Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
440/07.4GCTVD.L1-5
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- Com a reforma operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como este estava configurado no artº 152º, nº 2, do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, prevendo-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
II- É defensável afirmar-se que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
III-O crime de violência doméstica não é um crime de execução continuada, nem sequer um crime habitual (em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada), podendo falar-se, simplesmente, em “factos reiterados”, isto é, “acções sucessivamente adequadas no seu conjunto a produzir o resultado”.
IV- Entendendo-se que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, consubstancia um só crime de maus tratos/violência doméstica, a sua consumação ocorre com a prática do último acto de execução.
(CG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ªa Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.° 440/07.4 GCTVD, corre termos pelo 3.° Juízo do Tribunal da Comarca de Torres Vedras, o arguido (...), melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de "1 (um) crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152.° n° 1 e n° 2 do Código Penal e actualmente violência doméstica p. e p. pelo art.° 152°, n.° 1, alínea b), e n.° 2 após as alterações introduzidas pela Lei 11.° 59/2007 de 4 de Setembro".
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por sentença de 21.02.2012 (fls. 177 e segs.), foi o arguido condenado "pela prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.°, n. °s 1 e n.° 2, do C. Penal, na pessoa de M... na pena de 1 (um) e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita, porém, ao cumprimento de um plano de readaptação social, em termos a definir pela DGRS, de harmonia com o disposto nos artigos 53º, n° 1 e 2, e 54.0, ambos do C. Penal, a cumprir sob pena de ser revogada tal suspensão e determinado o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada".
Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, condensada nas seguintes conclusões (transcrição):
1. Na sentença recorrida foi o arguido Carlos condenado, como autor material, de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152°, n.°s 1 e 2, do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita ao cumprimento de um plano de readaptação social, em termos a definir pela DGRS, de harmonia com o disposto nos artigos 53°, n.°s 1 e 2 e54°, ambos do Código, sob pena de ser revogada tal suspensão e de ser determinado o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada";
2. Não se põe em causa a matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida de fls. 177 a 195, mas antes a subsunção feita dos factos dados como provados ao ilícito criminal pelo qual o arguido foi condenado;
3. Pois discordamos do juízo que o Meritíssimo Juiz a quo fez da aplicação da lei mais favorável ao arguido, por não haver lugar à sua aplicação e, atendendo à data da prática dos factos pelo arguido, não existir sucessão de leis no tempo, que importe tal juízo, bem como discordamos da aplicação do artigo 152°, n.°s 1 e 2, do Código Penal, na redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro;
4. No enquadramento jurídico-penal constante da sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo concluiu que "À data da prática dos factos descritos na acusação, dispunha o artigo 152° do C. Penal", na redacção do normativo, que se abstemos de transcrever, ora tal não corresponde à verdade como veremos;
5. Dos factos dados como provados, os quais não se põem causa, verifica-se que os últimos factos praticados pelo arguido ocorreram em 28 de Setembro de 2007, em data posterior à entrada em vigor da Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro;
6. Ora, o crime de violência doméstica é um crime de execução continuada, a sua execução tanto pode ocorrer de modo reiterado, sendo certo que o mesmo consuma-se com a prática do último acto, ou não e, neste último caso, consuma-se com um único acto;
7. No sentido de que o crime de violência doméstica é um crime de execução reiterada ou não e, naquele caso, o mesmo consuma-se com a prática do último facto, pronunciaram-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 22/09/2010 e de 15/12/2010, publicados no site www.dgsi.pt;
8. Transcreve-se do último Acórdão referido o seguinte: Neste contexto, entre o crime do artigo 152.° e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica.
...
Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.";
9. Todavia, no caso em apreço, de modo reiterado e ao longo da vivência marital com a ofendida M..., o arguido agrediu-a física e psicologicamente, sendo que o último acto ocorreu em 28 de Setembro de 2007, em data posterior à entrada em vigor da Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro;
10. Dispõe o artigo 2.°, n.° 1, do Código Penal que "As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.";
 11.Acerca do momento da prática do facto, estatui o artigo 3.°, do Código Penal que "O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido.";

12. Deste modo, o crime imputado ao arguido consumou-se com a prática do último acto, por esse motivo, não havendo lugar à aplicação do disposto no artigo 2°, n.° 4, do Código Penal e, em consequência, a existência de crime deveria ter sido indagada à luz da actual redacção do artigo 152°, n.°s 1, alínea b) e 2, do Código Penal;
13. Destarte, o Meritíssimo Juiz a quo deveria ter aplicado a norma constante do artigo 152.°, n.°s 1, alínea b) e 2, do Código Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, o qual pune a prática de um crime de violência doméstica com uma pena de prisão de dois a cinco anos, moldura mais gravosa do que a anterior redacção do artigo 152°, n.° s 1 e 2, do Código Penal, que punia o crime de maus tratos com uma pena de prisão de um ano a cinco anos;
14. Posto isto, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, o arguido deverá ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152°, n.°s 1, alínea b) e 2, do Código Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro;
15. E, tendo em conta os fundamentos da escolha e determinação da medida da pena constantes da sentença recorrida, dever-se-á aplicar ao arguido uma pena de prisão não inferior a 3 anos, suspensa na sua execução, com sujeição a um plano individual de readaptação social a definir pela DGRS e de entregar, no prazo de um ano, a quantia de
1 500,00 de indemnização à ofendida, tudo de acordo com o disposto nos artigos 51°, n.° 1, alínea a), 53°, n.°s 1 e 2 e 54°, todos do Código Penal;
16. Com efeito, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 2°, n.°s 1 e 4, 3° e 1520, n.°s 1 e 2, do Código Penal com as alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro e no artigo 374°, n.° 3, do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser parcialmente revogada, na parte do enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados e na medida da pena aplicada ao arguido".
O arguido, devidamente notificado, não respondeu ao recurso interposto.
Admitido o recurso e já nesta instância, na intervenção a que alude o art.° 416.°, n.° 1, do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, secundando o entendimento da magistrada do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela sua procedência.
Foi cumprido o disposto no art.° 417.°, n.° n 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do arguido.
*
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.°, n.° 1, e 417.°, n.° 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jsti).
(...)
Conforme resulta das conclusões do recurso que ficaram transcritas, o recorrente, apenas, questiona o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, pois considera que o arguido cometeu um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.°, n.°s 1, alínea b) e 2, do Código Penal, resultante das alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro (que entrou em vigor em 15.09.2007), e, sendo de dois (2) a cinco (5) anos a moldura da pena de prisão que lhe corresponde, não pode manter-se a pena de 18 meses de prisão aplicada.
A questão a apreciar e decidir, é óbvio, está em saber se é a "lei nova" que se aplica ao caso ou, pelo contrário, como entendeu o Sr. Juiz a quo, é a norma incriminadora, tal como se apresentava antes daquela alteração, que deve prevalecer, por mais favorável ao arguido.
*
Antes de mais, importa conhecer a factualidade provada e não provada:

Factos Provados:
1. O arguido e ofendida M... viveram juntos, entre data não concretamente apurada do ano de 2006 e Setembro de 2007, como se marido e mulher fossem, residindo numa habitação pertencente ao arguido, sita em (...), área desta comarca.
2. Durante esse tempo, o arguido manteve sempre um comportamento conflituoso e agressivo em relação à sua companheira, a ofendida M...
3. Frequentemente o arguido gritava com a ofendida e, por diversas vezes, desferia-lhe bofetadas, atingindo-a no seu corpo e causando-lhe dores.
4. No dia 10 de Setembro de 2007, quando o arguido e a ofendida caminhavam a pé pela ponte, na localidade de B..., área desta comarca, o arguido, no seio de uma discussão, agarrou com força a gola da camisola que a ofendida vestia naquele momento, e empurrou-a da ponte abaixo, caindo a ofendida no solo.
5. Em consequência da conduta do arguido, sofreu a ofendida dores intensas, ferida no lábio superior, hematoma no olho esquerdo e ainda fractura do braço direito.
6. No dia 28 de Setembro de 2007, pelas 02h00, quando o arguido e ofendida se encontravam no interior da habitação de um tio do arguido, a ofendida recebeu um telefonema no seu telemóvel, o que desagradou àquele.
7. Nesse instante, o arguido dirigiu-se à ofendida, que se encontrava sentada no sofá, e desferiu-lhe vários murros e pontapés, atingindo-a na face e no braço esquerdo.
8. Mais tarde, quando a ofendida se encontrava deitada no quarto, o arguido dirigiu-se à mesma, desferiu-lhe vários murros atingindo-a na cabeça, rasgou o pijama que a ofendida tinha vestido naquele momento e chamou-lhe "quenga", "puta" e "drogada".
9. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sofreu dores na hemi-face esquerda e membro superior esquerdo, apresentando escoriações e equimoses diversas e dispersas do pavilhão auricular esquerdo e braço e antebraço esquerdos, edema ligeiro ao nível da articulação tempero-maxilar.
