Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8205/2002-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: LEGITIMIDADE PARA RECORRER
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Por falta de legitimidade, não deve ser apreciado o recurso da ré referente à parte da decisão recorrida afectada por omissão de pronúncia quanto a um pedido formulado pelo autor.
A traditio ocorrida no âmbito do contrato-promessa de compra e venda determina, por regra, uma situação de mera detenção.
Tal não obsta a que seja considerado verdadeiro possuidor o promitente-comprador que, tendo antecipado a totalidade do preço, passou a agir em relação ao imóvel como seu verdadeiro dono e que, assim, introduziu no imóvel profundas alterações, arrendando-o posteriormente.
O facto de o cessionário do contrato-promessa ter deduzido reclamação de créditos no processo de falência da promitente-vendedora não lhe retira a qualidade de possuidor que adquiriu do cedente, nem interrompe o prazo de prescrição necessário à aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Decisão Texto Integral: Apelação 8205-02/7ª
I – A
intentou acção declarativa com processo sumário contra
MASSA FALIDA DE B Ldª,
e
CREDORES DA MASSA FALIDA,
pretendendo que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre uma fracção de um prédio, adquirido por usucapião, e que seja ordenado o registo da aquisição e o cancelamento dos registos de penhoras e de hipotecas que sobre o mesmo pendem.
Alega para tanto que a B, Ldª, em 13-2-79, celebrou com C um contrato-promessa de compra e venda da referida fracção, tendo ficado acordado entre ambos que este passaria a ocupá-la como se fosse sua, tendo pago à promitente vendedora a totalidade do preço acordado.
O referido C cedeu ao A. a sua posição contratual, mas a escritura pública de compra e venda não chegou a realizar-se, por recusa do administrador da massa falida.
O A., por si e através do cedente da posição contratual no contrato-promessa de compra e venda, exerce sobre a fracção uma posse conducente à usucapião.
Contestou D, na sua qualidade de credora hipotecária, com garantia sobre a fracção em causa, pedindo a improcedência da acção.
Saneado e condensado o processo, efectuou-se o julgamento, após o que foi proferida sentença que considerou procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade adquirido por usucapião.
Apelou D e concluiu que:

