Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
205/14.7PLLRS.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
HOMICÍDIO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – As nulidades previstas no art.º 379º do CPP não são de conhecimento oficioso;

II – Existe concurso efectivo real entre o crime de homicídio e o de detenção de arma proibida com que aquele foi cometido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Na Secção Criminal da Instância Central de Loures, por acórdão de 15/12/2014, constante de fls. 647/671, foi o Arg.[1] XXX, com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 42[3]), condenado nos seguintes termos:

“…Termos em que julgam a acusação provada e procedente e, em consequência, condenam o arguido XXX, como autor material em concurso real, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos p. e p. pelo art. 86º, nº 1, c), por referência ao art. 2º, nº 1, p), ae) e az), nº 3, p) e v), nº 5, p) e s), e arts. 3º, nº 2 e 3 e art. 5º, todos da Lei 5/2006 de 23.02., na pena de 2 anos de prisão e de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º nº 1 e 132º nº 2 al. i) do Código Penal, na pena de catorze anos de prisão.

Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenam o mesmo arguido, XXX, como autor material e em concurso real, dos referidos crimes de detenção ilegal de arma e de homicídio qualificado, na pena única de quinze anos de prisão.

Mais, condenam o arguido nas Custas, sendo a Taxa de Justiça, no montante equivalente a 3 Ucs.
- Julgo procedente por provado o pedido cível deduzido pelo Hospital de Stª Maria, pelo que se condena o demandado XXX a pagar-lhe a quantia de € 112,07, por danos patrimoniais, acrescidos de juros vincendos à taxa legal, desde a data de notificação e até integral pagamento.

- Custas do pedido civil a cargo do demandado. …”.

*

Inconformado, veio o Arg. interpor recurso do referido acórdão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 696/716 e 803/822[4], com as seguintes conclusões:

“…I – Impugna-se os pontos 6, 12, 21 e 22, da matéria de facto, porquanto, ficou provado que, o YYY não só, chamou o arguido XXX de estúpido, como também, injuriou de outros nomes, veja-se as declarações do arguido prestadas na sessão de 26.10.2014, com inicio às 14h 20m, com a duração de 56 minutos e 15 segundos, conforme registo na acta da l e sessão, Arguido: "insultou-me de vários nomes, como estupido, parvo... tens a mania,... anda cá filho da puta ... mato-te ... dou-te um tiro ou levas um tiro ..." entre muitos nomes, não foi o simples chamar de estúpido, como dá provado o Tribunal a quo, que fez o arguido chamar a sua vizinha para pedir aos amigos para tirarem dali o carro. O arguido para além de injuriado foi ameaçado. Para além das declarações do arguido temos o depoimento da testemunha WWW, prestado na audiência 25.11.2014, conforme acta da 28 sessão, registado em gravação digital. Existe aqui por parte do doutro Tribunal uma omissão de pronúncia, nos termos do art. 379, n.° 2, C.P.P. deverá este ponto da matéria de facto dada como provada ser renovada.

II - Igualmente impugna-se o ponto 12, o que ficou provado é que o arguido só após ter sido insultado e ameaçado pelo YYY, retirou a arma de cima do frigorífico, local onde estava colocada desde sempre, para intimidar o YYY caso o mesmo detivesse arma como havia referiu que o matava... dou-lhe um tiro, no entanto, assim que saiu da porta de casa o YYY estava com uma postura ameaçadora e com a mão no bolso mostrando ou simulando que trazia uma arma. O arguido convenceu-se que teria uma arma, mais esclarecendo que tudo se passou muito rápido.

III -Afirma o douto acórdão nas suas motivações que o próprio arguido que admitiu o cometimento dos factos imputados, ...a discussão que desencadeou a conduta do arguido, foi iniciado pela vítima com a recusa à solicitação do arguido para retirem o veículo do local onde haviam estacionado por forma a permitirem a sua saída Referiu ainda que foi ameaçado e injuriado pela vítima e pela testemunha Aurélio, tendo a sua conduta sido motivada pelo receio que sentiu quanto à sua integridade fisica.

IV – Contudo, o Tribunal não deu credibilidade às declarações do arguido, argumentando que estavam ao seu dispor meios alternativos para acautelar o eventual receio que pudesse sentir quanto à preservação da sua integridade fisica..." Ora no caso concreto o arguido ainda pediu ajuda, mas a situação descontrolou-se e já com ânimos exaltados e apelando-se ao homem médio por vezes perde-se o discernimento e a razão, mesmo para uma pessoa pacífica como é o arguido ofendido e ameaçado à porta de casa... quanto ao outro imagine-se a sua alcunhas era o facadas....

V - Com todo o respeito pela livre convicção do tribunal prevista no art.° 127° do CPP, sendo certo que o comportamento do arguido não foi correcto, mas como ele próprio explicou tudo foi muito rápido, e para si era iminente o acontecimento, a sua casa não seria segura pois bastaria disparar contra o vidro da porta (tem vidros conforme fotos junto aos autos), e teria acesso ao seu interior, o arguido convenceu-se o YYY estaria armado, bem como a superioridade numérica, naquele momento eram dois sem saber se haveria mais alguém ou se o Aurélio teria ido chamar alguém.

VI - O douto Tribunal conclui por aquilo que seria correcto se o arguido não estivesse fora de si, injuriado e ameaçado, com certeza nem teria puxado pela arma!

VII - A gravidade não foi o carro estar a impedir a passagem do arguido, mas sim as condutas injuriosas e ameaçadoras de tal forma que conseguiram descontrolar o arguido que sempre foi uma pessoa calma, trabalhadora, ordeira e com respeito pelos valores que lhe foram transmitidos na sua educação.

VIII - Aliás, o próprio acórdão é contraditório, quando o arguido é injuriado e ameaçado pela testemunha Aurélio e pelo ofendido YYY, as testemunhas AAA e BBB estavam em casa veja-se o ponto 6"Iniciou-se então uma discussão entre os três no decorrer da qual o YYY chamou estúpido ao arguido." E como já referimos não foi só esse o nome injurioso, para além das ameaças, agora veja-se a matéria de facto o ponto T' No decorrer da discussão o arguido dirigiu-se a casa da vizinha BBB e bateu com força à porta, solicitando a esta que dissesse aos seus amigos para retirarem o veículo daquele local para ele sair." Deverá ser corrigido por erro notório na apreciação da prova, quem assistiu à discussão para além dos três envolvidos foi a testemunha WWW cujo seu depoimento prestado na audiência de 25.11.2014, corroborou as declarações do arguido "o arguido foi muito mal tratado chamou-o de todos os nome, estupido filho da puta".

IX - Impugna-se igualmente os pontos 21 e 22 da matéria de facto, O arguido XXX sentiu medo pela sua vida.

X - O arguido XXX, não tinha qualquer experiência em manuseamento de armas de fogo só iria exibir mas o receio que o YYY concretizasse as ameaças, ou seja sentiu medo levou a que disparasse para baixo atingindo as pernas o terceiro tiro, que atingiu o peito do YYY foi acidental assim como o quarto tiro que disparou já dentro de casa. Nem se apercebeu da zona onde atingiu o YYY, não foi o seu propósito tirar a vida ao YYY e repetiu por diversas vezes que nunca teve intenção de matar o YYY e que o terceiro disparo foi acidental e nem se quer reparou que tinha atingido a vítima no peito.

XI - Saliente-se que as testemunhas CCC e DDD depoimentos prestados na audiência 02.12.2014, conforme acta da 3a sessão, referem que o YYY era conhecido pela alcunha de facas/facadas e pessoa sempre metido em confusões, não poderemos deixar de ter consideração se houve, porque houve culpa, devidamente assumida pelo arguido, também houve uma conduta reprovante da testemunha EEE e do YYY quer pelas injurias e ameaças, quer pela atitude provocadora e fazer contendas nas portas das outras pessoas.

XII - Face à matéria de facto dado como provada e à prova produzida em audiência de discussão e julgamento houve violação do princípio do "in dubio pro reo". Pese embora a relevância das declarações proferidas pelo arguido bem como pelos depoimentos das testemunhas em julgamento, colegas de trabalho e amigos de infáncia, não se produziu prova que o arguido tenha tido o designo de tirar a vida ao YYY, quer pela personalidade do arguido que ficou descrita nos pontos 26 a 44 podemos concluir que é uma pessoa amiga trabalhadora incapaz de tirar a vida de alguém, veja-se o relatório social do arguido

XIII -O arguido não soube que tinha atingido no peito quando saiu do local ainda estava com vida no entanto, o arguido entregou-se voluntariamente à PSP., foi nas instalações da Policia que soube que o YYY tinha falecido no Hospital de Santa Maria (na verdade se tivesse falecido no local não teria sido transportado para aquele hospital e obrigava a deslocação ao local do médico legista).

XIV - O arguido agiu sem refletir, e confessou integralmente os factos e "30.Mostra-se arrependido." O arguido está genuinamente arrependido, referindo por diversas vezes que retirou uma vida e vai viver com esse peso para o resto da vida e estragou a vida dele todo, que nunca teve problemas com ninguém e sempre foi uma pessoa calma, onde sempre praticou os princípios e valores dados pelos pais.

XV - Decidindo-se pela condenação do arguido, pela prática de um crime de homicídio qualificado, - com o devido respeito por opinião conmtrária, nestas circunstâncias e dando aqui por reproduzido tudo o que afirmamos anteriormente neste recurso, deveria e deverá, de ser aplicado o princípio do "in dubio pro reo". nos termos do artigo 32° da Constituição da Republica Portuguesa, por ser de justiça, absolvendo-se a arguida do crime de homicídio qualificado, deverá ser convolado para crime de homicídio p. e p. pelo art. 131° do Código penal.

XVI - Ora, o douto Tribunal "a quo" decidiu pela condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.º 1 e 2, al. e) do Cód. Penal. Atendendo à matéria de facto dada como provada e às circunstâncias em que os factos foram produzidos, no máximo estaremos perante um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131° do C.P. tanto mais resulta da matéria de facto provada no douto acórdão que o arguido foi injuriado para além de ameaçado, a superioridade numérica.

XVII - Caso, assim não se entenda, também não estão preenchidos os pressupostos da qualificação do crime de homicídio, ao contrário do vertido no douto acórdão os factos provados não revelam qualquer especificidade quanto ao modo de execução da morte de outrem, nem qualquer especial perversidade ou especial censurabilidade.

XVIII - Apesar de reprovável a conduta do arguido a situação não foi querida e procurada pelo arguido, como resulta da factualidade dada como provada, mostra-se que, além do não preenchimento objectivo da alínea e), por parte do arguido, não existe também um substancial acréscimo do seu grau de culpa, integrador de especial censurabilidade associado tal modo de execução às motivações subjacentes à prática dos factos, impõe-se por não concluir pela especial censurabilidade e perversidade. Deverá ser aplicado o Homicídio p. e p. pelo artigo 131° e não o art. 132° n. 2 al. e) do Código Penal

XIX - Mesmo que se entenda que o arguido praticou tais crimes ou um dos crimes terá de ser absolvido pelo crime de detenção de arma proibida, porquanto o crime de homicídio qualificado cometido pelo arguido e o crime de detenção ilegal de arma intercede uma relação de consunção, uma vez que a tutela agravada e abrangente do crime de homicídio qualificado compreende já o âmbito de protecção pressuposto no crime de arma.

XX - Por conseguinte, caso entenda-se pela condenação do arguido pelo crime de homicídio, não deverá ser pela qualificação, pois, na verdade, verifica-se uma relação de concurso aparente entre tais infracções, devendo o arguido ser punido apenas pela comissão de um crime.

XXI - A data dos factos, o arguido mantinha-se profissionalmente activo (trabalha desde 14 anos). Em termos de perspetivas futuras, o arguido entregou-se voluntariamente à P.S.P; confessou, com reservas. Mostra-se arrependido, não tem antecedentes criminais. O arguido é oriundo de uma família composta pelos progenitores com sólidos laços de afecto e união entre os membros. Os progenitores eram atentos e preocupados com os percursos socio-educativos dos descendentes. bem como com a transmissão de valores e regras num quadro relacional equilibrado e afectivamente investido. Há cerca de 3 anos e meio o arguido iniciou uma relação marital com actual companheira, vindo a família nuclear a ser constituída pelo casal e dois enteados do arguido actualmente com 7 e 5 anos de idade, com quem veio a estabelecer sólidos laços de afecto.

XXII -Justifica-se uma diminuição das penas parcelares e da pena única a que o arguido veio a ser condenado. uma vez que. 14 anos pelo crime de homicídio qualificado e 2 anos pelo crime de detenção de arma proibida a pena única de quinze de prisão se mostra manifestamente exagerada, desproporcional e desadequada, atendendo ao preceituado legal quanto à função repressiva e preventiva das penas de privação de liberdade.