10. Tais lesões determinaram à ofendida um período de doença fixada em 6 dias, sendo um dia com afectação da capacidade para o trabalho geral e dois dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional,
11. Por estar física e psicologicamente debilitada e não aguentar mais aquela situação, a ofendida decidiu abandonar a residência do casal no dia referido no n.° 6.
12.A ofendida viu-se constantemente afectada no seu bem-estar psíquico e físico, sujeita que estão ao que atrás se descreve, vivendo em sobressaltados e com medo do comportamento imprevisível do arguido.
13.O arguido, ao agir como agiu, quis provocar na ofendida mal-estar físico e psicológico, humilhando-a, o que sabia ser consequência do seu comportamento diário e das ofensas e provocações verbais que diariamente àquela infligia, o que conseguiu, graças ao medo, ansiedade, vergonha e perturbações emocionais que naquela criou.
14.Igualmente, o arguido quis e conseguiu provocar na ofendida dores e mal-estar físico e psicológico, o que também sabia ser consequência da sua conduta.
15.Agiu, o arguido, de forma livre e consciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
16.O arguido encontra-se actualmente a trabalhar como estucador por conta da firma "L... ", sita em (...), Torres Vedras, do que aufere um rendimento mensal médio de cerca de 500,00 €.
17.Reside sozinho na casa referida em a) supra, pertença da sua mãe.
18.Tem como habilitações literárias o 90 ano de escolaridade.
19.O arguido não possui antecedentes criminais registados.

 Factos não provados:
a) Até ao dia 28/09/2007, o arguido, frequentemente se dirigia à ofendida, apelidando-a de "Quenga!", "Puta!" e "Drogada!".
b) Que desde o início do seu relacionamento e até tal data, o arguido agredia a ofendida com murros, pontapés, puxões de cabelo e empurrões contra o mobiliário da habitação, atingindo-a no seu corpo, provocando-lhe vários hematomas nas pernas, braços e cabeça.
c) No dia 28/09/2007, o arguido tenha afirmado à ofendida "Tu não vales nada!".

Valoração jurídico-penal dos factos provados – consumação do crime de maus tratos/violência domestica –sucessão de leis no tempo
Princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal são, além de outros, os da não retroactividade da lei penal e da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.
O primeiro dos referidos princípios assenta num outro, o da confiança, que constitui uma das dimensões do Estado de Direito, e, como facilmente se depreende, proíbe que o legislador criminalize factos pretéritos ou puna mais severamente crimes anteriormente praticados; o segundo impõe a aplicação retroactiva da lei descriminalizadora ou que puna menos severamente determinado crime.
Por força destes princípios, em caso de sucessão de leis penais, deparamo-nos com situações de retroactividade e de ultra-actividade dessas leis, ou seja, a sua aplicação estende-se para aquém e para além da sua vigência formal, aplicando-se a situações jurídicas criadas antes da sua entrada em vigor e a situações jurídicas que sobrevivem à cessação da sua vigência formal.
Só a lei penal desfavorável não é, nem retro, nem ultra-activa.
Por outro lado, sendo, apenas, relevantes, para a sucessão de leis penais no tempo, as leis que estavam em vigor ou iniciaram a sua vigência entre o momento da prática do facto e um determinado limite final (o trânsito em julgado da sentença condenatória ou o termo do cumprimento da pena), torna-se indispensável determinar o momento da entrada em vigor das leis e o momento da prática do facto (tempus delicti). Neste âmbito, releva o momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido (artigo 3.° do Código Penal).
Na grande maioria dos casos, temos crimes instantâneos (aqueles que se traduzem na realização de um acto ou na produção de um evento cuja duração seja instantânea, isto é, não se prolongue no tempo, esgotando-se num único momento, como é o caso do homicídio que se consuma no momento em que ocorre a morte da vítima), mas situações ocorrem em que a consumação se prolonga no tempo, por vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo ao estado antijurídico típico, mas que quer que esse estado se protraia no tempo[i]. Nestas situações, embora a consumação ocorra logo que se cria o referido estado antijurídico, ela (consumação) persiste até que esse estado tenha cessado, como acontece nos casos paradigmáticos de crimes de sequestro e de violação de domicílio que por isso são qualificados como crimes duradouros ou permanentes. É, nomeadamente, nestes casos que a questão da aplicação da lei penal no tempo ganha contornos mais complexos, já que, protelando-se no tempo, a conduta típica pode ocorrer, em parte, no domínio da lei antiga e outra parte no domínio da lei nova. Ora, não sendo consensual, é largamente dominante o entendimento de que, nestes casos, uma agravação resultante da lei nova será aplicável desde que prossiga na vigência dela a conduta voluntária do arguido e, naturalmente, se todos os pressupostos dessa lei se tiverem verificado durante a sua vigência[ii].