a) O A. peticionou reconhecimento do direito de propriedade da referida fracção bem como cancelamento das hipotecas constituídas a favor de D que incidem sobre a mesma.
b) Assim, diferentemente do que vem dito na sentença, deveria ter também conhecido expressamente do pedido formulado pelo A. quanto às hipotecas que oneram a fracção em causa, dada a matéria de facto dada como assente, já que inexiste qualquer prejudicialidade no seu conhecimento ainda que venha reconhecido ao A. o direito de propriedade por usucapião.
c) Sendo a usucapião um modo originário de aquisição do direito de propriedade há que clarificar devidamente se, em consequência do seu eventual reconhecimento, se devem considerar ou não extintos quaisquer ónus que incidam sobre o imóvel em questão, e nomeadamente as hipoteca constituídas a favor da D.
d)Tanto mais que a posse fundadora da usucapião que pretensamente vem reconhecida ao A emerge do contrato promessa de compra e venda celebrado em 13-3-79 e as hipotecas encontram-se registadas em 26-9-77 e 22-3-78.
e)Referindo-se que a posse retroage à data do seu início, nos termos da al. c) do art. 1317º do CC, o que levaria a crer, portanto, que se mantêm as referidas hipotecas não se percebe que, depois, venha a concluir que não cabe no âmbito deste processo conhecer esta questão.
f) Em suma, em face do expresso pedido formulado pelo A e face à contestação apresentada pela credora hipotecária, aqui recorrente, a douta sentença recorrida deveria ter-se pronunciado expressamente quanto à subsistência ou não das referidas hipotecas.
g) Não o tendo feito a douta sentença recorrida violou o disposto na primeira parte do n° 2 do art. 660º do CPC, sendo nesta parte, nula nos termos da al. d) do nº 1 do art. 668º do mesmo diploma legal.
h)Por outro lado, a posse invocada pelo A. vem fundada no contrato-promessa de compra e venda do referido bem celebrado entre a falida B e o anterior promitente comprador, o C, que cedeu a sua posição contratual ao A.
i) A usucapião sendo uma forma de aquisição originária do direito de propriedade só pode ser invocada por alguém que não tenha qualquer outro titulo ou forma de aquisição da propriedade.
j) promitente comprador ou executa o contrato promessa celebrado e obtém esse efeito, ou então exige a indemnização a que tem direito por incumprimento definitivo deste mesmo contrato.
k) A tradição da coisa na sequência e em razão do contrato-promessa não confere a posse mas sim a mera detenção e, por isso, é insusceptível de fundar uma aquisição por usucapião, uma vez que o possuidor sabe que não possui titulo translativo eficaz, e nessa medida nunca podendo conduzir a aquisição de domínio.
l) A posse para efeitos de aquisição do direito de propriedade por usucapião é a posse strictu sensu e não a posse precária ou detenção - é o que resulta do disposto no art.1290° do C.C. que expressamente refere que os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião o direito possuído, excepto achando-se invertido o titulo da posse.
m) Não obstante ter obtido a entrega do bem antes do negócio translativo, o A. pode ter adquirido o corpus possessório, mas não assume o animus possidendi, ficando assim na situação de mero detentor.
n) Assim sendo, a posse invocada nos autos é necessariamente uma posse precária que não é passível de fundar uma aquisição de domínio do bem.
o) Além do mais, como já se referiu, tendo o A. reclamado no âmbito da falência da promitente vendedora o crédito respeitante à indemnização devida por incumprimento do contrato promessa de compra e venda e o reconhecimento do seu direito de retenção reconhecido por sentença transitada em julgado no âmbito do processo n° 626/99 que correu termos na Ia secção da 14ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, parece evidente que, tendo embora a detenção da coisa, deixou de ter o "animus rem sibi habendi"
p) O A. não pode reclamar na falência um seu crédito emergente deste mesmo contrato promessa, invocando aí o direito de retenção que lhe foi reconhecido judicialmente e, depois, nesta sede, ver reconhecido um pretenso direito de propriedade sobre o mesmo bem com base na usucapião fundada nesse mesmo contrato-promessa.
q) Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 1287º e 1290º, ambos do CC.

Houve contra-alegações.

II – Factos provados:

