Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
122/13.8TELSB-AB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
MEDIDAS DE COACÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Sendo a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação substituída pela medida de proibição do arguido se ausentar para o estrangeiro sem autorização prévia, prevista no artigo 200º, nº 1, alínea b), do CPP, o prazo de duração desta última medida é o previsto no artigo 215º, nº 1 (in casu, elevado nos termos do nº 3, por ter sido declarada a excepcional complexidade dos autos), por força do consagrado no artigo 218º, nº 2, iniciando-se no dia em que a mesma é aplicada.

II - Na contagem do prazo máximo de duração desta medida não se incluem os períodos em que o arguido esteve sujeito à prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação.

III - A medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro sem prévia autorização, quando aplicada em obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, como impõe o artigo 193º, do CPP, ainda que afecte a liberdade de circulação, não configura violação do princípio de livre circulação, não obliterando o consagrado no artigo 2º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigos 6º, 15º, 20º e 21º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 2º, 6º e 9º, do Tratado da União Europeia, artigos 18º, 20º e 45º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, Directiva de 2004 sobre a Liberdade de Circulação e Convenção sobre a Aplicação do Acordo de Schengen.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



I - RELATÓRIO


1. No Tribunal Central de Instrução Criminal, Processo de Inquérito com o nº 122/13.8TELSB, foi proferido despacho, aos 26/01/2016 que, relativamente a requerimento apresentado pelo arguido J., decidiu não haver lugar a apreciação da questão de que seja determinado ao Ministério Público que profira despacho de arquivamento ou seja declarada verificada a caducidade do direito do Ministério Público exercer a acção penal; indeferiu a pretensão de extinção, por caducidade, das medidas de coacção vigentes; indeferiu o invocado justo impedimento para preparar e interpor recurso sobre a decisão de fls. 23.869 e o pedido de prorrogação do prazo para interposição desse recurso e indeferiu a pretensão de que fosse admitido o recurso interposto do despacho de fls. 23.869, com pagamento de multa pela apresentação no terceiro dia útil após o termo do prazo para o efeito.


2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o arguido, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

A. O recorrente conforma-se apenas parcialmente com a decisão recorrida sobre as medidas de coacção, na parte que tange à medida de coacção proibição de contactos com outros arguidos, pretendendo neste recurso impugnar o decidido relativamente à proibição de se ausentar para o estrangeiro.

B. É certo que ambas encontram previsão no artigo 200º do Código de Processo Penal (CPP), sendo prima fatie aplicável o disposto no artigo 217º nº 2 do mesmo diploma. Todavia, entende o recorrente, após melhor reflexão, que é absolutamente distinta a natureza de uma e a de outra.

C. A medida de não se ausentar para o estrangeiro, prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 200º, ao contrário ou diferentemente da primeira, consubstancia-se numa efectiva restrição da liberdade de circulação, constituindo uma verdadeira medida cautelar privativa da liberdade – tal como este conceito vem previsto no artigo 2º do protocolo adicional nº 4, para a protecção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

D. Nesse sentido mesmo se pronunciou o Tribunal de Justiça da União Europeia.

E. O direito à liberdade de circulação é um princípio fundamental da União Europeia, tutelado pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – cf. artigo 6º, 15º, 20º, 21º -, pelo Tratado da União Europeia – cf. artigos 2º, 6º e 9º - e pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia – cf. artigos 18º, 20º e 45º -, pela Directiva de 2004 sobre a liberdade de circulação e pela Convenção sobre a Aplicação do Acordo de Schengen.

F. Ora, por força da medida em causa, e considerando a perspectiva da União, do seu espaço e do seu Direito, está o recorrente a ser tratado como se fosse um estrangeiro no Espaço Europeu, vendo coartado o seu direito à liberdade, à livre circulação no espaço Schengen.

G. Parece ao recorrente ser ilegítimo, face às normas e aos princípios em que se funda a União Europeia, e que vinculam o Estado Português, que este possa, através do seu poder judicial, sujeitar o recorrente a sucessivas restrições ou compressões desse direito, duplicando assim o prazo legalmente previsto para qualquer delas.

H. Por imposição constitucional do artigo 8º da Constituição, e por força das normas e princípios do Direito da União, o disposto nos artigos 217º nº 2 e 218º nº 2 deve ser interpretado conjugadamente no sentido de limitar a restrição à liberdade de circulação apenas ao prazo máximo aplicável, que no caso é o previsto no artigo 215º do CPP, devendo o tempo de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação ser descontado na contagem do prazo de duração máxima da proibição e imposição de condutas, quando respeite a medidas cautelares limitadoras da liberdade de circulação,

I. Sob pena de a norma em causa, dos artigos 217º nº 2 e 218º nº 2 deverem ser julgadas inconstitucionais, precisamente por violação das normas e princípios supraconstitucionais antes citados, e do disposto nos artigos 8º e 27º da Constituição.

J. O direito à liberdade significa, como decorre do contexto global desse artigo, direito “a liberdade física, à liberdade de movimentos, ou seja, direito de não ser detido, de não ser aprisionado, ou de qualquer outro modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar. A Constituição não contém efectivamente uma disposição consagrando um direito à liberdade em geral, não garante a liberdade em geral, mas sim as principais liberdades em que ela se analisa”.

K. Se na contabilização dos prazos máximos de aplicação sucessiva de medidas de coacção substancialmente restritivas de liberdade de circulação não for considerado o lapso temporal já decorrido naquela que foi cumprida em primeiro lugar, deverá concluir-se estar perante uma restrição injustificada da liberdade.

L. No caso dos autos, para contabilização do prazo máximo da medida de coacção prevista no artigo 200º nº 1 alínea b) a que está sujeito, deve ser acrescentado o tempo a que esteve sujeito a prisão preventiva carcerária e domiciliária, razão por que considera que o prazo máximo da medida de proibição de ausência para o estrangeiro se mostra já extinto por caducidade.

M. As duas decisões do Senhor Director do DCIAP proferidas ao abrigo do artigo 276º nº 7 do CPP significam que o ora recorrente continua a estar sujeito, como suspeito arguido, a um inquérito crime sem qualquer limite de prazo quanto à sua conclusão - de arquivamento ou de acusação.

