credor . Do teor desta não se pode presumir a existência de negociações (cuja existência não está provada por qualquer outro meio de prova) ou, tão pouco, qualificar o envio da carta como um ato de negociação.

XXXIV. A interpelação para cobrança não se inclui no elenco, taxativo, de atos qualificados como próprios dos advogados e solicitadores.

XXXV. Assim, não tendo a G... realizado qualquer atividade de negociação tendente à cobrança de créditos, não lhe pode ser imputada a prática, a título doloso, de atos próprios dos advogados e dos solicitadores, conforme delimitados pelo artigo 1.0, n.° 1 e n.° 6, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, pelo que não se encontra preenchido o elemento objetivo do tipo do crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7.º, n° 1, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, impondo-se a absolvição dos ARGUIDOS pelo crime de que vêm acusados e pronunciados.

XXXVI. Por fim, cumpre esclarecer que é de todo em todo inadmissível uma interpretação que ultrapasse o teor literal do artigo 1.°, n.° 6, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto.

XXXVII. Assim; a interpretação da norma segundo a qual se considere como acto próprio de advogado toda e qualquer atividade de cobrança de créditos, e por isso, punida criminalmente, é inconstitucional, por violação dos princípios acima descritos, ou seja, por violação dos artigos 18.º, 29.º n.° 2, 47.° e 61.º da CRP.

XXXVIII. Sendo que uma tal interpretação, para além de se encontrar ferida de inconstitucionalidade, viola igualmente o direito da União Europeia vigente na ordem jurídica Interna (artigo 8.° da CRP), em especial os artigos 49.º e 56.º do TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA.

XXXIX. Constituindo a norma resultante do artigo 1.°, n.° 6, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, uma exceção ao princípio da livre concorrência na União Europeia, impõe-se uma interpretação restritiva daquele preceito (cfr. parágrafo 37.º do Acórdão do

 Tribunal de Justiça, de 23 de Outubro de 1997, tirado no Processo n.° C-157/94, Comissão v. Países Baixos).

XL. Como decorre do supra exposto, da conduta dos RECORRENTES não resulta, assim, violada qualquer norma legal, pelo que não se encontra preenchido o pressuposto da ilicitude.

XLI. Como tal, não podem os RECORRENTES ser condenados ao pagamento de indemnização, por não se encontrarem preenchidos os pressupostos cumulativos vertidos no artigo 483.° do Código Civil.

XLII. Da mesma forma, não estão verificados os pressupostos da culpa e dano.

XLIII. In casu, como se viu não pode valer a presunção de culpa prevista no artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, uma vez que tudo quanto acima se alegou demonstra, à saciedade, que os RECORRENTES não só não violaram quaisquer normas com a sua conduta — não praticando qualquer ato ilícito - como não lhes pode ser imputado um juízo de censurabilidade sobre a mesma, antes se impondo concluir que os RECORRENTES atuaram com a diligência que lhes era exigível de acordo com as circunstâncias do presente caso -- uma vez que, no exercício da sua atividade, não praticaram, por si ou por intermédio de terceiros, atos que lhes estivessem legalmente vedados por serem atos próprios de Advogado.

XLIV. No que respeita ao dano, o Tribunal - na hipótese de não ser alterada a matéria de facto nesta parte, o que não se admite - dá como provado que os RECORRENTES violaram a dignidade e prestígio da profissão de advogado.

XLV. A lesão do prestígio social dos advogados pressupõe uma perda de reconhecimento por um conjunto de indivíduos, o que implica um conhecimento público, ou pelo menos, relativamente difundido do caso, envolvendo urna situação com gravidade suficiente para fazer perigar a boa imagem da instituição.

XLVI. Não estão provados quaisquer factos de onde resulte que tenha sido abalada a reputação dos advogados.

XLVII. A responsabilidade civil tem por base o princípio do ressarcimento dos danos, não podendo ser aplicada apenas como punição do agente, ou com fins de prevenção - para isso está a via penal.

XLVIII. No caso, o simples envio de correspondência nos moldes já descritos, constitui um trabalho de mero secretariado, que não causou qualquer dano.

XLIX. Ainda que, numa interpretação extensiva - que já se viu ser inadmissível -, pudesse constituir um ato próprio de advogado ou solicitador, é insuscetível de causar danos a terceiros - o que efetivamente não aconteceu - e é insuscetível de danificar a imagem e reconhecimento da profissão de advogado.

L. O mesmo se aplicando ao interesse público da administração da Justiça.

LI. Além do mais, o dano sempre seria insuspeitável de punição nos termos do artigo 496.º, n ° 3.

LII. Donde, também com estes fundamentos (subsidiários), deve a Sentença ser, nesta parte, revogada, absolvendo-se os RECORRENTES do pedido cível pelo qual vêm condenados.


LIII. Tal como se referiu supra, uma interpretação extensiva do artigo 1.º n.° 6, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, para além de se encontrar ferida de inconstitucionalidade, viola igualmente o direito da União Europeia vigente na ordem jurídica interna (artigo 8.°, n.° 4, da CRP), em especial os artigos 49.° e 56.° do TRATADO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA UNIÃO EUROPEIA.

LIV. Com efeito, as exceções ou, menos ainda, as limitações às liberdades fundamentais e estruturantes do mercado interno supõem uma sua fundamentação em razões imperiosas de interesse geral e o respeito pelos princípios de proporcionalidade e não discriminação.

