Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7012/13.2YYLSB.L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
VALOR DA CAUSA
EFEITO SUSPENSIVO
FALECIMENTO DE PARTE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
APOIO JUDICIÁRIO
CONTAGEM DOS PRAZOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A finalidade subjacente ao incidente de diferimento da desocupação de imóvel – razões sociais imperiosas que obstem à restituição imediata do imóvel após a extinção do arrendamento – empresta-lhe uma actuação cautelar com vista à defesa de uma posse (ainda que em sentido impróprio) da respectiva casa de habitação. Nessa medida, a lei atribui ao incidente um regime similar ao do procedimento cautelar, desde logo pelo carácter urgente da sua tramitação.
II - Esta natureza análoga à do procedimento cautelar não pode deixar de assumir relevo no que se reporta ao regime de recursos das decisões nele proferidas, por forma a permitir integrar o despacho de indeferimento do requerimento de incidente de diferimento da desocupação de imóvel no âmbito da alínea c) (2ª parte) do n.º3 do citado artigo 629.º (ex vi dos artigos 852.º e 853.º, n.º1, do NCPC); nessa medida, o recurso (de apelação) a interpor desse despacho é (sempre) admissível, independentemente do valor atribuído à acção.
III – E porque o incidente respeita à posse (ainda que em sentido impróprio) da casa de habitação, há que atribuir efeito suspensivo ao recurso, nos termos da alínea b) (2ª parte) do n.º3 do artigo 647.º do NCPC.
IV - O falecimento da parte faz suspender a instância e com ela, os prazos que se encontrem a correr termos, inutilizando-se, ainda, a parte do prazo que tiver decorrido anteriormente. Tal suspensão cessa quando o sucessor da pessoa falecida for notificado da decisão que o considere habilitado.
V - O falecimento da executada em data anterior ao proferimento da decisão que deferiu o pedido de nomeação de patrono por si deduzido inutiliza a relevância da notificação ao patrono nomeado para efeitos de contagem do prazo para se opor à execução e deduzir incidente de diferimento da desocupação.
VI – É com a notificação do patrono nomeado à parte julgada habilitada que se inicia o prazo de 20 dias para requerer o diferimento da desocupação.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

Partes:
J (Recorrente/Executado)
M (Recorrida/Exequente)
Decisão recorrida
Indeferimento liminar do incidente de deferimento da desocupação do imóvel por manifesta intempestividade.

Conclusões do recurso:
A) Se uma parte requer apoio judiciário e este só lhe vem a ser deferido em Dezembro de 2011, sendo que a requerente veio a falecer em 5 de Novembro de 2011, não pode esta parte praticar os subsequentes actos no processo.
B) Tal facto não faz correr os prazos, nem tão pouco precludir os prazos.
C) Não tendo a primitiva parte e Executada possibilidade de exercer os seus direitos porque veio a falecer o Executado habilitado deve a partir do momento da sua habilitação ter o direito de deduzir o deferimento de desocupação do locado que a primitiva Executada nunca chegou a exercer.
D) Sendo alegado neste requerimento questões médicas sobre a incapacidade do Executado habilitado, devem estas ser medicamente esclarecidas.
Em contra alegações a Exequente pronuncia-se no sentido da inadmissibilidade do recurso (por não se aplicar ao caso qualquer das alíneas – a) ou c) – do n.º3 do artigo 629.º do CPC) e da sua improcedência.