N. Resulta claramente da lei — artigo 276º nºs 1 a 5 do CPP — que qualquer inquérito crime está sujeito a prazos máximos e que, perante a comunicação do titular do inquérito prevista no artigo 276º nº 6 do CPP, ao seu superior hierárquico apenas cabe (a) avocar o processo ou (b) tomar os procedimentos que, na qualidade de superior hierárquico, entender serem úteis para imprimir celeridade ao inquérito, ficando obrigado a comunicar à Procuradora-Geral da República, ao arguido e ao assistente a «violação do prazo» e a decidir sobre «o período neces­sário para concluir o inquérito» - cf. artigo 276º n.º 7, que especifica que segmento da decisão deve ser dado conhecimento ao Procurador Geral da República, ao arguido e ao assistente: "da violação do prazo e do período necessário para concluir o inquérito".

O. Não cabe legalmente ao superior hierárquico do titular do inquérito o poder ou faculdade de decidir fixar novos prazos para apresentação de informações complementares, por considerar que não haveriam elementos bastantes para fixar o período necessário para concluir o inquérito. Verificando, ou entendendo não existirem tais elementos, só lhe restaria fixar prazo curto para o arquivamento, talqualmente prescreve, de resto, o nº 2 do artigo 277º.

P. Mostram-se evidentes as ofensas e restrições aos direitos fundamentais, que a sujeição como suspeito arguido a um inquérito crime sempre implica, desde logo o direito à paz jurídica, com tudo o que representa e significa.

Q. Tais ofensas e restrições, no caso concreto, pelas especificas características individuais do ora recorrente, pela enormidade da devassa, pelo absurdo dessas restrições, pela manutenção indefinida e esmagadora de nuvens de suspeição, pela indiciariamente criminosa divulgação de elementos processuais ofensivos da dignidade pessoal e da boa e adequada realização da justiça, mostram-se gravíssimas e de todo injustificadas.

R. Os prazos máximos de inquérito previstos no artigo 276º nºs 1 a 5 do CPP não têm, no modo de ver do recorrente, uma mera função ordenadora do exercício pelo Ministério Público da acção penal, ou apenas indicativa dos termos da conduta (seja qual seja a sua natureza: administrativa, jurisdicional ou outra) em que se consubstancia a sua intervenção no inquérito. Muito pelo contrário, a norma que fixa tais prazos máximos mostra-se passível de ser subjetivada, segundo a óptica do arguido potencialmente destinatário do acto lesivo, assumindo por isso o prazo legal, aqui, uma natureza garantística, que faz emergir para o arguido – para o cidadão – o direito subjetivo a, decorrido esse prazo, já não poder ser destinatário de uma decisão lesiva. Somente dentro desse prazo o Ministério Público se encontra habilitado a intervir, no âmbito de um concreto inquérito, sobre a esfera jurídica do arguido.

S. Se o prazo legal, em procedimentos de iniciativa oficiosa, assumir a natureza de prazo máximo, tiver sido estabelecido como garantia do arguido — do cidadão, dos indivíduos - a obter uma definição da sua situação jurídica em cenários passiveis de conduzir a uma decisão com efeitos desfavoráveis (v.g., face à sua liberdade, honorabilidade, propriedade ou outros bens jusfundamentais), o decurso do prazo faz caducar o procedimento.

T. Trata-se do afloramento de um princípio geral consagrado no artigo 128º, nº 6, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), passível de encontrar outras manifestações ilustrativas, desde logo ao nível do processo penal (v.g., prazo máximo de inquérito), por força do disposto no artigo 32º nº 2 da CRP. Desde que exista um prazo máximo de decisão criado a favor ou como garantia do arguido — do cidadão - contra intervenções desfavoráveis na sua esfera jurídica, a inércia do Ministério Público - a inércia administrativa - produzirá efeitos preclusivos sobre o exercício dos respectivos poderes.

U. Diferente entendimento não se coadunaria com os requisitos do artigo 276º do Código de Processo Penal para a extensão e alargamento destes prazos. Nem com a previsão do artigo 277º nº 2, que impõem que o inquérito seja arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes, por esvaziar de sentido e tornar impossível a determinação temporal dessa possibilidade. Ou com o disposto no artigo 279º, que prevê a reabertura do inquérito se surgirem novos elementos de prova.

V. Se as normas do artigo 276º nºs 1 a 5 forem interpretadas no sentido de não imporem um limite temporal máximo, um prazo máximo peremptório, para a conclusão do inquérito, ou se as normas do artigo 276º nºs 6 a 8 forem interpretadas no sentido de permitirem o afastamento de qualquer prazo máximo peremptório para a conclusão do inquérito (como parece resultar das duas decisões citadas do Senhor Director do DCIAP), as mesmas deverão ser julgadas inconstitucionais, por violação do direito de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º nº 4 da CRP, e por violação das garantias de defesa, do direito à presunção de inocência e do direito à paz jurídica, consagradas no respectivo artigo 32º nºs 1 e 2.

W. Continua a ser negado ao ora recorrente o conhecimento e o devido esclarecimento das razões invocadas pelos responsáveis pelo inquérito para não concluírem as investigações, já que - por decisão do titular do inquérito e do seu superior hierárquico Director do DCIAP - lhe foi recusada a obtenção de cópias das comunicações feitas ao abrigo do artigo 276º nº 6 do CPP.

X. O recorrente entende que resulta dos autos - da consulta que só parcialmente lhe foi permitida, por violação pelo titular do inquérito de duas decisões da Relação de Lisboa (Acórdãos de 24 de Setembro e de 15 de outubro de 2015) - que o Ministério Público recolheu já prova bastante de nenhum crime ter sido praticado, e muito concretamente de ele não ter praticado crime algum.

Y. Ou, pelo menos - o que os signatários concedem apenas por cautela de patrocínio, e sem prescindir -, que resulta exuberantemente dos autos que o Ministério Público não recolheu prova bastante de algum crime ter sido praticado, pelo menos por ele.

