Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7092/17.1T8LSB.L1-8
Relator: ISOLETA COSTA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
OBRIGAÇÃO DO LOCATÁRIO
EXAME DA COISA LOCADA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Sobre as obrigações do locatário dispõe o artigo 1038º do CC que prescreve que são obrigações do locatário (entre outras) a de facultar ao locador o exame da coisa locada (b) e a de tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública (e).
II - A conduta da ré traduzida no facto de não abrir a porta nos dias 1 de agosto de 2016 e de 18 de Outubro de 2016, será passível de a fazer incorrer nestas previsões legais.
III – Não obstante, tratando-se de um contrato que dura já há cerca de 80 anos atenta a data dos factos, a perda de confiança recíproca na manutenção regular do vínculo, terá de resultar de uma conduta reiterada e assaz comprometedora desta confiança, o que não decorre da mera factualidade referida em II.
IV – Ademais,  não será proporcional face aos interesses em causa e conforme à equidade admitir que pelo facto da ré não ter aberto a porta por duas vezes num arrendamento  com cerca de 80 anos de duração se tornou inexigível à senhoria a manutenção do mesmo ou seja que tal conduta neste contexto assume  um nível de gravidade e gera consequências tais que não seja razoavelmente exigível à outra parte (de um ponto de vista objectivo) a manutenção do contrato.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

A [ ….. – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, S.A., NIPC] , intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B [ MARIA E…………] , Autora  e Ré,  com domicilio em Lisboa e com os sinais dos autos
 Pede que se declare a resolução do contrato de arrendamento vigente entre as partes que tem por objecto o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua Alves Gouveia, nº  , 1800-021 Lisboa, freguesia de Santa Maria dos Olivais, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o nº 57.., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo 5.. e que se condene a Ré a desocupar de imediato o locado e a indemnizar a autora pelos danos causados com a sua conduta, a liquidar em execução de sentença.
Invoca factos tendentes a demonstrar a violação do contrato de arrendamento para habitação, que vigora entre as partes.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, tendo a sentença convocado a seguinte matéria de facto:
 Factos provados:
1. Encontra-se registada a favor da autora, por apresentação datada de 07/04/2016, na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a aquisição por compra do prédio sito na Rua Alves Gouveia, nºs…. , 1800-021 Lisboa, freguesia de Santa Maria dos Olivais, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o nº 57.., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo 5..
2. Em 19 de Outubro de 1934, foi firmado um acordo escrito denominado “arrendamento”, pelo qual António …… e Thomaz ……, por si e em representação dos herdeiros de Francisco ….., declararam dar de arrendamento a Artur ……, cônjuge já falecido da ré, o rés-do-chão esquerdo do prédio identificado no ponto anterior, pelo prazo de seis meses, com início em 01/11/1934, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos e nas mesmas condições.
3. Em contrapartida do mencionado no ponto anterior, a ré tem procedido à entrega à autora, desde que esta lhe comunicou a aquisição do prédio, da renda mensal no valor de 49,65€.
4. Por decisão proferida em data não apurada do ano de 2014, pela Unidade de Intervenção Territorial Oriental da Câmara Municipal de Lisboa, foi determinada a realização de uma vistoria do prédio mencionado no ponto 1 a fim de aferir do seu estado de conservação, segurança e salubridade.
5. Por requerimento formulado em data não apurada do ano de 2016, no âmbito do processo n.º 3465/DOC/2016, a autora solicitou à Câmara Municipal de Lisboa a realização de vistoria para aferir o estado de conservação do mesmo prédio antes de obras que pretendia realizar para impedir a sua derrocada e degradação.
6. No mesmo ano, a autora pediu à Câmara Municipal de Lisboa a realização de uma vistoria no mesmo prédio para efeitos de constituição da respectiva propriedade horizontal.