1.A falida B celebrou, no dia 13-2-79, com C, um contrato-promessa de compra e venda pelo qual declarou prometer vender-lhe, ou a quem este viesse a designar, e o C declarou prometer comprar, a loja designada por fracção D, com área aproximada de 200 m2, que faz parte do prédio denominado Torre  Europa 2, situado no n° 7 da Av. General Humberto delgado, na Costa da Caparica, Almada, descrito na CRP de Almada sob o n° 22405 a fls., 13 do livro B-64, pelo preço de 2.500.000$00 – A);
2. Nos termos do contrato, o pagamento do preço seria feito através da entrega de 550.000$00 a  título de sinal e princípio de pagamento, e para liquidação do saldo em dívida da entrega de uma letra de 250.000$00 com vencimento em 15-4-79, de uma de 200.000$00 com vencimento em 15-6-79, e outra de 1.500.000$00, com vencimento em 25-8-79;
3. O referido prédio foi adquirido pela 1ª R. à Câmara Municipal de Almada por arrematação em hasta pública e em seu nome registada pela inscrição 40734 de 17-12-73 – B);
4. Sobre a fracção referida em 1. incidem duas penhoras a favor da Fazenda Nacional, com as apresentações 14/281085 e 49/920220 – C);
5. Sobre a fracção incidem duas hipotecas registadas em 26-9-77 e 22-3-78 a favor de D – D);
6. Pelo contrato-promessa de compra e venda referido em 1. ficou acordado que o promitente comprador poderia ocupar imediatamente a fracção objecto daquele contrato – E);
7. Aquando da celebração do contrato-promessa referido em 1., em 13-2-79, a 1ª R. entregou ao promitente-comprador C a loja objecto daquela contrato para que a ocupasse e utilizasse como se sua fosse, o  qual passou a ocupar desde esse dia – 1º e 2º;
8. Na sequência da entrega referida na resposta ao quesito 1º o promitente-comprador começou, desde logo, a instalar um bar na sobredita loja, fazendo diversas alterações internas na mesma, que explorou em nome próprio, com o perfeito conhecimento dos administradores da B – 3º;
9.Desde logo mudou a porta da entrada e colocou fechadura, colocou um chão de mosaicos, tecto falso e revestimento de madeira nas paredes – 4º;
10.Desde 13-2-79 nunca houve qualquer oposição o constrangimento da B – 5º;
11. A ocupação da loja em referência pelo A., nela instalando e explorando um estabelecimento de restaurante em nome próprio, foi feita à vista de toda a gente, com perfeito conhecimento da B, sem a sua oposição ou de quem quer que fosse – 8º.
12. Desde data não apurada, mas posterior a meados de 1983 e até 30-1-88, o promitente-comprador C proporcionou ao A., mediante o pagamento de renda, a loja referida em 1., para que este ali instalasse um restaurante com o esclarecimento de que foi o A. quem realizou as obras de adaptação da mesma ao fim pretendido – 6º;
13. Em 30-1-88 o promitente comprador C cedeu a sua posição no contrato promessa ao A., nos termos que constam de fls. 55 e segs. - F);
14. O A., ao adquirir a posição do promitente-comprador, nos termos referidos em 13., agiu com a convicção de que acabaria por realizar o contrato prometido com a B – 7º;
15. Por notificação judicial avulsa de 6-5-92 C e o A. notificaram a Massa Falida, na pessoa do Administrador da Falência, do conteúdo do doc. junto a fls. 56 e 57, ou seja, além do mais, de que o primeiro cedera a segundo a sua posição contratual no contrato-promessa de compra e venda e de que “uma vez que a requerida ou o seu representante não marcou a escritura pública como previsto no contrato-promessa, desde já fica notificada para a realização da mesma e que terá lugar no dia 27 de Maio de 1992, pelas 15 horas, no 12º Cartório Notarial de Lisboa, ... devendo ali comparecer e outorgar a referida escritura a favor do 2º requerente, sob pena de não o fazendo ficar definitivamente em situação de incumprimento ...”.

III – Decidindo:
1. A apelação suscita duas questões.
Por um lado, a omissão de pronúncia quanto ao pedido complementar de declaração de cancelamento dos registos de hipoteca e de penhora que o A. formulara.  
Por outro, a verificação ou não dos requisitos legais da usucapião, maxime, se o A. e aquele com quem este celebrou a cedência da posição contratual relativa ao contrato-promessa de compra e venda são possuidores, em sentido próprio, de modo a poderem invocar, pelo decurso do prazo, a aquisição de um bem imóvel por usucapião.
2. Quanto à omissão de pronúncia:
2.1. Na petição inicial o A. formulou o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade adquirido por via da usucapião, invocando a sua qualidade de possuidor da fracção que fora objecto de contrato-promessa de compra e venda, mas em relação à qual foi exercida a posse, agindo o A. e o antepossuidor como seus verdadeiros proprietários. Porque, no entanto, se encontram averbados registos de penhora e de hipoteca sobre a mesma fracção, pediu ainda o A. que se declarasse o seu cancelamento no registo predial.
Sobre esta questão refere-se na sentença que tal matéria deveria ser apreciada no âmbito dos processos de execução a que respeitam as invocadas as garantias reais, o que se reconduz, na prática, a uma verdadeira omissão de pronúncia, pois ficou por decidir, no processo onde a questão foi expressa e inequivocamente suscitada, uma questão jurídica que interessava à resolução do conflito de interesses que ao Tribunal competia dirimir, nos termos do art. 660º, nº 2, do CPC.
2.2. Todavia, da sentença apenas recorreu D, na sua qualidade de credora hipotecária, com crédito reclamado na falência da B. Malgrado o teor da decisão quanto ao questionado cancelamento do registo das hipotecas e das penhoras, o A., verdadeiro interessado na procedência de tal pretensão, absteve-se de deduzir recurso.
Teoricamente, confrontado com tal sentença, a sua anulação poderia ser veiculada por 3 vias possíveis.
Para além da interposição de recurso autónomo da sentença, nos termos do art. 680º, nº 1, do CPC, atenta a parte em que o A. acabou por decair, poderia ainda, depois notificado da interposição do recurso da D, ter recorrido subordinadamente, ao abrigo do disposto no art. 682º.  Poderia ainda ter aproveitado as contra-alegações para, nos termos do art. 684º-A, nº 2, ampliar o objecto do recurso.
Nada disso foi feito.
Revelam os autos que o A., tendo visto acolhida a sua pretensão no sentido da declaração da propriedade, se alheou da parte restante do que peticionara. E que a D, que sempre se opôs ao acolhimento da referida pretensão, com efeitos no registo predial e na manutenção das hipotecas, acaba por sair, ainda que sem pronúncia expressa, favorecida pela decisão.