Z. Não se tendo conformado com as decisões citadas do Senhor Director do DCIAP e do titular do inquérito, tentou o ora recorrente conhecer os respectivos fundamentos, que constam: da comunicação, prevista no artigo 276º nº 6 do CPP, enviada pelo titular do inquérito ao superior hierárquico e da resposta que deu ao despacho do superior hierárquico de 11 de Novembro; e de uma reunião de trabalho em 18 de dezembro de 2015.

AA. Trata-se de peças atinentes ao processado deste inquérito, contendo necessariamente as razões que explicam o atraso e a indicação do período necessário para concluir o inquérito, conforme expressamente preceitua o nº 6 do artigo 276º do CPP.

BB. A norma do artigo 276º nº 6 (como as dos respectivos 7 e 8), só pode ser entendidas como de concretização ou especificação da regra geral prevista no artigo 107º nº 2 do CPP, de que "os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade judiciária (...), a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento" - concretização ou especificação plenamente justificada pelas especificidades de se tratar, nestes casos, de prazos impostos à própria autoridade judiciária que dirige o inquérito, ao próprio titular do inquérito, e que neste caso é por isso mesmo substituído na decisão pelo seu superior hierárquico.

CC. A comunicação formal prevista no artigo 276º nº 6 deve ser autuada no processado principal do inquérito e notificada a todos os arguidos e assistentes, e deve conter a alegação e a demonstração ou prova suficiente dos motivos que justifiquem não ter sido possível encerrar o inquérito no prazo máximo fixado na lei.

DD. Só assim se justifica, no entender do recorrente, a inserção destas normas (dos números 6 a 8 do artigo 276º) no CPP. E só assim se mostram compatíveis com as garantias de defesa e, muito concretamente e especialmente, com o disposto nas normas constitucionais e supraconstitucionais já citadas antes, que preveem e garantem o direito a um processo equitativo a qualquer suspeito ou arguido em processo criminal.

EE. Os argumentos do titular do inquérito não podem também proceder sob pena de inadmissível violação da decisão judicial contida no Acórdão, já citado, de 24 de Setembro, da 9a secção do Tribunal Relação de Lisboa, que, com efeitos a partir de 15 de Abril passado, lhe determinou desse conhecimento ao arguido de todos os elementos processuais relativos a este inquérito.

FF. E porque, ainda que se tratasse de documento inserido "no relacionamento hierárquico dentro da magistratura do Ministério Público" e "sujeito apenas a sindicância hierárquica" (o que aqui se equaciona apenas por cautela de patrocínio), também nesse caso, pelas regras próprias do procedimento administrativo, se haveria de considerar ser o respectivo conhecimento direito do arguido, como cidadão, como individuo, como particular, afectado por tal acto.

GG. Arrimando-se o Senhor Juiz, no despacho referido, à promoção do titular do inquérito de fls 23732 a 23737, que é mesmo dada por reproduzida em fundamentação dessa decisão de que o arguido pretende recorrer, sendo aquela comunicação nela invocada em seu fundamento (cf. último parágrafo de fls 23.870), e sendo tal comunicação apenas parcialmente e sinteticamente transcrita na decisão hierárquica de 11 de Novembro, ali igualmente invocada, mostra-se o integral conhecimento dessa comunicação essencial ao arguido para preparar e apresentar o recurso que pretende interpor.

HH. Tal decisão do Director do DCIAP altera os pressupostos em que assentou o despacho citado de 23 de Novembro, agravando cada vez mais a posição processual do arguido e os seus direitos individuais e de cidadania, uma vez que a única conclusão que se pode retirar de toda esta, aparentemente concertada e ilegal – por violadora dos prazos máximos judicialmente fixados para este concreto inquérito –, actuação do Ministério Público e da sua estrutura hierárquica é a de que continua a não ser possível saber por mais quanto tempo este procedimento vai continuar, com os evidentes, gravíssimos e cada vez mais dificilmente reparáveis prejuízos que resultam dessa indefinição para a paz e a tranquilidade jurídica a que o arguido tem direito, para o seu bom nome, para a sua vida pessoal, profissional e política.

II. E é reveladora de que a manutenção deste inquérito é cada mais injusta e também socialmente insustentável, para mais, quando resulta já claramente e manifestamente dos autos - de quanto se conhece dos autos, que ainda não é tudo, por insistência do titular do inquérito na inadmissível violação do decidido pela 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 24 de Setembro –, que depois de mais de 30 meses de investigação formal neste inquérito, com recurso a todos os mais invasivos e intrusivos meios de investigação e de devassa, com a sujeição do arguido e de alguns dos seus coarguidos inclusivamente a prisão preventiva carceraria e domiciliária durante quase um ano, continua a não ser possível ao Ministério Público obter indícios suficientes (para a dedução de uma acusação) da verificação de qualquer crime ou de quem foram os seus agentes. Quando, antes pelo contrário, resulta de todos os meios de prova e de obtenção de prova existentes e produzidos – desde depoimentos pessoais de arguidos e de testemunhas, passando pela documentação apreendida em Portugal e no estrangeiro, até às intercepções de conversas e comunicações telefónicas e vigilâncias realizadas – que nenhum crime se verificou e que o arguido nenhum crime cometeu.

JJ. Tal decisão e a insistência pelo titular do inquérito na recusa ao arguido do conteúdo ou razões das comunicações hierárquicas que efectuou, revelam que o arguido está efectivamente impedido, por facto que lhe não é imputável, a ele ou aos seus advogados, de efectiva e cabalmente o exercer, de preparar tal recurso impugnando os motivos que fundamentaram tal decisão de V.a Ex.a, motivos que na verdade continua a desconhecer.

KK. Invocando o justo impedimento o recorrente pretendeu muito legitimamente conhecer a posição do titular do inquérito quanto ao que a lei, no artigo 276º nº 6, quando se verifica qualquer violação dos prazos previstos nos números 1 a 5, exige que ele indique na comunicação formal ali prevista.

LL. Só assim estaria – estará – em condições de adequadamente recorrer da decisão em causa. E sem conhecer as comunicações a que tentou ter acesso tal era evidentemente impossível.

MM. Quanto à questão da prorrogação de prazo importa esclarecer desde logo ser falso que o requerente tivesse tido até ao momento da decisão do Senhor Juiz a quo – ou até que tenha já tido – acesso à totalidade do processado.

