Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2490/19.9YRLSB-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO ESTÁVEL
BRASIL
ESCRITURA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Uma escritura pública de declaração de união estável outorgada no Brasil pode ser objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, nos termos regulados pelo artigo 978º e seguintes do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I –  RELATÓRIO
A e B, ambos naturais da cidade de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil, residentes na Alameda Gregório Bogossian Sobrinho, n.º …, casa 16, localidade de Tamboré 5, cidade de Santana de Parnaíba, Estado de São Paulo, Brasil, possuindo o primeiro nacionalidade portuguesa, vêm requerer a confirmação da escritura pública de união estável, outorgada em 10 de Outubro de 2014, no Tabelião do 3º Ofício de Notas da cidade de Osasco, Estado de São Paulo, Brasil, a qual formalizou a união estável entre os requerentes.
Cumprido o disposto no 982º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser indeferido o pedido formulado, que fundamenta nos seguintes termos:
“O documento apresentado não contém qualquer decisão nem qualquer declaração da entidade administrativa que lavrou a escritura pública que ateste os factos ali descritos, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira».
Em abono da sua posição, invocou a jurisprudência vertida nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2019 e 9-05-2019 e de 21-03-2019, relatados pelos senhores Conselheiros Pinto de Almeida e Ilídio Sacarrão Martins.
Notificados os requerentes da posição assumida pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta vieram pronunciar-se pugnando pelo acolhimento do pedido de revisão e confirmação da escritura pública em referência, invocando a múltipla jurisprudência desta Relação em sede de decisões sumárias e, bem assim, o acórdão proferido no processo n.º 2403/19.8YRLSB, em 24 de Outubro de 2019, pelo relator Pedro Martins, que juntam, afirmando que se se não aceitar a possibilidade de revisão da escritura declaratória da união de facto, também não se poderá aceitar a escritura declaratória do divórcio, pondo em causa o entendimento reiterado e uniforme de que para que haja uma “decisão” basta que se esteja perante um acto caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido; mais referem que a legislação brasileira autoriza que os interessados compareçam perante notário para fins de declaração e registo por escritura pública da sua relação conjugal, conforme artigos 215º e 1723º a 1727º do Código Civil Brasileiro e Lei 9278/1996, de 10 de Outubro.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
Não existem vícios que anulem todo o processo.
As partes, dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade.
Não se verificam outras excepções dilatórias ou nulidades de que cumpra conhecer.
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QUESTÃO A DECIDIR
A única questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada.
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II - FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se documentalmente provado nos autos que:
1. A nasceu a 28 de Julho de 1959, em São Paulo, Estado de São Paulo, República Federativa do Brasil, tendo-lhe sido atribuída a nacionalidade portuguesa, nos termos do art. 1º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, no âmbito do processo n.º 32733/2019 do SITPRO da Conservatória do Registo Civil de Lisboa (documento de fls. 28).
2. No dia 10 de Outubro de 2014, os requerentes A e B compareceram perante o 3º Tabelião de Notas de Osasco, Comarca de Osasco, Estado de São Paulo, Brasil, onde foi lavrada Escritura Pública de Declaração de União Estável, nos termos da qual pelos requerentes foi declarado, cada qual por sua vez, o seguinte:
Primeiro: Que vivem como se casados fossem desde 10/02/2002, constituindo verdadeira União Conjugal Estável, de natureza familiar, em convivência duradoura, pública e contínua com o objetivo de constituir família, sem interrupção, nos termos do parágrafo 3º do art. 226º da Constituição Federal, regulamentado pela lei número 9.278, de 10-05.96, e artigos 1.723, 1.1724, 1.725 do Código Civil Brasileiro,
Segundo: E, ainda pelos Outorgantes foi declarado que por sua livre e espontânea vontade ora manifestada, são mutuamente beneficiários, um do outro, de quaisquer seguros, pecúlios, pensões, convénios médicos ou planos de saúde para os quais eles Outorgantes contribuam.
Terceiro: Que por não lhes interessar estabelecer nenhum outro tipo de regime de bens para a referida união estável, deixam que prevaleça o disposto no art. 1725 do mesmo Código Civil Brasileiro, aplicando as relações patrimoniais, no que couber o regime da comunhão parcial de bens, valendo esta escritura pública de declaração para todos os fins e efeitos legais. Assim sendo, declararam que é a expressão da verdade, assumindo toda e qualquer responsabilidade, de qualquer eventual alteração nas informações ora prestadas, especialmente, que convivem maritalmente, responsabilizando, civil e criminalmente pela veracidade destas informações. […]
Assim o disseram e dou fé. A pedido das partes, lavrei esta escritura, a qual depois de feita e sendo lida em voz alta, clara e compassada, acharam-na em tudo conforme, aceitaram, outorgaram e assinaram, dou fé.” (documento de fls. 30).
3. A escritura referida em 2. encontra-se seguidamente assinada pela escrevente Edneida ……, pela tabeliã substituta, Leila ……. e por A e B.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras assenta no sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o Tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o Tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais – cf. José Alberto dos Reis, Processos Especiais, volume II – Reimpressão, 1982, pág. 141; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2011, relator Paulo Sá, processo n.º 987/10.5YRLSB.S1 disponível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt [1].
Trata-se de um processo especial de simples apreciação.
Nos termos do art. 980º do Código de Processo Civil[2], para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.
Dispõe o art. 983º, nº 1 do mesmo diploma legal que “O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º.”
Por sua vez, o art.º 984º determina que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”
O requerente está dispensado de fazer prova directa e positiva dos requisitos previstos nas alíneas b) a e) do art. 980º do CPC.
Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a sua falta, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não.
A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, processo n.º 05B4168 e de 30-11-2010, relator Manuel Capelo, processo n.º 50/10.9YRCBR “[…] como decorre da 2ª parte do art. 1101º, era sobre o requerido que recaía o ónus da prova da não verificação dos requisitos da confirmação estabelecidos nas alíneas b) a e) do art. 1096º, que a lei presume que existem, sendo ao requerido que incumbia provar a inexistência de trânsito em julgado segundo a lei do país em que a sentença revidenda foi proferida - al. b), a incompetência do tribunal sentenciador, nos termos indicados na al. c), a litispendência arguida - al. d), e a inobservância do princípio do contraditório e da igualdade das partes no processo que levou à decisão em causa - al. e), tendo-se esses requisitos por verificados em caso de dúvida a esse respeito.”
No que diz respeito à legitimidade passiva no contexto deste processo especial, tem sido entendido não ser imprescindível a existência de demandados.
Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-10-2011, relator Rijo Ferreira, processo n.º 529/11.5YRLSB-1:
“Sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser directamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a acção – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação).
Mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efectivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro.
Ora nesses casos a acção de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública).
O caso paradigmático dessa situação é o pedido de revisão de sentença estrangeira de divórcio formulado por ambos os ex-cônjuges.”
Relativamente ao requisito da alínea f) - ordem pública internacional do Estado Português -, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder. Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos – cf. neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, 2000, pág. 483 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-05-2015, relator Gabriel Catarino, processo n.º 657/13.2YRLSB.S1 “[…] não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja. Ao invés, pode a lei em que se apoiou a decisão não ofender, considerada abstractamente, a ordem pública, mas a sua aplicação concreta assentar em motivos inaceitáveis.”
A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro. De modo que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-11-2008, relatora Sílvia Pires, processo 03/08 em www.colectaneadejurisprudencia.com; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2006, relator Oliveira Barros, acima referido; de 26-06-2009, relator Paulo Sá e de 23-10-2014, processo n.º 1036/124YRLSB.S1, relator Granja da Fonseca.
Em reforço do assim explanado adita-se a seguinte passagem esclarecedora do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-2017, relator Alexandre Reis, processo n.º 1008/14.4YRLSB.L1.S1:
“A ordem pública internacional de qualquer estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o Estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do Estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” […]
Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua […] imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências […] pela excepcionalidade […] pela flutuação e pela actualidade […] e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado português.
[…] é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado […]
O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária quanto de fonte nacional.”
No que respeita ao requisito da alínea a) do art. 980º do CPC, o Tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do acto jurídico vertido na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na acepção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte aquela decisão, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2011, relator Fonseca Ramos, processo n.º 214/09.8YRERVR.S1.
Na situação sub judice, o Ministério Público entendeu deduzir oposição ao pedido de revisão e confirmação formulado pelos requerentes com base nos seguintes argumentos:
ü A escritura pública em questão não é mais do que um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal;
ü O documento não faz prova plena; prova apenas que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação;
ü Nos termos do artigo 980º do CPC, para que uma sentença seja confirmada é necessário que haja uma sentença ou decisão de entidade pública que respeite os requisitos de validade e eficácia da lei competente;
ü O documento apresentado não contém qualquer decisão nem declaração de entidade administrativa que lavrou a escritura que ateste os factos ali descritos, pelo não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira.
Para efeitos da sua oposição, o Ministério Público louvou-se na argumentação aduzida nos seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:
² Acórdão de 28-02-2019, relator Pinto de Oliveira, processo n.º 106/18.0YRCBR.S1 – os requerentes pediram a confirmação da escritura pública declaratória de união estável que outorgaram entre si, no Brasil, tendo o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação concedido a revisão/confirmação da referida escritura pública declaratória de união estável, o que veio a ser revogado pelo Supremo com a seguinte fundamentação:
“II. - Examinemos o primeiro argumento - de que a escritura apresentada pelos Requerentes não preencheria nem os requisitos da lei brasileira, nem os requisitos da lei portuguesa.
Não preencheria os requisitos da lei brasileira, porque a lei brasileira exigiria uma decisão judicial - a união de facto só se tornaria juridicamente relevante desde que fosse judicialmente reconhecida - e não preencheria os requisitos da lei portuguesa, porque a lei portuguesa exigiria que a prova da união de facto fosse feita por declaração emitida pela junta de freguesia competente ou por prova testemunhal, e a declaração emitida pela junta de freguesia competente teria um valor probatório superior ao da declaração emitida pelos Requerentes e formalizada em escritura pública.
Entendemos de que o argumento não procede - e que não procede nem para o direito brasileiro nem para o direito português. O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública.
Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira,
“A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se. Interpretando com largueza o termo vida no art. 34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, que regula o modo como “os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos” devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. […]
Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora” (art. 371.º, n.º 1, CCiv), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.
Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança - como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.
III. - Examinemos agora o segundo argumento - de que a escritura pública não preenche os requisitos do art. 978.º do Código de Processo Civil, por não conter qualquer decisão.
a) O teor do art. 978.º, n.º 2, do Código de Processo deixa claro que a confirmação/revisão da escritura declaratória de união estável não é necessária para que tenha eficácia em Portugal. Independentemente de ser ou não confirmada/revista, a escritura declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro sempre será um simples meio de prova, sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre o reconhecimento de direitos constituídos pela união de facto.
b) Esclarecido que a confirmação ou revisão não é necessária, deve determinar-se se é ou não possível - se a escritura pública pode ou não pode ser confirmada ou revista. O alcance do termo decisão relevante para efeitos do art. 978.º foi apreciado, designadamente, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2013, no processo n.º 687/12.1YRLSB.S1, e de 25 de Junho de 2013, no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, concluindo-se em cada um dos acórdãos que abrange casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, e casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade - em que há, tão-só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”. Ora nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos Requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada/revista.»”