7. Os peritos da C.M.L. deslocaram-se ao prédio identificado no ponto 1 em 18/07/2016 e em 01/08/2016, tendo informado a autora por ofício datado de 29/11/2016 que “não foi possível efectuar a Ficha do Estado de Conservação do fogo do R/C Esquerdo da Rua Alves Gouveia, nº …, uma vez que a inquilina nunca facultou o acesso ao mesmo, sendo a última tentativa por parte destes serviços no dia 1 de Agosto do corrente ano”.
8. A autora remeteu à ré uma carta registada com aviso de recepção, recebida pela ré em 21/07/2016, com o teor constante de fls. 14 que aqui se considera por integralmente reproduzido, comunicando que iria visitar o locado no próximo dia 1 de Agosto, pelas 9 horas, solicitando a presença da ré e a abertura do locado.
9. No dia 1 de Agosto de 2016, a ré estava dentro da sua habitação, mas não abriu a porta ao representante da autora e aos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa quando estes bateram a essa porta.
10. A ré efectuou uma queixa à Câmara Municipal de Lisboa, solicitando a presença de técnicos dessa entidade no prédio por causa de uma fossa existente no R/C Dtº desse edifício.
11. A autora remeteu à ré uma carta registada com aviso de recepção, expedida em 27/09/2016, com o teor constante de fls. 17 que aqui se considera por integralmente reproduzido, comunicando que iria visitar o locado no próximo dia 18 de Outubro, entre as 10 e as 13 horas, solicitando a presença da ré e a abertura do locado.
12. A carta referida no ponto anterior foi devolvida à autora por não ter sido reclamada pela ré.
13. A mesma carta foi depositada na caixa do correio da Ré em 14/10/2016.
14. No dia 18 de Outubro de 2016, os técnicos da Câmara Municipal de Lisboa deslocaram-se ao prédio mencionado no ponto 1) para realizarem uma vistoria, mas não lhes foi dado acesso ao interior do r/c esquerdo em cujo interior estava a ré que não abriu a respectiva porta quando tal lhe foi solicitado, o que inviabilizou a realização da vistoria.
15. Em virtude da conduta da ré de impedir o acesso ao interior do r/c esquerdo do prédio referido no ponto 1, a autora não conseguiu planificar e orçamentar a obra de reabilitação do prédio mencionado no ponto 1 na parte referente ao r/c esquerdo ocupado pela ré.
16. A ré ocupou parte da escada interior do prédio referido no ponto 1, junto à entrada da sua habitação, com restos de mobiliário seu em madeira, incluindo dois armários de cozinha, uma arca, uma cómoda, e ainda uma máquina de costura e sacos de roupa, dificultando o acesso ao primeiro andar.
17. Para proceder a obras de reabilitação da parte restante do prédio mencionado no ponto 1, a autora removeu os objectos referidos no ponto anterior para outro local.
18. A ré ocupou também o logradouro atrás do prédio referido no ponto 1 com objectos seus.
19. Devido aos factos mencionados no ponto anterior, na realização de obras de reabilitação do prédio referido no ponto 1, a autora teve de instalar andaimes suspensos no logradouro a tardoz por impossibilidade de os assentar no solo devido aos objectos aí existentes pertencentes à ré e pela impossibilidade de acesso ao local, vedado pela Ré.
B) Factos não provados:
Não se provaram os restantes factos alegados nos articulados com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:
a) A autora efectuou uma denúncia à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a fim de a ré ser levada para um lar.
b) A autora não facultou à ré uma chave quando substituiu a porta de entrada do prédio.
c) No dia 18 de Julho de 2016, a Ré não estava em casa, pelo que não pôde abrir a porta aos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa.
d) No período compreendido entre 1 e 15 de Agosto de 2016, a ré esteve ausente da sua casa, por estar a passar uns dias no Algarve em casa do seu filho Joaquim …….  .
e) A filha da Ré informou telefonicamente um colaborador da Autora da ausência da ré da sua casa no dia 01 de Agosto de 2016.
f) A ré não recebeu a carta referida no ponto 13 dos factos provados.
g) A Ré não estava em casa no dia 18 de Outubro de 2016.
h) Os factos referidos no ponto 19 dos factos provados implicaram um acréscimo de custos para a autora no montante de € 1237,00.
i) Em consequência de a ré ter impedido o acesso à sua habitação, a autora suportou o montante de € 496,00 com a remoção, transporte e armazenamento de janelas de PVC destinadas às janelas da habitação da Ré.