NN. O próprio titular do inquérito quem reconheceu que o recorrente colocou no seu requerimento efectivamente em causa a discussão da matéria indiciária, que é evidentemente matéria de facto - isso mesmo resulta da alínea b) da síntese feita desse requerimento pelo titular do inquérito: "b) O requerente entende que o Ministério Público recolheu prova bastante de que o arguido não praticou crime algum ou, ao menos, não recolheu prova bastante de que algum crime tenha sido praticado ou de que o arguido tenha praticado qualquer crime".

TERMOS EM QUE PEDE SEJA REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO, Justiça!



3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo, pugnando por ser negado provimento ao recurso.


4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu “Visto”.


5. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


Cumpre apreciar e decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Extinção por caducidade da medida de coacção de proibição do arguido se ausentar para o estrangeiro.

Verificação dos pressupostos do justo impedimento/prorrogação do prazo de recurso.


2. É o seguinte o teor do despacho recorrido, na parte que releva (transcrição):

Fls. 22531 a 22534, com referência a fls. 25270 e 25349 e seg.s – Veio o arguido J., a douto punho, na sequência da prolação do despacho que ora faz fls. 23869 e seguintes, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento que aqui se dá por reproduzido, requerer, em alternativa, que:

- Seja determinado ao Ministério Público que profira despacho de arquivamento do Inquérito, ou

- Seja declarado, por caducidade, o direito do Ministério Público exercer a acção penal, ou

- Sejam declaradas extintas as medidas de coacção de proibição de contactos e de ausência para o estrangeiro impostas ao arguido, ou

- Seja reconhecido o justo impedimento para preparar e interpor o recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes, ou

- Seja prorrogado o prazo para a interposição desse recurso, ou

- Seja admitido o recurso, com pagamento de multa pela apresentação no terceiro dia útil após o termo do prazo.

O detentor da acção penal, pronuncia-se nos termos e com os fundamentos constantes da douta promoção antecedente, que infra se transcreve:

«Requerimento de folhas 25270 e seguintes, repetido a folhas 25349 e seguintes

A Defesa do arguido J.vem, a pretexto da decisão de folhas 23869 e seguintes, invocar os mesmos argumentos já apresentados no seu requerimento de folhas 23732 e seguintes, para requerer, em alternativa, que:

a) - seja determinado ao Ministério Público que profira despacho de arquivamento ou

b) - seja declarado por caducidade o direito do Ministério Público exercer a acção penal ou

c) - sejam declaradas extintas as medidas de coacção de proibição de contactos e de ausência para o estrangeiro ou

d) - seja reconhecido o justo impedimento para preparar e interpor o recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes ou

e) - seja prorrogado o prazo para a interposição desse recurso ou

f) - seja admitido o recurso, com pagamento de multa pela apresentação no terceiro dia útil após o termo do prazo.

A decisão de folhas 23869 e seguintes pronunciou-se, na sequência de requerimento do arguido, de folhas 23732 e seguintes, sobre a natureza do prazo de duração do Inquérito, que o arguido pretendia que fosse de caducidade, e sobre a titularidade do Inquérito e a extinção das medidas de coacção então vigentes.

Nesse despacho claramente se decidiu que se encontra vedada ao JIC a direcção, a recolha e a selecção de prova em sede de Inquérito, face ao disposto no art. 268º do CPP, bem como se decidiu que o prazo de duração do Inquérito tem natureza meramente ordenadora e não peremptória.

Entendemos assim, que as questões primeiramente suscitadas no requerimento agora em apreciação, determinação do arquivamento do Inquérito e caducidade do prazo do Inquérito, representam uma repetição do já judicialmente apreciado, visando apenas gerar uma nova decisão, pelo que promovemos se remeta o requerente para o já decidido, a folhas 23869 e seguintes.

No que se reporta à extinção das medidas de coacção vigentes, proibição de contactos e de ausência para o estrangeiro sem prévia autorização, alega agora o requerente que as mesmas se devem considerar vigentes desde 21 de Novembro de 2014, razão pela qual estariam extintas por caducidade.

Entendemos que não é admissível o raciocínio apresentado pelo requerente, uma vez que a decisão proferida na data de 24 de Novembro apenas determinou a aplicação de uma medida de coacção, a de prisão preventiva, medida essa que implicava a restrição total de movimentos por parte do arguido.

No entanto, a apreciação sobre as medidas vigentes de proibição de contactos e de deslocação ao estrangeiro foi apenas aplicada por via da decisão proferida na data de 16 de Outubro de 2015, de folhas 22500 e seguintes, aliás sujeita já a recurso.

Pelo exposto, entendemos que deve ser indeferida a pretensão de extinção por caducidade das medidas de coacção vigentes.

No que se reporta ao alegado justo impedimento para a interposição de recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes, fundamenta-se o requerente na circunstância de lhe ter sido recusado o acesso a comunicações realizadas no âmbito da hierarquia do Ministério Público, designadamente as que teriam suportado o despacho proferido pelo Sr. Director do DCIAP de 11 de Novembro de 2015, de folhas 23522 e seguintes.

No entanto, o requerimento que deu origem à decisão de folhas 23869 e seguintes, da qual o requerente diz pretender recorrer, não invoca o referido despacho do Sr. Director do DCIAP.

Por outro lado, a promoção do Ministério Público que antecedeu e foi acolhida na decisão de folhas 23869 e seguintes apenas citou a referida decisão hierárquica quanto aos seus argumentos jurídicos, relativos à finalidade do Inquérito e seu encerramento.

O despacho do Sr. Director do DCIAP, de folhas 23522 e seguintes, vale por si mesmo e foi objectivamente citado, na sua argumentação jurídica, em sede da promoção que antecedeu a decisão de que se pretende recorrer.

Assim, ao contrário do agora pretendido, o acesso aos documentos de trabalho, internos do Ministério Público, que conduziram ao proferir do despacho de folhas 23522, são irrelevantes para efeito da interposição de recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes.

Concluímos assim, não se poder considerar verificado justo impedimento, nos termos alegados, pela circunstância de não ter sido dado acesso a documentos extra-processuais, que não estão relacionados, em sede temática, com as questões apreciadas pela decisão de folhas 23869 e seguintes.