² Acórdão de 9-05-2019, relator Pinto de Oliveira, processo n.º 828/18.5YRLSB.S1 - os requerentes pediram a confirmação da escritura pública declaratória de união estável que outorgaram entre si, no Brasil, tendo o Tribunal da Relação rejeitado a revisão/confirmação da referida escritura pública declaratória de união estável e o Supremo confirmou esta decisão, com fundamentos similares aos aduzidos no acórdão proferido no processo n.º 106/18.0YRCBR.S1, do mesmo relator;
² Acórdão de 21-03-2019, relator Ilídio Sacarrão Martins, processo n.º 559/18.6YRLSB.S1 – apreciou idêntica questão concluindo que a declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem, como se casados fossem, desde 15-03-1992, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal, aduzindo, para além do referido nos acórdãos antecedentes, o seguinte:
“Sobre a amplitude do conceito de decisão para efeitos deste processo especial, Luís de Lima Pinheiro escreveu: “por “decisão” entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado. Há que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem força de caso julgado”.
O acórdão do STJ de 25-06-2013 - a propósito da escritura pública prevista no artigo 1124º-A do Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 5869, de 11-01-1973), através da qual se pode realizar a separação consensual dos cônjuges, e prevista no artº 1580º do Código Civil Brasileiro -, decidiu que “os outorgantes não declaram a dissolução do vínculo conjugal. Pedem-na e o tabelião (notário) não se limita a testar as suas declarações, declara (decide) a dissolução, depois de verificados e preenchidos os requisitos legais”.
O caso dos presentes autos é diferente. Os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que possa servir de base à presente revisão. Apenas declararam que “vivem como se casados fossem desde 15.03.1992, convivência que se mantém duradoura, pública e contínua”.
Por conseguinte, estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal, pelo que a mencionada escritura invocada pelos requerentes, fica excluída do processo de revisão de sentença estrangeira - artigo 980º nº 2 do CPC.”
Em sentido idêntico ao dos acórdãos supra mencionados, pronunciaram-se ainda os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17-10-2019, relatora Teresa Prazeres Pais, processo n.º 1268/19.4YRLSB-8; de 26-09-2019, relator Sousa Pinto, processo n.º 1777/19.5YRLSB-2; e de 24-10-2019, relator António Moreira, processo n.º 1531/19.4YRLSB-2.
Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça já apreciou esta mesma questão com decisão diametralmente oposta.
Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2019, relator Alexandre Reis, processo n.º 896/18.0YRLSB.S1, foi afirmado o seguinte:
“O Código Civil do Brasil de 2002 legitimou «como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família» (art. 1723º).
Entretanto, em Maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar, equiparando as chamadas «relações homoafetivas» às uniões estáveis entre homens e mulheres. E em 2013, na sequência dessa decisão, o Conselho Nacional de Justiça resolveu obrigar os cartórios de todo o país a celebrar o casamento civil e converter a «união estável homoafetiva» em casamento em função de divergências de interpretação sobre o tema.
Ademais, uma relação de convivência entre duas pessoas (de sexos diferentes ou do mesmo sexo), configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objectivo de constituir família, pode ser formalizada através da escritura pública declaratória de união estável e esta pode ser posteriormente convertida em casamento.
Uma vez emitida pela autoridade administrativa ...eira legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de uma sentença que reconheça uma «união estável homoafetiva» e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.
Na verdade, «[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados».
Como imediatamente se constata pela leitura dos respectivos requisitos enunciados no art. 980º do CPC, a revisão do conteúdo da dita “decisão” (escritura) estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional, envolve, tão só, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo, por isso, a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.
Ora, relativamente à escritura em apreço, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, porque não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de pessoas do mesmo sexo), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. E também se não apura, através dos meios previstos no art. 984º do mesmo código, a falta de observância de qualquer um dos requisitos indicados sob as demais alíneas daquela outra norma (980º), designadamente a d).
Realmente, o obstáculo que na decisão recorrida foi oposto à pretendida confirmação não se prende com o resultado desta, em si mesmo, mas com o que, eventualmente, poderia advir da aquisição da nacionalidade portuguesa, apenas com base na falada escritura, pelo requerente cidadão …, quando, diferentemente, um outro interessado na nacionalidade portuguesa que viva em Portugal apenas pode provar a união de facto para tal efeito por decisão judicial que directamente a reconheça, tal como é previsto nos acima citados normativos.
Porém, mesmo não desconsiderando a probabilidade de «a finalidade última dos requerentes» ser a aquisição da nacionalidade portuguesa por um deles, sendo, pois, previdente o argumentado pela Relação, por ora, apenas vem pedida a revisão e confirmação da escritura e o certo é que só a apreciação dos termos em que, porventura, possa vir a ser materializada uma tal hipotética pretensão permitiria aferir se, em concreto, a mesma violaria o invocado princípio da igualdade.”
