Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
659/99.0TAOER-A.L1-3
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: CRIME DE EVASÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
PRESCRIÇÃO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Considera-se como bem jurídico protegido pela incriminação a autoridade pública do sistema estadual de justiça, quando profere decisões de privação da liberdade, cuja consumação se prolonga enquanto o agente se mantiver em liberdade.

A consumação do crime de evasão, prolonga-se enquanto o agente se mantiver em liberdade, não decorrendo como é óbvio o respectivo prazo prescricional do procedimento criminal.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRelatório:


No processo comum com intervenção do Tribunal Singular com o nº  659/99.0TAOER que corre termos no Juízo Local Criminal de Oeiras, Juiz 1, da Comarca der Lisboa Norte, foi proferido despacho judicial em que considerando que o crime de evasão reveste de natureza de execução permanente, indeferiu a prescrição do procedimento criminal alegada pelo MºPº.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo que o despacho  recorrido seja substituído por outro que declarando prescrito o presente procedimento criminal, determine a cessação da declaração de contumácia do arguido e o arquivamento dos autos, para o que formulou as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos de processo comum singular, o arguido .......mostra-se acusado da pratica de um crime de evasão, previsto pelo artigo 352,°, n.° 1, do Código Penal, e punido com pena até dois anos de prisão ou com pena de multa até 240 dias.
2. Resulta da aludida acusação que o arguido, durante a noite de 3 de Julho para 4 de Julho de 1999, logrou quebrar as grades interior e exteriores da camarata onde se encontrava no Estabelecimento Prisional de Caxias e posteriormente desfazendo parte da rede que circunda o pátio retirou-se daquele local.
3. Até à presente data desconhece-se o paradeiro do arguido, o qual se mantem evadido.
4. O bem jurídico protegido pela incriminação da evasão é a segurança da custódia oficial pelo que e no momento em que o agente se subtraiu a essa custódia que o referido crime se consumou, sendo, por isso,  um crime de consumação instantânea.
5. E ainda que os efeitos do crime de evasão possam ser duradouros, por perdurarem até que seu agente regresse a custódia do Estado, tal não deve ser confundido com os crimes de consumação permanente.
6. Com efeito, o crime de evasão traduz-se na realização de um só acto (libertação da custódia do Estado), exaurindo-se nessa ocasião, não existindo, como existe nos crimes duradouros, o dever jurídico de remoção das consequências duradouras e também a constante renovação da resolução criminosa.
7. O crime de evasão em apreço nos presentes autos consumou-se, assim, durante a noite de 3 para 4 de Julho de 1999.
8. O arguido nunca chegou a prestar termo de identidade e residência, nem foi constituído arguido, também não foi notificado do despacho de acusação e do despacho que designou data para a realização de julgamento, tendo sido declarado contumaz em 15/03/2001.
9. Nos termos do disposto no artigo 118.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal e de 5 anos, começando o mesmo a correr desde o dia em que o facto se consumou. Com a declaração de contumácia o prazo da prescrição interrompeu-se, nos termos do disposto no artigo 121.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, e suspendeu-se, por força do disposto no artigo 120.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal.
10. Considerando o disposto no n.° 3 do artigo 120.° e no n.° 3 do artigo 121.°, ambos do Código Penal, tendo os factos se consumado entre 03/07/1999 e 04/07/1999, verifica-se, assim, que a extinção do procedimento criminal, por prescrição, ocorreu em 04/07/2011.
11. O tribunal a quo ao não declarar prescrito o presente procedimento criminal, por considerar o crime de evasão de consumação duradoura, violou o disposto nos artigos 118.°, n.° 1, alínea c), 119.°, n.º 1, 120.º, n.° 1, alínea c) e n.° 3, 121.°, n.° 1, alínea c) e n.° 3 e 352.°, todos do Código Penal.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a revogação do despacho  recorrido substituindo-se por outro que declare prescrito o presente procedimento criminal, determine a cessação da declaração de contumácia do arguido e o arquivamento dos autos, só assim se fazendo JUSTICA!”
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O recurso foi admitido.
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O arguido apresentou resposta subscrevendo os termos e os fundamentos do recurso interposto pelo MºPº.
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, no qual se pronunciou no sentido da improcedência do recurso, com o seguinte teor:


Com todo o respeito pela posição jurídica sustentada pela Exma. Colega na 1ª Instância, em consciência não podemos aderir à não obstante respeitável teoria, bem sabendo nós também que quer na doutrina quer na jurisprudência está muito bem acompanhada e com argumentos não despiciendos e importantes. Aliás estamos em crer que provavelmente trata-se de tema a definir futuramente em sede de unificação de jurisprudência.

Por nós seguimos a doutrina do prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal) que considera como bem jurídico protegido pela incriminação a autoridade pública do sistema estadual de justiça, quando profere decisões de privação da liberdade, " cuja consumação se prolonga enquanto o agente se mantiver em liberdade".

Enquanto o agente do crime de evasão não for preso ou decida apresentar-se voluntariamente as autoridades ( e tirando uma hipotética situação de cerceamento posterior da Liberdade em que o agente da evasão se torna ele próprio vitima), subsiste a violação da norma incriminadora pela reiteração da fuga, mantendo-se a intenção e voluntariedade da conduta que então será já de natureza omissiva.

Naquela linha está a doutrina do prof. Cavaleiro de Ferreira também citado no despacho sob recurso que lapidarmente fala da continuação da actividade lesiva do bem jurídico nos crimes permanentes, nos quais " a acção é seguida de uma omissão continuada. A acção agride o bem jurídico, e a omissão ofende o dever de pôr termo à acção criada".