LV. Só não seria assim se a matéria tivesse sido objeto de harmonização exaustiva pelo direito da União Europeia, o que não sucedeu, pelo que se impõe concluir, à luz do direito da União Europeia, que uma norma nacional que:

Não foi objeto de notificação à Comissão Europeia;

Não foi objeto de harmonização legislativa europeia;

Que é interpretada de forma extensiva, reduzindo assim o próprio âmbito da liberdade de prestação de serviços da G... ou, como é evidente, de qualquer outra empresa, mesmo que estabelecida noutro Estado membro da União Europeia (ou do Espaço Económico Europeu),

LVI. Implica, tal como entendem os RECORRENTES, uma limitação ao exercício da liberdade de prestação de serviços incompatível com os Tratados.

LVII. Também os RECORRENTES consideram que a uniformidade na aplicação do direito da União Europeia implica que o Tribunal de Justiça (da União Europeia), enquanto garante do respeito e da interpretação dos Tratados, nos termos do artigo 19.° do Tratado da União Europeia, seja chamado a pronunciar-se sobre esta questão de direito da União Europeia, ao abrigo do mecanismo de cooperação judiciária previsto no artigo 267.° do TFUE.

LVIII. Esta questão deve, no entender dos RECORRENTES, ser apreciada no presente recurso, pelo Tribunal ad quem, aplicando-se o Direito em conformidade com os preceitos europeus em causa.

LIX. De todo modo, caso assim não seja, previamente à decisão a tomar pelo Tribunal de recurso, entendem os RECORRENTES que se justifica a suscitação da questão junto do Tribunal ao Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 267.° do TFUE.

LX. A RECORRENTE[1] submete à consideração deste Tribunal da Relação, que, caso não aplique a jurisprudência do Tribunal de Justiça acima referida em decorrência dos preceitos de Direito europeu aplicáveis, no sentido da interpretação restritiva do preceito em causa, seja suspensa a instância e suscitada perante o Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, as seguintes questões:

A competência exclusiva dos advogados e solicitadores para a prática de atos de cobrança de crédito de terceiro constitui uma violação do princípio da liberdade de prestação de serviços?

A reserva aos advogados de todos os actos de negociação e ou cobrança de dívidas, feita pela legislações nacionais, é compatível com os princípios de livre acesso à atividade constantes da Directiva 2006/123/CE?

Pode considerar-se que a interpretação extensiva do artigo 1.°, n.° 6, alínea b), da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto, no sentido de até os atos de cobrança que não impliquem uma negociação, são atos próprios dos advogados e solicitadores, se justifica por razoes imperiosas de interesse geral e é proporcional?

LXI. Sendo certo que, se o Tribunal ad quem entender não existir qualquer violação das normas supra referidas, sendo a sua decisão insuscetível de recurso, a questão está sujeita a reenvio prejudicial obrigatório, ou seja, o Tribunal tem o dever de suscitar perante o Tribunal de justiça um reenvio prejudicial, de acordo com o disposto no artigo 267.° do TFUE.

Termos em que deve ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva os RECORRENTES da prática do crime sub judice, bem assim, do pagamento da indemnização em que foram condenados, assim se fazendo JUSTIÇA!

***

O Ex.m.º Magistrado do Ministério Público, respondeu a fls. 626 a 635, concluindo como vai transcrito:

1. Nestes autos, os recorrentes foram condenados pela prática de um crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pela interpretação conjugada dos artigos 7.°, n.°1, alínea b) e 1:2, n.°s 1 e 6, alínea b) da Lei n.° 49/2004, de 24 de Agosto.

2. Na sua motivação de recurso, os arguidos insurgem-se, uma vez mais, contra o facto de lhes ser imputada a prática de um crime de procuradoria ilícita.

3. Sucede que, conforme decorre dos autos, o Tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou sobre esta matéria, em sede de recurso da decisão instrutória que foi proferida neste mesmo processo.

4. Efectivamente, a questão, agora, novamente suscitada pelos recorrentes já foi apreciada e decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, no douto Acórdão constante de fls. 303 a 327 decidiu que os factos imputados aos arguidos e, agora, dados como provados na sentença condenatória, integram a prática do crime de procuradoria ilícita previsto e punido pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea b) conjugado com os artigos 1.º, n.º 1 e n.º 6, alínea b) da Lei n.º 49/2004, de 24/08.

5. Porque assim é, não pode o recurso, nesta parte, ser admitido, na justa medida em que o Tribunal da Relação de Lisboa, como se disse, já decidiu sobre esta matéria, em concreto, decidindo que os factos imputados aos arguidos constituem a prática do crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7.°, n.° 1, da Lei n.° 49/2004, de 24/08.

6. Não existe qualquer contradição entre os factos provados que indicam a existência de negociação e a matéria vertida nos n.ºs 21 a 24 da matéria de facto dada como provada.

7. A circunstância de o tribunal a quo ter considerado provado que a G... recebia dos seus clientes ficheiros informáticos, com a indiciação dos respectivos devedores e montantes em dívida, que qualquer proposta de pagamento que excedesse o numero de três prestações era submetida pela G... ao X..., que a G... encaminhava uma eventual contraproposta para o X..., não é, de todo em todo, antagónico com os factos dados como assentes, integradores do conceito de negociação.