Este entendimento, com adução de outros argumentos, obteve reflexo nos acórdãos desta Relação de 24 de Outubro e de 21 de Novembro de 2019, relator Pedro Martins, processos n.ºs 2403/19.8YRLSB.L1-2 (junto aos presentes autos pelos requerentes) e 1429/19.6YRLSB-2, onde, em síntese, se considera que a expressão “decisões” usada pelo art. 978º, n.º 1 do CPC vem sendo entendida como “acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” e tem sido com esse entendimento amplo da expressão que vêm sendo sistematicamente admitidas em Portugal as escrituras notariais de divórcio consensual, realçando, quanto a estas que não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura, e que ele nada homologa, servindo a escritura de divórcio para o registo civil do acto como se fosse uma sentença, pelo que não vale o argumento de que ali haveria uma homologação – administrativa ou judicial – e na escritura de união de facto estável ela não existiria, não existindo, assim, nenhuma diferença, na natureza do acto, entre estas duas situações que imponha uma solução diferente para a escritura de reconhecimento da união estável.
Em idêntico sentido ainda, detectam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-11-2019, relatora Ana Azeredo Coelho, processo n.º 1899/19.2YRLSB-6 e de 11-12-2019, relator Luís Filipe Sousa, processo n.º 1535/19.7YRLSB YRLSB.
Constitui entendimento, crê-se, uniforme nos tribunais portugueses que uma decisão de uma entidade administrativa estrangeira, competente no país onde foi proferida a decisão a rever, ainda que não assuma a natureza de entidade jurisdicional, mesmo não sendo qualificável como “sentença”, é, apesar disso, passível de revisão e confirmação pelo Tribunal da Relação no âmbito de um processo desta natureza.
Exemplo prototípico disso é o caso das escrituras públicas de divórcio consensual, admitidas à luz do ordenamento jurídico brasileiro, e que são comummente revistas e confirmadas em Portugal, sem suscitar qualquer objecção, e em que não existe igualmente uma verdadeira e própria decisão (jurisdicional ou administrativa) decretando os efeitos de dissolução do vínculo matrimonial entre os outorgantes.
Atente-se, pois, no regime jurídico brasileiro atinente à união de facto.
No Código Civil Brasileiro[3] consta sob o Título III – Da União Estável o seguinte:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º - A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521 ; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º - As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
Nos termos do art. 215º do Código Civil Brasileiro, a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.
Ronan Cardoso Naves Neto, in A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, 2017, pp. 73-74[4] refere o seguinte:
“[…] a escritura pública declaratória de união estável, apesar de não possuir presunção absoluta de veracidade, serve de prova pré-constituída da existência da união estável, uma vez que incide fé pública sobre a declaração dos companheiros no tocante à convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. Assim, constitui instrumento apto a disciplinar as relações patrimoniais entre os conviventes.[…]
Não obstante a força probante da escritura pública declaratória de união estável, certo é que apenas o registro de tal documento no registro público é que operará efeitos em relação a terceiros e cognoscibilidade das demais pessoas acerca de tal relacionamento familiar. Repise-se que, embora destituído dos atributos dos documentos públicos, é possível que os conviventes formalizem seu relacionamento afetivo através de documento particular devidamente assinado. Todavia, imprescindível é que tais documentos tenham ingresso no registro público para que operem efeitos contra terceiros de boa-fé.”
Quanto ao registo de tal escritura pública, rege o Provimento n.º 37 do Conselho Nacional de Justiça, de 7 de Julho de 2014[5] que dispõe sobre o registo da união estável nos seguintes termos:
Art. 1º. É facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo.
Art. 2º. O registro da sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como da escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, será feito no Livro "E", pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tiveram seu último domicílio, devendo constar:
a) a data do registro;
b) o prenome e o sobrenome, a data de nascimento, a profissão, a indicação da numeração da Cédula de Identidade, o domicílio e residência de cada companheiro, e o CPF se houver;
c) prenomes e sobrenomes dos pais;
d) a indicação das datas e dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais em que foram registrados os nascimentos das partes, os seus casamentos ou uniões estáveis anteriores, assim como os óbitos de seus anteriores cônjuges ou companheiros, quando houver, ou os respectivos divórcios ou separações judiciais ou extrajudiciais se foram anteriormente casados;
e) data do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão, número do processo, Juízo e nome do Juiz que a proferiu ou do Desembargador que o relatou, quando o caso;
f) data da escritura pública, mencionando-se no último caso, o livro, a página e o Tabelionato onde foi lavrado o ato;
g) regime de bens dos companheiros, ou consignação de que não especificado na respectiva escritura pública ou sentença declaratória.
Art. 3º. Serão arquivados pelo Oficial de Registro Civil, em meio físico ou mídia digital segura, os documentos apresentados para o registro da união estável e de sua dissolução, com referência do arquivamento à margem do respectivo assento, de forma a permitir sua localização.
Art. 4º. Quando o estado civil dos companheiros não constar da escritura pública, deverão ser exigidas e arquivadas as respectivas certidões de nascimento, ou de casamento com averbação do divórcio ou da separação judicial ou extrajudicial, ou de óbito do cônjuge se o companheiro for viúvo, exceto se mantidos esses assentos no Registro Civil das Pessoas Naturais em que registrada a união estável, hipótese em que bastará sua consulta direta pelo Oficial de Registro.
Art. 5º. O registro de união estável decorrente de escritura pública de reconhecimento ou extinção produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública.
Parágrafo único. O registro da sentença declaratória da união estável, ou de sua dissolução, não altera os efeitos da coisa julgada previstos no art. 472 do Código de Processo Civil.
Art. 6º . O Oficial deverá anotar o registro da união estável nos atos anteriores, com remissões recíprocas, se lançados em seu Registro Civil das Pessoas Naturais, ou comunicá-lo ao Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais em que estiverem os registros primitivos dos companheiros.