A sentença declarou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela autora e, em consequência (ao que interessa ao recurso):
Declarou a resolução do contrato de arrendamento vigente entre as partes que tem por objecto o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Rua Alves Gouveia, nº  e  , 1800-021 Lisboa, freguesia de Santa Maria dos Olivais, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa, sob o nº 57.., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo 5..;
Condenou a ré a desocupar o imóvel referido no ponto anterior;
Condenou a ré como litigante de má-fé, no pagamento da multa correspondente a 8 UC’s;
Absolveu a ré do demais peticionado.
Desta sentença apelou a ré que lavrou as conclusões que seguem e em síntese:
O recurso da matéria de facto incide sobre pontos determinados da matéria de facto que a Ré estava em casa nos dias 18 de Julho, 1 de Agosto e 18 de Outubro de 2016, e se recusou a abrir a porta e facultar o acesso à mesma aos funcionários da Autora.
Quer a Ré, quer a filha da mesma, Maria ….. referiram que não estava em casa nesses dias em concreto, conforme declarações e depoimento que se encontram gravados, pelo que nunca poderia abrir a porta aos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa ou aos funcionários da Autora.
Incumbia à Autora a prova dos factos constitutivos do seu direito, nomeadamente que a Ré se encontrava no locado e recusou facultar o acesso ao mesmo, o que não conseguir demonstrar.
A Ré não se recusou em facultar o acesso à fracção à Autora, tanto mais que no documento de folhas 13 e 13 verso, no qual constam as datas de deslocação dos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa ao prédio, e no depoimento das testemunhas Isabel …. e Ricardo …., funcionários da mencionada Câmara que “confirmaram a deslocação ao local e a impossibilidade de acesso ao rés do chão esquerdo por ninguém abrir a porta nas ocasiões em que ali se deslocaram”, contudo o Tribunal a quo não afirma que nessas duas datas (18 de Julho de 2016 e 1 de Agosto de 2016), essas testemunhas tenham atestado, ou confirmado, que a Ré estivesse efectivamente em casa.
Em relação à situação ocorrida em 18 de Outubro de 2016, relatada pelas testemunhas João …., João Miguel ….. e João S….. – todos à data funcionários de uma empresa que trabalha para a Autora -, que referiram que a Ré, nessa data mas em momento posterior, apareceu na escada desse prédio, tal não será suficiente para concluir que a Ré anteriormente estivesse efectivamente em sua casa.
O Tribunal a quo deveria ter valorado o depoimento da filha da Ré, Maria ….., que referiu expressamente no seu depoimento que no dia 1 de Agosto de 2016, a sua mãe não estava em casa.
O depoimento de parte da Ré não é contraditório com o testemunho da sua filha Maria ….., dado que ambas confirmaram que a não se estava em casa no dia 1 de Agosto de 2016.
Deveria ter sido considerado como provado que a Ré nunca recusou injustificadamente o acesso à fracção que habita, decisão de facto que sempre levaria a uma decisão diversa daquela alcançada na sentença posta em crise.
O artigo 1083.º, n.º 1 e 2, do CC tem de ser conjugado com os fundamentos de despejo previstos no NRAU, de modo a enquadrar a violação contratual com a cláusula de inexigibilidade estatuída no citado n.º 2 do artigo 1083.º, do Código Civil, devendo nessa conjugação intervir critérios de razoabilidade, adequação e proporcionalidade, de modo a acautelar princípios gerais de ordem pública, boa fé e abuso de direito,
A Autora invocou como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento a violação do disposto no artigo 1038.º. al. b), do Código Civil, ou seja, o dever que incumbe sobre o arrendatário de facultar ao locador o exame da coisa.