XXIII - Parece-nos que houve uma notória violação da medida da pena aplicada ultrapassado em muito a medida da culpa concreta do arguido face aos factos dados como provados, tendo ainda, o acórdão em crise violado disposto nos artigos 40°, n.° 2 e 71, n.° 1 al. a), do Cód Penal;

XXIV - Acresce o facto de, os fins de prevenção geral atendidos no douto acórdão ora em crise ultrapassam a medida da culpa do recorrente, a qual deve ser o primeiro e último limite na determinação da pena concreta a aplicar, bem como, descurou os fins de prevenção especial expressos na necessidade de reintegração do arguido encarado na vertente humana e social.

Violaram-se: os artigos 29°, 32° da CRP, 131°, 1, 132, n.º" 2 als. b), i) e j), 40°, n..° 2, 70°, 71 ° e 72°, 131 °, 132° n °2 al. e) do CP 379° nº 1, 410° n ° 2 al. a), 412° do CPP e artigo S6° n ° 1, c), por referência ao art. 2°, n° 1, p), ae) e az), n.° 3, p) e v), n.° 5, p) e s), e arts. 3°, n.º 2 e 3 e art. 5°,todos da Lei 5/2006 de 23.02.

Termos em que, e pelo mais que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, deverá ser alterada a matéria de facto dada como provada e aqui impugnada, e alterada a qualificação do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132°, al. e) para o crime homicídio p. e p. no art. 131 °, deve ser ainda ser aplicado o principio do "in dublo pro reo deverá ser alterada a medida da pena em conformidade com o artigo 71, n." 2, al. d) do Cód. Proc. Penal, e em consequência que seja mais reduzida que se mostre mais justa, adequada e proporcional ao caso concreto e, assim, se fará a devida  JUSTIÇA! …”.

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A Exm.ª Magistrada do Ministério Público, respondeu ao recurso nos termos de fls. 735/756, em suma, pugnando pela improcedência do recurso[5].

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Neste Tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 769, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

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A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.

O tribunal recorrido fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“…2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. Em 25/02/2014, cerca das 18 horas, o arguido estacionou o seu veículo de marca Peugeot, modelo 107, na via pública, junto da sua residência, na Quinta do Algueirinho, Bairro de Angola, em Camarate, Loures, num arruamento com apenas uma entrada/saída para viaturas automóveis.
2. Nessa ocasião, o arguido avistou o ofendido YYY no interior de um outro veículo, no qual ocupava o lugar de acompanhante, cujo condutor, AAA, se encontrava a estacionar no mesmo arruamento, obstruindo a passagem do veículo do arguido.
3. AAA e YYY, iam visitar CCC, vizinha do arguido para lhe apresentarem pêsames pela morte da mãe desta. 
4. O arguido dirigiu-se aos ocupantes do veículo, dizendo-lhe que teriam de retirar o veículo do local, pois precisava de sair dali a alguns minutos.
5. O condutor AAA não acatou a ordem, saiu do carro e dirigindo-se ao arguido disse: “O que é que tu queres ó filho da puta, tens a mania que és o dono disto tudo”.
6. Iniciou-se então uma discussão entre os três no decorrer da qual o YYY chamou estúpido ao arguido.
7. No decorrer da discussão o arguido dirigiu-se a casa da vizinha CCC e bateu com força à porta, solicitando a esta que dissesse aos seus amigos para retirarem o veículo daquele local para ele poder sair.
8. CCC pediu calma ao arguido e aos seus amigos.
9. AAA retirou então o veículo do local, e foi arrumá-lo numa rua nas proximidades.
10. Não obstante, o arguido e o YYY continuaram em discussão.
11. A dado momento o arguido deslocou-se ao interior da sua residência, situada a poucos metros do local em que ele e o ofendido se encontravam, e de cima do frigorífico situado junto da porta de entrada recolheu uma pistola semi-automática, com o calibre de 7,65 milímetros que ali guardava, devidamente municiada, e, com esta na mão saiu para a rua.
12. Dirigiu-se ao YYY o qual se encontrava próximo do nº 38 – A do referido arruamento, empunhando a referida arma.
13. Quando se encontrava a cerca de dois a três metros do ofendido, apontou a extremidade do cano da arma em direcção ao corpo deste, após o que premiu o gatilho por duas vezes, disparando dois projécteis na direcção das pernas deste ofendido.
14. Acto contínuo o arguido apontou a extremidade do cano da referida pistola ao peito do ofendido e premiu o gatilho da pistola pela terceira vez, disparando um projéctil.
15. O projéctil assim disparado atingiu o ofendido no peito.
16. Em consequência do que atrás se descreve, o ofendido sofreu lesões traumáticas torácicas desde o hemitórax direito, orifício de entrada do projéctil, até aos tecidos moles para-vertebrais ao nível da décima vértebra dorsal, onde ficou alojado o projéctil, atravessando sucessivamente o músculo grande peitoral (linha axilar anterior), penetrando na cavidade torácica direita ao nível do 3.º espaço intercostal direito pela linha médio-clavicular, lacerando os lobos superior e médio do pulmão direito e o ramo principal direito da artéria pulmonar.
17. As lesões provocadas pelo projéctil disparado pelo arguido condicionaram a afectação grave do pulmão direito e vasos principais do ofendido, provocando hemorragia intensa, que lhe provocaram directa, adequada e necessariamente a morte.
18. Imediatamente após os disparos o arguido entrou no seu veículo, e ausentou-se do local, tendo levado consigo a pistola referida, a qual veio a lançar ao Rio Tejo, junto da Ponte Vasco da Gama.
19. O arguido tinha consigo, no interior da sua residência, sita no bairro supra mencionado, catorze munições de calibre de 6,75 milímetros.
20. O arguido adquiriu a pistola supra referida e as munições em 2012, a um individuo de etnia cigana, pelo preço de 200 Euros.
21. Ao efectuar os disparos na direcção de YYY, o arguido fê-lo com o propósito de o matar.
22. Agindo desse modo, o arguido visou atingir a zona do tórax daquele, como sucedeu.
23. Bem sabendo que poderia, com elevado grau de possibilidade, e face à utilização de arma de fogo, que sabia ser um meio muito perigoso, e nas circunstâncias descritas, em que foram efectuados os disparos, causar a morte do mesmo;
24. O arguido não ignorava que a arma acima descrita era proibida e que não podia tê-la em seu poder;
25. O arguido sabia que não era titular de licença de uso e porte de arma, não desconhecendo que era obrigatória a sua detenção;
26. O arguido entregou-se voluntariamente à PSP.
27. O arguido agiu sempre livre, consciente e deliberadamente;
28. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei;
29. O arguido confessou, com reservas, parte dos factos acima descritos, concretamente, que efectuou os disparos e que comprou a arma bastante tempo antes de os praticar, mas negou a intenção de matar o YYY
30. Mostra-se arrependido.
31. O arguido não tem antecedentes criminais;
32. O arguido é oriundo de uma família composta pelos progenitores e duas irmãs germanas, com uma dinâmica relacional com sólidos laços de afecto e união entre os membros.
33. Os progenitores eram atentos e preocupados com os percursos socio-educativos dos descendentes, bem como com a transmissão de valores e regras num quadro relacional equilibrado e afectivamente investido.
34. Residiam numa casa de construção clandestina, que actualmente é a casa de morada de família do arguido.
35. Frequentou a escola até ao 6º ano da escolaridade, não o tendo todavia completado.
36. Cerca dos 14 anos iniciou actividade laboral, mais tarde veio a dar seguimento ao processo de escolarização e a completar o equivalente ao 9º ano através do Centro de novas Oportunidades, tendo efectuado um curso de soldadura e um curso de informática na óptica do utilizador.
37. Autonomizou-se por volta dos 22 anos, reconstruiu a residência paterna e passou ali a residir, primeiro sozinho e depois com uma companheira, com quem viveu cerca de 8 anos, que veio a terminar devido a problemas relacionados com o consumo de haxixe e alterações neurológicos da companheira.
38. Há cerca de 3 anos e meio o arguido iniciou uma relação marital com actual companheira, vindo a família nuclear a ser constituída pelo casal e dois enteados do arguido actualmente com 7 e 5 anos de idade, com quem veio a estabelecer sólidos laços de afecto.
39.  O arguido exerceu até 2012 actividade profissional estruturada no ramo da canalização e a companheira trabalha nas limpezas, o que permitia ao agregado manter um padrão de vida economicamente equilibrado.
40.  Em 2012 o arguido ficou desempregado e desde então tem subsistido do subsídio de desemprego e de alguns “biscates” que executa, e embora tenha havido um decréscimo de rendimento e no padrão de vida do agregado familiar, ainda assim, conseguem manter a sua situação económica equilibrada e sem constrangimentos significativos.
41. O arguido é considerado bom trabalhador, zeloso e responsável, os colegas de profissão descrevem o arguido como um jovem calmo, educado, com capacidades ao nível do estabelecimento e manutenção de relações interpessoais positivas.
42. O arguido beneficia de consistente apoio dos amigos e familiar.
43. O arguido tem no meio prisional comportamento adequado e coadunante com as regras vigentes.
44. O Hospital de Santa Maria prestou atendimento médico à vítima com o qual despendeu a quantia de 112,07 Euros, correspondente ao atendimento médico dispensado à vítima, acrescido
2.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram quaisquer outros factos que não se compaginem com a factualidade acima dada como provada, ou não estejam nela incluídos, por falta de produção de meios de prova esclarecedores e convincentes nesses aspectos.

Concretamente, no que se refere à versão dos factos descrita na acusação, resultou não provado que o arguido se dirigiu ao ofendido, dizendo-lhe que os lugares de estacionamento ali existentes se destinavam ao uso exclusivo dos moradores nesse arruamento. …”.

*
Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[6] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas.
Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado[7].
No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma:

“…Antes de iniciarmos o excurso sobre os motivos que presidiram à decisão do tribunal sobre a factualidade provada e não provada, cumpre ter presente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, salvo quando a lei dispuser diferentemente.

A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem pressupostos valorativos de obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de se dar a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.

Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes – enfim da “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram. 

Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis mas rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

O juiz não é uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha diz ou de tudo o que resulta de um documento e a sua apreciação funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos enformada por uma convicção pessoal.

Em processo penal, impõe-se que o tribunal construa os suportes da sua decisão por apelo aos meios de prova validamente produzidos e independentemente de quem os ofereceu, investigue e esclareça oficiosamente os factos em busca da verdade material e, em caso de dúvida intransponível, decida a favor do arguido.

Note-se que o juiz não está processualmente vinculado a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa, ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. A motivação da decisão de facto não pode, pois, constituir um substituto do princípio da oralidade e da imediação e transformar-se numa espécie de documentação da audiência.

É, pois, à luz de tais princípios que se formou a convicção deste tribunal e, consequentemente, se procedeu à selecção da matéria de facto relevante, tendo em vista a prova produzida.

Refira-se, por seu turno, que o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes ou que são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma, bem como para a verificação dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual.

Assim, a convicção do Tribunal, quanto aos factos considerados provados, teve por base os seguintes fundamentos:
No que se refere aos descritos em 1, 2, 4 a 15, 18 a 20, 26 e 30 as declarações do próprio arguido que admitiu o cometimento dos factos imputados, todavia enquadrou-os de modo algo distinto ao descrito na acusação. No relato proporcionado pelo arguido, a discussão que desencadeou a conduta do arguido, foi iniciado pela vítima com a recusa à solicitação do arguido para retirem o veículo do local onde haviam estacionado por forma a permitirem a sua saída. Referiu ainda que foi ameaçado e injuriado pela vítima e pela testemunha Aurélio, tendo a sua conduta sido motivada pelo receio que sentiu quanto à sua integridade física.
Nesta a versão do arguido não mereceu credibilidade, pois, estavam ao seu dispor meios alternativos para acautelar o eventual receio que pudesse sentir quanto à preservação da sua integridade física. E os meios eram simples e eficazes, pois bastaria o arguido se recatar no interior da sua casa e solicitar a intervenção da autoridade policial para a desocupação da via.

Em relação aos descritos em 3, 6, 7 a 15 o depoimento prestado pela testemunha CCC

Quanto aos descritos em 6, 8 e 9 o depoimento da testemunha FFF. Efectivamente as testemunhas CCC e BBB presenciaram alguns factos, tendo ambas assistido parcialmente à discussão ocorrida entre  arguido,  YYY e o AAA.

A primeira presenciou ainda os disparos.

Os depoimentos destas testemunhas revelaram conhecimento directo dos factos, e apesar da amizade que as unia à vítima, depuseram de modo claro objectivo e consistente, relativamente ao que presenciaram, logrando assim obter a convicção do tribunal. Foram determinantes os seus depoimentos para aferir do estado de exaltação atingido pelo arguido e os outros dois intervenientes na discussão.

