Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
78/14.0TBVFX-C.L3-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
PRESTAÇÕES DE ALIMENTOS
COBRANÇA COERCIVA
DESCONTO NO VENCIMENTO
PRESTAÇÕES VENCIDAS E VINCENDAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1De forma a respeitar o direito fundamental a uma existência condigna, o art. 48º do RGPTC deve ser conjugado com o art. 738º nº 4 do C.P.C., segundo o qual, “quando o crédito exequendo for de alimentos, … é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo”.

2Abrangendo os descontos ordenados apenas “o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas”, deve ser assegurado ao requerido a parte do vencimento necessária para satisfazer as prestações de alimentos devidas aos filhos CC e DD que se vão vencendo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:        Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa


No presente incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais que AA requereu contra BB, a requerente interpôs recurso do despacho proferido a 13 de junho de 2022, despacho esse do seguinte teor:
“Tendo em conta o valor auferido pelo requerido BB mensalmente, ponderando também que mensalmente contribui com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC, tal como o promovido, determina-se que o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas seja liquidado em prestações mensais de € 50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de € 300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados.”
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que seja revogado o despacho recorrido e que seja substituído por outro que determine que o desconto no vencimento do recorrido passe a ser de € 493,21 ou, assim não se entendendo, de € 343,21.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1.Vem o presente recurso interposto do douto despacho, que decidiu que “o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas seja liquidado em prestações mensais de € 50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de € 300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados.”
2.In casu, a fundamentação do douto despacho recorrido limitou-se a transcrever a promoção do Ministério Público, promoção da qual foram as partes sequer notificadas para, querendo, se pronunciarem, tendo o Tribunal a quo imediatamente decidido, prejudicando o exercício do direito ao contraditório plasmado no art. 3.º, n.º 3, do CPC.
3.Sucede que, o Recorrido foi condenado a pagar, a título de alimentos aos filhos, a quantia de € 22.900,00, por decisão que se tornou efetiva em 25 de março de 2021.
4.Ao abrigo do disposto no art. 48.º do RGPTC, devem assim ser-lhe deduzidas no ordenado ou salário os montantes em dívida,
5.Sendo que o art. 738.º n.º 4 do CPC estabelece que, estando em causa a realização coerciva do direito a prestação alimentar de filhos menores, o referencial do rendimento intangível, para assegurar a subsistência do obrigado, é a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, a qual atualmente se encontra fixada em € 211,79.
6.Pelo que, auferindo o Recorrido € 705,00 mensais, e sendo o valor impenhorável de € 211,79, seriam penhoráveis € 493,21.
7.Ainda que a este valor seja retirada a pensão de alimentos que continua atualmente a pagar ao filho, no valor de € 150,00, sempre seriam penhoráveis € 343,21.
8.Todavia, postergando-se lei substantiva, determinou-se no douto despacho recorrido que “(…) o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas seja liquidado em prestações mensais de € 50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de € 300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados.”,
9.Do assim decidido resulta que o desconto ordenado não cumpre o estabelecido nos arts. 48.º do RGPTC e 738.º, n.º 4 do CPC.
10.Considerando que em nenhum segmento do decisório se faz qualquer ilação, análise critica da situação ou se especifica os fundamentos, que levaram o Tribunal a quo a optar pela solução acolhida no despacho recorrido em detrimento de outra, designadamente da perfilhada pela Recorrente e prevista na lei, a decisão proferida está inquinada de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), padece de fundamentação de facto e de direito e afigurando-se obscura.
11.Normas jurídicas violadas: artigos 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, arts. 3.º, n.º 3, 154.º, 738.º, n.º 4, todos do CPC, e 48.º do RGPT.»
O requerido respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões:
«IVem a Requerida, ora Recorrente, interpor recurso do douto despacho que decidiu “Tendo em conta o calor auferido pelo Requerido BB mensalmente, ponderando também que mensalmente contribui com € 150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC, tal como o promovido, determina-se que o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas seja liquidado em prestações mensais de € 50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de € 300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados”
IIFoi proferida sentença no âmbito dos autos supra identificados, declarando-se o aqui Recorrente em incumprimento na Pensão de Alimentos estabelecida na Regulação das Responsabilidades Parentais, no total em atraso de 22.100,00 € (vinte e dois mil e cem euros)
IIIA Requerente, aqui Recorrente, solicitou o pagamento coercivo do montante em dívida através do desconto no salário do Requerido, aqui Recorrido, até ao limite máximo no artigo 738.º, n.º 4, do C.P.C.