No que se reporta ao pedido de prorrogação do prazo para a interposição de recurso, nos termos do art. 107º-6 do CPP, entendemos que o mesmo não merece acolhimento, uma vez que se mostram colocadas exclusivamente questões de direito, cuja discussão não depende da excepcional complexidade do procedimento, a qual se suporta exclusivamente em matéria de facto.

De facto, tendo, à data da decisão de folhas 23869 e seguintes, o requerente já tido acesso à totalidade do processado e não estando em causa a discussão de matéria indiciária, mas apenas de questões jurídicas sobre a natureza do prazo do Inquérito, entendemos que a prorrogação solicitada não se integra na razão de ser do disposto no art. 107º-6 do CPP.

Por último, pretende o requerente que seja admitido o recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes, por entender se encontrar no último dia para apresentação da interposição, com sujeição a multa.

Verifica-se porem, que a decisão de folhas 23869 e seguintes foi notificada ao requerente via fax, na data de 23 de Novembro de 2015, conforme folhas 23875.

O requerimento de interposição de recurso chegou ao TCIC, via mail, datado de 13 de Janeiro de 2016 — folhas 25269.

Afigura-se-nos assim, atenta a notificação realizada por fax, que o prazo de interposição do recurso se havia esgotado na data de 8 de Janeiro de 2016, já descontado o período de férias judiciais e os três dias úteis posteriores para a prática dos factos.

Pelo exposto, promovemos se indefira o requerido nos vários pontos alternativos suscitados pelo requerimento de folhas 25270 e seguintes, inclusive quanto à admissão do recurso interposto.» (sic).

Cumpre decidir:

Relativamente às questões agora repristinadas pelo arguido, designadamente para que seja determinado ao Ministério Público que profira despacho de arquivamento ou seja declarado, por caducidade, o direito do Ministério Público exercer a acção penal, já nos pronunciámos por despacho que ora faz fls. 23869 e seguintes e para o qual remetemos, nada mais havendo a apreciar e decidir, neste tocante.

No tocante à requerida extinção das medidas de coacção de proibição de contactos e de ausência para o estrangeiro sem prévia autorização vigentes, verifica-se que as mesmas foram impostas por despacho proferido em 16/10/2015 (cfr. fls. 22500 e seg.s), aliás, posto em crise, por recurso interposto pelo arguido.

Atenta a data de imposição de tais medidas de coacção, não se mostra ultrapassado o prazo máximo legalmente fixado para as mesmas, corroborando-se o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal, ao qual nos arrimamos, de que não é admissível o raciocínio apresentado pelo requerente, uma vez que a decisão proferida na data de 24 de Novembro apenas determinou a aplicação de uma medida de coacção, a de prisão preventiva, medida essa que implicava a restrição total de movimentos por parte do arguido.

Assim, indefere-se a pretensão de extinção, por caducidade, das medidas de coacção vigentes.

Relativamente, ao alegado justo impedimento para preparar e interpor o recurso sobre a decisão de folhas 23869 e seguintes e ao pedido de prorrogação do prazo para a interposição desse recurso, vão os mesmos indeferidos, corroborando-se a argumentação de facto e de direito, a respeito, aduzidas pelo titular da acção penal na douta promoção supra transcrita, à qual nos arrimamos e aqui damos por reproduzida, não por falta de ponderação própria das questões, mas por simples economia processual.

Finalmente, no tocante à questão suscitada pelo arguido de que seja admitido o recurso interposto do despacho de fls. 23869, com pagamento de multa pela apresentação no terceiro dia útil após o termo do prazo para o efeito, entendemos que assiste razão ao detentor da acção penal, quando aduz que o mesmo se mostra intempestivo.

Com efeito, da compulsação dos autos, verifica-se que o despacho de fls. 23869 e seguintes foi notificado à Defesa do arguido, via fax, no dia 23/11/2015 (cfr. fls. 23875) e o requerimento de interposição de recurso foi remetido a este TCIC, via mail, no dia 13/01/2016 (cfr. fls. 25269).

Assim, aquando da remessa do recurso a este TCIC, já o prazo legalmente previsto para esse efeito, se mostrava decorrido, tendo-se esgotado no dia 08/01/2016, já contando com os três dias úteis posteriores para a prática do acto, previstos no art.º 107.º-A, do CPP.

Face ao exposto e, sem necessidade de mais considerações, indefere-se, também neste tocante, a pretensão do arguido, não se admitindo o recurso junto a fls. 25269 e seguintes, por se mostrar extemporâneo – ex vi do n.º 2, do art.º 414.º, do CPP.

Apreciemos.

Extinção por caducidade da medida de coacção de proibição do arguido se ausentar para o estrangeiro

Sustenta o recorrente que para a contabilização do prazo máximo da medida de coacção prevista no artigo 200º, nº 1, alínea b), do CPP, a que se mostra sujeito (à data da prolação do despacho recorrido, entenda-se) deve atender-se também ao período temporal em que permaneceu sob as medidas de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, pelo que aquele prazo se mostra já extinto por caducidade.

Resulta dos autos o seguinte:

Após 1º interrogatório judicial, foi ao recorrente aplicada, aos 24/11/2014, a medida de coacção de prisão preventiva.

Por despacho judicial de 04/09/2015, foi substituída tal medida pelas de obrigação de permanência na habitação – artigo 201º, do CPP - e proibição de contactos com os arguidos e pessoas no mesmo identificadas.

Por despacho judicial de 16/10/2015, foi determinada a substituição destas medidas pelas de proibição de ausência do território nacional sem prévia autorização, prevista na alínea b), do nº 1, do artigo 200º, do CPP e proibição de contactos com outros arguidos constituídos nos autos, bem como com administradores, gerentes ou outros colaboradores de sociedades na esfera jurídica de CS e ainda com administradores, gerentes ou outros colaboradores de sociedades do Grupo V., do Grupo L. ou da C.

Ora, de acordo com o estabelecido no nº 2, do artigo 218º, do CPP, “à medida de coacção prevista no artigo 200º é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 215º e 216º”, sendo que, nos termos do nº 3 do mesmo, “à medida de coacção prevista no artigo 201º é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 215º, 216º e 217º”.