Mas no caso em apreciação não estamos perante um crime duradouro.
Afirma o recorrente que "o crime de violência doméstica é um crime de execução continuada, a sua execução tanto pode ocorrer de modo reiterado, sendo que o mesmo consuma-se com a prática do último acto, ou não e, neste último caso, consuma-se com um único acto". Porque "o crime imputado ao arguido consumou-se com a prática do último acto, por esse motivo, não havia lugar à aplicação do disposto no artigo 2°, n.° 4, do Código Penal e, consequentemente, a existência de crime deveria ter sido indagada à luz da actual redacção do artigo 152°, n.°s 1, alínea b) e 2, do Código Penal".
Diferentemente, na sentença discreteou-se assim: "uma vez que a norma incriminadora foi alterada, há que ter em consideração do disposto no artigo 2°, n° 4, do mesmo Código..." e "atentos os novos pressupostos da incriminação, sobretudo o facto de a nova lei não exigir a reiteração da conduta, punir de forma mais gravosa a conduta cometida na presença de menor ou no domicílio comum e ao aumento do leque das penas acessórias abstractamente aplicáveis, deverá a conduta do arguido ser apreciada à luz da lei vigente à data da prática dos factos, porquanto, do confronto em concreto dos dois regimes é aquele o mais favorável ao arguido", pelo que a conduta deste terá de ser enquadrada na incriminação do artigo 152.° do Código Penal na redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro.
Deste trecho da fundamentação da sentença logo ressalta que, ao referir-se à "lei vigente à data da prática dos factos", o tribunal a quo não teve na devida consideração que os factos que constituem o objecto do processo foram praticados, uns, na vigência da lei antiga e outros na vigência da lei nova, resultante das alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro.
Na revisão de 2007, o legislador não se limitou a autonomizar o crime de violência doméstica em relação ao tipo legal de maus-tratos a cônjuge, tal como este estava configurado no art.° 152.°, n.° 2, do Código Penal: alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, passou a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Significa isto que o facto concreto era punível pela lei anterior e continua a sê-lo pela lei nova, podendo, então, falar-se aqui em "continuidade normativo-típica das leis", já que, tendo-se modificado os elementos do tipo legal, manteve-se a incriminação do mesmo facto, ainda que as consequências possam ser diversas.
O crime de violência doméstica (anteriormente, com o nomen juris de maus tratos, tipificado no art.° 153.° do Cód. Penal de 1982 e depois, com a revisão de 1995, no art.° 152.°), não só tem suscitado alguns problemas de interpretação como tem sido posta em causa a sua manutenção como crime especial relativamente às ofensas corporais, pelo menos no que respeita aos maus tratos conjugais[iii].
A questão que maior controvérsia suscitava, na doutrina como na jurisprudência, era, precisamente, saber se para a verificação do crime bastava uma acção isolada ou exigia-se habitualidade.
Prevalecia o entendimento de que "maus tratos" tinha de ser uma realidade diversa das ofensas corporais (simples ou qualificadas). Se assim não fosse, estaríamos perante uma incompreensível duplicação de tipificações criminais.
Na verdade, a verificação do crime, não exigindo habitualidade da conduta, reclamava mais que uma acção isolada, pressupunha uma multiplicidade de factos.
Agora, com a reforma operada pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, a descrição típica tem uma amplitude muito maior e prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
É defensável afirmar que, com essa formulação, foi acolhido o entendimento segundo o qual um só acto de ofensas corporais já configura um crime de violência doméstica.
Nesse sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque ("Comentário...", 465-466) e concretiza: «os "maus tratos físicos" correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os "maus tratos psíquicos" aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas", ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e "os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.°, n.° 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.°, n.° 2, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no artigo 172.°, n.° 2 ou 3, e os crimes contra a honra".
Ao contrário do que se afirma na motivação do recurso, o crime de violência doméstica não é um crime de execução continuada. Nem sequer um crime habitual (em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual, como é o caso do lenocínios), podendo falar-se, simplesmente, em "factos reiterados", isto é, "acções sucessivas adequadas no seu conjunto a produzir o resultado"6.
Aplicando os referidos conceitos e as mencionadas regras ao caso concreto, teremos de concluir que o arguido cometeu dois crimes de violência doméstica, sendo um consumado no dia 10.09.2007 (portanto, antes das alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro) e outro em 28.09.2007 (já na vigência da lei nova).