Por seu turno o depoimento da testemunha AAA, veio a ser frontalmente contrariado pelos restantes depoimentos. Efectivamente, esta testemunha, referiu que apesar de ter estacionado o seu veículo atrás do veículo do arguido, este conseguia passar, aliás como acabou por fazer apos ter disparado sobre o YYY. Ora, tal afirmação foi desmentida por todas as restantes testemunhas, e pelo arguido.

Acresce que a testemunha AAAafirmou que presenciou os disparos, pois que se encontrava ao lado do arguido. Aliás até afirmou que o arguido lhe disse: “ afasta-te que isto não é nada contigo”, e de imediato disparou sobre o YYY. Da análise critica e conjunta dos restantes depoimentos, é forçoso concluir que tal afirmação não corresponde à verdade, já que no momento dos disparos, a testemunha Aurélio tinha ido estacionar o veículo numa rua adjacente ao local dos factos. E quando regressou já os mesmos tinham ocorrido.

Quanto à motivação da conduta do arguido, as testemunhas foram unanimes ao afirmar que os factos ocorreram na sequência do estacionamento do veículo conduzido pelo AAA, atrás o veículo do arguido, impedindo a circulação deste.

Tal facto originou uma discussão entre os três, mas de modo mais violento com o YYY. No decurso da discussão houve troca de epítetos ofensivos, cujo teor é o que consta da matéria de facto.

Quanto às características da arma de fogo enunciadas em 11 e  as munições em 19, louvou-se o tribunal no relatório pericial do LPC de exame às capsulas deflagradas, porquanto sabido que as capsulas examinadas constituem-se como elementos de calibre 6,35 mm, conforme relatório pericial de fls. 161 a 167, são usadas em armas de fogo de tipo pistola semiautomática. Quanto às munições apreendidas em casa do arguido atendeu-se igualmente ao já mencionado relatório pericial e respectivo auto de apreensão. Atendeu-se ainda ao teor de relatório de fls. 245 a 248. 

Ainda, no que se refere ao número de disparos, local de onde foram efectuados e posicionamentos relativos do arguido e da vítima e locais do corpo desta atingidos, foram também ponderados o Relatório de Inspecção Judiciária de fls. 3 a 12, 137 a 156, com as fotografias de fls. 12 a 18, 20 a 23, 25 a 28 dos autos, bem como o tero do depoimento da testemunha Rosário Ceita

Atendeu-se igualmente ao teor dos Autos de apreensão constantes de fls. 56 e 100 dos autos.

No que se refere ao descrito em 44, foi atendido e ponderado o teor de ficha clínica de fls. 201, dos autos.

Em relação aos descritos em 16, e 17, relatório de autópsia médico legal de fls. 360 a 364 e documento de 399.
  Em relação aos descritos em 21, 22 e 23, por presunção judicial, resultante da aplicação das regras de experiência comum aos factos conhecidos e provados sobre os pontos 12, 13 e 14;
 Quanto ao descrito em 32 a 43, os depoimentos das testemunhas GGG; HHH, III, JJJ, LLL e MMM, conjugados com o relatório social junto aos autos;
No que concerne aos factos pessoais do arguido, valeu-se o tribunal nas declarações por este prestadas, bem como no teor do relatório realizado às condições pessoais do arguido e que se mostra junto aos autos.

O depoimento da testemunha BBB, mãe da companheira do arguido, teve em consideração tal facto e o efeito que o mesmo tem na descrição dos factos, pois detecta-se no seu depoimento uma clara aderência à versão do arguido, mesmo quanto aos factos em que se detecta alguma falta de coerência e verosimilhança. Igual limitação esteve sujeito o depoimento da testemunha António Soares, vizinho do arguido desde a infância deste. …”.
*
É pacífica a jurisprudência do STJ[8] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[9], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[10].

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Vício de omissão de pronúncia na decisão recorrida;

II – Impugnação alargada da matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 6, 12, 21 e 22, pelo menos, por aplicação do princípio in dubio pro reo;

III – Vícios de contradição insanável e de erro notório na apreciação da prova na decisão recorrida;

IV – Qualificação do homicídio e relação entre este e a detenção de arma proibida;

V – As medidas das penas.

*

Cumpre decidir.

Questão prévia:
Verificamos, pelo confronto interno da decisão recorrida e com o documento de fls. 161/167, que fundamentou a prova, que, quando no facto provado n.º 19 e na fundamentação, a fls. 656, se referem, respectivamente, munições de calibre “6.75 milímetros” e cápsulas de “calibre 6,35 mm” se trata de um lapso, porque quer umas quer outras são de calibre 7.65 mm.
Nos termos do art.º 380º/2 do CPP, a correcção do lapso pode ser feita pelo tribunal de recurso.
É o que faremos.

*

I – Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, porque além de injuriado, o Arg. foi ameaçado e o tribunal não deu tal facto como provado que, em seu entender, resultou das suas declarações e do depoimento da testemunha BBB.

A omissão de pronúncia, que ocorre “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, isto é, quando a decisão é omissa ou incompleta relativamente às questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, às questões de conhecimento oficioso, e às questões cuja apreciação é solicitada pelos interessados processuais[11], constitui nulidade (art.º 379º/1-c) do CPP).

Essa nulidade deve ser arguida e conhecida em sede de recurso (art.º 379º/2 do CPP), não sendo de conhecimento oficioso[12].

Ora, desde logo, na fundamentação da matéria de facto, o tribunal recorrido refere que o Arg. disse que foi ameaçado, mas não conferiu credibilidade a esta versão, pelo que se pronunciou directamente sobre tal facto.

Mas mesmo que assim não fosse, a ameaça de que o Arg. se diz vítima não foi alegada em qualquer peça processual, nomeadamente na contestação de fls. 483, em que o Arg. se limitou a oferecer o merecimento dos autos e a indicar testemunhas de defesa, e, portanto, mesmo que se devesse dar tal facto como provado em face da prova produzida, isso não se reconduziria a uma omissão de pronúncia, cabendo sim no âmbito da reapreciação da matéria de facto.

Não padece, pois, a decisão recorrida deste vício de omissão de pronúncia.

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II – Entende o Recorrente que o tribunal recorrido não devia ter dado como provados os factos 6, 12, 21 e 22, porque não foi isso que resultou da prova produzida em audiência, pelo menos, por aplicação de princípio in dubio pro reo.

Uma vez que o Recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto, o que invoca é a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos, e que são os referidos no art. 410º/2/3 do CPP, não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[13],[14],[15].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[16].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»).

Como diz Francisco Quevedo, “Quem julga pelo que ouve e não pelo que entende, é orelha e não juiz.[17].
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.

Antes do mais, o Recorrente limitou-se a pôr em causa a convicção do tribunal, considerando que este devia ter dado credibilidade às suas próprias declarações e ao depoimento da testemunha BBB, pelo que há que concluir que se limitou a contrapor a sua convicção à do tribunal recorrido. Ora, entendemos que “O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência. …[18], [19].

Está, pois, este tribunal impedido de reapreciar a matéria de facto.

Sempre diremos, no entanto, que, tendo em conta as transcrições de depoimentos feitas na motivação de recurso pelo Recorrente, nada nelas impõe que se dê como provada a sua versão dos factos.

O tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, pelo que é inatacável[20].

Quanto à violação do princípio in dubio pro reo[21], dir-se-á, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)[22].

Ora, não vislumbramos na decisão recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão tais factos, ou seja, não teve qualquer dúvida. O tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.

É, pois, improcedente, nesta parte, o recurso.

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III – Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de contradição insanável entre os factos dados como provados sob os n.ºs 6 e 7, considerando que isso configura também um erro notório na apreciação da prova.

Relativamente a esses factos e á sua fundamentação, o que consta da decisão recorrida é o seguinte: “…
6. Iniciou-se então uma discussão entre os três no decorrer da qual o Jelson Pontes chamou estúpido ao arguido.
7. No decorrer da discussão o arguido dirigiu-se a casa da vizinha Rosária Seita e bateu com força à porta, solicitando a esta que dissesse aos seus amigos para retirarem o veículo daquele local para ele poder sair.

Em relação aos descritos em 3, 6, 7 a 15 o depoimento prestado pela testemunha CCC.

Quanto aos descritos em 6, 8 e 9 o depoimento da testemunha BBB. Efectivamente as testemunhas CCC e BBB presenciaram alguns factos, tendo ambas assistido parcialmente à discussão ocorrida entre  arguido,  YYY e o AAA.

A primeira presenciou ainda os disparos.

Os depoimentos destas testemunhas revelaram conhecimento directo dos factos, e apesar da amizade que as unia à vítima, depuseram de modo claro objectivo e consistente, relativamente ao que presenciaram, logrando assim obter a convicção do tribunal. Foram determinantes os seus depoimentos para aferir do estado de exaltação atingido pelo arguido e os outros dois intervenientes na discussão. …”.
“… contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou, quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.[23].

Por sua vez, erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.[24].

Ora, não vemos como no texto da decisão haja os apontados erro notório e/ou contradição.

Na verdade, mesmo que as testemunhas CCC e BBB se encontrassem dentro de casa, isso, por si só, não é impeditivo de que tenham ouvido ou visto o que se passava: podiam ouvir de dentro de casa e ver por uma janela.

Por outro lado, o tribunal recorrido afirma que presenciaram alguns dos factos, donde decorre que compôs a sua convicção, como é normal, com a conjugação de diversos depoimentos.
Não padece, pois, a decisão recorrida dos apontados vícios.

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Antes do mais, importa consignar que não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso, e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[25], nomeadamente, qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto.

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IV – Entende o Recorrente que o homicídio por que vem condenado não deve ser qualificado e que este consome o crime de uso de arma proibida.

O homicídio qualificado, p. e p. pelo art.º 132º do CP, constitui um caso especial de homicídio doloso que o legislador decidiu punir com uma moldura penal agravada, resultando esta do facto de a morte ter sido causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente (n.º 1). Por sua vez, o seu n.º 2 faz uma enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a referida especial censurabilidade ou perversidade.
A maioria da doutrina[26] e da jurisprudência[27] entende que essa enumeração não é taxativa, podendo existir outras circunstâncias não descritas no tipo legal, mas reveladoras da apontada situação, dando origem, assim, aos chamados casos de homicídio qualificado atípico, mas o TC[28] já considerou que esta interpretação é inconstitucional[29]. Nós alinhamos com a jurisprudência maioritária supra referida.

O legislador português seguiu neste domínio um método muito particular que se caracteriza pela combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa com a técnica chamada dos exemplos padrão (cfr. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, p. 25, §2).

Figueiredo Dias, salienta que a “…não verificação [das circunstâncias ou elementos, uns relativos aos factos, outros ao autor, elencados no n.º2, indiciadores da especial censurabilidade ou perversidade], por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra ‘análogos’) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…) que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º-2 …” (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 26).

Para além disso, bem pode suceder que a verificação de qualquer uma dessas circunstâncias não implique, por si só, a qualificação do crime pelo que, então, o juiz deixará de operar tal qualificação. E isto porque as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 132º não são de funcionamento automático (neste sentido, cf. Maia Gonçalves na anotação ao art. 132º do Código Penal; Actas das sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Especial, p. 21/24; e na jurisprudência, para além doutros, os acórdãos do STJ de 12/05/83, in BMJ 327/458; de 08/02/84, in BMJ 334/258; de 05/01/83, in BMJ 323/121; de 26/04/89, in BMJ 386/273, de 05/12/90, in BMJ 402/195).

Face ao seu funcionamento não automático e à sua não taxatividade, tais circunstâncias só podem ser compreendidas enquanto elementos da culpa (cfr. neste sentido, Eduardo Correia e Figueiredo Dias, Actas, p. 29 e seguintes, Figueiredo Dias, Comentário, cit., p. 27, § 4, Cristina Líbano Monteiro, RPCC, 1996, p. 122 e seguintes[30]), exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam, insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente. Desse modo, verificando-se algumas das circunstâncias enunciadas no referido n.º 2, embora exista um efeito de indício de uma especial censurabilidade ou perversidade, tal efeito tem de ser demonstrado, posteriormente, na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso[31].

“… Segundo Teresa Serra, in Ob. Cit. [Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Coimbra, 1972], pág. 63/64 existe especial censurabilidade quando “as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores"; por seu turno, a especial perversidade supõe "uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade". Também Figueiredo Dias salienta que na especial censurabilidade se pretendem abranger aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na retracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação do facto de qualidades de personalidade do agente especialmente desvaliosas” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 29, §7). Finalmente o S.T.J. distingue os dois conceitos na circunstância de a especial perversidade “se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente” enquanto a especial censurabilidade “se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido” (cfr. o Ac. de 27-05-2004, in www. dgsi.pt).

Por conseguinte, subjacente à especial censurabilidade ou perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta em tais circunstâncias, o que motiva a agravação. A agravação da culpa tem, afinal, a ver com a “maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples” (Figueiredo Dias, Col. de Jur., ano XII, tomo 4, pág.52). Como tal, o desvalor ético-jurídico traduzido na culpa é capaz, por isso, de fundamentar, exclusivamente por si, uma censura. …”[32].