E, consagra-se no nº 2, do referido artigo 217º: “se a libertação tiver lugar por se terem esgotado os prazos de duração máxima da prisão preventiva, o juiz pode sujeitar o arguido a alguma ou algumas das medidas previstas nos artigos 197º a 200º, inclusive”.

Da conjugação destes normativos resulta, claramente, como se salienta no Acórdão deste Tribunal da Relação de 03/12/2008, Proc. nº 8076/2008-3, disponível em www.dgsi.pt, que “a contagem do prazo máximo de uma dada medida de coacção quando esta sucede a uma outra só cumulam os dois períodos de decurso de tempo nos casos em que essas medidas são a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação; em todos os outros casos de vigência sucessiva de diferentes medidas coactivas, designadamente no caso dos autos em que à medida de obrigação de permanência na habitação se sucede a medida de proibição e imposição de condutas os respectivos prazos não são cumuláveis, antes são contados independentemente”.

Com efeito, se alcançado que foi o prazo máximo da prisão preventiva (e obrigação de permanência na habitação) aplicável ao caso concreto se admite a aplicação da medida de coacção prevista no artigo 200º, é porque o prazo desta não se soma ao daquelas, até porque a qualquer delas se aplicam os prazos de duração máxima previstos no artigo 215º.

Posição que é também perfilhada por Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2007, pág. 579, onde se pode ler: ”a proibição e a imposição de condutas obedecem aos prazos do artigo 215 e à regra da suspensão do artigo 216. O tempo sofrido de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação não é descontado na contagem do prazo de duração máxima da proibição e imposição de condutas, nem o inverso, uma vez que a regra de desconto criada pelo artigo 215, nº 8, não tem carácter geral, mas antes se restringe ao desconto entre as medidas cautelares privativas da liberdade.”

Assim, o prazo da medida de proibição de ausência do território nacional sem prévia autorização a que foi sujeito o recorrente só se iniciou no momento da sua aplicação, ou seja, em 16/10/2015.

E, atendendo a que foi declarada a especial complexidade dos autos por despacho de 04/07/2014, sendo imputados ao arguido factos integradores de crimes de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção, o prazo máximo respectivo é de um ano, por força do estabelecido no artigo 215º, nº 1, alínea a) e nº 3, do CPP, não se mostrando, por isso, esgotado.


Argumenta o recorrente, é certo, que a medida em causa reveste natureza cautelar privativa da liberdade e que a liberdade de circulação é um princípio fundamental da União Europeia, fazendo apelo ao estabelecido no artigo 2º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigos 6º, 15º, 20º e 21º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 2º, 6º e 9º, do Tratado da União Europeia, artigos 18º, 20º e 45º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, Directiva de 2004 sobre a liberdade de circulação e Convenção sobre a Aplicação do Acordo de Schengen, considerando que a interpretação efectuada pelo tribunal a quo das normas inseridas nos artigos 217º, nº 2 e 218º, nº 2, do CPP, se revela violadora das mencionadas e bem assim do estabelecido nos artigos 8º e 27º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos.

Como se salienta no acórdão do Tribunal Constitucional nº 471/2001, consultável no sítio respectivo:

“O que está em causa, na primeira parte do nº 1 do artigo 27º, é o direito à liberdade como expressão do direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, uma vez que, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 184), não está acolhido constitucionalmente o direito à liberdade em geral, mas sim os direitos que se englobam neste, como o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos e termos previstos no próprio artigo 27º, o direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por parte de outrem, o direito à protecção do Estado contra os atentados de outrem à sua própria liberdade.

É a liberdade física de "ir e vir" da pessoa que está em causa e que, como tal, deve ser compreendida, de harmonia, aliás, com o estatuído no artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entendimento que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem por firme (cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, 2ª ed., 1999, pág. 88).

E, de resto, é este o entendimento unânime e reiterado que o Tribunal Constitucional vem sustentando, por diversas ocasiões, como o ilustram os acórdãos, tirados em plenário, nºs. 479/94 e 663/98, publicados no Diário da República, I Série-A, de 29 de Agosto de 1994, e II Série, de 15 de Janeiro de 1999, respectivamente.”


Esta garantia constitucional abrange a privação total ou parcial da liberdade, quer dizer, a privação ou mera restrição da mesma e certo é que a aplicação da medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização afecta essa liberdade individual, visto que a restringe.

Mas, a tutela constitucional da liberdade ambulatória ou de locomoção não é absoluta, pois é susceptível de sofrer restrições, desde logo, nas situações enunciadas nos nºs 2 e 3, desse artigo 27º, mormente a de prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão de limite máximo superior a três anos.

E, como se extrai do consagrado no artigo 28º, da Lei Fundamental, reconhece-se a admissibilidade da aplicação de outras medidas de coacção em alternativa à prisão preventiva, como não podia deixar de ser, atendendo à natureza excepcional que esta assume – cfr. nºs 1 e 2 – podendo mesmo “argumentar-se que a admissão de medidas de privação total da liberdade legitima implicitamente a aplicação de medidas de privação parcial, quando substitutivas daquelas (p. ex., aplicação de restrições à liberdade de movimentos em vez da prisão)”, como assinalam Gomes Canotilho/Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4ª Edição revista, Vol. I, pág. 479.

Ora, se assim é, também temos de considerar como abrangida por essa admissibilidade a medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro sem prévia autorização, quando aplicada em obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, como impõe o artigo 193º, do CPP, que se configura como uma privação parcial da liberdade justificada pela gravidade dos factos indiciariamente praticados e pelo interesse da comunidade na sua perseguição.

E, resulta dos respectivos modos de execução das medidas de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação (que se traduzem no confinamento num estabelecimento prisional ou no espaço da habitação) em confronto com a de proibição de ausência para o estrangeiro sem autorização prévia, que o grau de limitação da liberdade de movimentação é manifestamente diferente, pelo que as soluções legais respectivas não podem ser idênticas, concretamente no que concerne aos prazos de duração máxima de cada uma das medidas e a forma de os computar.

Este é também o entendimento acolhido por Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 490, quando referem que “(...) em caso de caducidade da prisão preventiva, o juiz poderá sempre sujeitar os arguidos a algumas das demais medidas de coacção previstas na lei”, nelas incluindo a proibição de permanência, de ausência e de contactos.