8. Pelo contrário, os factos descritos nos pontos 21 a 24 do elenco dos factos provados integram a negociação em si mesma, são-lhe inerentes e subsequentes e reforçam a constatação que de que os arguidos efectivamente, através da G..., praticavam actos tendentes à cobrança de créditos.

9. Todos estes actos estão logicamente relacionados, complementa-se entre si e integram um todo que visa a mesma finalidade: a negociação da cobrança de uma dívida de um terceiro.

10. Não se vislumbra, pois, de que modo é que tais factos impedem que se diga que os recorrentes negociaram uma dívida de terceiro.

11. À luz das regras do homem médio e da normalidade da vida, não faz sentido que uma sociedade comercial tivesse criado este escrito apenas para a situação relacionada com L... ou com o X.... Trata-se de um escrito padronizado, ao qual foi atribuída uma referência, o que não pode senão indiciar que a G... se dedicava à actividade de prática de actos de negociação tendentes à cobrança de créditos.

12. Os recorrentes prevalecem-se do direito de discordar da apreciação efectuada pelo tribunal a quo relativamente à apreciação da matéria de facto, por discordar quanto ao sentido da convicção do tribunal a quo, pelo facto de não ter acreditado na sua versão dos factos.

13. No caso em apreço, analisados os factos que o tribunal a quo deu como provados na decisão recorrida constata-se que a condenação dos ora recorrentes, resultou da convicção que a Mma. Juiz a quo formou com base em toda a prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, a qual permitiu concluir pela condenação dos arguidos, o que não nos merece qualquer reparo.

14. Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.

***

A Ordem dos Advogados veio responder ao recurso na peça junta a fls.637 a 671, que de forma original (perdoe-se, pela incredibilidade, a expressão) consegue extrair 67 conclusões dos 50 pontos da motivação.[2] De todo modo, conseguimos extrair dali o entendimento dominante do alegado, que é no sentido da adesão aos fundamentos e decisão da sentença sob recurso.

***                                                  

Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, no mesmo sentido da posição assumida pelo Mº.Pº. na 1ª. Instância, dirigido à improcedência do recurso.

Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.

Cumpre conhecer e decidir.

II- MOTIVAÇÃO.

O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelos recorrentes nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, como se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

           No presente, os arguidos/recorrentes impugnam a matéria de facto e a interpretação efectuada pelo Tribunal sobre a qualificação jurídica dos factos.

Impõe o teor do art. 431º, b), do Código de Processo Penal, que havendo documentação da prova, como no caso se verifica, a decisão do Tribunal de 1ª instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal.[3] É o caso em apreço.

Assim sendo e, porque vem ainda impugnada a convicção que o Tribunal fez da prova produzida, cumpre também dizer que é preciso ter em conta que as provas válidas não são apenas as provas que resultam do conhecimento directo dos factos pelas testemunhas. Muitas vezes o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência [4], para daí retirar um outro facto “desconhecido”.

Estas presunções, como é evidente, não são presunções de culpa. Assim, não sendo as presunções judiciais um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados.

Exemplo comum deste meio ocorre com a prova da intenção criminosa (o chamado elemento subjectivo do tipo) que, enquanto acontecimento da vida psicológica, não permite, em regra, prova directa, podendo no entanto ser inferido a partir de outros factos que tenham sido directamente provados. Desde que os parâmetros da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postos em causa; desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas. Sabido que a prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como aliás o não é a livre convicção (sob pena de abandono do patamar de segurança da decisão pressuposto pela condenação penal, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo) conhecendo limites.[5]
 Assim, é necessário que haja uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge.
 Também os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido e o crime, quer os “contra indícios”, ou seja os indícios de teor negativo que a partir de máximas de experiência, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo.
                        Transpondo para o caso em análise, desde logo captamos na decisão o recurso às referidas presunções para a matéria positivada nos pontos 13. e 14. da matéria fixada, como é expressamente referido na sentença na página 12: “O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 13. e 14.”
Mas, para melhor compreensão da questão vejamos a matéria que o tribunal fixou na sentença recorrida, transcrevendo-se a seguir:

1. À data dos factos a seguir descritos os arguidos integravam o conselho de administração da sociedade "G...", na altura com sede em Lisboa.

2. À data dos factos, tal sociedade tinha por objecto social a prestação de serviços telefónicos e electrónicos de apoio a empresas, vindo, contudo, a prestar serviços de cobrança de dívidas e praticar actos que estão reservados aos licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados.

3. Os arguidos propunham aos clientes a celebração de contratos para cobrança de créditos, por via de negociação, tendo dado instruções aos seus colaboradores para contactarem, entre outros, L…;.

4. Nessa sequência, em 25 de Outubro de 2006, os arguidos deram instruções aos seus colaboradores para enviarem para a residência de L..., o escrito cuja cópia se encontra a fls. 5 dos autos, que aqui se reproduz para todos os legais efeitos, dando-lhe conhecimento que pretendiam cobrar uma dívida daquele para com o "X... ", entidade de quem serviram como intermediários.

5. De tal escrito faziam constar ser objecto da sua intervenção a prestação de esclarecimentos sobre a natureza da dívida e as formas de pagamento possíveis, antes e para que se evite o recurso a instâncias judiciais.

6. Nesse sentido, informam estar autorizados a aceitar o pagamento do montante requerido de € 751,92 em três prestações mensais e sucessivas, acordo que estava dependente do pagamento da 1.a prestação num prazo não superior a 10 dias, facultando as respectivas referências Multibanco para esse fim.