Como se afirma no sumário do acórdão do STJ de 23/10/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P2856, que citamos, importa ter em conta que: “I - Tem o STJ entendido que o homicídio qualificado atípico «há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, pois, no fim de contas, “é de facto uma ousadia criar homicídios qualificados...”». II - O M.º P.º na 1ª instância entende que “o arguido manifestou um profundo desprezo pelo valor da vida humana, movido por motivos de vingança, afirmação no interior do seu grupo e vaidade criminal. O facto de existir um clima de confronto dentro da discoteca, não torna compreensível o comportamento do arguido nem muito menos o justifica.” III - Mas, o tipo especial de culpa, característico do homicídio qualificado, não se define pela negativa, como faz o M.º P.º ao constatar que o clima de confronto “não torna compreensível” o homicídio e “muito menos o justifica”, pois se o homicídio fosse “compreensível” seria, eventualmente, um homicídio privilegiado e se fosse justificado, possivelmente não seria punível. IV - É preciso recordar que o crime base neste domínio é o de homicídio simples, no qual o agente manifesta, quase sempre, o tal “profundo desprezo pela vida humana”, já que, por definição, age com dolo (na maioria das vezes directo, isto é, pretende e tem o desejo de matar) e fá-lo por um motivo qualquer, que quase nunca se pode avaliar positivamente, por exemplo, por vingança, por vaidade ou por afirmação de grupo. O homicídio qualificado há-de ter, por isso, algo que se deva acrescentar a essa culpa já intensa, que a torne especialmente censurável.”.

Motivo fútil “… significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.[33], “… é o motivo de importância mínima. Será também o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática. …”[34].

Não nos parece que, em geral, uma discussão com insultos mútuos constitua, necessariamente, um motivo fútil, tudo dependendo do teor e da intensidade da discussão, e no caso concreto, no que sobressai a escassez de factos (vejam-se os factos provados 4 a 7 e 11), sem outros elementos que nos permitam apreender o teor total e a intensidade da discussão, entendemos que se não pode considerar que o Arg. tenha agido por motivo fútil e, na dúvida, há que decidir a favor do Arg..

Mas já é de qualificar o homicídio, atenta a especial censurabilidade que ressalta do caso como um todo, como se refere na decisão recorrida, por o mesmo ter sido cometido utilizando um meio que se traduz na prática de um crime de perigo comum abstracto[35], isto é, utilizando uma arma proibida.

O homicídio praticado com uma das armas previstas no art.º 86º/1-a) a d) da Lei das Armas[36], é agravado, nos termos do art.º 86º/3/4 da referida lei, isto é, as penas aplicáveis são agravadas de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma, considerando-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

No presente caso, como bem se decidiu no acórdão recorrido, esta agravação encontra-se consumida pela agravação do homicídio, nos termos supra referidos.

A jurisprudência encontra-se dividida quanto ao concurso efectivo ou aparente entre o crime de homicídio e o crime de detenção de arma proibida[37].

Nós alinhamos pela tese do concurso efectivo, por entendermos que o critério distintivo para decidir sobre a unidade ou pluralidade de infracções é o do bem jurídico, conforme entendimento defendido por Eduardo Correia[38] e Germano Marques da Silva[39].

Na verdade, como se afirma no acórdão do STJ de 04/12/2008[40]: “…A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.

A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.

Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.).

A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode, pois, encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de proc. nº 1942/06-3ª).

O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado). …”[41].

Tem sido com este critério que a jurisprudência largamente maioritária tem decidido pelo concurso efectivo nos crimes concomitantes de burla e falsificação[42]; roubo e sequestro (quando o tempo de sequestro excede o estritamente necessário para consumar o roubo)[43]; roubo e detenção de arma proibida[44]; resistência e desobediência[45].

No nosso caso, são diferentes os bens jurídicos protegidos pelos crimes em análise: no caso do homicídio, a vida, e no caso da detenção de arma proibida, “… a segurança da comunidade face aos riscos (em última instância para bens jurídicos individuais), da livre circulação e detenção de armas proibidas, …”[46], sendo que este já estava consumado quando aquele foi cometido, pelo que estamos em face de um concurso efectivo real de crimes.

É, pois, improcedente, também nesta parte o recurso.

*

V – Entende o Recorrente que, em qualquer dos casos, as penas aplicadas, quer parcelares quer única, são exageradas e devem ser reduzidas[47].

A determinação da medida concreta da pena, nos termos do art.º 71º do CP, deve ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente[48].
Por outro lado, na determinação da medida da pena do cúmulo devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art.º 77º/1 do CP)[49],[50].
Verificamos que o tribunal recorrido, tendo optado, relativamente ao crime de detenção de arma proibida, pela pena de prisão, fixou as penas parcelares aplicadas em medidas que se situam ligeiramente abaixo de 1/4 do intervalo entre os limites mínimo e máximo aplicáveis, relativamente ao crime de homicídio, e ligeiramente abaixo de 1/2 do intervalo entre os limites mínimo e máximo aplicáveis, relativamente ao crime de detenção de arma proibida.

E que fixou a pena única em medida que se situa no ponto médio do intervalo entre os respectivos limites.
Pensamos que a intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada[51],[52].

O tribunal recorrido fundamentou devidamente a determinação que fez das medidas das penas, e fê-lo com equilíbrio e justiça. Por isso, entendemos que não se estando perante desproporção das quantificações efectuadas, nem face a violação de regras da experiência comum, não se justifica intervenção correctiva deste Tribunal.

É, pois, improcedente o recurso.

*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos:
a) Rectificar a decisão recorrida, passando a dela constar que as cápsulas e as munições apreendidas ao Arg. eram de calibre 7.65 mm;
b) No mais, julgar não provido o recurso e confirmar inteiramente a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC.
*

Notifique.

D.N..

*****

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

*****

Lisboa, 18/06/2015

João Abrunhosa

Maria do Carmo Ferreira

_______________________________________________________
[1] Arguido/a/s.
[2] Termo de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 25/02/2014.
[4] Estas conclusões foram juntas pelo Recorrente em resposta ao convite para correcção, efectuado nos termos do despacho de fls. 776.

[5] Nos seguintes termos: “…“O âmbito de um recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação” (cfr por todos, Ac. do S.T.J., de 05.07.1995, Ano VII, Tomo II, pág. 258).

A – DO OBJECTO DO RECURSO

1 - Vem o presente recurso interposto pelo arguido XXX, por ter sido condenado, pela prática, como autor material em concurso real:

- de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artºs. 131º, nº 1 e 132º, nºs. 2, al. i), ambos do CP, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;

- de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artº  86º, nº 1, al. c), por referência aos  artº 2º, nº 1, als. p), ae) e az), nº 3, als. p) e v), nº 5, als. p) e s), e artºs 3º, nºs 2 e 3 e 5º, todos da Lei 5/2006, de 23.02, na pena de 2 (dois) anos;

- em cúmulo jurídico das aludidas penas na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

2 - A Lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretende que seja decidido, uma vez que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso.

3 - Constituem por natureza e definição a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para o exercício do contraditório, quer para o enquadramento da decisão.

4 - Analisadas as conclusões de recurso, afigura-se-nos que o Recorrente em última instância pretende é impugnar o processo da formação da convicção do Tribunal a quo que levou à fixação da matéria de facto dada como provada e não provada

QUESTÃO PRÉVIA

Impugnação da matéria de facto dada como provada

Como acima se referiu, o Recorrente vem impugnar parte da decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando como incorrectamente julgados (e, portanto, incorrectamente dados como provados) os factos que levam à condenação do arguido pela prática como autor material em concurso real de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artºs. 131º, nº 1 e 132º, nºs. 2, al. i), ambos do CP, na pena de 14 (catorze) anos de prisão.

O nº 3º do artigo 412º do C.P.P. impõe ao Recorrente a obrigatoriedade de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a), as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as provas que devem ser renovadas (alínea c).

Sendo que, nos termos do nº 4º do mesmo artigo e diploma legais, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior, fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do disposto no nº 2º do artigo 364º, devendo o Recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Ora, a análise da Motivação do Recorrente demonstra que este não deu cabal cumprimento ao disposto nos referidos nºs 3º e 4º do artigo 412º do C.P.P.

Na verdade e como exemplarmente se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/11/09, proferido no Processo nº 116/04.4GBPSR.E1, “(…) O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão

E tal exigência é dada, como é referido nos Acs. desta Relação Ns 2542/01 e 2870/02, pelas seguintes imposições:

Especificação, e não mera referência, dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o ponto que se tem por erroneamente apurado;

Especificação das provas, não sendo suficiente a menção genérica de toda a prova e dos depoimentos das testemunhas, etc.;

Indicação concreta das provas que impõem decisão diversa;

Especificação dos suportes técnicos, da prova documentada, com vista a facilitar a sua localização (…)..

Requisitos que o Recorrente não acatou.

Pelo que o Recurso deverá aqui ser liminarmente rejeitado e sem que haja qualquer convite ao seu aperfeiçoamento.

B- A LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA; A FUNDAMENTAÇÃO

O que o Recorrente verdadeiramente pretende impugnar é a fixação da matéria de facto dada como provada e a convicção que a determinou.

O Recorrente discorda, na verdade, da interpretação e da valoração crítica da prova produzida em Julgamento que o Tribunal “a quo” efectuou em ordem a formar a sua convicção e a fixar a matéria de facto dada como provada, vindo fornecer a sua própria interpretação e valoração dessa mesma prova

Esquece, porém, que "…o recurso não traduz uma repetição do julgamento, com análise da prova, mas sim um remédio para situações que patenteiam erro de julgamento. Com efeito, o tribunal de recurso sofre de certo handicap relativamente ao tribunal perante o qual se produziu directamente a prova, onde têm pleno cabimento os princípios da imediação e oralidade, complementados pelos do contraditório, livre apreciação da prova e in dubio pro reo. A prova escrita não consente a percepção do que aconteceu e não é inscrito... os olhares, os esgares, as hesitações, o recado feito de personagem com papel bem desempenhado…" (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/09/01, Processo nº 1352/00 da 4ª Secção, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/05/02, Processo nº 02P1071, consultado em “www.dgsi.pt”) - negrito e sublinhados nossos.

Mas esquece, sobretudo, que nos termos do disposto no artº 127º do C.P.P., “ a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da autoridade competente “ (aqui o Julgador), constituindo seu objecto “...todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis... “ (artº 124º do C.P.P.)

Livre apreciação da prova a formar “não em observância a qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes estribada na sua análise segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio de cariz intelectual e de consciência que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento” (Ac. do S.T.J. de 11/03/98, C.J., Ac’s do S.T.J-1998, Tomo I, 220).

Por isso mesmo uma livre valoração entendida como “...valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...“ (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, págs. 111 e 112).

Ou seja, “na outorga ao julgador, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada “verdade material”, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional” (Ac. do S.T.J. de 20/01/98, B.M.J. 473, 91).

E é por isso mesmo que, “...num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência...”. (Obra, Autor e páginas citados).

Ou, nas palavras de Castanheira Neves com “uma liberdade para a objectividade, não uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concebe e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros” (Sumários de Processo Penal, 1967/1968, pág.50). 

É exactamente por tudo isto, aliás, que aqui ganha particular e decisiva importância a fundamentação do Acórdão, ou seja, a exigência de que dele conste não só a enumeração dos factos provados e não provados, mas ainda uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal (artº 374º nº 2º do C.P.P., como explicitação do princípio constitucional inscrito no artº 32º nº 1º da C.R.P.).

Ora, como expressamente se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/06/02, Processo nº 0210320 (in “www.dgsi.pt”), “…estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência…”.

Sendo certo que “…tal fundamentação deverá, intraprocessualmente, permitir aos sujeitos processuais e ao Tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso (cfr. artigo 410º, nº 2º do CPP)…” e, extraprocessualmente, “…assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença, e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade…” (n.s.n.).

Assim se temperando, pois, o sistema de livre apreciação das provas (prevista no artigo 127º do CPP) com a possibilidade de controle imposto pela obrigatoriedade duma motivação racional da convicção formada, do mesmo passo “…evitar-se-ão situações em que se impute ao julgador a avaliação "caprichosa" ou "arbitrária" da prova, e, sobretudo, justificar-se-á a confiança no julgador ao ser-lhe conferida pela liberdade de apreciação da prova garantindo-se, simultaneamente a credibilidade na Justiça (vd. Marques Ferreira, O novo Código de Processo Penal, CEJ, 229 e segs.)…”.

É que, “…como assinala Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 204 e segs.), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis [v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova], e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros…” (n.s.n.).

Por isso mesmo “…uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável…” assumindo-se aqui como fundamental o “princípio da imediação”, isto é, “…a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão…”.