2.3. Ora, estas circunstâncias não são inócuas na fase processual em que nos encontramos. Os poderes do Tribunal da Relação não são ilimitados. A reacção das partes à sentença e a identificação dos pressupostos processuais que devem estar presentes em sede de recursos delimitam o campo de actuação deste Tribunal.
Salvo situações, claramente excepcionais, em que à Relação são conferidos poderes oficiosos, na generalidade das situações a reapreciação da decisão do Tribunal a quo não dispensa a atendibilidade das regras sobre a legitimidade do recorrente e sobre o objecto do recurso.
Antes que este Tribunal possa debruçar-se sobre a razoabilidade do entendimento assumido na sentença apelada, verifica-se que falta à apelante D legitimidade formal para solicitar a apreciação de tal questão, com a pretendida modificação da sentença no sentido de ficar expressa, desde logo, a declaração de improcedência do referido pedido complementar.
Na parte em que houve omissão de decisão quem poderia recorrer era apenas o A. que, perante a sentença proferida, ficou sem poder invocar, contra a D ou quaisquer outros credores, uma pronúncia judicial expressa.
Deste modo, face à ausência do pressuposto processual de legitimidade no que concerne ao pedido complementar e uma vez que o recorrido também não aproveitou as contra-alegações para ampliar o objecto do recurso, está este Tribunal sem condições processuais para se pronunciar, afirmativa ou negativamente, sobre a questão.[1]
Não se ignora que a opção assumida na sentença, descartando uma pronúncia inequívoca sobre a questão e remetendo as partes para cada um dos processos em que são invocadas as penhoras ou as hipotecas, poderá ser causa de dispensáveis perturbações.
Porém, essa constatação é insuficiente, à face da lei adjectiva, para superar a inequívoca falta do pressuposto processual da legitimidade activa em sede de recursos.

3. Quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade adquirido por usucapião:
3.1. Pretende a recorrente que o A. não tem a qualidade de verdadeiro possuidor, razão pela qual não lhe pode ser reconhecida a aquisição, por via da usucapião, do direito de propriedade sobre a fracção.
A tal se opôs o recorrido.