7. Como decorre deste contrato que a G... se propôs celebrar com L..., a mesma promovera a cobrança de créditos, por via da negociação, podendo saldar e receber a quantia acordada da forma considerada conveniente.

8. Com tal acção, os arguidos praticaram actos de negociação tendentes à cobrança de créditos.

9. E fizeram-no no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, relativamente à qual são remunerados.

10. Tais actos, negociação tendente à cobrança de créditos, constituem actos próprios dos advogados.

11. Os mesmos foram praticados a mando e no seguimento de instruções emanadas dos arguidos, enquanto representantes da empresa G..., tendo os arguidos lesado os interesses públicos e atribuídos que a Ordem dos Advogados prossegue.

12. Com a conduta descrita os arguidos prejudicaram a prossecução das referidas atribuições.

13. Ao encetarem negociações tendentes à cobrança de créditos de terceiro, bem sabendo que não podiam desempenhar tal prática, pois tal só é permitido aos advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, qualidade e título que não possuíam, os arguidos lesaram o interesse público da administração da justiça.

14. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de executar e ordenar a execução de actos destinados a cobrar créditos, sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei, violando a dignidade e prestígio da profissão de advogado, contrariando todos os princípios deontológicos.

15. Nenhum dos arguidos C... e J... está, ou esteve, anteriormente, inscrito na Ordem dos Advogados, com o título de Advogado ou Advogado-Estagiário.

16. Nos termos do Estatuto da Ordem dos Advogados, recaem sobre a Ordem dos Advogados o dever de defender o Estado de Direito.

17. O dever de zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado.

18. O dever de defender os interesses e direitos dos seus membros.

19. E a obrigação de contribuir para a segurança do comércio jurídico, por via da qualidade técnica dos operadores que praticam os actos próprios do mesmo.

20. À Ordem dos Advogados cabe combater a prática de actos reservados aos Advogados e Solicitadores, como forma de assegurar a segurança dos negócios jurídicos e a sua conformação à lei, a fim de se evitar a violação dos direitos do consumidor em particular e dos cidadãos em geral.

21. A G... recebia dos seus clientes, designadamente do X..., ficheiros informáticos com a indicação do nome dos respectivos devedores, montante em dívida, data-limite para cumprimento de proposta e número de prestações admitidas para o pagamento (faseado) da dívida.

22. Qualquer proposta de pagamento que excedesse o número de três prestações mensais e sucessivas, a que é feita menção em 6., em que podia ser diferido o pagamento da dívida, era submetida pela G... ao X..., uma vez que apenas ao credor cabia aceitar propostas de pagamento de dívida que excedessem o número de três prestações mensais e sucessivas.

23. Na hipótese de o devedor contrapropor o pagamento da dívida de forma distinta daquela descrita nas missivas enviadas, à G... competia encaminhar a proposta para o X..., ao qual, na qualidade de credor, cabia aceitar, ou não, a proposta endereçada, e definir, junto do seu devedor, os termos de acordo de pagamento.

24.  Na actividade da G... estavam, portanto, compreendido o contacto com os devedores, na sequência do envio da carta para pagamento, a prestação de esclarecimentos aos devedores e de informações necessárias à execução do acto de pagamento, bem como o encaminhamento das propostas de acordo formuladas pelos devedores, que excedessem o número de três prestações mensais e sucessivas, para o X....

25. A G... não dispunha de poderes para mandatar advogados para procederam à cobrança, por via judicial, das dívidas ao X....

26. Das relações contratuais existentes entre a G... e o X... não resultava qualquer exclusividade no contacto estabelecido pela primeira com o devedor, podendo-se este dirigir directamente ao credor, propondo e acordando o pagamento da dívida vencida.

27. A G... encontrava-se mandatada pelo X... para a prestação de serviços de apoio à gestão extra judicial de cobranças de créditos vencidos, promovendo as diligências de contacto necessárias ao ressarcimento de tais dívidas.

28. Desde o mês de Março de 2007, que a G... é membro da Associação de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos.

29. O arguido C... possui, como habilitações literárias, a licenciatura em engenharia civil.

30. Exerce a actividade profissional de administrador da sociedade comercial "G...", auferindo um salário líquido mensal de cerca de € 2.000,00 (dois mil euros).

31. O agregado familiar do arguido é constituído pelo próprio, pela esposa, que não exerce qualquer actividade profissional, e pelos três filhos comuns do casal, que contam, actualmente, as idades de 22 anos, 18 anos e 10 anos, respectivamente.

32. O arguido C... não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.

33. O arguido J... possui, como habilitações literárias, a licenciatura em gestão de empresas.

34. Exerce a actividade profissional de gestor de empresas, na sociedade "G... ", auferindo um salário líquido mensal de cerca de €1.900,00 (mil e novecentos euros).

35. O agregado familiar do arguido é constituído pelo próprio, pela companheira, que não exerce qualquer actividade profissional, e pelos três filhos comuns do casal, que contam, actualmente, as idades de 25 anos, 22 anos e 20 anos, respectivamente.