IVO Requerido, aqui Recorrido, apresentou prova documental suficiente da sua precária situação financeira, inclusive da sua declaração de Insolvência, bem como, um requerimento entregue nos autos principais, onde requer que seja retirada tal quantia do acordo das Responsabilidades Parentais em vigor, por manifesta incapacidade do mesmo em conseguir cumprir com o referido pagamento.
VImporta referir que, apesar do tempo que, eventualmente, possa vir a ser necessário para o pagamento da quantia a que o Recorrido foi condenado a pagar, o douto tribunal “A Quo”, bem andou ao tomar a decisão que agora a Requerente, aqui Recorrente, interpôs recurso, tendo mesma sido fundamentada e fundada nas verdadeiras necessidades do menor CC e dois outros filhos em comum da Recorrente e Recorrido.
VIO que nos leva à questão que deveria ter sido mencionada pela Recorrente, de forma a este doutro tribunal possa estar munido de todos os elementos para a boa apreciação do presente recurso, nomeadamente e mais concretamente, tendo omitido, certamente por lapso, que o Recorrido procede ao pagamento mensal de 150,00 € (cento e cinquenta euros) a título de pensão de alimentos referente ao menor CC, bem como ao pagamento de igual quantia para o filho maior e ainda a estudar, DD, acrescido, ainda, de 80,00 € (oitenta euros) referente às propinas deste último e nunca deixou de proceder ao pagamento da pensão de alimentos dos seus filhos.
VIIAliás, nunca a aqui Recorrente procedeu ao pagamento de qualquer quantia para abatimento do empréstimo bancário referente à casa morada de família.
VIIIAssim, apreciando, de forma exata e correta, a matéria de facto dada como provada, o Tribunal “A Quo”, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova, tomou em linha de conta, quer o limite da legalidade, seu limite balizador, quer ainda as regras da experiência comum, a decisão proferida nos presentes autos não espelha, pois, todos os elementos e provas constantes no processo, correspondendo a uma cabal subsunção dos factos em causa aos normativos legais aplicáveis, devendo ser a mesma, objeto de confirmação por ser justa e acertada!»
São as seguintes as questões a decidir:
da nulidade do despacho recorrido; e
da efetivação da prestação de alimentos.
*

Com interesse para a decisão, importa ter presente que resulta dos presentes autos e do apenso E o seguinte:
1Por sentença proferida a 1 de setembro de 2019, foi declarado verificado o incumprimento por parte do requerido.
2Na fundamentação do acórdão proferido a 23 de fevereiro de 2021, que confirmou a sentença referida no ponto 1, pode ler-se:
«No caso em apreço, o objeto do incumprimento invocado pela requerente é a prestação de alimentos devida aos filhos do requerente e da requerida, numa dupla vertente:
a quantia destinada a solver o empréstimo bancário respeitante à casa onde as crianças habitam;
a quantia ajustada a título de alimentos devidos ao EE.
Ora, da factualidade provada resulta à saciedade que o requerido nunca entregou qualquer quantia à requerida para satisfação da primeira das mencionadas prestações, e que no tocante à segunda, não satisfez as prestações respeitantes aos meses de junho a setembro de 2015 (inclusive), no valor global de € 800,00.

Considerando que a cláusula 10ª questão faz expressa referência a um empréstimo bancário contraído para aquisição da casa onde os menores residem, forçoso será concluir que um declaratário normal, colocado na posição da requerente e do requerido, teria entendido a referência àquela prestação como reportada a despesa de habitação dos menores. Nesse sentido aponta aliás o teor literal da mesma cláusula, que se reporta à ”habitação dos menores”.