II - Apreciação do recurso:

1. Os factos
De acordo com os elementos disponíveis no processo e com relevância ao conhecimento do objecto do recurso, registam-se as seguintes ocorrências:
ü Em Abril de 2011, a Recorrida instaurou contra R execução para entrega de coisa certa com base no título executivo a que alude o artigo 15.º, n.º1, alínea e), da NRAU: contrato de arrendamento referente ao rés do chão, com entrada pelo n.º, do prédio urbano sito na, Charneca da Caparica, Almada (celebrado verbalmente, em 1953, entre L, como senhorio e D, como inquilino) e notificação avulsa da executada, ocorrida em 28-12-2010, comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento por não pagamento “das rendas vencidas desde 1 de Outubro de 2009 a 1 de Dezembro de 2010, num total de 276,15 (€18,41x15 meses)”;
ü Em 02/06/2011, o Agente de Execução procedeu à citação da Executada fazendo-a na pessoa de J;
ü Por ofício datado de 20-12-2011 foi comunicado aos autos de execução (dando entrada no processo em 23-12-2011) o deferimento do requerimento de protecção jurídica formulado por R (para a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos e nomeação e pagamento da compensação de patrono);
ü Em 15 de Dezembro de 2011 foi comunicado aos autos a nomeação da Dra. C para patrocínio da Requerente R;
ü Nessa mesma data a Sra. Advogada designada foi notificada da referida nomeação;
ü Em 21-06-2012 e com fundamento no óbito da Executada (R) ocorrido em 5 de Novembro de 2011, foi proferido despacho que declarou a instância suspensa “até que se mostre efectuada a habilitação dos herdeiros do falecido, sem prejuízo do disposto no art. 285º do CPC”;
ü No âmbito do incidente de habilitação de herdeiro deduzido pela Exequente por óbito de R, por decisão de 09-10-2013, J foi julgado habilitado para “prosseguir a acção, ocupando a posição da falecida executada”;
ü Decisão que, em 10-10-2013, foi notificada ao Exmo. Sr. Dr. J, na qualidade de patrono nomeado do habilitado.
ü Em 06-11-2012, o ISS (Setúbal) deferiu o pedido de Apoio Judiciário requerido por J, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo e nomeação e pagamento de compensação de patrono relativamente aos autos em causa, tendo sido nomeado o Dr. J para proceder ao respectivo patrocínio;
ü Em 11-10.2013, J veio aos autos, nos termos do artigo 16.º, do NRAU, invocar justo impedimento e solicitar o diferimento da desocupação de imóvel até lhe ser encontrado alojamento alternativo, invocando os seguintes fundamentos:
ð Encontrar-se em situação de lhe ser transmitido o arrendamento nos termos do artigo 57.º, do NRAU, por ter mais de 45 anos, ser filho da falecida arrendatária e sempre ter vivido com ela;
ð Ser portador de anomalia psíquica que o impede de entender o conteúdo de quaisquer notificações/citações/interpelações;
ð Viver da caridade e ajuda das amigas da mãe, tendo como única fonte de rendimento o rendimento mínimo garantido;
ð Encontrar-se a aguardar resposta da Câmara Municipal de Lisboa para lhe ser fornecido alojamento alternativo ao locado
ü O Requerente arrolou testemunhas e juntou vários documentos, entre os quais relatório psiquiátrico, datado de 14-08-2009, da autoria de psiquiatra do serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santa Maria, no qual consta que o aqui Recorrente “(…) Apresentava um quadro clínico e evolução caracterizados por marcadas alterações do comportamento e da impulsividade, nomeadamente auto e hetero-agressivos e perturbações do humor num contexto de deficiência mental ligeira. A evolução da situação clinica e o amadurecimento do próprio doente com a idade permitiram passar de uma diagnóstico de Perturbação da Personalidade Anti-Social, para um diagnóstico de Perturbação do Humor – Perturbação Bipolar tipo II.”- fls. 62 dos presentes autos.
ü A Exequente respondeu à pretensão do Recorrente pronunciando-se pelo indeferimento da pretensão, tendo ainda invocado a intempestividade do incidente (por não ter sido suscitado no prazo previsto no artigo 864.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
ü Apreciando o incidente o tribunal a quo proferiu o despacho (fls. 77/79) objecto do presente recurso, que considerou o requerimento de diferimento da desocupação manifestamente intempestivo.