§ 1º. O Oficial averbará, no registro da união estável, o óbito, o casamento, a constituição de nova união estável e a interdição dos companheiros, que lhe serão comunicados pelo Oficial de Registro que realizar esses registros, se distinto, fazendo constar o conteúdo dessas averbações em todas as certidões que forem expedidas.
§ 2º. As comunicações previstas neste artigo poderão ser efetuadas por meio eletrônico seguro, com arquivamento do comprovante de envio, ou por outro meio previsto em norma da Corregedoria Geral da Justiça para as comunicações de atos do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Art. 7º. Não é exigível o prévio registro da união estável para que seja registrada a sua dissolução, devendo, nessa hipótese, constar do registro somente a data da escritura pública de dissolução.
§ 1º. Se existente o prévio registro da união estável, a sua dissolução será averbada à margem daquele ato.
§ 2º. Contendo a sentença em que declarada a dissolução da união estável a menção ao período em que foi mantida, deverá ser promovido o registro da referida união estável e, na sequência, a averbação de sua dissolução.
Art. 8º. Não poderá ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença judicial transitada em julgado.
Art. 9º. Em todas as certidões relativas ao registro de união estável no Livro "E" constará advertência expressa de que esse registro não produz os efeitos da conversão da união estável em casamento.
Art. 10. Este Provimento não revoga as normas editadas pelas Corregedorias Gerais da Justiça, no que forem compatíveis.
Art. 11. As Corregedorias Gerais da Justiça deverão dar ciência deste Provimento aos Juízes Corregedores, ou Juízes que na forma da organização local forem competentes para a fiscalização dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, e aos responsáveis pelas unidades do serviço extrajudicial de notas e de registro.
Art. 12. Este Provimento entrará em vigor na data de sua publicação.
Nos termos do artigo 733º do Código de Processo Civil Brasileiro de 2015[6]:
“Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual da união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731º.
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”
Destes normativos extrai-se que à face do ordenamento jurídico brasileiro a união estável assume a qualidade de instituição familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas.
A escritura pública, com sucede no caso presente, integra um verdadeiro contrato onde as partes lavram os preceitos reguladores da sua convivência, nele se incluindo, nomeadamente, disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros. Esse contrato pode ser objecto de registo, produzindo então efeitos perante terceiros.
A lei processual equipara a extinção consensual da união estável aos casos de divórcio consensual, podendo efectuar-se todos por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial.
Perante este enquadramento jurídico, concluiu-se nos seguintes termos no acórdão desta secção proferido em 11-12-2019, relator Luís Filipe Sousa, processo n.º 1535/19.7YRLSB, já acima mencionado
“Ou seja, a ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial. E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras que os determinam sejam objeto de homologação judicial.
Nos termos do artigo 1º da Convenção da Haia sobre Reconhecimento de Divórcios e Separações de Pessoas (Resolução da Assembleia da República n.º 23/84), «A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento num Estado contratante de divórcios e separações de pessoas obtidas noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou outro oficialmente reconhecidos neste último Estado e que aí produzam efeitos legais» (negrito nosso). Ou seja, a aplicação da convenção não está condicionada à existência de um processo judicial mas de um procedimento que seja reconhecido no noutro Estado e que aí produza efeitos legais. Esta Convenção reforça o que acima foi dito no sentido de que a interpretação do conceito de sentença/decisão não deve ficar limitado ao quadro concetual do Estado onde se procede à sua revisão.
Ora, conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.6.2013, Granja da Fonseca, 623/12:
« (…) tal como se considerou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2013, abordando um caso idêntico ao dos autos, “a interpretação do acórdão sob recurso do que seja uma decisão da autoridade administrativa estrangeira peca por demasiado restritiva”.
“O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados”.
“Do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa”.
“Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo”.
“Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970)”.
Acresce que se, assim não fosse, “estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade” (…)»
Daqui resulta que, sendo admissível a formalização da união estável no Brasil através de escritura pública perante tabelião, como foi o caso, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que caucionam o ato, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira.
Com efeito, no Brasil, a atividade notarial está regida no art. 236º da Constituição nestes termos:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
Refere a este propósito Ronan Cardoso Naves Neto, A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, que:
 «As atividades notariais e de registro, portanto, são transferidas ao particular pelo Estado através de um ato de delegação administrativa» (p. 51).
 « (…) a prestação dos serviços notariais e de registro devem observar os princípios gerais que regem a Administração Pública, a saber, supremacia do interesse público, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência» (p. 55).
«(…) pode-se afirmar que o entendimento mais coerente e consentâneo com o Supremo Tribunal Federal é que, de acordo com a Constituição da República de 1988, a natureza jurídica dos serviços notariais e de registro corresponde a uma função pública transferida ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis, após aprovação em concurso público de provas e títulos, para ser exercido em caráter particular, sujeito à fiscalização por parte do Poder Judiciário, seja através das Corregedorias Gerais de Justiça dos estados, seja através dos juízes corregedores locais» (p. 58)
Em suma, a intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis. Ou seja, a intervenção do notário assume a natureza de caucionamento do ato em causa, na sequência de delegação administrativa sui generis por parte do Estado brasileiro. A intervenção notarial permite que o ato despolete efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objeto de declaração judicial em sentido estrito, estando mesmo a atividade notarial sujeito à fiscalização do Poder Judiciário.”