Estando em causa a satisfação das necessidades de habitação dos filhos da requerente e do requerido, e recordando que o art. 2003º, nº 1 do CC expressamente refere que têm natureza alimentar as prestações destinadas a suprir as necessidades de habitação do alimentando, é de concluir que a prestação pecuniária a que se reporta a cláusula em apreço tem natureza alimentar, não se confundindo com nenhuma das obrigações emergentes do contrato de mútuo bancário, nem alterando as responsabilidades de requerente e requerido perante o credor bancário».
3A 1 de maio de 2021, a requerente apresentou requerimento pelo qual requereu que fosse ordenado “à entidade laboral do Requerido que passe a descontar mensalmente ao vencimento deste a quantia de €538,21, devendo tal valor ascender aos €1288,21 nos meses em que o Requerido recebe subsídio de férias e de Natal, para pagamento da pensão de alimentos em vigor e, o remanescente, do valor em dívida a estes autos.”
4O requerido apresentou resposta a 11 de maio de 2021, na qual defendeu não deverem ser penhoradas quaisquer quantias.
5A 18 de julho de 2021, FF, Lda enviou mail do seguinte teor:
“Dando cumprimento ao solicitado por V. Exas., vimos pelo presente informar que o Sr. BB, …, é nosso funcionário, auferindo mensalmente os seguintes valores:
1Vencimento ilíquido - 840,40 (base + Subsídio de Alimentação), vencimento líquido - 757,90€;
2Duodécimo de Subsídio de Férias ilíquido - 62,50€, líquido 55,62€;
3Duodécimo de Subsídio de Natal ilíquido - 62,50€, líquido 55,62.
Informamos ainda que o referido colaborador foi declarado insolvente, tendo esta empresa sido notificada pelo Administrador da mesma em 13/07/2020.”
6Do recibo de vencimentos relativo ao mês de janeiro de 2022, junto pela entidade patronal a 3 de março de 2022, consta que o vencimento base, o subsídio de alimentação e os descontos para a segurança social ascendem a € 775,00, € 100,17 e € 85,83, respetivamente.
7A 30 de maio de 2022, o Ministério Público promoveu o seguinte:
“ponderando o valor mensal do salário do Requerido, considerando que mensalmente contribui com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC, promovo que o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas a este menino seja liquidado em prestações mensais de € 50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de € 300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados.”
8Por sentença proferida a 28 de fevereiro de 2022, no apenso E, foi homologado o seguinte acordo:
 “O pai contribuirá, a título de alimentos a favor dos filhos (DD e CC), a pagar à mãe por transferência bancária para a conta desta com o IBAN…, até ao dia 8 de cada mês, com:
a)- A prestação mensal fixa de € 150.00 (cento e cinquenta euros) para cada filho, sem divisão das despesas, atualizada anualmente de acordo com o índice de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao ano imediatamente anterior, ocorrendo a primeira atualização em fevereiro de 2023.”
*
A recorrente arguiu a nulidade do despacho recorrido com fundamento no disposto no art. 615º nº 1 als. b) e c) do C.P.C.
Por força do art. 613º nº 3 do C.P.C., o disposto no art. 615º do C.P.C. é aplicável “com as necessárias adaptações aos despachos”.
Nos termos do art. 615º nº 1 al. b) do C.P.C., “é nula a sentença quando o juiz não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
“Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 140).
Conforme resulta do art. 154º nº 1 do C.P.C., “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
O grau de exigência de fundamentação não é igual para os despachos e para as sentenças (cf. art. 607º do C.P.C.).
Por força do art. 154º nº 2 do C.P.C., “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.”
O tribunal recorrido usou a expressão “tal como o promovido”. Isso não significa que o tribunal recorrido aderiu simplesmente aos fundamentos invocados na promoção do Ministério Público. Significa tão só que a solução que obteve vencimento não foi nem a da requerente nem a do requerido, mas sim a do Ministério Público, isto é, o valor dos descontos foi fixado como promovido e não como requerido.
Da fundamentação do despacho recorrido consta o seguinte:
“Tendo em conta o valor auferido pelo requerido BB mensalmente, ponderando também que mensalmente contribui com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC”.
Não há, pois, falta absoluta de fundamentação.