As situações referidas na sentença não são enquadráveis na violação culposa e reiterada do dever previsto no artigo 1038.º, al. b) do Código Civil, nem nos números 1, 2 ou 3 do artigo 1083.º, do mesmo Código, que determine a inexigibilidade da manutenção da relação contratual, pois a ser assim estaríamos numa situação de abuso de direito por parte da Senhoria, exercendo o direito à resolução do contrato de uma forma profundamente injusta e iníqua, com manifesto desrespeito pelos limites axiológico-materiais da comunidade e afectante do sentimento de justiça imanente à ordem jurídica e aos princípios de ordem pública.
Não existe fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
Nem para a condenação da Ré como litigante de má fé, dado que a mesma se limitou a apresentar a sua defesa, tal como qualquer cidadão o pode fazer quando lhe é movido um processo, num legítimo direito de discutir e interpretar a factualidade e o regime jurídico aplicável, ainda que não venha a conseguir demonstrar, pelo que nunca poderia ser condenada em multa e muito menos num valor correspondente a 816 €, tanto mais atentos os seus parcos rendimentos e as suas dificuldades económicas, reflectidos no facto de beneficiar de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como de nomeação e pagamento de compensação de patrono, e na renda mensal de € 49,65 pelo uso do locado.
A autora contra alegou a sustentar o acerto total da sentença proferida.
Objecto do recurso:
São as conclusões do recurso que limitam o objecto da matéria a reapreciar sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Nesta senda impõe-se decidida a impugnação da matéria de facto, saber se os factos provados conduzem à resolução do contrato de arrendamento habitacional por incumprimento culposo da ré e bem assim sufragar a condenação da ré como litigante de má-fé.
Conhecendo:
Fundamentação de facto:
Dou aqui por reproduzida a factualidade supra.
Fundamentação de direito:
A- Impugnação da matéria de facto
Da impugnação da matéria de facto:
O recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto terá de cumprir o ónus de alegação que lhe é imposto pelo artigo 640º do CPC sem o que verá o seu recurso nesta parte ser rejeitado.
Efectivamente, o artigo 640º do CPC (ao que nos interessa) prescreve que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2) “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;…
Da simples leitura do corpo da norma surge claro que o recurso deve ser rejeitado, se, designadamente falta a indicação expressa das passagens da gravação que no entender da recorrente fundamentam a alteração do julgamento de facto
Donde que, nesta parte o recurso é rejeitado de acordo com o disposto no artº 640º nº 1 e b) e 2 do CPC.
II - Do direito de resolução do contrato de arrendamento sub iudice invocado pela autora e reconhecido na sentença:
Na ultima década a lei do arrendamento tem sido objecto de profundas e constantes alterações.
A que nos interessa é a resultante da  Lei nº. 6/2006, de 17 de Fevereiro (NRAU), veio alterar profundamente as regras vigentes em sede de arrendamento urbano, quer habitacional, quer não habitacional.
 Uma das novidades paradigmáticas foi o art. 1083º do CC, designadamente do seu nº 1 e 2 (corpo) com a seguinte redacção:
“Qualquer das partes pode resolver o contrato nos termos gerais de direito com base em incumprimento de uma das partes” (nº 1) “É fundamento de resolução o incumprimento que pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente quanto à resolução pelo senhorio” (nº2)
Com esta norma os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento urbano ao dispor do senhorio, aquando de incumprimento do arrendatário alargaram-se a quaisquer causas de incumprimento, para além das especificadas nas diversas alíneas do seu nº 2
Não se cuidará aqui das divergências de interpretação que surgiram quanto à aplicabilidade do corpo do nº 2 aos casos previstos nas suas diversas alíneas porquanto o incumprimento suscitado nos autos é uma daquelas situações não previstas expressamente.
Haverá pois que discorrer e valorar a factualidade provada à luz do requisito exigido na lei para a resolução isto é declarar se tais factos constituem ou não  incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à senhoria  a manutenção do arrendamento.