E só estes princípios permitem, com efeito, o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade e a avaliação mais correcta possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais, bem como uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (cfr. Figueiredo Dias, Ob. cit., 232 e segs.).

 “…Isto não significa, como é evidente, que o tribunal de recurso não possa e deva controlar a convicção do juiz da 1.ª instância, designadamente quando assenta em raciocínios contrários às regras da lógica, às máximas da experiência ou aos conhecimentos científicos, sem olvidar, porém, que casos há em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. De facto, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção. Isto é assim mesmo quando, como no caso dos autos, houver documentação da prova. De outra maneira seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova…” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/03, Processo nº 03P141, idem).

Neste contexto haverá que afirmar que a fundamentação do Acórdão “sub judicio” cumpre os respectivos requisitos legais, ali se encontrando devidamente explicitado e explicado o processo de formação da convicção do Tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os depoimentos prestados em Audiência, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum.

Enfim, a matéria aqui dada como provada (e não provada) é a que resulta da análise da prova produzida, temperada com os princípios de processo penal convergentes na área, com destaque - inevitável e desejável sob o ponto de vista da captação psicológica - para o da imediação.

Pelo que nenhuma razão assiste ao Recorrente quando pretende, apenas, que ela fosse valorada e enquadrada de forma diferente, mais consoante com os respectivos interesses.

Como lucidamente se escreve no Acórdão da Relação de Évora de 08/06/04 (Recurso Penal nº 47/04-1), “(…) a verdade em direito é uma convicção prática firmada em dados objectivos que directamente ou indirectamente, permitem a formulação de um juízo de facto. Quando a base do juízo de facto é indirecta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo a fim de evitar erros. Importa constatar, em primeiro lugar uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta a observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios (sobre a prova indiciária em processo penal veja-se com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J.MBosch Editor,1997,M.Miranda Estrampes, páginas 231 a 249).

As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341° do Código Civil)) mas esta demonstração da realidade não visa a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente. Os factos que interessam ao julgamento da causa são de ordinário ocorrências concretas do mundo exterior ou situações do foro psíquico que pertencem ao passado e não podem ser reconstituídas nos seus atributos essenciais.

A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça. A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (Giudici fit probatio) um estado de convicção assente na certeza relativa do facto [ cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil) pág 434].

Dificilmente o julgador poderá ter a certeza absoluta de que os factos aconteceram tal como eles são por si interiorizados, como são dados como provados. Mas isto não obsta a que o tribunal se convença da realidade dos mesmos, posto que consiga atingir o umbral da certeza relativa. A certeza relativa é afinal um estado psicológico (a tal convicção de que se costuma falar) que, conquanto necessariamente se tenha de basear em razões objectivas e possa ser fundamentável, não demanda que estas sejam inequivocamente conclusivas.

Daqui decorre que não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos actos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa (a tal convicção honesta e responsável de que se falou atrás) dentro do que é lógico e normal) de que as coisas sucederam como a acusação as define.

A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal, devendo este julgar segundo a sua convicção, formada sobre a livre apreciação das provas, de modo a chegar à decisão que lhe parecer justa, pelo que o depoimento de uma única testemunha pode fazer fé em juízo...

Acresce que, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode censurá-la se ficar demonstrado que tal opção é inadmissível face às regras da experiência comum (…)”.

E foi exactamente em obediência estrita a estes princípios estruturantes que o Tribunal recorrido formou a sua convicção, como claramente decorre da Fundamentação do Acórdão recorrido.

Nele se explica, de facto, exuberante e criticamente, não só o envolvimento do Recorrente nos factos essenciais dados como provados, como outros sim o processo valorativo das provas que determinaram a fixação da mesma matéria de facto e a interpretação que as mesmas mereceram do Tribunal recorrido.

               Não existe no nosso sistema processual penal prova legal ou tarifada pelo que o Tribunal julga segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma – artº 127º do Código de Processo Penal.

“A livre convicção e apreciação da prova significa basicamente uma ausência de critério legal que predeterminem ou hierarquizem o valor de diversos meios de apreciação da prova.” (Ac. da Relação de Lisboa de 94/06/01, CJ XIX, 3, 157).

No caso dos autos, a convicção do Tribunal formou-se fundamentalmente nas declarações do arguido, o depoimento das testemunhas, os autos de apreensão, os documentos juntos, os relatórios periciais, o relatório de autópsia e o relatório social são mais do que suficientes para que não restem quaisquer dúvidas ao Tribunal sobre a autoria dos factos constantes da acusação e imputados ao arguido.

Com a prova produzida em audiência outra não podia ser a decisão do Tribunal que não a condenação.

C- DO PRINCIPIO "IN DUBIO PRO REO" 

1 - Tal principio, embora não tenha um acolhimento expresso na nossa legislação processual, vigora como principio geral do processo penal, identificando-se como o principio de "presunção de inocência" consignado no art.º 32º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e art.º 11º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

2 - Não houve qualquer violação do referido princípio.

3 - Na verdade, com a prova produzida, não teve o Tribunal qualquer dúvida quanto à condenação do recorrente.

4 - A prova produzida em audiência conduziu o Tribunal à certeza.

5 - Com a prova produzida em audiência o Tribunal não teve qualquer dúvida em concluir que o recorrente cometeu os crimes dos autos e como tal condená-lo.

6 - O resultado da prova é fixada pelo Tribunal, segundo a sua livre convicção.

7 - A livre convicção é um meio de descoberta da verdade (Cavaleiro Ferreira in C.P.P., vol. II, pág. 298).

8 - O Tribunal, com a prova produzida em audiência, deu como provados os factos que levaram, sem margem para dúvidas, à condenação do arguido.

9 - Apenas o recorrente se refere a dúvidas.

10 – As declarações do arguido, o depoimento das testemunhas, os autos de apreensão, os documentos juntos, os relatórios periciais, o relatório de autópsia e o relatório social são mais do que suficientes para que não restem quaisquer dúvidas ao Tribunal sobre a autoria dos factos constantes da acusação e imputados ao arguido.

D – DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Concordamos com o enquadramento jurídico feito no douto Acórdão e nada mais se nos oferece dizer.

E – DA MEDIDA DA PENA

1 - Dispõe o artº 40º do C. Penal, no seu nº 1, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

2 - Levanta-se a questão de saber qual a posição do legislador face à problemática geral dos fins das penas.

3 - Segundo Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 9ª Edição, pág. 291, “Com a inserção daquele dispositivo, estiveram no pensamento legislativo somente razões de ordem paradigmáticas”. Tendo-se tratado “tão só de dar ao intérprete e ao aplicador do direito criminal critérios de escolha e de medidas da pena...”

4 - Poder-se-á concluir que à luz do artº 40º do C. Penal, a clara distinção entre a culpa e prevenção é a chave para a compreensão da doutrina da medida da pena (Maurach Lipp, cits. Por Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências do Crime, Pág. 220).

5 - Ainda o mesmo Prof. In Ob. Cit. “As circunstâncias gerais do artº 72º do C. Penal não são senão elementos relevantes para a culpa e a prevenção e que por isso devem ser consideradas in actu, para efeito do artº 72º, nº 1. São factores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável”.

6 - Resta, pois saber qual o lugar a conferir à culpa e a prevenção na determinação da medida da pena.

7 - Sobre o problema se versou o Ac. da Relação de Coimbra de 17.1.96, in C.J. ano XXI , tomo I – pág. 38 e seguintes.

“I- A escolha da pena, nos termos do artº 71º do C. Penal  revisto, depende unicamente de consideração de prevenção geral e especial.

II- A medida da pena tem como primeira referência a culpa, funcionando depois, num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção.

III- Quanto à culpa, o facto ilícito praticado e prevalentemente decisivo, devendo, antes de tudo o mais, ser valorado em função do seu efeito externo (ataque ao objecto em particular, designadamente os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos).

IV- Quanto à prevenção, constitui um fim, relevando para a determinação da pena necessária, em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo, acabando por fornecer, em último termo, a medida da pena.

V- Havendo conflito entre a pena de culpa e a pena necessária, por as exigências de prevenção serem mais extensas do que a culpa, prevalece a medida desta, por força do artº 40º nº2 do C. Penal revisto”.

8- Conjugando o artº 72º com o artº 40º do C. Penal poder-se-á concluir, como o faz o Prof. Figueiredo Dias in Ob. Cit. Pág. 306 “que a acentuada diminuição  da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena“.

9- Neste sentido o  Ac. do S.T.J. de 12.3.97 , no Proc. 1057/96.

“I- A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente.”

II- A prevenção geral positiva ou de integração é a finalidade primordial a prosseguir, pelo que a prevenção especial positiva nunca pode pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

III- Por sua vez, porém, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva, também nunca pode pôr em causa a própria dignidade humana do agente, que o princípio da culpa justamente salvaguarda.

IV- Por isso, a pena jamais pode exceder a medida da culpa ou o máximo que a culpa do agente consente, independentemente de, assim, se conseguir ou não atingir o grau óptimo da protecção dos bens jurídicos.

V- Desta forma, o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social do agente é o que se define entre aquele mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e o máximo consentido pela sua culpa.”

10- Ora vejamos se a pena concretamente aplicada ao recorrente se mostra “excessiva”.

11- O arguido cometeu, como autor material em concurso real:

- 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artºs. 131º, nº 1 e 132º, nºs. 2, al. i), ambos do CP, na pena de 14 (catorze) anos de prisão;

- 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artº  86º, nº 1, al. c), por referência aos  artº 2º, nº 1, als. p), ae) e az), nº 3, als. p) e v), nº 5, als. p) e s), e artºs 3º, nºs 2 e 3 e 5º, todos da Lei 5/2006, de 23.02, na pena de 2 (dois) anos;

- E em cúmulo jurídico das aludidas penas na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

12- A intensidade dolosa, na modalidade de dolo directo, terá sido agravante, na medida em que se trata do tipo de dolo mais intenso das modalidades enunciadas no artº 14º do Código Penal.

13- Acresce o elevado grau de ilicitude do facto, considerando que o bem jurídico tutelado, a vida humana, é inviolável, nos termos do artº 24º, da Constituição da República Portuguesa e é o mais importante, na hierarquia dos

direitos fundamentais em qualquer Estado de Direito e, ainda, no caso vertente, a gravidade concreta que assumiu, atenta a qualificação jurídica da conduta arguido.

14- O arguido assumiu a autoria de parte dos factos. Todavia as declarações do arguido, não assumiram grande relevo para a descoberta da verdade, em face da prova carreada para os autos pelo MºPº.

15- A motivação subjacente ao processo de formação da resolução criminosa, a sua impulsividade, ainda assim, não neutraliza a intensidade do grau de culpa e o desvalor da conduta, em face da enorme desproporção da reacção do arguido, que culminou com a morte da vítima, porém também não pode deixar de ser valorada a actuação da vítima, que assumiu comportamentos que contribuíram e d emaneira decisiva para o culminar dos acontecimentos.

16- O Arguido tem elevado grau de impulsividade, o que torna difícil prever os seus comportamentos e poderão impedir uma adequada interiorização crítica das suas condutas.

17- Também em benefício do arguido, a sua modesta condição sócio-económica, tal como resultou provado, o facto de se encontrar inserido em família estável, dedicar-se ao trabalho, antes dos factos e, desde que ingressou no estabelecimento prisional, ter comportamento adequado e, ainda, a circunstância de ser tido, pelos seus familiares e amigos como uma pessoa trabalhadora, muito amigo dos enteados, cordato e boa pessoa.

18-  Como escreveu o Prof. Figueiredo Dias, In Estudos em Homenagem do Prof. Dr. Eduardo Correia, págs. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e ao seu sentimento de segurança face a violação da norma ocorrida.”

19 - É necessário que o quantum da pena aplicada seja suficiente para que a generalidade dos destinatários das normas violadas, face às hipotéticas e futuras situações idênticas às do caso sub júdice, sejam capazes de ser motivadas para o cumprimento das normas, funcionando a pena concretamente aplicada como factor dissuasor geral.

20- Ora, sopesando todos os elementos objectivos e subjectivos considerados pelo Acórdão recorrido, sem perder de vista o bem jurídico ofendido nos crimes da natureza dos autos, consideramos que a pena encontrada para punir a conduta do arguido se mostra equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas.     

EM CONCLUSÃO:

O douto acórdão recorrido não nos merece qualquer censura, pois bem ajuizou da prova produzida em audiência, fazendo correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente a pena, dando cumprimento ao disposto nos artºs. 40º e 71º, todos do Código Penal.