Pelo exposto, salvo outra e porventura melhor opinião, vai o nosso parecer no sentido da improcedência do recurso do Ministério Publico, devendo manter-se o douto despacho alvo do presente recurso.
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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre decidir.
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IIFundamentação.

O despacho recorrido é do seguinte teor:

Com respeito pela posição ora assumida pela Digna Magistrada do Ministério Publico, tenho vindo a entender que o crime de evasão é um crime de execução permanente.
Posição que espelhei nos autos e que foi acompanhada por outra Digna Magistrada do Ministério Publico - cfr. fls. 191, 204, 206 e 207 - seguindo o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, na sua obra Comentário do Código de Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pag. 833, anotação 2ªa ao artigo 353° do CP).
O Prof. Cavaleiro de Ferreira, na sua obra Lições de Direito Penal, Parte Geral, Editorial Verbo, 1992, pag. 139, define os crimes permanentes por oposição aos crimes instantâneos.
"o carácter instantâneo ou permanente refere-se à própria consumação, a lesão do bem jurídico". (...) "Há bens jurídicos que, pela sua natureza, só são susceptíveis de ofensa mediante a sua destruição; (...) e há bens jurídicos de natureza imaterial que não podem ser destruídos e são apenas susceptíveis de compressão, como a honra e a liberdade, e estes são ofendidos enquanto se mantiver em execução a actividade lesiva."
"A execução nos crimes permanentes toma necessariamente uma dupla feição: é uma acção seguida de uma omissão continuada. A acção agride o bem jurídico, e a omissão ofende o dever de por termo à situação criada."
Este autor adota, assim, uma concepção bi-fásica: ação e subsequente omissão do dever de fazer cessar o estado anti-jurídico provocado.
Dispõe o artigo 352° do Código Penal que "Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir e punido com pena de prisão até 2 anos".
A consumação, entendo e seguindo esta concepção, não se esgota no momento em que alguém legalmente privado da liberdade se evade, mas permanece no tempo, com a omissão  do dever do condenado ou do privado da liberdade se apresentar a Justiça. O crime permanece a ser executado, enquanto o evadido se subtrair a pena ou a medida de coação.
Efetivamente, a Jurisprudência e a doutrina vem-se dividindo quanto a esta questão, mas, caso se entenda estarmos perante um crime de crime de execução permanente, o prazo da prescrição só começa a correr a partir do dia em que cessa a consumação - ultimo ato de execução.
E esta consumação cessará, atenta a posição que se assumiu, a partir do momento em que o arguido for capturado ou a partir do momento em que a prisão que cumpria não lhe puder ser mais imposta (por prescrição do respetivo procedimento criminal, alteração da decisão que a impôs ou outra vicissitude que torne a reclusão ilegal).
Pelo exposto, e por não encontrar fundamentos para alterar a decisão já tomada nos autos, entendo não ter ocorrido a prescrição.
Notifique.”

O Direito.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, a questão essencial é a de saber se o crime de evasão é um crime de execução permanente, conforme foi sustentado na decisão recorrida, ou, se como é entendimento do MºPº é de consumação instantânea, sendo que no caso em concreto a resposta a esta questão terá repercussão ao nível da prescrição do procedimento criminal.

Não sendo liquida entre a jurisprudência a resposta a tal questão, propendemos para subscrever os termos e os fundamentos  da decisão recorrida.

E isto porque para nós, e conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque,[2] o bem jurídico protegido por esta incriminação não é apenas e só o da a segurança da custódia oficial, mas a autoridade pública do sistema estadual, quando profere decisões de privação de liberdade, valor mais lato e aonde aquele se insere e que abarca todos os crimes contra a administração pública: a autonomia do Estado visando completar a protecção da administração realização da justiça.

Por isso e ao contrário do que sustenta Cristina Monteiro, a tutela não se estende apenas à segurança dos estabelecimentos e reportada a decisões finais mas ainda, a outras que surjam no decurso do processo penal vg. a detenção ou as medidas de coacção detentivas, que por visarem satisfazer as necessidades que as determinou, não pode o sistema deixar de prover ao seu efectivo acatamento.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque[3] que aqui se segue, veja-se a esse respeito a alteração introduzida coma revisão de 1995 do Cod. Penal, aonde no artº 349º referente ao crime de tirada de presos, se substituiu a expressão “pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado a à execução de reacções criminais privativas de liberdade” pela expressão “pessoa legalmente privada da liberdade”, alargando assim o âmbito da norma incriminatória de modo a incluir todas as formas de privação de liberdade incluindo as medidas de segurança, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação. Assim sendo, a nosso ver, afastada está o âmbito mais restrito da tipicidade em que se limita o âmbito deste delito à quebra da custódia oficial, sendo o bem jurídico protegido o da autoridade pública do sistema judicial quando profere decisões de privação de liberdade.

Assim sendo a consumação deste ilícito criminal, prolonga-se enquanto o agente se mantiver em liberdade, não decorrendo como é óbvio o respectivo prazo prescricional do procedimento criminal.

Com tal a pretensão do recorrente não pode proceder
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IIIDecisão.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam o recurso interposto pelo MºPº não provido, e, em consequência, mantêm na totalidade a decisão recorrida.
Sem tributação, por não ser devida.
(processado por computador e revisto pelo1º signatário- artº 64º nº 2 do Cod. Proc. Penal)



Lisboa, 21 de Março de 2018



(Vasco Freitas) (processado por computador e revisto pelo1º signatário- artº 64º nº 2 do Cod. Proc. Penal)
(Conceição Gonçalves)



[1]( cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335  e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2]In Comentário do Código Penal Ed. 3ª pag. 1110 e 1114
[3]Comentário ao Cod. Penal 3ª Edição pag. 1110