Os critérios de valoração da conduta apontando para princípios gerais, não podem deixar de ser casuísticos e como tal estar balizados pelas concretas circunstâncias da execução contratual, das partes, do facto - incumprimento, da sua gravidade, da implicação deste na confiança reciproca na manutenção regular do vinculo e de todas as demais circunstâncias que possam servir para melhor ajuizar dos interesses em conflito e da natureza do facto ilícito do incumprimento.
Como refere Gravato Morais, Novo Regime do Arrendamento Urbano Comercial, 2ª edição, p. 209. , “(…) é necessário que o incumprimento seja de per si grave ou que se afira pelas consequências que faz operar.” e “ (…) imprescindível que qualquer dos elementos assinalados seja complementado com o conceito indeterminado de “inexigibilidade” da manutenção do arrendamento (…)”.
Sobre as obrigações do locatário dispõe o artigo 1038º do CC que prescreve que são obrigações do locatário (entre outras) a de facultar ao locador o exame da coisa locada (b) e a de tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade publica (e).
A conduta da ré traduzida no facto de não abrir a porta nos dias 1 de agosto de 2016 e de 18 de outubro de 2016, será passível de a fazer incorrer nestas previsões legais.
Haverá pois incumprimento.
Deste incumprimento decorreram consequências que pela sua gravidade torne inexigível à senhoria a manutenção do arrendamento?
Ora o que se apurou é que mercê desta conduta da ré a autora não realizou o planeamento e a orçamentação da obra de reabilitação da fracção ocupada pela ré, e bem assim que a CML não tivesse efectuado a vistoria ao interior do arrendado como estava esta agendada.
Tais consequências constituem um dano, pois determinam nova deslocação e repetição dos actos que não foi possível realizar então, todavia, não são de todo de difícil concretização.
Trata-se de uma repetição de tais diligências, que reconhece-se acarreta transtorno.
Esta consequência todavia não é suficiente para apelar o incumprimento da ré de grave.
A gravidade supõe a existência de um prejuízo assinalável, com uma reparação demorada, ou custosa.
Não se apuraram quaisquer consequências, relevantes nesta sede, sendo que e de resto, a autora não logrou demonstrar qualquer prejuízo económico decorrente do incumprimento assacado à ré.
Por outro lado estamos na presença de um contrato de arrendamento para habitação que teve o seu inicio em 1934, com o cônjuge já falecido da ré.
A autora é uma empresa que adquiriu o imóvel em 7.04.2016, tendo por via disso sucedido na posição da senhoria.
Assumimos, que na vigência de um contrato que dura há cerca de 80 anos atenta a data dos factos, a perda de confiança recíproca na manutenção regular do vinculo, terá de resultar de uma conduta reiterada e assaz comprometedora desta confiança, o que não é a nosso ver claramente o caso dos autos.
Efectivamente, não será proporcional face aos interesses em causa e conforme à equidade admitir que pelo facto da ré não ter aberto a porta por duas vezes num arrendamento com cerca de 80 anos de duração se tornou inexigível à senhoria a manutenção do mesmo ou seja que tal conduta neste contexto assume  um nível de gravidade e gera consequências tais que não seja razoavelmente exigível à outra parte (de um ponto de vista objectivo) a manutenção do contrato.
Está por isso a nosso ver afastada a previsão da cláusula constante do nº 2 do artigo 1083 do CC o que acarreta a improcedência da acção.
III - Finalmente a litigância de má-fé.
A sentença retira os seus fundamentos para a condenação da ré por litigância de má-fé em síntese no seguinte e passa-se a citar:
 “No caso em apreço, a ré alega na sua contestação que é “absolutamente falso que alguma vez tenha recusado o acesso à casa onde habita” (artigo 14.º). Mais declarou que a 1 de Agosto de 2016 não estava em casa, “como aliás a filha da Ré informou telefonicamente a Autora, pois estava no Algarve” (artigo 20.º). Alega ainda que “não estava em casa no dia 18 de Outubro de 2016 “ (artigo 22.º).