36. O arguido J... não tem antecedentes averbados no respectivo registo criminal.

 B) MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

Com relevância para a decisão da causa não se provou a seguinte factualidade enunciada no pedido de indemnização civil e/ou nos articulados de contestação:
a) - que a actividade desenvolvida pela sociedade G..., no âmbito do contrato celebrado com o X..., não compreendia qualquer negociação tendente à cobrança de créditos;

b) – que a G... se limitava a informar os devedores da existência de dívidas ao X..., e da forma de pagamento de que dispunham, de acordo com as condições previamente definidas por este último (conforme estipulado no contrato de prestação de serviços celebrado entre ambos);
c) - que, nos termos do contrato celebrado com o X..., não cabia à G... saldar, reduzir ou receber da forma que considerasse conveniente qualquer quantia em dívida;
d) - que a G... actuava como mero mensageiro do credor – X... -, não lhe cabendo definir os termos em que o pagamento da dívida se poderia processar;
e) - que a definição do número de prestações em que podia ser diferido o pagamento da dívida coube, única e exclusivamente, ao X..., nunca passando pela G...;
f) - que os ficheiros informáticos, a que é feita menção em 22., eram automaticamente convertidos pelo sistema informático da G... em cartas de cobrança, segundo modelo previamente inserido no programa informático;
g) - que, após o envio das cartas de cobrança, os devedores eram contactados através de serviço de call center prestado pela G..., que recordava ao devedor o montante em dívida e a data para o cumprimento da proposta de acordo comunicada;
h) – que a G... não estabelecia quaisquer planos de pagamento, limitando-se a contactar o devedor, depois do envio da carta destinada à cobrança dos montantes em dívida;
i) – que a intervenção da G... estava reduzida à intermediação nas comunicações entre o credor e os devedores, no contexto de relações creditícias já anteriormente existentes;
j) – que a actividade da G... não importava quaisquer actos de negociação tendente à cobrança de créditos, competindo-lhe a actividade de cobrança sem negociação;
k) – que a G... não aceitava propostas ou planos de pagamento;

1) – que a G... não remetia documentos para a formalização de acordos de pagamento;

m) – que a Associação de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos agrega, desde o ano de 2003, as empresas que, na área de gestão e recuperação de créditos, seguem um código de conduta escrupuloso e insusceptível de resultar na promoção e prática de actos ilícitos, porque legalmente atribuídos a Advogados ou Solicitadores;
n) que, à data dos factos, o objecto social da G... correspondesse à "actividade de prestação de serviços de apoio a empresas nas cobranças telefónicas".
(…)
No que se reporta à fundamentação da matéria, o Tribunal decidiu como a seguir se transcreve:

No caso vertente, em sede de motivação da decisão de facto, ponderaram-se, desde logo, os documentos juntos aos autos, designadamente os que integram:
- fls. 5 (carta, com data de 25/10/2006, enviada pela empresa "G..." a L..., relativa a "Assunto: Dívida a X... ");
- fls. 20 a 24 (certidão da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, relativo à sociedade comercial "G... – Serviços de Cobranças Telefónicas, S.A.", mormente a alteração do contrato a que respeita a Ap. 25/2006.01.05), e fls. 71 a 77 (certidão permanente por NIPC, relativo à sociedade comercial "G..."), cujo teor foi determinante para prova da factualidade enunciada nos pontos 1. e 2. da Matéria de Facto; fls. 548 e 549 (declaração emitida pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados, com data de 15/01/2015, dando conta de nenhum dos arguidos se encontrar inscrito, nem ter requerido a inscrição como Advogado ou Advogado Estagiário), cujo teor foi determinante para prova da factualidade enunciada no ponto 15. da Matéria de Facto.
Em complemento da prova documental junta aos autos, ponderaram-se, igualmente, os depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, a saber, L..., V…, I…, A…, E… e AG…, que prestaram um relato que se afigurou genuíno, sincero, credível, coerente e, no essencial, coincidente e/ou compatível entre si, e que foram devidamente conjugados com os documentos juntos aos autos, designadamente aqueles a que é feita referência no parágrafo que antecede.
Concretizando:
A testemunha L… deu conta ao tribunal de ter recebido uma carta da empresa G..., que, no decurso da sua inquirição, confirmou tratar-se daquela que se encontra junta a fls. 5 dos autos, exigindo o pagamento de uma alegada dívida, que orçava no valor de "setecentos e tal euros", e que tal pagamento poderia ser efectuado através de cheque ou de Multibanco, bem como de, ao constatar não ser a mesma redigida por nenhum advogado nem notário, ter decidido contactar a DECO, solicitando aconselhamento, tendo-lhe sido transmitido que se deveria deslocar à Ordem dos Advogados, o que fez, tendo, então, entregue uma fotocópia da carta em questão. Acrescentou, ainda, ter-se deslocado à polícia, onde apresentou queixa, e procedeu à entrega da carta que constitui fls. 5 dos autos. Explicitou que não é, nem nunca foi, devedor de qualquer quantia à "Z…" e/ou ao X..., tendo-lhe, inclusivamente, sido movida uma acção cível em que era reclamado esse valor, e no âmbito da qual foi absolvido. O depoimento da testemunha L… foi determinante para prova da factualidade enunciada nos pontos 3., 4., 5., 6. e 7. da Matéria de Facto.
A testemunha V..., advogado, deu conta ao tribunal de ter tomado conhecimento dos factos objecto dos presentes autos no âmbito das suas funções de vogal, com o pelouro do combate à procuradoria ilícita, do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, designadamente ao ter acesso à carta junta a fls. 5, que lhe foi exibida em julgamento.
A testemunha (C…, deu conta ao tribunal de ter sido instrutor do processo que, por este assunto, correu termos no Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, e que teve na sua génese a carta junta a fls. 5. Esclareceu o modo como a procuradoria ilícita afecta a Ordem dos Advogados e como esta entidade tem procurado combater tal problema.
As testemunhas V... e (C… demonstraram um conhecimento directo e profundo sobre esta questão, tendo o respectivo depoimento sido determinante para prova da factualidade enunciada nos pontos 8., 10., 11., 12., 13., 14., 16., 17., 18., 19. e 20., tendo-se, neste particular, atendido, igualmente, às regras da experiência comum e ainda ao facto de que a actividade e interesse público da AO constituírem factos notórios, que não carecem de prova.
Com relevância nesta sede mostrou-se, igualmente, o depoimento testemunhal de A..., que referiu incumbir-lhe, à data dos factos, a comunicação entre a X..., empresa do grupo "Z...", e as empresas terceiras por esta contratadas com vista à cobrança de créditos, tendo explicitado que os serviços da empresa "G..." foram contratados, pela X..., com vista à cobrança de dívidas, junto de clientes, através de telefone, de carta e/ou de correio electrónico, tendo o seu depoimento sido determinante para prova da factualidade enunciada nos pontos 8., 9., 21., 22., 23., 24., 25., 26. e 27..