2. O direito:
Questão colocada pelo Apelante (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Novo Código de Processo Civil[1])
v Da tempestividade do incidente de diferimento da desocupação
Questão prévia: da admissibilidade do recurso e do efeito suspensivo atribuído
Nas suas alegações a Recorrida pronuncia-se contra a admissibilidade do recurso por considerar que a situação não assume cabimento nas alíneas a) ou c) do n.º3 do artigo 629.º do NCPC. Pugnou ainda pela atribuição de efeito devolutivo ao recurso, defendendo que o diferimento da desocupação não cabe em nenhuma das situações contempladas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 647.º do NCPC.
 A decisão objecto de recurso é o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de diferimento da desocupação do imóvel (com fundamento na intempestividade do pedido).
  Em causa está pois a decisão (que lhe põe termo) de um incidente ocorrido no âmbito de execução para entrega de coisa certa, que tem por base o título executivo a que alude o artigo 15.º, n.º1, alínea e), da NRAU: contrato de arrendamento para habitação e notificação avulsa da executada comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento por não pagamento das rendas.
  Considerando que a lei não contempla expressamente a situação dos autos, importa ter presente as disposições legais que se mostrem consentâneas com a mesma.
Assim sendo, embora o caso não assuma enquadramento no disposto no artigo 629,º, n.º3, alíneas a), do NCPC, porquanto não está em causa a apreciação da validade, subsistência ou cessação do contrato de arrendamento, não podemos ignorar a finalidade subjacente ao incidente de diferimento da desocupação de imóvel – razões sociais imperiosas que obstem à restituição imediata do imóvel após a extinção do arrendamento. Esta finalidade empresta-lhe uma actuação cautelar com vista à defesa de uma “posse”(ainda que em sentido impróprio) da respectiva casa de habitação. Nessa medida, a lei atribui ao incidente um regime similar ao do procedimento cautelar, desde logo pelo carácter urgente da sua tramitação.
Esta natureza análoga ao procedimento cautelar não pode deixar de assumir relevo no que se reporta ao regime de recursos das decisões nele proferidas, permitindo integrar o despacho de indeferimento do requerimento de incidente de diferimento da desocupação de imóvel no âmbito da alínea c) (2ª parte) do n.º3 do citado artigo 629.º do NCPC (ex vi dos artigos 852.º e 853.º, n.º1, do NCPC). 
  Nestes termos, entendemos que o recurso do despacho de indeferimento do requerimento de incidente de diferimento da desocupação de imóvel é (sempre) admissível independentemente do respectivo valor, havendo que atribuir à apelação efeito suspensivo por força do disposto na alínea na 2ª parte da alínea b) do n.º3 do artigo 647.º do NCPC, por respeitar “à posse[2] (…) da casa de habitação”.
          Do objecto do recurso: tempestividade do incidente
A decisão recorrida considerou a petição de diferimento de desocupação apresentada pelo Requerente extemporânea por, aquando da sua entrada em juízo (11 de Outubro de2013), há muito se encontrar ultrapassado o prazo para o efeito.
O raciocínio subjacente à decisão estribou-se nas seguintes premissas:
- O Requerente tem na acção a qualidade de sucessor da arrendatária para assegurar os ulteriores termos do processo, herdando, nessa medida, o processo no estado em que o mesmo se encontra;
- Após ter sido citada (em Junho de 2011) e ter requerido o apoio judiciário (na modalidade de nomeação de patrono e deferido em Dezembro de 2011), o prazo para a Executada se opor à execução e requerer o diferimento da desocupação iniciou-se com a notificação da nomeação de patrono e terminou no início de 2012;
- As vicissitudes dos autos evidenciam inexistir qualquer incapacidade de entendimento por parte do habilitado;
- A existência de acto conducente ao justo impedimento para requerer o diferimento de desocupação só assumiria relevância se respeitasse à pessoa da arrendatária.