Nos termos do art. 615º nº 1 al. c) do C.P.C., “é nula a sentença quando… ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
“A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, anotação ao art. 670º).
Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que é causa da nulidade da sentença, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível.
Não se vislumbra que haja ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Nas conclusões recursivas, a recorrente afirmou que ter o tribunal recorrido decidido sem antes notificar as partes da promoção do Ministério Público prejudicou o exercício do direito ao contraditório.
Pronunciar-se o tribunal sobre questão de que não pode conhecer antes de garantido o contraditório configura nulidade processual que se comunica ao despacho, implicando a nulidade deste por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º nº 1 al. d) do C.P.C.
Nos termos do art. 3º nº 3 do C.P.C., “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
“O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa” (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, anotação ao art. 3º).
“… a regra do contraditório deixa de estar exclusivamente associada ao direito de defesa, no sentido negativo de oposição à actuação processual da contraparte, para passar a significar um direito de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Acórdão do Tribunal Constitucional 19/2010).
“A audição excepcional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. 1, 2ª edição, pág. 33).
Sobre a questão dos descontos no vencimento do requerido, a requerente pronunciou-se a 1 de maio de 2021, o requerido a 11 de maio de 2021 e o Ministério Público a 30 de maio de 2022.
Não se vislumbra, pois, que tenha sido desrespeitado o princípio do contraditório.
Improcede, pois, a arguição da nulidade da decisão recorrida.
*
Nos termos do art. 48º nº 1 al. b) do RGPTC, “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte: se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário”.
Em 2022, o vencimento líquido auferido pelo requerido ascendia a € 781,34.
No entanto, a recorrente teve apenas em consideração o valor do salário mínimo nacional em 2022 - € 705,00 -, no pressuposto que o excedente foi objeto de cessão no processo de insolvência, nos termos do art. 239º do C.I.R.E.
O art. 48º nº 1 al. b) do RGPTC não estabelece limites para as deduções no ordenado ou salário da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos.
O direito fundamental a uma existência condigna, fundado no respeito pela dignidade humana (arts. 1º e 2º da C.R.P.), tem de ser respeitado.
Conforme resulta do art. 33º nº 1 do RGPTC, “nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores”.
O art. 48º do RGPTC deve, pois, ser conjugado com o art. 738º nº 4 do C.P.C., segundo o qual, “quando o crédito exequendo for de alimentos, … é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo”.
O acórdão proferido a 23 de fevereiro de 2021 considerou que a quantia em dívida destinada a solver o empréstimo bancário respeitante à casa onde as crianças habitam tem natureza alimentar.
Por força da Portaria 301/2021, de 15 de dezembro, a pensão social do regime não contributivo, em 2022, era no valor de € 213,91.
Nos termos do art. 48º nº 2 do RGPTC, “as quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo”.
Conforme resulta do despacho recorrido, nos descontos ordenados apenas foi abrangido “o valor global de prestações de alimentos vencidas devidas”, certamente porque só se verificou incumprimento quanto a quantia destinada a solver o empréstimo bancário respeitante à casa onde as crianças habitam e a quantia ajustada a título de alimentos devidos ao Daniel respeitantes aos meses de junho a setembro de 2015.
Assim, deve ser assegurado ao requerido a parte do vencimento necessária para satisfazer as prestações de alimentos devidas aos filhos CC e DD que se vão vencendo.
*

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a sentença recorrida nos seguintes termos:
as prestações mensais a descontar no vencimento passam de € 50,00 para € 190,00.
Custas pela recorrente e recorrido na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.


Lisboa, 25 de maio de 2023


Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Luís Correia de Mendonça - com voto vencido que segue
***
Fiquei vencido porque a tese que prevaleceu contraria a posição, que julgo ser a mais adequada, sobre o âmbito do recurso de apelação e a função que cabe à Relação como um autêntico segundo grau de jurisdição.
O nosso sistema de recursos inclina-se para o modelo de reponderação e não de reexame. Quer isto dizer que os juízes do tribunal superior não julgam de novo o objecto da acção, estando vedados , em princípio, os nova no segundo grau (novos pedidos , novas causas de pedir, novas excepções, novos meios de prova), antes verificam se a decisão proferida foi correcta ou incorrecta, comparando os elementos de facto e direito de que o primeiro grau dispunha.