A testemunha E... deu conhecimento ao tribunal de, no mês de Outubro de 2006, trabalhar na empresa "G...", nas funções de operador de call-center, no âmbito das quais lhe incumbia contactar telefonicamente os clientes que se encontravam em dívida, do que obtinha conhecimento através da consulta do sistema informático, e dar-lhes conhecimento do valor em dívida, bem como procurar inteirar-se se o cliente reunia condições económicas que lhe permitissem liquidar a dívida de uma só vez, ou, não lhe sendo isso possível, em três prestações mensais.

A testemunha AG… deu conta ao tribunal de exercer as funções de director executivo da Associação de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos, tendo explicitado que esta associação conta, actualmente, com vinte e quatro associados. Referiu, ainda, que em Outubro de 2006, a "G..." não era ainda associada, só se tendo tornado associada no mês de Março de 2007. O depoimento da testemunha AG… foi determinante para prova da factualidade enunciada no ponto 28. da Matéria de Facto.
Todos os referidos depoimentos testemunhais, na matéria aludida, foram relevantes, atento o conhecimento directo demonstrado, pelo exercício das funções, tendo todos eles deposto com isenção, de forma explicativa e circunstanciada, e sem qualquer outro desígnio que não o de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade dos factos, motivo pelo qual nos mereceram credibilidade.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 13. e 14., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que os arguidos C... e J... agiram com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
Os factos dos pontos 29. a 31. e 33. a 35. resultaram provados, tendo por base as declarações de cada um dos arguidos, quanto às respectivas condições pessoais, laborais e económicas, que se consideraram credíveis, não sendo postas em causa, mostrando-se a ausência de antecedentes criminais de cada um dos arguidos certificada a fls. 531 e a fls. 530, respectivamente, ambos com data de emissão de 06/01/2015.
No que tange à matéria de facto considerada como não provada, tal ficou a dever-se à circunstância de não ter sido feita prova da sua verificação, ou de a mesma se encontrar em contradição com a matéria de facto que o tribunal considerou como demonstrada, o que se verifica relativamente à factualidade a que é feita menção em a), c), d), e), i), j) e n).
***
Vejamos então a impugnação da matéria factual, começando desde logo pelo ponto 2. que se reporta ao objecto da sociedade dos arguidos. Adiantamos desde já que assiste razão aos recorrentes, não só porque a segunda parte da matéria daquele ponto é conclusiva, como também porque resulta do documento público- certidão da conservatória, junta a fls. 22- que o objecto social era o de prestação de serviços de apoio a empresas nas cobranças telefónicas. Documento esse não impugnado e, naturalmente do qual não consta a 2ª parte do ponto 2 da matéria fixada na sentença. Sequentemente, apresentam-se também como factos genéricos, os pontos 3, 8, 10, 11, 12, 16 a 20, 24, os quais, pela sua indeterminação, não poderiam ser valorados contra os arguidos a não ser na medida em que fossem especificadas as concretas condutas em que essa actividade se traduziu, uma vez que o objecto da acusação é tão só reportado aos factos denunciados pelo ofendido L....

É este o entendimento dominante do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o acórdão ( embora dirigido concretamente a outro tipo de crime) desse mesmo Tribunal de 27-05-2009, proferido no Proc. n.º 484/09 - 3.ª[6], no qual se pode ler: «Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente - neste sentido podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3ª; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3ª e n.º 578/08-3ª (neste afirmando-se que a dúvida sobre a quantidade de droga vendida a vários consumidores, e apresentada de forma indeterminada e em jeito de imputação genérica, tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo); de 02-07-2008, processo n.º 3861/07-3ª.»[7]
É certo que a factualidade genérica e conclusiva resultou fundamentalmente do depoimento dos senhores Advogados ligados à respectiva Ordem Profissional e não propriamente do seu directo conhecimento da actividade dos arguidos- nesta matéria o que escutamos nos seus depoimentos são as suas convicções interpretativas do documento- carta de fls. 5, com timbrado da empresa G.... O qual, aliás, e da nossa perspectiva, traduz apenas uma interpelação, ou seja, uma declaração unilateral da lavra do próprio credor.