De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 864.º, do NCPC, a dedução do incidente de deferimento da desocupação é feita no prazo para a oposição à execução, que é de 20 dias, atento o disposto no artigo 859.º, do referido Código.
Na situação sob apreciação, dado que a Executada havia requerido apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, o tribunal a quo considerou ter sido a notificação da nomeação de patrono (não a citação da Executada) o acto determinante do início do prazo de dedução do incidente de diferimento da desocupação[3].Descurou, porém, uma realidade que altera toda a dinâmica da relevância de tal notificação: o falecimento da Executada em 5 de Novembro de 2011, ocorrido em data anterior ao proferimento da decisão no âmbito do procedimento de apoio judiciário e, consequentemente, antes da notificação da nomeação de patrono.
Conforme resulta dos artigos 269.º, n.º1, alínea a), 270.º, n.ºs 1 e 275.º, n.º2, todos do NCPC, o falecimento da parte faz suspender a instância e com ela os prazos que se encontrem a correr termos, inutilizando ainda a parte do prazo que tiver decorrido anteriormente. Tal suspensão cessa com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida – artigo 276.º, n.º1, alínea a), do mesmo Código.
Verificando-se que a Executada faleceu na pendência do procedimento de apoio judiciário por si requerido (antes da decisão que o deferiu, da notificação do patrono nomeado e de se mostrar habilitado nos autos o respectivo sucessor), por força do regime da suspensão da instância[4], não assume relevância para efeitos de início de contagem do prazo (de 20 dias) de dedução do incidente de diferimento da desocupação, a notificação feita à Sra. Advogada nomeada (à Executada) em 15 de Dezembro de 2011.
De acordo com os elementos factuais acima registados constata-se que a suspensão da instância (declarada por despacho de Junho de 2012) cessou com a notificação da decisão[5] que julgou o aqui Recorrente habilitado para intervir na execução na posição da Executada, notificação realizada em 10-10-2013 – cfr. alínea a) do n.º1 do artigo 276.º do NCPC. A partir desta notificação, operou-se a reposição de todos os prazos, designadamente para deduzir oposição à execução e requerer o diferimento da desocupação ao abrigo do disposto no artigo 864.º, n.º1, do NCPC, prazo que, como vimos, nunca se iniciou face ao falecimento da parte ocorrido antes de lhe ter sido nomeado patrono nos termos por ela solicitados (pedido que apenas lhe foi deferido após o seu decesso).
Por conseguinte, o prazo de 20 dias para requerer o diferimento da desocupação apenas se iniciou, nos presentes autos, com a notificação ao patrono do aqui Recorrente (declarado habilitado) levada a cabo em 10-10-2013 – cfr. artigos 24.º e 31.º, ambos da Lei 34/2004, de 29-07 (na redacção dada pela Lei 47/2007, de 28-08). Nessa medida, uma vez que o Requerente, em 11-10-2013, fez dar entrada em juízo ao requerimento de diferimento, resulta evidente que o incidente se mostra deduzido em prazo, pelo que se impõe a revogação da decisão que o julgou intempestivo.
Cumpre, por isso, dar procedência ao recurso.

III – Decisão:

Nestes termos, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que indeferiu liminarmente o requerimento de diferimento da desocupação por manifestamente intempestivo, impondo-se o prosseguimento dos ulteriores termos para apreciação do incidente.
Custas pela Exequente.

Lisboa, 17 de Março de 2015

Graça Amaral
Orlando Nascimento
Alziro Antunes Cardoso


[1] Doravante sob a nomenclatura NCPC.
[2] Há que considerar que o termo posse ínsito no preceito não se confina ao seu restrito sentido técnico-jurídico, assumindo uma maior abrangência.
[3] Contudo, não fez consignar tal data, tendo-se limitado a concluir que o prazo para a dedução do incidente se mostrava ultrapassado no início de 2012, não obstante os elementos constantes do processo evidenciarem que a notificação havia ocorrido a 15 de Dezembro de 2011
[4] Ainda que o despacho que decretou suspensa a instância por falecimento da parte tenha sido proferido em Junho de 2012, os respectivos efeitos retroagem à data do falecimento – 5 de Novembro de 2011.
[5] Proferida em 10-10-2013.