Vejamos.
Resulta da matéria de facto provada essencialmente o seguinte:

- No dia 13-2-79, a B (falida) e C outorgaram um contrato-promessa de compra e venda da fracção dos autos, pelo preço de 2.500.000$00;
- Ficou logo acordado que o promitente comprador poderia ocupar imediatamente a fracção, a qual lhe foi entregue nessa data, passando-a a ocupar e a utilizar como se sua fosse;
- O promitente-comprador fez diversas alterações internas na fracção, mudou a porta da entrada, colocou uma outra fechadura, pôs chão de mosaicos, um tecto falso e revestimento de madeira nas paredes, instalando aí um bar que explorou em nome próprio, tudo com o perfeito conhecimento e sem qualquer oposição da B;
- Tudo isso foi feito à vista de toda a gente, sem a sua oposição ou de quem quer que fosse.
- Desde uma data posterior a meados de 1983 e até 30-1-1988, o promitente-comprador cedeu ao A., mediante o pagamento de renda, a loja referida, para que este ali instalasse um restaurante, tendo o cessionário realizado obras de adaptação da mesma ao fim pretendido;
- Em 30-1-88 o promitente comprador cedeu a sua posição no contrato promessa ao A., agindo este com a convicção de que acabaria por realizar o contrato prometido com a B.
- Em 6-5-92 o C e o A. solicitaram a notificação da Massa Falida, na pessoa do Administrador da Falência, para outorgar a escritura pública de compra e venda, o que não se concretizou.

3.2. Atenta a delimitação do objecto do recurso, fruto das alegações da apelante, apenas se mostra necessário aferir se a situação dos autos se reconduz a uma verdadeira situação de posse conducente à usucapião, ou se, ao invés, o A. e o anterior ocupante se apresentam apenas como meros detentores.
Dependendo a aquisição da propriedade da existência de uma posse duradoura, por período variável (15 anos no caso de posse de boa fé), não foi questionado o período durante o qual perdurou a situação de facto, nem sequer o facto de o A. gozar de boa fé.
Diz a apelante que o facto de a ocupação ter subjacente um contrato-promessa, ainda que com tradição da coisa, e a posterior actuação dos promitentes compradores (do primitivo e do A., cessionário da respectiva posição jurídica) impedem que se considerem possuidores.

3.3. A matéria de facto apurada não suscita qualquer dúvida quanto à confirmação do decidido.
Sendo a posse o poder de facto que se manifesta quando alguém age em relação a uma coisa como seu proprietário (ou como titular de outro direito real de gozo), os poderes efectivamente exercidos e as circunstâncias de ordem objectiva e subjectiva que rodearam a situação, com implicações no A., no seu antecessor e na B, promitente vendedora, reconduzem-nos inequivocamente a uma situação de verdadeira posse, com características suficientes para, pelo decurso do tempo necessário, converter uma situação de facto (juridicamente protegida) num verdadeiro direito de propriedade.
Não se questiona obviamente que a situação de posse, para tais efeitos, impõe, para além da existência do corpus, o animus provado ou presumido. Deste modo, apenas pode considerar-se possuidor, em termos de propriedade, quem, em relação a uma coisa material, pratica os poderes de que normalmente goza o verdadeiro proprietário, agindo como se o fosse.
Também é verdade que a situação foi despoletada a partir da outorga de um contrato-promessa de compra e venda, isto é, o início da ocupação deu-se no preciso momento em que a B e o C assumiram o compromisso de vender e de comprar a fracção.
E não pode escamotear-se que a entrada do promitente comprador nas instalações teve a cobertura de uma acordo complementar através do qual a promitente vendedora consentiu na imediata entrada da contraparte no gozo e fruição. Esse acordo complementar traduz, em regra, um contrato atípico de tradittio que, por si só, é insusceptível de transmitir a posse.
De onde se extrai que, na eventualidade da ausência de prova de outros factos complementares, a mera detenção da coisa prometida, ao abrigo de um contrato-promessa de compra e venda, seria insusceptível de atribuir ao promitente comprador os atributos do verdadeiro possuidor. Antes ele se assumiria, em geral, como mero detentor ou possuidor em nome de outrem, qualidade que se compatibilizaria com o previsível desenvolvimento do negócio preparatório, a desembocar, num futuro mais ou menos afastado, na celebração da escritura pública de compra e venda e na simultânea transferência do direito de propriedade.
Sem contar, ainda, com outras circunstâncias adicionais que resultam da matéria de facto provada, podemos asseverar que a modificação da situação, passando de mero detentor para verdadeiro possuidor,[2] implica uma actuação positiva do promitente comprador, traduzida na inversão do título de posse ou, do lado do promitente vendedor, de uma situação de abandono dos seus poderes de proprietário, consentindo que sejam exercidos pelo promitente comprador.