Aliás, a interpretação propugnada pelo recorrente esvaziaria de sentido e tornaria inútil a possibilidade exarada na 2ª parte do nº 2 do artigo 217º, do CPP.

Face ao que, a interpretação efectuada pelo tribunal recorrido das normas contidas no nº 2 do artigo 217º e nº 2 do artigo 218º, ambos do CPP, quanto ao prazo máximo de duração da medida em causa, não viola o estatuído no artigo 27º, da CRP.

Aduz também o recorrente que a liberdade de circulação é um princípio fundamental da União Europeia, sendo que a interpretação efectuada pelo tribunal recorrido viola o estabelecido no artigo 2º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigos 6º, 15º, 20º e 21º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 2º, 6º e 9º, do Tratado da União Europeia, artigos 18º, 20º e 45º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, Directiva de 2004 sobre a liberdade de circulação e Convenção sobre a Aplicação do Acordo de Schengen.

Ora, as normas trazidas à colação terão necessariamente de ser conjugadas com o estabelecido no artigo 5º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, onde se consagra que: “toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal (…) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido – nº 1, alínea c).





E, bem assim, que “qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo.” – nº 3.


Ou seja, também esta Convenção admite a privação total ou parcial da liberdade em determinadas situações, o que não pode deixar de incluir a limitação da liberdade de movimentação ou circulação, quer no espaço europeu, quer em qualquer outro território fora deste, pois ainda que no Acórdão Nada v. Switzerland, se afirme que o artigo 5º consagra o direito humano fundamental da protecção do indivíduo contra a interferência arbitrária pelo Estado no seu direito à liberdade e que o seu nº 1 não se refere a meras restrições à liberdade de movimento, as quais são reguladas pelo artigo 2º do Protocolo nº 4, vero é que a tutela daquele direito abrange necessariamente estas, no sentido da sua admissibilidade.


Como bem assinala o Magistrado do Ministério Público na resposta à motivação de recurso:

“Daí não decorrendo, necessariamente, violação do princípio de livre circulação previsto nas normas europeias a que Portugal se obrigou, e no referido art. 2º do Protocolo nº 4, desde que a limitação da liberdade tenha sido aplicada, como o foi no caso concreto, num quadro legal constitucionalmente válido, e com respeito, designadamente, pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

Tal violação só ocorrerá se a limitação dessa liberdade for aplicada e efetivada de forma arbitrária, desnecessária e desproporcionada, e sem respeito pelas normas que a regem.

O que não aconteceu no caso do ora recorrente, uma vez que, quer a aplicação da medida de proibição de ausência para o estrangeiro quer a sua manutenção, ocorreram no estrito cumprimento do quadro constitucional e legal atinente, com respeito pelos princípios constitucionais e supra constitucionais que regem a matéria dos direitos, liberdades e garantias e, em particular, o direito à liberdade.

(…) Com efeito, o Protocolo nº 4 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, que veio reconhecer certos direitos e liberdades além dos que já figuravam na Convenção e no Protocolo adicional à Convenção, prescreve no nº 2 do seu art. 2º, sob a epígrafe "Liberdade de Circulação" que «Toda a pessoa é livre de deixar um país qualquer, incluindo o seu próprio».

Esclarecendo-se, todavia, no nº 3, que O exercício destes direitos não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas pela lei, constituem providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a manutenção da ordem pública, a prevenção de infracções penais, a protecção da saúde ou da moral ou a salvaguarda dos direitos e liberdades de terceiros».

(…) Como já se deu nota, contrariamente ao que decorre da incorrecta identificação da medida na sua motivação de recurso, a medida aplicada ao recorrente pelo despacho de 16 de outubro de 2015 não foi a de proibição de se ausentar para o estrangeiro, mas sim a de se ausentar sem prévia autorização do Tribunal (conforme 2ª parte da al. b) do nº 1 do art. 200º do CPP).

Medida que, como se afigura claro, acarreta menor intensidade limitadora ou restritiva da sua liberdade, designadamente da liberdade de circulação, precisamente porque o recorrente poderia ser autorizado a deslocar-se para fora do território nacional, caso assim o requeresse e fundamentasse.

O requerente não estava confinado a um espaço excessivamente limitador da sua liberdade de circulação, nem a possibilidade de sair de território nacional lhe estava totalmente coarctada.”

Ora, são precisamente os efeitos, forma de aplicação e modo de execução das medidas em análise que as diferenciam, agrupando a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação em face da proibição de ausência para o estrangeiro sem prévia autorização.





E, como resulta límpido, com a aplicação desta medida não ficou o recorrente coarctado em viver e conviver livremente, exercer as actividades que entendesse e se deslocar quando e como lhe aprouvesse no espaço do território nacional que, abrangendo o continente e regiões autónomas, não pode sequer ser considerado uma pequena área.


Acresce que, como tem vindo a ser frisado, a proibição de ausência para o estrangeiro nem sequer foi determinada de forma absoluta, podendo a deslocação ser efectuada mediante a concessão prévia da autorização judicial, a impetrar.

Cremos, pois, poder concluir-se não ser merecedora de acolhimento a argumentação do recorrente de que a limitação dos seus movimentos por força da medida de proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização prévia equivale à privação total da liberdade para efeitos de contagem do respectivo prazo máximo de duração.

Face ao que, a interpretação feita pelo tribunal recorrido do estabelecido no nº 2, do artigo 217º e nº 2, do artigo 218º, do CPP, não oblitera princípio (ou garantia constitucional) algum e também se não mostra violadora das invocadas normas e princípios supranacionais, pelo que improcede o recurso quanto a esta questão.

Verificação dos pressupostos do justo impedimento/prorrogação do prazo de recurso


Censura também o arguido a decisão recorrida por não ter reconhecido a existência da situação de justo impedimento para preparar e interpor recurso do despacho judicial lavrado a fls. 23.869 e segs. – aos 23/11/2015 - invocando não ter sido notificado ou lhe terem sido facultados “a comunicação prevista no artigo 276º, nº 6 do CPP, enviada pelo titular do inquérito ao superior hierárquico e da resposta que deu ao despacho do superior hierárquico de 11 de Novembro; e de uma reunião de trabalho em 18 de dezembro de 2015”.