Resultou provado exactamente o oposto, ou seja, que no dia 1 de Agosto de 2016, a ré estava dentro da sua habitação, mas não abriu a porta ao representante da autora e aos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa quando estes bateram a essa porta. Mais se provou que no dia 18 de Outubro de 2016, os técnicos da Câmara Municipal de Lisboa deslocaram-se ao prédio mencionado no ponto 1) para realizarem a vistoria solicitada pela autora, mas não lhes foi dado acesso ao interior do r/ c esquerdo em cujo interior estava a ré que não abriu a respectiva porta quando tal lhe foi solicitado, o que inviabilizou a realização da vistoria.”
Desta forma, aquando da apresentação da contestação, a ré não poderia deixar de saber, porque são factos pessoais praticados pela própria, que estava em casa nas mencionadas datas e que, deliberadamente, não abriu a porta aos representantes da autora e aos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa, inviabilizando a realização de vistorias ao interior do locado.
Assim, podemos concluir que é falsa a alegação da ré na sua contestação de que não estava em casa nas mencionadas datas, bem como é falsa a alegação de que nunca tenha recusado o acesso à casa onde habita e que pertence à autora.
Atentas as circunstâncias do caso concreto, nos termos acima expostos, a ré agiu dolosamente, deduziu uma oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a verdade dos factos, negando que estivesse em casa nas datas agendadas para a realização de vistorias e que não impediu a realização das mesmas, quando, na verdade, de forma deliberada, não abriu a porta, recusando o acesso ao locado. A ré também utilizou os meios processuais com um fim manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal consubstanciado em evitar ser condenada na desocupação do imóvel arrendado em virtude da resolução do contrato de arrendamento, entorpecendo dessa forma a acção da justiça.
Por outro lado, a ré manteve a sua posição processual durante todo o processo, mesmo depois de ter sido advertida pelo Tribunal aquando da prolação do despacho saneador de que poderia haver lugar à condenação de alguma das partes em litigância de má-fé. Acresce que a ré não apenas manteve a sua posição ao longo de todo o processo, como manteve essa versão dos factos aquando da prestação de depoimento de parte, em que, estando sob juramento, faltou à verdade ao Tribunal.”
Não estamos de acordo com esta interpretação do tribunal “à quo”.
Desde logo importa aqui realçar que o ónus de provar que a ré estava em casa e não abriu a porta nos dias e horas referidos é da autora (artigo 342º nº 1 do CC) por se tratar de facto constitutivo do seu invocado direito à resolução.
O dever de colaboração e lealdade das partes não pode ir tão longe que se exija àquela que não tem o ónus da prova que não impugne os factos invocados pela contraparte e nomeadamente que não o faça motivadamente.
Por outro lado bem pode a ré iludir-se e enganar-se em situações como a dos autos em que se procura saber do seu paradeiro num dia e hora certos.
Não é seguramente este facto por se tratar de facto cuja prova está sujeita ao principio da prova livre, um daqueles factos pessoais que a litigância por má-fé pretende sancionar. Para nós os factos sancionáveis em sede de litigância de má-fé serão aqueles cuja prova no mínimo seja uma prova vinculada. (Basta pensar que o julgamento de facto pode no primeiro caso não ser confirmado em sede de recurso).
Por outro lado bem pode confundir sem culpa a data da ida ao médico com a data da ida de férias.
O que se passou foi que o tribunal à quo na valoração da prova testemunhal deu maior credibilidade à prova apresentada pela autora pelas razões que constam da motivação constante da sentença, tendo por consequência em face das versões contraditórias desconsiderado a contra prova apresentada pela ré.
Mas tanto é insuficiente, para a litigância de má-fé que supõe que a conduta sancionável seja praticada com dolo ou negligencia grave artigo 542º nº 2 do cpc.
Entende-se pois que no caso não há fundamento para a sanção cominada.
Revoga-se por tal razão a sentença também aqui.

Segue deliberação:
Na procedência da apelação, revoga-se a sentença apelada declarando a acção totalmente improcedente por não provada da mesma se absolvendo a ré.
Custas pela apelada.

Lisboa, 12 de Setembro de 2019.
Isoleta Almeida Costa
Carla Mendes
Octávia Viegas