3.4. Porém, a vida nem sempre se reduz aos estritos quadros sintetizados. Circunstâncias de diversa ordem podem confluir para atribuir, desde logo, ao promitente comprador a qualidade de verdadeiro possuidor.
A liberdade de actuação das partes, num campo onde predominam os interesses privados, pode traduzir consequências que, logo em sede de contrato-promessa de compra e venda, se reconduzem à aquisição da posse por parte do promitente comprador, como reflexo da perda da qualidade de possuidor por parte do promitente vendedor.
Basta que este abdique dos poderes juridicamente resultantes da sua qualidade de proprietário, em benefício do promitente comprador que, a partir de então, passa a agir como verdadeiro titular.[3] O pagamento da totalidade ou da maior parte do preço ou a verificação de circunstâncias que dificultam a concretização da escritura de compra e venda, apesar de esta ser desejada por ambas as partes, pode redundar precisamente na atribuição ao promitente comprador da qualidade de possuidor, paulatinamente exteriorizada através da prática dos actos que, em tese, incumbiriam apenas ao proprietário.
Tal como decorre do direito positivo, não se duvida que uma tal forma de tutela possa ser legitimamente invocada pelo promitente comprador que exerça poderes de facto de modo correspondente ao direito de propriedade (v. g. em situações em que ainda antes da celebração da escritura tenha havido transferência efectiva da posse ou em que o promitente comprador tenha passado a actuar como um verdadeiro proprietário).
A par dessa exteriorização, o facto de o proprietário, de forma expressa ou tácita, aceitar a situação, abstendo-se de deduzir qualquer oposição e aceitando a forma de actuação publicamente assumida pela contraparte, apenas vêm reforçar a ideia que, em tais circunstâncias, deixamos de estar face a um mero detentor ou possuidor precário, tornando-se mais apropriada a qualificação de verdadeiro possuidor, com poderes suficientes para, decorrido o tempo legalmente necessário, invocar a aquisição do direito de propriedade por via da usucapião ou prescrição aquisitiva.
Trata-se, aliás, de uma situação que como tal foi enquadrada pelo Ac. do STJ, de 14-3-2000, no BMJ 495º/310.

3.5. É esta a situação que vem retratada na matéria de facto provada.
Efectivamente, sem que nada a obrigasse, a B concedeu ao promitente comprador a possibilidade de começar a fruir, desde logo, o espaço correspondente à fracção, como se fosse o seu verdadeiro dono. Para tanto terá sido importante o facto de o promitente comprador ter pago totalidade do preço, ainda que, em parte, mediante o aceite de duas letras.
Sequencialmente, o promitente comprador assumiu, de facto, os poderes inerentes à propriedade, assim se compreendendo as profundas alterações que, livremente e sem oposição da B, foram introduzidas no espaço onde passou a funcionar um bar.
A mesma amplitude dos poderes efectivamente exercidos e a concordância da B explicam por que razão, num momento posterior, o promitente comprador originário celebrou com o A., terceiro, um contrato de arrendamento a que seguiram novas obras de remodelação, agora para a actividade de restauração.
Quando em 30-1-88 o primitivo promitente comprador outorgou com o A. a cedência da sua posição contratual, estamos face a um acto que, para além da cedência da respectiva posição jurídica, transferiu para o A. a qualidade de possuidor que aquele detinha.