Entendemos também assistir razão aos recorrentes quando alegam que os pontos 21, 22, 23, 24 não podem resultar de uma interpretação testemunhal sobre o documento de fls. 5, dirigido apenas ao participante nos autos. É que apenas esse objecto processual resulta dos autos da investigação. Generalizar sobre tal documento individual, sem qualquer outro apoio concreto da matéria não é possível concluir da forma que foi feita e que a própria jurisprudência não consente. Na verdade ouvidos os depoimentos das testemunhas com ligação aos arguidos e lendo-se o documento intitulado de “NOTIFICAÇÃO” apenas é seguro concluir que, no caso, a empresa gerida pelos arguidos efectuou uma interpelação ao ofendido L..., no sentido de procede ao pagamento da dívida para com o X... de determinado montante e em determinado prazo. Ou seja, não se procedeu a prova segura dos factos ali vertidos sobre a eventual actividade geral dos arguidos. Deveriam pois ter sido considerados como não provados aqueles factos dirigidos à actividade geral da empresa e dos seus gerentes.

E, assim se entendendo, não podem também aqueles factos servir de suporte/fundamento a uma qualquer presunção, nomeadamente para se extrair a verificação do elemento subjectivo do tipo legal do crime, como foi entendido na sentença sob recurso- cfr. pág 12: “O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 13. e 14., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que os arguidos C... e J... agiram com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.”

Com efeito, entendemos que o Tribunal não poderia ter “presumido” a verificação do dolo com fundamento na factualidade genérica que fixou na sentença. Na nossa perspectiva, em momento algum se conseguiu demonstrar que os arguidos enquanto gestores da empresa, aliás devidamente associada à entidade reguladora deste sector empresarial- a Associação de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos- sabiam e queriam praticar actos que lhe estavam proibidos por serem próprios dos advogados e dos solicitadores, tanto mais que geriam uma sociedade devidamente registada, lícita no seu objecto.

        Explicando de outra forma, faremos uma breve resenha retrospectiva desta questão da “cobrança de dívidas”.

É de há mais de 10 anos a polémica sobre como interpretar a expressão actos próprios dos advogados e dos solicitadores, no âmbito da previsão da Lei nº. 49/2004 de 24 de Agosto, nomeadamente a expressão utilizada no artigo 1º, nº. 6 b) “ a negociação tendente à cobrança de créditos” e a sua relação (convivência) com a existência de empresas devidamente registadas, cujo objecto é precisamente a gestão e recuperação de créditos.

A propósito deste tema, em 2013, o então Bastonário da O.A. Dr. Marinho e Pinto, em entrevista ao Diário Económico referiu: “que a recuperação de créditos é uma tarefa jurídica que só compete a advogados", e que "as empresas não têm condições nem conhecimentos jurídicos para fazer esse trabalho"; "os advogados negoceiam de maneira a poderem chegar a uma solução, como renegociar a dívida, perdoar juros ou fazer um plano de pagamentos", informando de forma cordial o devedor "que se não pagar dentro de um determinado prazo é desencadeado um processo em tribunal". Já as empresas de recuperação de crédito "usam métodos pouco ortodoxos e utilizam mesmo parte da dívida para fazer valer o pagamento do serviço".

Por sua vez, no mesmo artigo publicado no D.E. de 07-03-2013 António Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Empresas de Recuperação de Crédito (APERC), garante que as empresas que não cumprem com as regras "são uma minoria" e sublinha que existe uma lei de Agosto de 2004 que define que "a negociação da dívida do cliente só deve ser feita por um advogado ou alguém mandatado por ele". "Apesar de já haver alguns advogados contratados para fazer isso, a fase extra-judicial é feita pela empresa por via do diálogo", explica. E se o extra-judicial resolve o problema de forma "eficaz e eficiente", entrando na justiça, o diferendo pode demorar três, a quatro anos".

Ora, mesmo depois da criação da Lei 49/2004 esta questão entre os actos exclusivos dos Advogados e Solicitadores e o objecto social de várias empresas foi objecto de sucessivos pedidos ao Governo para criar legislação regulamentadora destas empresas, clarificando as fronteiras entre as respectivas actividades no que toca à cobrança de dívidas, até porque esta questão já se havia colocado aos próprios Notários a quando da regularização registral das empresas criadas com o objectivo de gerir e cobrar créditos. Tal situação encontra-se espelhada no Parecer aprovado em 27 de Setembro de 2012, homologado em 16/10/2012 pelo Sr Presidente do Instituto de Registos e Notariado, de cujo sumário consta:

[A inclusão, pela Lei 49/2004 de 24 de Agosto, da “negociação tendente à cobrança de créditos” de terceiro no âmbito dos “atos próprios dos advogados e solicitadores”, não deve, no quadro do princípio da legalidade (art.47º do Código do Registo Comercial) constituir obstáculo ao registo definitivo de constituição de sociedade cujo objeto inclua a atividade de “cobrança de dívidas” ou “gestão e cobrança de créditos”].