Vale a pena também convocar pela clareza da exposição o aduzido sobre este assunto no acórdão desta Relação de 24-10-2019, relator Pedro Martins, processo n.º 2403/19.8YRLSB.L1-2:
“A expressão “decisões”, usada pelo art. 978/1 do CPC, vem sido entendida, desde há mais de 30 anos, como “acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” (na expressão dos dois acórdãos do STJ de Maio e Junho de 2013). Esta conclusão é aceite pelos três recentes acórdãos do STJ e pelo ac. do TRL, todos de 2019. Ou seja, aceita-se que o divórcio resulte de maneira contratual, através das declarações dos outorgantes, se isso for assim admitido na ordem jurídica competente. O mesmo resultado é aceite no Brasil e em Espanha. […]
É com base neste entendimento amplo da expressão que têm sido sistematicamente admitidas em Portugal, sem qualquer tipo de dúvida, as escrituras notariais de divórcio consensual. […]
Nestas escrituras notariais de divórcio não há qualquer intervenção do notário/tabelião, para além da elaboração da escritura. Ele não homologa nada e a escritura do divórcio serve para o registo civil do acto como se fosse uma sentença. Neste ponto concreto não se concorda com este pequeno argumento muito subsidiário dos dois acórdãos do STJ de 2013 quando sugerem que há homologação da escritura pelo notário […]. Mas, sendo assim, se realmente não há homologação nestes casos, não se pode dizer, como fazem os acórdãos do STJ de 28/02, 21/03 e 09/05/2019 que há essa diferença específica com o caso dos autos que justifique a reviravolta operada por eles. No caso das escrituras das uniões não há homologação, mas também nos casos dos divórcios em escrituras não há homologação (administrativa ou judicial). E qualquer simples leitura dessas escrituras confirma que assim é. O notário limita-se a tomar nota das declarações dos cônjuges, não as homologa. […]
Isto vale também para os divórcios privados no Japão (e na China e noutros países) e da Colômbia, em que não há qualquer intervenção do perfeito/conservador/notário, para além da aceitação das declarações dos cônjuges. E em que, portanto, o divórcio, resulta do mero encontro de vontades entre os cônjuges. E também em todos estes casos, estes divórcios têm sido revistos no Brasil, Espanha e Portugal. […]
Tudo isto vale também para as escrituras notariais de extinção da união estável no Brasil. […]
Não há nenhuma diferença, na natureza do acto, entre todas estas situações que imponha que a solução seja diferente para a escritura de reconhecimento da união estável. […]
Se tudo isto é assim, não é aceitável a conclusão tirada pelos acórdãos do STJ de 28/02, 21/03 e 09/05/2019 e pelo do TRL de 26/09/2019, de que “o acto composto pelas declarações dos Requerentes [não é] “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”. O contrário é que é verdade, já que a escritura notarial declaratória da união estável serve para o registo civil dela, tal como uma sentença. […]
Servindo a escritura declaratória para o registo civil e para a aquisição da situação vantajosa correspondente, não há razão para tirar quaisquer consequências do facto de tal escritura ser um acto constativo, pois que o próprio ac. do STJ de 28/02/2019, o primeiro a fazer a distinção destes actos com os actos performativos, expressamente diz que “o sentido do termo decisão dos arts. 978 e 980 deve interpretar-se em termos de abranger, p. ex., as decisões que reconhecem uma determinada circunstância ou uma determinada qualidade.” Sendo inegável, depois de tudo o que consta acima, que a escritura declaratória é uma escritura que reconhece uma situação juridicamente relevante. […]
Não há qualquer facto que permita concluir, ao contrário do que dizem os acs. do STJ de 28/02, 21/03 e 09/05/2019, que a escritura esteja a ser usada pelos requerentes como um simples meio de prova, pelo que não é possível afastar a necessidade da sua revisão com base no art. 978/2 do CPC. Aliás, este argumento do STJ é uma petição de princípio: não é necessária a revisão porque os requerentes estão a usar a escritura como simples meio de prova e o art. 978/2 do CPC diz que neste caso não é necessária a revisão… Ora, o que importaria era demonstrar que os requerentes estão a usar a escritura como simples meio de prova. E não estão: eles estão a requerer a revisão para que possam averbar no assento de nascimento a união de facto entre eles, o qual se traduz numa situação vantajosa, nem que seja como forma de dar publicidade à situação perante terceiros. […]
Se não aceitar que isto é assim, ou seja, que a decisão dos companheiros brasileiros consistente em declararem que vivem em união de facto perante o tabelião para assim a poderem registar, é uma decisão que serve de base bastante para o reconhecimento no processo especial de revisão de “sentença”, porque essa decisão não foi homologada pelo tabelião, então, coerentemente, também não se poderia aceitar o divórcio notarial brasileiro que resulta de um simples encontro de vontades dos cônjuges, sem qualquer homologação. Ou seja, equivale, na prática, a rejeitar o entendimento reiterado e uniforme da jurisprudência dos tribunais da relação e do STJ da aceitação da possibilidade desse reconhecimento. […]
Dito de forma mais clara: o papel do tabelião brasileiro que lavra uma escritura declaratória de divórcio é exactamente o mesmo daquele que lavra uma escritura declaratória da união de facto. E aquela, como esta, serve de base para o registo civil (tal como uma sentença judicial declaratória da união estável). Uma e outra estão caucionadas pela ordem jurídica [e não só administrativamente]. Se não se aceitar a possibilidade de revisão da escritura declaratória da união de facto, também não se poderá aceitar a escritura declaratória do divórcio, pondo em causa o entendimento reiterado e uniforme, de que para que haja uma “decisão” basta que se esteja perante um acto caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido.”