3.6. Invoca a apelante que a qualidade de possuidor é incompatível com a reclamação dos créditos no processo de falência ou com a notificação da massa falida da B, em 6-5-92, promovida pelo C e pelo A. para efeitos de outorga da escritura pública de compra e venda.
O próprio A. fez juntar aos autos certidão de sentença proferida no âmbito de acção ordinária intentada contra a Massa Falida e contra a D, certificada a fls. 294 e segs., na qual lhe foi reconhecido o direito de retenção sobre a fracção, para garantia do seu crédito de PTE 82.500.000$00.
Trata-se de um argumento cuja pertinência não deve ser desprezada, embora sobressaiam nele mais os aspectos de ordem formal do que uma visão da realidade apostada nos aspectos de ordem substancial.
Não se duvida que o prazo prescricional, mesmo para efeitos de usucapião, pode ser interrompido pelo reconhecimento do direito, nos termos do art. 325º, ex vi art. 1292º do CC.
Nesta perspectiva, caso qualquer daquelas actuações correspondesse, efectivamente, a uma situação de reconhecimento do direito de propriedade da massa falida, poderíamos estar perante eventos que, interrompendo o prazo de prescrição, impediriam a invocação da usucapião, pela falta do decurso de novo prazo legal a partir de então.
Todavia, nada nos permite confirmar essa asserção, pois que a tentativa de o promitente comprador defender os seus interesses por cada uma das vias que a lei lhe consente não pode significar, de modo imediato, a renúncia aos efeitos derivados da invocação da posse.
A leitura mais natural e correcta daqueles actos é a de que o A., confrontado com a falência da promitente vendedora e sem que pudesse ainda invocar, em seu benefício, um título aquisitivo do direito de propriedade, por usucapião, dependente de decisão jurisdicional, não quis abdicar do direito de, por um lado, conseguir a outorga do contrato por escritura pública, adquirindo a propriedade por via negocial, e, por outro, acautelar o seu direito de crédito através da invocação do direito de retenção.
O facto de o interessado ter actuado em diversas frentes não basta para invalidar, para efeitos de usucapião, o lapso de tempo que já então havia decorrido desde o início da posse.
Trata-se, aliás, de um argumento que já foi afastado pelo Ac. do STJ, de 14-3-2000, no BMJ 495º/310, ou pelo Ac. desta Relação, de 1-2-90, in CJ, tomo I, pág. 152, este a considerar que a condenação na restituição do sinal em dobro não impedia o promitente comprador de adquirir por usucapião.

IV – Conclusão:
Face ao exposto acorda-se no seguinte
a) Por falta de legitimidade, não se conhece do recurso, na parte em que na sentença se omitiu pronúncia quanto ao pedido de cancelamento dos registos de penhora e de hipoteca;
b) Julga-se improcedente a apelação quanto à aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Custas a cargo da apelante.
Notifique.
Lisboa, 19-11-02

 (António Santos Abrantes Geraldes)

(Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado)
 (Rosa Maria Cardoso Ribeiro Coelho)
______________________________________________________

[1] Tendo em conta, designadamente, o disposto no art. 730º, al. b), do CC, ou a interpretação do regime jurídico da hipoteca, em situações de confluência da usucapião, como é referido por Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, em Parecer publicado na CJ, 1986, tomo V, pág. 44, ou no Ac. desta Relação proferido nestes autos.
[2] Nomeadamente, em consequência de actos que impliquem a inversão do título de posse, passando o promitente comprador a agir, não como mero titular de um direito de natureza obrigacional, mas antes como verdadeiro possuidor, praticando e exteriorizando actos normalmente inseridos na esfera do proprietário. Também neste sentido, cfr. Lebre de Freitas, in CPC anot., vol. II, pág. 76.
[3] O que se verifica normalmente quando é feito o pagamento antecipado da totalidade do preço, abdicando o promitente vendedor dos poderes inerentes à sua qualidade de proprietário, ou em situações como as analisadas no Ac. do STJ, de 14-3-00, in BMJ 495º/310, ou no Ac. da Rel. de Lisboa, de 1-3-01, in CJ, tomo II, pág.65.