Tudo isto pode ser facilmente reconhecido por todos, em sede de direito vigente, mas, depois, contrariado na prática, pelo direito vivente, de que faz parte este acórdão.
Tratava-se de saber se a decisão que a seguir se transcreve está correcta.
Essa decisão tem o seguinte teor: «Tendo em conta o valor auferido pelo requerido BB mensalmente, ponderando também que mensalmente contribui com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC, tal como o promovido, determina-se que o valor global em prestações de alimentos vencidas devidas seja liquidado em prestações mensais de €50,00 a descontar no seu vencimento e em prestações de €300,00 a descontar nos subsídios de férias e de Natal que lhe são processados».
***
Julgo que esta decisão enferma de vícios insupríveis neste grau. O tribunal graficamente não fixou os factos (concede-se em relação à falta do relatório).
Da decisão sincrética que proferiu, onde não há qualquer referência a um só dispositivo legal nem a qualquer princípio jurídico, infere-se apenas que está provado que:
O requerido aufere mensalmente determinado valor (+subsídio de férias e de natal), a ter em conta (mas que não se diz quanto é).
O requerido contribui mensalmente com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC.
Constitui postulado de um Estado Constitucional de Direito que as decisões dos tribunais sejam fundamentadas na forma prevista na lei (artigo 205.°, 1, CRP).
As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são, na verdade, sempre fundamentadas, não servindo para tal a simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo casos contados previstos na lei (artigo 154.°, 1 e 2 CPC).
Em democracia, a fundamentação é de particular relevância, porquanto é sobretudo através dela que o poder judicial, através de decisões racionais, não arbitrárias e convincentes, se legitima.
No caso sujeito, não houve qualquer fundamentação cabal da decisão proferida.
Tem-se muitas vezes a ideia (ou tentação) de que tratando-se de um processo de jurisdição voluntária o juiz não está vinculado a critérios de estrita legalidade podendo “aligeirar” o decreto judicial.
Não é assim. A lei dispensa o juiz da vinculação a critérios de legalidade estrita nas providências a tomar devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987.° CPC).
Mas daí não se segue que possa decidir de forma arbitrária e/ou sem fundamentação, ainda que de forma simples, as decisões que toma.
Acresce que, como decorre do artigo 154.°, 2, a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando--se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Perseverando em comportamento já anteriormente censurado nestes autos pelos Acórdãos de 20 de dezembro de 2018 e de 23 de fevereiro 2021, o tribunal não fixou os factos e da decisão sincrética que proferiu, onde não há qualquer referência a um só dispositivo legal nem a qualquer princípio jurídico, infere-se apenas, como vimos, que está provado que:
O requerido aufere mensalmente determinado valor a ter em conta.
O requerido contribui mensalmente com €150,00 a título de prestação de alimentos para o seu filho CC.
Em matéria indisponível, o primeiro grau formulou um silogismo judiciário a que falta a premissa maior tomando-o ininteligível. Nem sequer por remissão para a promoção do MP pode ser preenchida a lacuna porque aí também se verifica falta de indicação do montante do salário a ter em consideração, subsídio de férias e de Natal (note-se que há vários recibos de vencimento nos autos com diferentes quantias).
A posição vencedora, queimando um grau, fixou, em reexame, em número de 8 os factos provados, muito além dos pouquíssimos enunciados que tinham sido considerados pelo tribunal a quo.
Como não se concebe um despacho que não tenha qualquer conteúdo, o argumento de que só a falta absoluta de fundamentação conduz à nulidade, mas não a insuficiência ou mediocridade da mesma, transforma-se na prática numa fórmula passe partout, antigarantista e arbitrária.
A ausência de decisão compreensível sobre a matéria de facto, a que acresce também a indevida omissão de fundamentação de direito (ou de equidade sequer), não pode deixar de se entender como a situação-limite da decisão deficiente a que alude o artigo 662.°, n.º 2, alínea c) justificando a anulação da decisão.
***
25.05.2023