Antes de mais, cumpre que se deixe claro que em causa não está, ao contrário do que poderia parecer resultar das conclusões do recurso ora em apreciação, o conhecimento da problemática da natureza do prazo de inquérito, do esgotamento deste e suas consequências, desde logo, porque sobre o fundo dessa questão não emitiu decisão em concreto o Mmº juiz do tribunal a quo (antes remeteu o arguido para o já decidido a folhas 23.869 e segs., por representarem uma repetição do já judicialmente apreciado, visando apenas gerar uma nova decisão) e, como constitui jurisprudência consolidada do nosso Supremo Tribunal de Justiça, “os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada – assim, por todos, o Acórdão de 26/09/2007, Proc. nº 07P1890, consultável em www.dgsi.pt.

Acresce que o próprio recorrente explicitamente afasta que esteja tal matéria em causa no recurso, ao plasmar no início do respectivo requerimento que “notificado da decisão de fls. 22.549 dos autos, dela vem interpor recurso (…) para o Tribunal da Relação de Lisboa quanto ao indeferimento da extinção por caducidade da medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro, quanto ao indeferimento dos pedidos de reconhecimento do justo impedimento invocado e da prorrogação do prazo do recurso”, cumprindo, assim, entender as referências efectuadas nas conclusões da motivação de recurso sob os pontos M, N, O, P, Q, R, S, T, U e V, como integrando apenas argumentação relativa à questão da verificação do justo impedimento.

Estatui-se no artigo 107º, nº 2, do CPP, que os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade judiciária, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento.

E, de acordo com o disposto no artigo 140º, nº 1, do Código de Processo Civil (artigo 146º, nº 1, do CPC de 1961) aplicável à situação em apreço ex vi do artigo 4º, do CPP, considera-se “justo impedimento” o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.

Assim, apresentam-se como requisitos do justo impedimento, a normal imprevisibilidade do evento, que seja estranho à vontade da parte e que determine a impossibilidade da prática do acto no prazo legal pela parte ou mandatário.


In casu, como vimos, o mandatário do recorrente invocou a existência de justo impedimento resultante da sua impossibilidade de recorrer do despacho constante de fls. 23.869 e segs. – lavrado aos 23/11/2015 - no prazo legal, por não lhe ter sido dado conhecimento, não obstante a solicitação, do teor da comunicação prevista no artigo 276º, nº 6 do CPP, enviada pelo titular do inquérito ao superior hierárquico, da resposta dada por aquele ao despacho do superior hierárquico de 11 de Novembro de 2015 e de uma reunião de trabalho ocorrida em 18 de Dezembro de 2015 em que “estiveram alegadamente presentes (além do superior hierárquico referido) os magistrados designados nestes autos e o órgão de polícia criminal (Autoridade Tributária), para complementar o trabalho de análise da situação dos autos e estabelecer as melhores metodologias para imprimir celeridade ao processo”.

Veio, contudo, a interpor esse recurso por requerimento enviado para o TCIC aos 13/01/2016 – fls. 25.269.

O recurso que estamos a apreciar – do despacho de 26/01/2016 - deu entrada em juízo em 08/03/2016.

Porém, o arguido reclamou também, nos termos do artigo 405º, do CPP, para o Exmº Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, do despacho proferido aos 26/01/2016, na parte em que não admitiu o recurso do despacho datado de 23/11/2015, impetrando que seja ele mandado admitir, pelos seguintes fundamentos: atenta a complexidade do seu objecto, se justifica a prorrogação do respectivo prazo; ocorre justo impedimento, constituído pelo não acesso ao teor completo das comunicações feitas pelo titular do inquérito ao superior hierárquico, ao abrigo do artigo 276º, nºs 6 e 7, do CPP; porque a notificação da decisão recorrida se deve considerar feita no 3º dia posterior ao do respectivo envio ou no 1º dia útil seguinte se aquele o não for.

O Exmº Vice-Presidente deste Tribunal, apreciando a reclamação em 18/03/2016, ponderou que “(…) os fundamentos da reclamação acima identificados como (1) e (2), a saber, (1) porque, atenta a complexidade do seu objecto, se justifica a prorrogação do respectivo prazo, (2) porque ocorre justo impedimento, constituído pelo não acesso ao teor completo das comunicações feitas pelo titular do inquérito ao superior hierárquico, ao abrigo do art.º 276.º, n.ºs 6 e 7, do C. P. Penal, volvem-se, afinal, num só, qual seja a figura jurídica do «justo impedimento» para a prática do ato processual no respectivo prazo, como, aliás, o tribunal reclamado reconheceu, abordando-os em conjunto no 1.º § a fls. 107 desta reclamação.”

E, concluiu que, “analisada essa parte do despacho reclamado, constatamos que o mesmo se limitou a indeferir a pretensão processual do reclamante sem dar cumprimento ao disposto no art.º 140.º do C. P. Civil, aplicável ex vi art.º 107.º, n.º 2, do C. P. Penal e sem fundamentar esse indeferimento, como lhe impõe o art.º 154.º, do C. P. Civil, aplicável ex vi art.º 4.º, do C. P. Penal”, decidindo no sentido de baixarem os autos para que seja dado cumprimento ao estabelecido nos artigos 140º, nº 1 e 154º, do Código de Processo Civil.

Ora, esta decisão do Exmº Vice-Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa incide precisamente sobre as questões da verificação dos pressupostos do justo impedimento e prorrogação do prazo de recurso que no presente recurso foram também submetidas a apreciação, pelo que aquela prejudica o conhecimento destas pois, a não ser assim, manifestamente se estaria a admitir a possibilidade de prolação de decisões contraditórias entre si.

Assim, defeso se apresenta tomar conhecimento dessas questões.

III - DISPOSITIVO


Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em:

A) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido J. quanto à questão da extinção por caducidade da medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro sem autorização e confirmar a decisão recorrida;

B) Não conhecer das questões da verificação dos pressupostos do justo impedimento e prorrogação do prazo de recurso, por se mostrarem prejudicadas.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.



Lisboa, 14 de Junho de 2016.


(Artur Vargues)


(Jorge Gonçalves)