Com efeito, na primeira das referidas datas, M... foi vítima de maus tratos físicos que o arguido lhe infligiu, porquanto, caminhando ambos, a pé, por uma ponte existente na localidade de L..., área da comarca de Torres Vedras, a meio de uma discussão, este agarrou com força a gola da camisola que a ofendida vestia e empurrou-a, assim fazendo com que ela caísse da ponte abaixo, estatelando-se no solo e assim lhe provocando dores intensas, ferida no lábio superior, hematoma no olho esquerdo e fractura do braço direito.
Na segunda data, a mesma M... foi vítima de maus tratos físicos e psíquicos, pois que, estando ela sentada no sofá, o arguido, só porque lhe desagradou que aquela tivesse recebido um telefonema, desferiu-lhe vários murros e pontapés que a atingiram na face e no braço esquerdo e, mais tarde, voltou a agredi-la com murros, atingindo-a na cabeça, e chamou-lhe "quenga", "puta" e "drogada".
Ora, tendo esta segunda actuação criminosa ocorrido já na vigência da Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, não podia deixar de se aplicar a lei nova.
Se se entender que a reiteração de factos deve ser globalmente apreciada e valorada como integrando um comportamento repetido, dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social e que, portanto, consubstancia um só crime de maus tratos/violência doméstica, a sua consumação ocorreu com a prática do último acto de execução (em 28.09.2007), como é defendido no acórdão do TRC, de 15.12.2010, citado pelo recorrente, e, portanto, já na vigência da lei nova.
Neste entendimento, não se verifica a hipótese legal do n.°4 do art.°2.° do Código Penal e, por conseguinte, assiste razão ao recorrente que pretende a condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152.°, n.ºs. 1, al. b), e 2, do Código Penal, resultante das alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, punível com prisão de 2 a 5 anos.
No pressuposto de uma moldura penal cujo limite mínimo seria de um ano de prisão, foi aplicada ao arguido a pena de 18 meses de prisão. Para o recorrente, esta pena deve ser elevada para o dobro (três anos), uma vez que o limite mínimo da medida legal da pena a considerar é de dois anos.
Na sentença recorrida está, exaustiva e correctamente, fundamentada a determinação da pena aplicada, pelo que importa, apenas, proceder ao ajustamento decorrente da circunstância de ser de dois anos, e não de um ano, o limite mínimo da moldura penal.
Ora, sendo já bastante elevado o limite mínimo, afigura-se-nos adequada uma pena que se situe seis meses acima desse limite, ou seja, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
Com efeito, sendo inquestionáveis as fortes necessidades de prevenção geral, importa, também, ter em conta que o grau de culpa não ultrapassa a mediania e que o arguido, face à matéria de facto provada, não revela especiais carências de socialização.
Nenhuma censura merece a decisão, também satisfatoriamente fundamentada, de suspender a execução da pena de prisão, acompanhada de regime de prova, não se justificando a sua subordinação ao cumprimento de deveres ou a qualquer outra condição.

III - Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, alterar a sentença recorrida, condenando o arguido C..... pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.°, n.os 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova que assentará num plano de reinserção social do condenado, a elaborar e a executar pela DGRS.
Sem tributação.

Lisboa, 30 de Outubro de 2012

Neto de Moura
José Simões de Carvalho
-------------------------------------------------------------------------------------------------
[i] Cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal — Parte Geral", Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 296.
[ii] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", UCE, 2.a edição actualizada, 59.
[iii] No seio da Comissão de Revisão do Código Penal (referimo-nos à revisão de 1995), o Professor Figueiredo Dias manifestou algumas reservas quanto à extensão da tutela penal (no quadro do preceito incriminador em análise, entenda-se) ao cônjuge, por ser duvidoso que ela tenha, ainda, algum suporte sociológico, chegando mesmo a ser proposta a sua eliminação.
Em sentido contrário apontava um Projecto de Lei (a que foi atribuído o n.° 58/VIII) apresentado por deputados do PCP na Assembleia da República, em que, além do mais, era proposto "o alargamento da tipificação do crime de maus tratos, por forma a contemplar situações, como a de ex-cônjuges ou de pessoas que tivessem vivido em união de facto, e ainda de pessoas que tenham em comum filhos, porque a vida demonstra que também nessas situações a motivação do crime de que são normalmente vítimas as mulheres é o menosprezo pelo sexo feminino".
O alargamento da tipificação do crime de maus tratos veio a concretizar-se.