Deverá pois manter-se o douto acórdão. …”.
[6] Código de Processo Penal.
[7] Relativamente à fundamentação de facto, cf. a jurisprudência plasmada no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss., do qual citamos: “O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária contraditória ou violadora das regras da experiência comum ... .”.
Também neste sentido, ver Maria do Carmo Silva Dias, in “Particularidades da Prova em Processo Penal. Algumas Questões Ligadas à Prova Pericial”, Revista do CEJ, 2º Semestre de 2005, pp. 178 e ss., bem como a doutrina e a jurisprudência constitucional citadas. No mesmo sentido, cf. Sérgio Gonçalves Poças, in “Da sentença penal – Fundamentação de facto”, revista “Julgar”, n.º 3, Coimbra Editora, p. 21 e ss..
Ver ainda José I. M. Rainho, in “Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas”, Revista do CEJ, 1º Semestre de 2006, pp. 145 e ss. donde citamos: “Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. … a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.”.
Ver, por último, o acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/2007, in DR, 2ª Série, n.º 39, de 23/02/2007, que decidiu, além do mais, “Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não é sempre necessária menção específica na sentença do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa.”.
[8] Supremo Tribunal de Justiça.
[9]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[10] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”.

[11] Sobre o vício de omissão de pronúncia, veja-se, para além do mais, cf. a seguinte jurisprudência:

- Acórdão do STJ de 15/12/2005, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, proc. 05P2951, do qual citamos: “…Como é sabido, não se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos invocados pela parte em apoio da sua pretensão. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença. (cfr. Acs de 16-11-00, proc. n.º 2287/00-7, de 28-3-00, proc. n.º 126/00, de 14-2-02, proc. n.º 3732/01-5 e de 16-01-03, proc. n.º 3569/02-5, os dois últimos com o mesmo relator) …”.

Acórdão do STJ de 10/12/2009, relatado por Santos Cabral, in www.gde.mj.pt, proc. 22/07.0GACUB.E1.S1, do qual citamos: “…A afirmação genérica, vazia de qualquer argumentação substancial, traduz-se numa omissão de pronúncia sobre a questão concreta que era proposta. Na verdade, como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Setembro de 2008 (5) a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece.

Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas. Admitindo que a decisão se consubstancia num silogismo assente na conclusão inferida de duas premissas a omissão de pronuncia implica que uma daquelas premissas está incompleta – artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.

A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660, nº 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

Retomando ao Acórdão citado as questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se. Os problemas concretos que integram o thema decidendum sobre os quais o tribunal deve pronunciar-se e decidir, devem constituir questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cfr., v. g., os acórdãos do Supremo Tribunal, de 30/11/05, proc. 2237/05; de 21/12/05, proc. 4642/02 e de 27/04/06, proc. 1287/06).

A “pronúncia” cuja “omissão” determina a consequência prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c) CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido á cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas. …”.
- Acórdão do STJ de 14/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, proc. 09P0096, do qual citamos: “…Como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença; a pronúncia cuja omissão conduz a nulidade é referida ao concreto objecto submetido à cognição do Tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas - cfr. neste sentido, os acórdãos de 25-10-2006, processo n.º 2170/06-3ª; de 08-11-2006, processo n.º 967/06-3ª (com citação de Rodrigues Bastos, Notas …); de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3ª; de 25-01-2007, processo n.º 3943/06-5ª; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07-3ª; de 17-1-2008, processo n.º 607/07-5ª; de 06-03-2008, processo n.º 4634/07-5ª; de 26-03-2008, processo n.º 820/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 1132/08-3ª; de 03-07-2008, processo n.º 1312/08-5ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3ª; de 25-09-2008, processo n.º 1881/08-5ª; de 03-07-2008, processo n.º 1312/08-5ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3ª; de 08-10-2008, processo n.º 3068/08-3ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08-5ª; de 19-11-2008, processo n.º 3776/08-3ª; de 08-01-2009, processo n.º 3861/09-5ª; de 21-01-2009, processo n.º 111/09-3ª; de 12-03-2009, processo n.º 3781/08-3ª. … A omissão de pronúncia, vício sancionado pela alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, não pode confundir-se com incompletude de fundamentação, com incompleta abordagem, já não de meros argumentos, mas de parâmetros a ter em conta na análise global que se impõe. …”.

[12] Anteriormente subscrevemos o entendimento de que o conhecimento das nulidades da sentença, previstas no art.º 379º do CP, era oficioso, na esteira da jurisprudência largamente maioritária.
Neste sentido, cf. o ac. da RP de 21/01/2002, relatado por Ernesto Nascimento, in www.gde.mj.pt, processo 0846847, do qual citamos: “…Antes das alterações introduzidas pela Lei 59/98, não havia dúvidas de que as nulidades da sentença constantes das alíneas a) e b) (as únicas então existentes) do artigo 379º C P Penal, eram nulidades sanáveis e, portanto, dependentes de arguição. Nesta conformidade, de resto, sobre o caso particular da nulidade prevista na alínea a) do art. 379º C P Penal, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo art. 374º nº 2, do mesmo diploma, decidiu o STJ, pelo Assento de 6.5.1992, in DR-I Série-A, de 6.8.1992, com dois votos de vencido, que tal nulidade não era insanável, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119º C P Penal. Na mesma linha, pressupondo a necessidade de arguição, veio o Acórdão 1/94 do Plenário das secções criminais do STJ, in DR-I Série-A, de 11.2.1994, dispor apenas sobre a tempestividade dessa arguição, firmando jurisprudência no sentido de que as nulidades da sentença, previstas então nas alíneas a) e b) do artigo 379º C P Penal, poderiam ser ainda arguidas em motivação de recurso para o tribunal superior, à semelhança do que para o processo civil resulta da 2ª regra da 1ª parte do nº 3 do artigo 668º do C P Civil. No entanto, o enquadramento legal da questão sofreu modificação. Com a alteração introduzida através da Lei 59/98 de 25.8, no C P Penal, foi o artigo 379º foi reformulado, tendo-se aditando-se uma nova alínea, c) ao nº 1, bem como o nº 2, com a seguinte redacção: “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 414º, nº 4”. Se a nova alínea introduzida no nº. 1 do artigo 379º C P Penal, tem redacção semelhante à contida na alínea d) do nº 1 do artigo 668º C P Civil, já o novo nº. 2 do artigo 379º C P Penal corresponde a uma transposição parcial do nº 3 do art. 668º CPC e à adopção da doutrina contida no Acórdão 1/94, indo, porém, mais longe. Enquanto no regime do C P Civil, a arguição das nulidades pode ser feita em sede de motivação de recurso, no nº 2 do artigo 379º, impõe-se essa arguição nessa altura, “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”. A parte final desta expressão só pode significar o conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime previsto no processo civil, que diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes processuais, neste sentido cfr. Ac. STJ de 12.9.2007, relator Silva Flor, consultável no site da dgsi. No sentido de que a nulidade do alínea a) do nº. 1 do artigo 379º C P Penal é do conhecimento oficioso, decidiram, entre outros, os Acs STJ de 12.9.2007, relator Raul Borges e de 17.10.2007….”.
E o ac. da RP de 25/03/2009, relatado por Cravo Roxo, in www.gde.mj.pt, processo 0740063, do qual citamos: “…É aqui que a jurisprudência se tem dividido, entendendo uma parte que tais vícios não são de conhecimento oficioso e uma outra, não menos importante, que os considera passíveis de ser conhecidos em recurso, mesmo que não alegados. No sentido do conhecimento oficioso das nulidades da sentença, vejam-se os Ac. desta Relação, de 29.9.2994, processo nº 0442419, relatado por António Gama (dgsi.pt) e da Relação de Coimbra, de 24.2.2004, processo nº 2701/04, relatado por João Trindade, entre muitos outros, ainda inéditos (sendo mesmo hoje a posição maioritária no Supremo Tribunal de Justiça). E tem razão de ser tal conclusão, desde logo em sede de interpretação hermenêutica: a norma explicita, taxativamente, que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, argumento fundamental no sentido do seu conhecimento oficioso; de outra forma, o termo “conhecidas” não faria qualquer sentido, ao surgir depois do termo “arguidas”. Propendemos, decididamente, para o conhecimento oficioso das nulidades da sentença, previstas no citado Art. 379º do Código de Processo Penal. …”.

Vejam-se, as abundantes doutrina e jurisprudência citadas por Vinício Ribeiro, in “CPP – Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª ed., 2011, pp. 1074 e ss..

Reponderados os argumentos de cada um dos lados da contenda, passámos a entender que essas nulidades são sanáveis e, por isso, o seu conhecimento não é oficioso.

A questão encontra-se sobejamente tratada na doutrina e na jurisprudência, sendo que não temos novos argumentos a aduzir. Por isso, remetemos para a seguinte argumentação aduzida por Vinício Ribeiro, na obra e local supra referidos, que subscrevemos por inteiro: “…Em nossa modesta opinião, parece-nos que a razão assiste aos que defendem o carácter sanável de tal nulidade, não sendo, por isso, de conhecimento oficioso. Pelos motivos a seguir sumariamente avançados.

A nulidade de sentença não consta da lista das nulidades insanáveis, nem é, como tal, cominada em outra, ou outras, disposições legais (artigo 119.º) e, por isso, depende de arguição.

Atendendo ao princípio da tipicidade das nulidades (v. artigo 118.º), o legislador manifesta algumas cautelas relativamente às nulidades mais gravosas, que são as insanáveis. Assim, fora dos casos enumerados no cit. art. 119.°, a lei, sempre que está em causa tal tipo de nulidade, refere-o expressamente (fá-lo nos artigos 321.°. n.° 1 e 330º, n.º 1; embora a jurisprudência, não se ignora, defenda o conhecimento oficioso doutras nulidades – cfr., v g.. anotação n.° 6 ao artigo 283.° — consagradas em artigos dispersai pelo Código).

A reforma de 1998, que aditou a alínea c) do n.º 1 e o n.º 2 do presente normativo, parece-nos que quis (com aquele n.° 2) pôr o Código de acordo com o entendimento fixado no Ac. STJ 1/94, sumariado na secção de jurisprudência (e não também derrogar a doutrina emanada pelo Assento do STJ publicado no DR, 1 Série, de 6 de Agosto de 1992; doutra forma teria sido, certamente, mais explícito).

Tal reforma pretendeu resolver o problema do quando é que as nulidades de sentença poderiam ser arguidas e não o seu carácter sanável ou insanável. É que se fossem insanáveis, poderiam ser arguidas em qualquer altura do processo e, mesmo que não fossem arguidas, sempre deveriam «ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento». (corpo do artigo 119.º). Se fossem insanáveis, o legislador teria escolhido uma redacção diferente para o n.° 2 do presente artigo, não tendo que se preocupar com o serem arguidas ou conhecidas em recurso. Se fossem insanáveis, não se punha a questão do tempo (ressalvado o caso julgado, naturalmente - cfr. anotação n.° 1 ao artigo 119.º). Se o legislador se preocupou em estabelecer o regime (o quando) de arguição e/ou conhecimento das nulidades, isso significa que as mesmas são sanáveis, dado que as insanáveis podem ser oficiosamente conhecidas em qualquer fase do procedimento.

Sabe-se como era controverso o regime da arguição das nulidades de sentença anteriormente àquela reforma: para uns, a arguição tinha que ser feita de acordo com o constante do n.º 3 do artigo 120.°; para outros, a arguição ainda poderia ter lugar na motivação de recurso. O mencionado Ac. 1/94 resolveu a questão e o legislador de 1998 colocou a letra da lei de harmonia com o decidido em tal Acórdão.

Assim, sendo a decisão irrecorrível ou não sendo interposto recurso, as nulidades podem ser arguidas perante o tribunal a que no prazo geral (10 dias — artigo 105.º, n.° 1; para Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15ª ed., 2005, cit., pág. 752, aplica-se o artigo 309.º, n.º 2 — 8 dias); no caso de ser interposto recurso, as nulidades podem ser arguidas na própria motivação (neste caso ainda poderão ser supridas pelo tribunal recorrido desde que se verifique o condicionalismo do n.º 4 do artigo 414.º) e apreciadas pelo tribunal de recurso. Em qualquer caso, para serem conhecidas têm sempre que ser arguidas.

Não se invoca a circunstância de a revisão de 2007 não ter procedido a qualquer alteração ao presente normativo (embora o legislador tivesse conhecimento da polémico), dado que tal argumento é reversível: tanto pode ser apropriado pelos que defendem o conhecimento oficioso das nulidades da sentença, como pelos que defendem a posição contrária.

Por último, também nos parece ser de dar um especial relevo à posição assumida pelo Prof. Germano Marques da Silva (não nos esquecemos que se trata do presidente da comissão revisora - revisão de 1998 — do CPP: cfr. despacho 54/MJ/96, DR. 11 Série, de 27 de Março de 1996), em cujo Curso de Processo Penal, III vol., 2.• ed., 2000, cit., pág. 304 pode ler-se o seguinte:
As nulidades da sentença enumeradas no art. 379.º do sanáveis se não forem arguidas, mas estão sujeitas a regime especial de arguição pois só podem ser arguidas ou conhecidas em recurso interposto da sentença. …” .
[13] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[14] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[15] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado por Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[16] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[17] Citação publicada no jornal “Público” de 18//11/2014.
[18] Acórdão da RP de 06/10/2010, relatado por Eduarda Lobo, in www.gde.mj.pt, processo 463/09.9JELSB.P1.