Para finalizar, e em abono da tese que se perfilha, transcreve-se, por amplamente elucidativas, as seguintes passagens do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2019, relator Luís Espírito Santo, processo n.º 2032/19.6YRLSB-7:
“Adiantamos desde já que não existe, a nosso ver, respaldo legal para recusar a revisão e confirmação da escritura de declaratória de união estável proferida à luz do ordenamento jurídico brasileiro, desde que a mesma preencha os requisitos de forma estabelecidos no artigo 980º do Código de Processo Civil.
Tal conclusão assenta essencialmente na seguinte ordem de razões:
1 – A presente escritura pública declaratória da união estável apresentada para revisão e confirmação não se reconduz, de forma indevidamente redutora, a um simples meio de prova, não se integrando manifestamente na previsão do artigo 978º, nº 2, do Código de Processo Civil. […]
Esta disposição legal prevê basicamente a possibilidade de a sentença estrangeira que não seja revista nem confirmada pelos tribunais portugueses (designadamente por inércia ou omissão dos interessados ou por força da eventual rejeição pelo tribunal) vir a ser aproveitada enquanto mero elemento probatório, isto é, meio instrumental de demonstração de um determinado facto ou situação que serão tomados em conta em processo judicial pendente ou a instaurar, sujeitos portanto ao crivo do respectivo julgador.[…]
Ora, saber se a presente decisão estrangeira pode ou não ser revista e confirmada perante o ordenamento jurídico nacional é precisamente a questão jurídica crucial que cumpre dissecar e dilucidar, não havendo notícia nos autos de que os requerentes tivessem por objetivo (directo ou indirecto) a utilização da escritura declaratória da união estável para comprovação de facto ou situação em processo pendente ou a instaurar.
[…] não compete ao juiz da causa averiguar o destino que os requerentes projectem para a decisão revidenda; a sua intervenção e competência prende-se exclusivamente com a verificação judicial dos condicionalismos legais necessários e suficientes para conceder - ou negar - a revisão e confirmação.
Logo, o conhecimento do mérito da presente causa não tem a ver com a concreta aplicação do artigo 978º, nº 2, do Código de Processo Civil. […]
2 - A escritura pública declaratória da união estável celebrada à luz do ordenamento jurídico brasileiro contém o efeito jurídico próprio e típico, respeitante ao reconhecimento de direitos privados, sendo objecto de verdadeiro caucionamento pela entidade administrativa competente que preside ao acto.
A união estável constitui uma figura própria do ordenamento jurídico brasileiro, com um sentido, fundamento e lógica perfeitamente definidos e justificados. […]
A única exigência legal para o reconhecimento da união estável é a de que revista forma escrita, não sendo estabelecido qualquer limite temporal mínimo relativamente à duração da relação entre os conviventes.
Com efeito, pode ser constituída por escritura pública ou contrato particular.
Tal contrato pode ainda ser levado à averbação ou registo no competente Cartório de Registo (o mesmo que é responsável por realizar registo de nascimento, casamento ou óbito), conferindo uma maior segurança aos companheiros que formam a união estável e salvaguardando ainda direitos que cabem a terceiros relativamente a negócios jurídicos celebrados com um dos conviventes.
Sendo celebrada por escritura pública, a declaração de união estável tem lugar no Cartório de Notas.
Neste caso, os requerentes devem apresentar um acervo documental imprescindível […]
Acresce, ainda que, em conformidade com o disposto no artigo 215º do Código Civil brasileiro, a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena. […]
A união estável poderá ainda conduzir à sua convolação em relação jurídica constituída pelo casamento, bastando para o efeito que os co […]
Ou seja, e basicamente, o que está em causa é o reconhecimento jurídico de determinada situação de facto duradoura que constitui um verdadeiro e singular modelo de família, existindo entre os conviventes uma relação contínua, pública e análoga ao relacionamento entre os cônjuges (no fundo a expressão da convivência marital entre eles), com reflexos no plano do regime de bens vigente entre eles (com a aplicação do regime de comunhão parcial de bens) e a atribuição de outros benefícios no domínio da saúde e da proteção social.
O dever de assistência mútua entre os conviventes implicará a obrigação de prestação de alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de educação, conforme se prevê no artigo 1694º do Código Civil brasileiro […]
A escritura pública declaratória da união estável é uma das formas adequadas de constituição, regulação e publicitação dessa situação de facto de cariz familiar, com expressa e directa cobertura jurídica no sistema legal brasileiro […]
A escritura é, portanto, a condição necessária para a legalização da união estável face à lei brasileira aplicável, tornando-a juridicamente relevante, produtora dos seus efeitos típicos e salvaguardando-a perante terceiros a quem é dada, desse modo, a conhecer. […]
Por tudo isto e face ao exposto, não podem subsistir dúvidas de que a escritura pública declaratória da união estável constitui efectivamente um verdadeiro acto registral que cauciona o reconhecimento de direitos privados conferidos aos conviventes, em diversos planos jurídicos do maior relevo no âmbito do direito da família e do direito das sucessões, entendidos segundo os princípios professados pelo ordenamento jurídico (brasileiro) em que se integra. […]
Perante a solenidade formal do acto; o cuidadoso e especificado clausulado que contém em pormenor as regras jurídicas que regulam esta nova célula familiar em múltiplos e bem concretizados aspectos; as variadas assunções de responsabilidade dos declarantes, entre si e com reflexos junto de terceiros; o manifestado propósito de usarem este instrumento como forma de fazer valer perante entidades públicas e privadas a nova figura familiar que passam a constituir; a própria presença de testemunhas durante a prática a sua realização no Cartório de Notas, tutelando a autenticidade e fidedignidade do que foi dito e assumido pelos intervenientes, é por demais evidente que esta escritura pública declaratória da união estável corresponde indiscutivelmente à prática de um acto administrativo, presidido por oficial dotado de fé pública, onde se procede efectivamente ao caucionamento do reconhecimento de direitos privados conferidos aos conviventes. […]
3 – Não compete ao sistema jurídico português preocupar-se, no momento em que decide da procedência ou improcedência da acção de revisão e confirmação de decisão estrangeira, com os eventuais propósitos que os respectivos requerentes se proponham prosseguir em termos da futura utilização dessa escritura face ao ordenamento jurídico nacional.