Com efeito, a questão central da interpretação da expressão “negociação tendente à cobrança de créditos” como acto próprio dos advogados e solicitadores, definida pelo artº 1º nº. 6 b) da Lei 49/2004 leva-nos desde logo a entender que negociação não será o mesmo que cobrança. Até porque, a não se conceber esta diferença, qualquer acto de negociação para cobrança de dívida entre o credor e o devedor haveria sempre de carecer de intervenção de advogado ou solicitador, sob pena de se incluir na procuradoria ilícita. Sabemos que não é assim, até pela disposição do nº. 7 do referido artigo 1º, que, reportando-se ao número anterior (nomeadamente o nº. 6 b) citado) dispõe: “ Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.

E, também o nº. 8 daquele preceito estabelece que:

“Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.”

Ao admitir a existência de empresas para cobrança de dívidas de terceiros, o legislador não quis que a “negociação” coincidisse com a “cobrança”, sendo certo que o legislador também não disse o que deve entender-se como negociação de créditos. Mas, seguramente que não quis referir-se à mera interpelação para o pagamento (que também pode fazer parte da negociação).Ou seja, tudo dependerá da forma do exercício da actividade da cobrança das dívidas. No entanto, temos para nós, como seguro que uma interpelação unilateral não pode por si só incluir-se na definição de negociação. O que, evidentemente pode vir a suceder sequentemente, tudo dependendo da actividade comprovada.

O que se nos apresenta como certo e seguro é que o legislador já deveria ter resolvido esta divergência através de uma clara definição dos termos em “conflito”, tanto mais que conforme referimos atrás, o próprio Instituto dos Registos e Notariado autoriza a existência de empresas ou sociedades cujo objecto inclui a actividade de “cobrança de dívidas” ou “gestão e cobrança de créditos”, permitindo assim criar nos respectivos profissionais a confiança no exercício de uma actividade devidamente lícita.

No caso, na nossa perspectiva, cremos que foi o que ocorreu. Na verdade, em momento algum se conseguiu demonstrar que os arguidos enquanto gestores da empresa, aliás devidamente associada à entidade reguladora deste sector empresarial- a Associação de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos- sabiam e queriam praticar actos que lhe estavam proibidos por serem próprios dos advogados e dos solicitadores. Como se deixou exposto acima, não tendo os arguidos prestado depoimento de modo a concluir-se directamente da sua intenção, não podia de outra forma o Tribunal ter achado a respectiva factualidade através de presunção alicerçada em factos que não foram provados em julgamento ou que tenham a natureza genérica.

Do exposto conclui-se que a matéria vertida nos pontos 2 –2ª.Parte, 3, 5, 7 a 14, 21 a 27 não logrou apoio na prova produzida em audiência, pelo que se tem de ter como matéria não provada. Ficando a constar do ponto 2 como matéria provada documentalmente- fls. 22- que: “O objecto social da G... correspondia à actividade de prestação de serviços de apoio a empresas nas cobranças telefónicas”, ou seja, a matéria constante do ponto n) dos factos não provados, da sentença.

Assim se concluindo fácil é perceber que, a matéria apurada não integra nem objectiva nem subjectivamente, os requisitos típicos do ilícito imputado aos arguidos. Consequentemente declara-se a sua absolvição.

Quanto à questão cível, verificamos que a responsabilidade civil imputada aos arguidos coincide nos seus fundamentos, com a conduta objectiva que acaba de ser considerada como não provada na parte relativa á conduta criminal, pelo que faltando-lhe os necessários pressupostos tem o Tribunal de concluir pela procedência do recurso também nesta parte. Declara-se também a absolvição dos arguidos quanto ao pedido cível objecto da condenação na 1ª.Instância.

Em face do desfecho a que este Tribunal chegou na análise do recurso dos arguidos, consideramos prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas pelos recorrentes.

III – DECISÃO.

Acordam os juízes da 9ª Secção do Tribunal desta Relação em dar provimento ao recurso dos arguidos, declarando a sua absolvição do crime e indemnização em que haviam sido condenados, revogando-se a decisão da 1ª. Instância.

       Sem custas.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)

                                                                     

 Lisboa, 18/09/2015

Maria do Carmo Ferreira

Cristina Branco

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[1] Afigura-se-nos ser lapso de escrita dos Recorrentes.

[2] Não querendo produzir uma conexão matemática, na realidade são necessárias duas premissas ( ou proposições) para se extrair uma conclusão, sendo certo que " … As conclusões são proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações, devendo constituir um discurso lógico, uma síntese das razões, quer de facto quer de direito, explanadas ao longo da alegação...” in Ac. T. Const. n° 189/2003, de 2003-04-08 (Proc. n° 266/2000, in DR II série, de 2003-06-24).

[3] A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. (Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, em www. dgsi.pt).
[4] – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314.

[5] Como escreveu CASTANHEIRA NEVES “As regras de experiência, os critérios gerais não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar ?” [ In “Sumários de Processo Criminal” (1967-1968), Coimbra, 1968, pp 47-48, citado por Mendes, Paulo de Sousa, “A Prova Penal e as Regras da Experiência”, Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, III, Coimbra, 2010, pp 997-1011].


[6] Ibidem. No mesmo sentido se pronunciaram, também, os Acs. do STJ de 26-09-2007, Proc. n.º 1890/07 - 3.ª, de 05-12-2007, Proc. n.º 3396/07 - 3.ª, e de 19-12-2007, Proc. n.º 4203/07 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).

[7] Assim, e para que sejam respeitados os direitos de defesa dos recorrentes, designadamente o direito ao contraditório, apenas a actividade que tiver sido concretizada pode ser valorada para efeitos de qualificação jurídico-criminal.