[19] No mesmo sentido, cf. o acórdão da RG de 28/06/2004, relatado por Heitor Gonçalves, in www.gde.mj.pt, processo 575/04-1, do qual citamos: “… Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas por em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37). …”.

[20] Neste sentido, cf. o acórdão da RP de 10/05/2006, relatado por Paulo Valério, in www.gde.mj.pt, processo 0315948, do qual citamos: “… Como se diz no Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância». Ou, consoante se escreveu no igualmente douto Ac. Rel Coimbra de 3-11-2004 (recurso penal n.° 1417/04) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha » (Cfr. no mesmo sentido, entre outros: Ac de 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03, todos da Relação de Coimbra).

É que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. …”.
Ora, sendo os factos dados como provados na sentença conclusões lógicas da prova produzida produzidas em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de se aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ com o nº 05A2007). Na verdade, refere o mesmo acórdão, «a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ». Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe. “…”.

[21]A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).

Ou, como dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 356, “A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória (D. 48.19,5: Satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem dainnare).”.

[22] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.

O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.

A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).

Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.

Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.

E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.

Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.

Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».

A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.

Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.

Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).

Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.

Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.

O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.
[23] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 75.
[24] De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 77.
[25] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".

[26] Na doutrina, vejam-se as seguintes posições: “…Para Figueiredo Dias, o respeito pelo princípio da legalidade exige a comprovação de uma situação valorativamente análoga a um caso expressamente previsto no artigo 132.º. E não tem dúvidas de que «violador da legalidade se revelará qualquer procedimento que se traduza num apelo direto à cláusula da especial censurabilidade ou perversidade, sem passar pelo “crivo” dos exemplos-padrão» (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 52).

Na mesma linha, para Silva Dias (ob. cit. p. 25), «a compatibilização da abertura possibilitada pela expressão “entre outras” com o princípio da legalidade só é assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei, como disse, e se os exemplos das diversas alíneas puderem funcionar como padrão ou regra e não como exemplificação avulsa». Este autor sublinha que, por respeito às exigências de legalidade e de vinculação à lei, «ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondam à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão.»

Para Teresa Quintela de Brito (in Teresa Quintela de Brito e outros autores, Direito Penal-Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pg. 178) «a aceitação de outras circunstâncias agravantes, não expressamente previstas na lei, depende da possibilidade de vislumbrar, na nova situação, o grau de desvalor e a estrutura valorativa de algum dos exemplos-padrão. Obviamente, o juiz não pode apelar diretamente à cláusula geral do n.º 1 para afirmar um homicídio qualificado atípico. Não pode acrescentar novas alíneas ao n.º 2 do artigo 132.º. Só lhe é permitido identificar um homicídio qualificado atípico, por via de uma conclusão por analogia do caso em apreço com um dos exemplos-padrão da lei.»

No mesmo sentido, Teresa Serra escreve (cit., p. 123): «A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente está perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados n.º 2.»

De igual forma, Fernanda Palma e Rui Pereira (parecer junto aos autos, fls. 7163) afirmam claramente que «Respeitar o princípio da legalidade ao interpretar e aplicar o artigo 132.º do Código Penal implica que se dê por não escrita a expressão “nomeadamente”, constante do seu n.º 2. Na hipótese interpretativa mais ousada, poder-se-ia admitir a aceitação de casos de homicídio qualificado construídos, alínea a alínea, através de uma espécie de analogia legis, que parta da razão de ser da respetiva virtualidade qualificativa. Segundo esta orientação, poder-se-á questionar, por exemplo, se poderá ser punido como “parricida” alguém que mata a madrinha por quem foi criado e educado como filho. De todo o modo, a construção de “homicídios atípicos” numa lógica que se desprende das próprias alíneas é inequivocamente incompatível com a legalidade penal e, portanto, inconstitucional».

Neste quadro parece unânime o entendimento de que qualquer interpretação que tente fugir ou escapar das balizas acima indicadas não só ignora o sentido e a estrutura lógico-sistemática da técnica dos exemplos-padrão mobilizada pelo legislador neste âmbito, como viola de forma clara o princípio da legalidade em direito penal (artigo 29.º, n.º 1, da CRP). [ v. ainda Faria e Costa, parecer anexo aos autos a fls. 7686]

Nesta compreensão só podem punir-se por homicídio qualificado atípico as condutas que, embora não correspondendo ao teor expresso de qualquer dos exemplos-padrão, seja, todavia, possível, por via de interpretação extensiva (assente numa indiscutível comunicabilidade teleológico-axiológica), incluir no “tipo orientador” de ilícito (danosidade social/desvalor de ação) e de culpa de um dos exemplos-padrão. Só depois de uma prévia, e necessariamente positiva, resposta às exigências de um exemplo-padrão será admissível, num segundo momento, questionar a especial censurabilidade ou perversidade. …” (Do acórdão do TC n.º 852/2014, de 10/12/2014, referido na nota seguinte).
[27] Vejam-se, nesse sentido, os seguintes acórdãos:

- do STJ de 14/11/2002, relatado por Simas Santos, no proc. 02P3316, i www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “1 - Do n.º 1 do art. 132.º do C. Penal, que contem uma cláusula geral, resulta que o homicídio é qualificado, ou agravado, sempre que a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. É essa a matriz da agravação, por forma a que sem especial censurabilidade ou perversidade, ela não ocorre.

2 - Ao lado desse critério aferidor da qualificação assente na culpa e que recorta efectivamente o tipo incriminador, o legislador produz uma enumeração aberta, meramente exemplificativa pois, de indicadores ou sintomas de especial censurabilidade ou perversidade, de funcionamento não automático, como o inculca a expressão usada na lei "é susceptível" (1.ª parte do corpo do n.º 2), mas esses indicadores não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida real apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: "entre outras" no segmento final do corpo do n.º 2. …”;
- do STJ de 24/05/2007, relatado por Pereira Madeira, no proc. 07P1602, www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…I – É pacificamente aceite o bem fundado da doutrina e da jurisprudência que admitem a figura do homicídio qualificado atípico, tendo como verificado um crime agravado dessa natureza, não obstante, no caso, não se haver provado nenhuma das circunstâncias a que alude a enunciação exemplificativa do artigo 132.º, n.º 2, do Código Penal. II – Isto porque um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um critério razoavelmente seguro quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado, e, assim, com tais exigências, é posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico, e, assim, a ofensa ao princípio da tipicidade. III – Porém, importa ter sempre em conta que, em última análise, pode ver-se como alguma ousadia a possibilidade de o juiz criar homicídios qualificados [atípicos]...sobretudo na base da pirâmide normativa, onde actua o tribunal, confrontado com o caso concreto e sem a legitimação parlamentar em última instância, que tem o legislador penal. …”;
- do STJ de 18/03/2010, relatado por Souto de Moura, no proc. 1374/07.8PBCBR.C2.S1, www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…I - Para a abordagem da construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do art. 132.º do CP, importa ter presente que, para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor. II - É que, caso as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art. 132.º do CP fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do n.º 2 do art. 132.º do CP, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da acção). III- Como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu n.º 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no n.º 1, fica afastada a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. IV- A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, uniformemente, no sentido de que é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas no n.º 2 do art. 132.º do CP, se bem que valorativamente equivalentes, que revelem a especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, se deva ter logo por qualificado. V- O preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132.º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida. …”;
- do STJ de 30/10/2013, relatado por Pires da Graça, no proc. 40/11.4JAAVR.C2.S1, www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…XIII - Se as circunstâncias enumeradas no n.º 2 do art. 132. º do CP não agravam de modo automático o crime de homicídio, também não esgotam o elenco das possíveis situações agravadoras: pode não haver qualificação na presença delas, como pode ocorrer a qualificação mesmo sem se verificarem aquelas circunstâncias. …”.
Neste último acórdão, na nota 5, enumeram-se, ainda, em abono desta jurisprudência, “…entre muitos outros, os seguintes acórdãos do S.T.J.: de 27-5-2004, processo 04P1389, relatado pelo sr. conselheiro Pereira Madeira; de 17-1-2007, processo 06P3845, relatado pelo sr. conselheiro Armindo Monteiro; de 23-5-2007, processo 07P1495, relatado pelo sr. conselheiro Pires da Graça; de 23-10-2008, processo 08P2856, relatado pelo sr. conselheiro Santos Carvalho; de 18-3-2010, processo 1374/07.8PBCBR, relatado pelo sr. conselheiro Souto de Moura; de 14-10-2010, processo 494/09.9GDTVD, relatado pelo sr. conselheiro Manuel Braz; de 23-11-2011, processo 508/10.0JAFUN, relatado pelo sr. conselheiro Souto de Moura; de 25-10-2012, processo 525/10.0PBLRA, relatado pelo sr. conselheiro Manuel Braz.”.
[28] Tribunal Constitucional.
[29] Cf. acórdão n.º 852/2014, de 10/12/2014, relatado por João Caupers, que decidiu nos seguintes termos: “Julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa;…”. Contém um importante voto de vencida, de Maria Lúcia Amaral, por entender que a interpretação feita pelos tribunais judiciais está fora do controlo do TC.
[30] Neste sentido, cf. Ac. do STJ de 08/02/1984, in BMJ 334/258.
[31] Neste sentido cf. Ac. STJ de 04/07/1996, in CJSTJ, II, p. 222 e ss., e Ac. STJ de 05/01/1983, in BMJ 323/181, bem como Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 26, donde citamos: “Por outra palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a verificação do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador.”.
Ver ainda:
Acórdão do STJ de 18/02/2009, relatado por Arménio Sottomayor, in www.gde.mj.pt, processo 08P3775, de cujo sumário citamos: “I - Os exemplos-padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP prendem-se essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando se referem a um maior desvalor da conduta não é essa circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa. II - A densificação dos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade obtém-se através de circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e que são descritas como exemplo-padrão; a ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime: assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. …”.
[32] Retirado da fundamentação do acórdão do Tribunal Judicial de Penafiel, de 21/12/2011, prolatado no Processo n.º 1.721/09.8JAPRT.P1.
[33] Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial — Tomo 1”, pag. 32 e 33.
[34] Acórdão do STJ de 27/05/2010, relatado por Santos Cabral, in www.gde.mj.pt, processo 58/08.4JAGRD.C1.S1.
[35] O crimes de perigo comum abstractos são “… aqueles que ficam consumados com a simples produção de um perigo de lesão de um bem jurídico …”, sendo este perigo presumido por lei (Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Português”, II, Editorial Verbo, 2005, p. 202). No mesmo sentido, cf. Américo Taipa de Carvalho, in “Direito Penal – Parte Geral”, II, Publicações Universidade Católica, 2004, p. 99/100.
No sentido de que o crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo comum, cf. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, II, Coimbra Editora, 1999, p. 889.
Uma tal classificação resultava da própria inserção sistemática deste crime no CP, antes de dele ter sido autonomizado pela Lei 5/2006, de 23/02.
No mesmo sentido, cf. o acórdão da RE de 16/05/2012, relatado por Luís Teixeira, in JusNet 3590/2012 do qual citamos: “…O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas. …”.
[36] Lei 5/2006, de 23/02.

[37] No sentido do concurso efectivo, cf. o acórdão do STJ de 20/03/1996, relatado por Augusto Alves, in CJSTJ, I, p. 233, que decidiu existir concurso efectivo real entre o homicídio e a detenção de arma proibida, porque: “II -… em momento anterior ao seu uso, já a arguida havia colocado a arma na sua disponibilidade, já havia criado o perigo com essa arma de fogo, assim a detendo, independentemente do uso que posteriormente dela veio a fazer, sem que a punição pelo homicídio consuma esse crime de detenção.”.

Na doutrina, pronunciou-se neste sentido Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, II, Coimbra Editora, 1999, p. 901.

Em sentido oposto, cf. o acórdão da STJ de 23/03/2011, relatado por Manuel Braz, no proc. 361/10.3GBLLE, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Mas, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais - homicídio e uso de arma proibida -, não deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, mas antes aparente.

Vão nesse sentido os ensinamentos de Figueiredo Dias, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (...) de crimes», considera:

«A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou objectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (...) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015).

Como se viu, o arguido foi ao interior do anexo que lhe servia de habitação, pegou na espingarda, que ali se encontrava, não possuindo a necessária licença de uso e porte, trouxe-a para o exterior, apontou-a à vítima e disparou sobre ela, matando-a. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.