A motivação para a recusa da revisão e confirmação da escritura declaratória da união estável não se pode fundar em questões puramente marginais ou circunstanciais, relacionadas com a alegada facilidade que a mesma proporcionaria, em termos pretensamente desajustados, na futura aquisição da nacionalidade portuguesa por parte dos membros da união estável.
[…] o critério para a revisão e confirmação de decisões estrangeiras (incluindo a proferidas por entidades administrativas – e não jurisdicionais) encontra-se estabelecido, em termos de quadro legal, nos artigos 978º a 985º do Código de Processo Civil.
[…] os membros da união estável poderão ter todo interesse – perfeitamente legítimo - na publicitação em Portugal da constituição dessa sua célula familiar, apresentando-a e fazendo-a valer perante entidades públicas ou privadas para os fins que entendam por bem prosseguir (mormente relacionados com questões previdenciais, de planos de saúde, burocráticas ou outras). […]
De referir finalmente, que não se levanta qualquer objecção à figura da união estável, tal como a mesma resulta dos artigos 1723º a 1727º do Código Civil brasileiro, em termos de ofensa à Ordem Pública Internacional do Estado Português. […]
Ora, o regime jurídico estrangeiro que estabeleça regras próprias, de natureza patrimonial e pessoal, no quadro de um novo figurino familiar que tenha por base a convivência duradoura de um casal que não esteja unido pelo vínculo do casamento, mas que vive, em conjunto e reciprocamente, um relacionamento análogo ao dos cônjuges, não fere qualquer princípio fundamental do ordenamento jurídico nacional, que o poderia acolher com toda a abertura e naturalidade.
De resto, existe notória similitude entre a união estável brasileira e a figura da união de facto consagrada pela legislação nacional e consolidada na nossa comunidade jurídica e social (vide o artigo 1º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, alterada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, que no seu artigo 1º, nº 2, define o conceito de união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente, do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”) - embora se trate de realidades jurídicas perfeitamente distintas quanto ao seu regime.”
No confronto dos argumentos esgrimidos não se lobrigam razões válidas para acolher a posição assumida pelo Ministério Público ao propugnar pela rejeição da revisão solicitada pelos requerentes, aderindo-se, pelo contrário, ao entendimento adoptado nos acórdãos supra mencionados e de que se transcreveram as passagens relevantes, com o que se concorda na íntegra, dispensando-se a repetição dos mesmos dizeres ainda que por palavras distintas, sintetizando-se apenas os seguintes argumentos:
o A escritura pública declaratória da união estável apresentada para revisão e confirmação não se reconduz a um simples meio de prova, para efeitos do estatuído no art. 978º, n.º 2 do CPC;
o A escritura pública declaratória da união estável lavrada segundo o ordenamento jurídico brasileiro contém o efeito jurídico de reconhecimento de direitos privados, sendo objecto de verdadeiro caucionamento pela entidade administrativa competente que preside ao acto;
o Na ponderação sobre a procedência ou improcedência da acção de revisão e confirmação de decisão estrangeira, não relevam os eventuais propósitos que os requerentes se proponham prosseguir com a utilização dessa escritura perante o ordenamento jurídico nacional;
o Não obstante os efeitos jurídicos sejam distintos pode encontrar-se semelhanças entre a união estável brasileira e a figura da união de facto consagrada pela legislação nacional no art.º 1º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, cujo n.º 2 define como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente, do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
Assim, porque deve aceitar-se que a escritura pública em apreço integra ainda uma decisão sobre direitos privados para efeitos do art. 978º, n.º 1 do CPC está aquela sujeita a revisão.
Não existem dúvidas sobre a autenticidade das declarações de vontade emitidas pelos requerentes e vertidas na escritura, nem sobre a respectiva inteligibilidade. Assim como não se identificam elementos que revelem que essas declarações tenham sido tomadas por órgão cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, ou que esteja pendente ou já tenha sido proferida outra decisão sobre a mesma questão em Portugal.
O resultado emergente da escritura não se configura como manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Verificam-se, assim, todos os requisitos necessários para a confirmação da sentença, pelo que importa conceder procedência à pretensão dos requerentes.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar procedente a pretensão dos requerentes e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a decisão, ou seja, a escritura pública declaratória de união estável, lavrada pelo Tabelião do 3º Ofício de Notas da cidade de Osasco, Estado de São Paulo, Brasil, com data de 10 de Outubro de 2014, confirmando a união estável entre os intervenientes no acto, A e B, que passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Valor da causa - € 30 000,01.
Face ao estatuído no art. 14º-A, n.º 1, c) do Regulamento das Custas Processuais, não há, neste caso, lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça.
Oportunamente, cumpra o disposto no art. 78º, n.º 1 do Código de Registo Civil.
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Lisboa, 4 de Fevereiro de 2020[7]
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
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[1] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
[4]Acessívelfile:///C:/Users/Admin/Documents/Relatora%20Ana%20Rodrigues%20Silva%20Ac%C3%B3rd%C3%A3os/Intermedia%C3%A7%C3%A3o%20Financeira/5497-15035-1-SM.pdf.
[5] Acessível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2043.
[6] Acessível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
[7] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.