O autor citado aponta mesmo como exemplo de concurso aparente um caso como este: «Circunstâncias como, p. ex., a de se utilizar arma proibida (...) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma de concurso aparente» (ob. cit., página 1017). …”.
[38] In “A teoria do concurso em direito criminal”, Almedina, 1983, pp. 74/75 e 79.
[39] In “Direito Penal Português”, I, Verbo Editora, 2001, p. 339.
[40] Relatado por Henriques Gaspar, no processo 06P4079, in www.dgsi.pt.
[41] No mesmo sentido se pronunciaram, além doutros, os seguintes acórdãos:
- do STJ de 28/03/1995, relatado por Lopes Rocha, no processo 048613, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 20/09/2006, relatado por Henriques Gaspar, no processo 06P1942, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 27/05/2010, relatado por Henriques Gaspar, no processo 474/09.4PSLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.

[42] Neste caso existe jurisprudência fixada nesse sentido: cf. o assento 3/92, de 19/02/1992, relatado por Fernando Sequeira, com o seguinte teor: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.” e o acórdão 8/2000, relatado por Flores Ribeiro, que fixou a seguinte jurisprudência: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.”, com a seguinte fundamentação: “Ora, nem no Código Penal de 1982 nem no de 1995 existe qualquer disposição que ressalve o concurso da burla com a falsificação (enquanto meio de realização daquela) do regime geral estatuído no artigo 30.o: ‘O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de falsificação de documento (que não será tanto a fé pública dos documentos […] mas, antes, ‘a verdade intrínseca do documento enquanto tal’ (cf. F. Dias e Costa Andrade, ‘O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação’, Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, t. III, p. 23) ou ‘a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica’ (cf. Malinverni, Enciclopedia del Diritto, vol. XIII, pp. 632-633) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível [. . .] deve continuar a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento e o usa, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra (suposta, naturalmente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada um dos tipos), efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de burla.”.
[43] Nesse sentido, ver, por todos, os seguintes acórdãos:
- do STJ de 05/12/2007, relatado por Armindo Monteiro, no processo 07P3864, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “…IV -Este STJ, com geral uniformidade, firmou jurisprudência no sentido de que, sempre que a duração da privação de liberdade individual não exceda o que é necessário para a consumação do roubo, é de arredar o concurso real de infracções, reconduzindo a pluralidade à unidade sempre que tal privação se apresente como essencial (crime-meio) para alcance do fim (crime-fim), sendo o sequestro consumido pelo roubo, por via de uma relação de subsidiariedade – cf. Ac. de 16-11-2006, Proc. n.º 2546/06 - 5.ª, e Comentário Conimbricense do Código Penal, I, págs. 415-416. … VII - O crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158.º do CP, destina-se à protecção do bem jurídico liberdade de locomoção ou liberdade ambulatória. Trata-se de um crime de execução permanente, continuada, que se inicia com a privação da liberdade ambulatória e só cessa quando o ofendido alcança a liberdade de que foi privado. VIII - Este ilícito entra numa relação de concurso efectivo, real, com o crime de roubo quando a privação daquela liberdade se prolonga para além da medida do necessário à consumação do roubo, ganhando, neste caso, autonomia incriminatória, sustentada já por um outro desígnio criminoso, preenchendo um distinto tipo de violação de valores jurídicos.…”;
- do STJ de 12/02/2009, relatado por Arménio Sottomayor, no processo 09P0110, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…Segundo o art. 30º nº 1 do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”, o que significa que o critério decisivo da unidade ou pluralidade de infracções é dado pelo diverso número de valores jurídico-criminais negados. Conforme anota o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, pág. 136), “a concretização do que é um «tipo de crime» para efeito do concurso de crimes faz-se por referência ao critério da identidade do bem jurídico protegido pelo tipo, corrigido pelo critério da «conexão situacional» entre diversas realizações típicas homogéneas.” Todavia, sempre que determinada conduta preencha vários tipos legais de crime, tal não significa que o agente responda necessariamente pela prática de diversos crimes, pois há tipos legais de crime que se encontram numa relação entre si que implica que a aplicação de um/uns exclui a aplicação de outro(s), verificando-se, portanto, um concurso aparente de infracções, em que o agente é condenado por um único crime, de harmonia com o princípio da proibição da dupla valoração. A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, no crime de roubo, sempre que a violência se traduza numa privação da liberdade ambulatória, o que integraria um crime de sequestro, o agente não será punido por esse crime, se aquela privação de liberdade for utilizada como meio, e enquanto tal, para apropriação de determinado bem, existindo uma relação de consunção do sequestro pelo roubo (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 415 e II, pág. 177; tb Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 427). Consunção que opera sempre que os valores protegidos por determinadas normas criminais estão já contidos noutros tipos legais de crime, de modo que uma norma consome a protecção que outra concede, prevalecendo sobre ela e excluindo a sua aplicação. Todavia, nem sempre assim acontece com os crimes de roubo e de sequestro. Casos há em que o sequestro se prolonga muito para além do tempo de violação da liberdade ambulatória necessário para que o agente, através da violência, se aproprie ou faça com que lhe seja entregue determinado bem, verificando-se, então, nesse caso a existência de um concurso real de infracções. …”.
[44] Nesse sentido se pronunciaram, além doutros, os já citados acórdãos:
- do STJ de 28/03/1995, relatado por Lopes Rocha, no processo 048613, in www.dgsi.pt;
- do STJ de 27/05/2010, relatado por Henriques Gaspar, no processo 474/09.4PSLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[45] No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STJ de 13/03/1985, relatado por José Luís Pereira, no processo 037694, in www.dgsi.pt.
[46] Neste sentido, cf. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, II, Coimbra Editora, 1999, p. 891.
[47] Embora a Arg., nas conclusões do seu recurso, pareça referir-se somente à pena única, entenderemos que impugnou também as parcelares, por ser um sentido ainda abarcado pelo texto das mesmas e por ser o entendimento que melhor acautela os seus direitos.

[48] A este respeito, porque sintetiza e expõe de forma exemplar a doutrina e a jurisprudência dominantes quanto à determinação das medidas das penas, citamos o Ac. do STJ de 09/12/1998, relatado por Leonardo Dias, in BMJ 482/77: “Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre e tanto quanto for possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa – a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.

A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda, realiza, eficazmente, aquela protecção.

Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.

[Poderia objectar-se que esta concepção abre, perigosamente, caminho ao terror penal. Uma tal objecção, porém, ignoraria, para além do papel decisivo reservado à culpa, que, do que se trata, é do direito penal de um estado de direito social e democrático, onde quer a limitação do jus puniendi estatal, por efeito da missão de exclusiva protecção de bens jurídicos, àquele atribuída (a determinação do conceito material de bem jurídico capaz de se opor à vocação totalitária do Estado continua sendo uma das preocupações prioritárias da doutrina; entre nós Figueiredo Dias – que, como outros prestigiados autores, entende que na delimitação dos bens jurídicos carecidos de tutela penal haverá que tomar-se, como referência, a própria Lei Fundamental – propõe a seguinte definição: «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», cfr. «Os novos rumos da política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 43º, 1983, pag. 15) e os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer, da pena, uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal, acabe dirigida contra a sociedade. Depois, prevenção geral, no Estado de que falamos, não é a prevenção estritamente negativa ou de pura intimidação. Um direito penal democrático que, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, tem de, pela mesma razão, colocar a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Assim, subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.]
Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura geral – a moldura penal aplicável ao caso concreto («moldura de prevenção») há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.”.
Quanto à determinação da medida da pena, cf. também o Ac. do STJ de 09/03/2006, relatado por Arménio Sottomayor, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss..

Ver ainda o Ac. do STJ de 29/05/2008, processo 08P1145, in www.dgsi.pt, relatado por Souto de Moura, do qual citamos: “ … É hoje entendimento uniforme deste S.T.J., bem como da doutrina, que a escolha e medida da pena constituem tarefas cuja sindicabilidade se tem que assegurar, o que reclama que o julgador tenha em conta nessas tarefas a natureza, a gravidade e a forma de execução do crime, optando por uma das reacções penais legalmente previstas, numa aplicação do direito autêntica, e não num exercício do que possa ser apelidado, simplesmente, de “arte de julgar”. Tal não impede que, em sede de recurso de revista para este S.T.J., a controlabilidade da determinação da pena deva sofrer limites. Assim, podem ser apreciadas “a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais” (…) “E o mesmo entendimento deve ser estendido à valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Já tem considerado, por outro lado, este Supremo Tribunal de Justiça e a Doutrina que a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, não caberia no controlo proporcionado pelo recurso de revista, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada” (do Ac. deste S.T.J. e 5ª Secção, de 13/12/07, Pº 3292/07, relatado pelo Cons. Simas Santos. Cfr. também Figueiredo Dias in “Direito penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 197). Importa então recordar os critérios a que deve obedecer a determinação da pena concreta. Assinale-se que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no art.º 40º do C. P., nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição “qua tale” da culpa. Do mesmo modo, a chamada expiação da culpa ficará remetida para a condição de consequência positiva, quando tiver lugar, mas não de finalidade primária da pena. No pressuposto de que por expiação se entende a compreensão da ilicitude, e aceitação da pena que cumpre, pelo arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Assim, a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. Quando pois o art.º 71º do C. P. nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art.º 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” (Cfr. Idem pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir. O nº 2 do art.º 71º do C. P. manda atender, na determinação concreta da pena, “ a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime. …”.
[49] A este propósito escreve Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, págs. 290 a 292: “…§ 420 Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á finalmente da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.°-1, um critério especial: «na determinação concreta da pena [do concurso] serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 78.°-1, 2.a parte).
A existência deste critério especial obriga logo (circunstância de que a nossa jurisprudência não parece dar-se conta) a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indis­pensável conexão entre o disposto nos arts. 78.°-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo — da «arte» do juiz uma vez mais — ou puramente mecânico e portanto arbitrário. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72.° (tanto mais quanto os factores por este enumerados podem servir de «guia» para a medida da pena do concurso, sem violação da proibição de dupla valoração: cf. infra § 422), nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável.
§ 421 Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade — unitária — do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (…).

§ 422 A doutrina alemã discute muito a questão de saber se factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição de dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta (…).Em princípio impõe-se uma resposta negativa; mas deve notar-se que aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração (…). …”.
[50] E, como se disse no acórdão do STJ de 02/04/2009, relatado por Simas Santos, in www.gde.mj.pt, Processo 09P0487: “…Quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, havendo que ter em conta na ponderação da medida de tal pena, e em conjunto, os factos e a personalidade do arguido – art. 77.º, n.º 1 do C. Penal.
E se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes da respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis aquelas regras, mesmo no caso de todos os crimes terem sido objecto, separadamente, de condenações transitadas em julgado – art. 78.º do C. Penal.
A pena única é determinada atendendo à soma das penas parcelares que integram o concurso, atento o princípio de cumulação a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico sem esquecer, no entanto, que o nosso sistema é um sistema de pena unitária em que o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares (numa concessão minimalista ao princípio da exasperação ou agravação - a punição do concurso correrá em função da moldura penal prevista para o crime mais grave, mas devendo a pena concreta ser agravada por força da pluralidade de crimes), sem que possa ultrapassar a soma das penas concretamente que seriam de aplicar aos crimes singulares.
Frequentemente, no escopo de obstar a disparidades injustificadas da medida da pena, essa “agravação” da pena mais grave é obtida pela adição de uma proporção do remanescente das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 e 1/5. …”.
[51] Entendemos que, nesta matéria, tem plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência exposta, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Ac. do mesmo Tribunal de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, que passamos a citar: “… A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de 09-11-2000, processo nº 2693/00-5ª; de 23-11-2000, processo nº 2766/00 - 5ª; de 30-11-2000, processo nº 2808/00 - 5ª; de 28-06-2001, processos nºs 1674/01-5ª, 1169/01-5ª e 1552/01-5ª; de 30-08-2001, processo nº 2806/01 - 5ª; de 15-11-2001, processo nº 2622/01 - 5ª; de 06-12-2001, processo nº 3340/01 - 5ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5ª; de 09-05-2002, processo nº 628/02-5ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo nº 585/02 - 5ª; de 23-05-2002, processo nº 1205/02 - 5ª; de 26-09-2002, processo nº 2360/02 - 5ª; de 14-11-2002, processo nº 3316/02 - 5ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo nº 3399/03 - 5ª; de 04-03-2004, processo nº 456/04 - 5ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo nº 3182/04 - 5ª; de 23-06-2005, processo nº 2047/05 -5ª; de 12-07-2005, processo nº 2521/05 - 5ª; de 03-11-2005, processo nº 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 - 3ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 - 3ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 - 5ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 - 5ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 - 5ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 - 5ª; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 15-07-2008, processo n.º 818/08 - 5.ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª … .”.

No mesmo sentido, cf. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197, e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis: “A doutrina (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 255) mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, e a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. A questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”.
[52] Neste sentido, ver ainda o acórdão de RP de 02/10/2013, relatado por Joaquim Gomes, no proc. 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt, cujo sumário citamos: “O recurso dirigido à medida da pena visa o controlo da (des)proporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, e não a concretização do quantum exato da pena aplicada.”.