Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
313/11.6TVLSB-B.L1-6
Relator: ANTONIO MARTINS
Descritores: ESCRITURAÇÃO COMERCIAL
APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O que o art.º 435º do CPC ressalva e manda reger pelo disposto na legislação comercial é a “exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos”.
- Os art.ºs 42º e 43º do Código Comercial, que protegem o segredo comercial, só são aplicáveis quando se trate da exibição de toda a escrituração comercial e documentos a ela relativos (os livros comerciais, máxime as compras, as vendas, o balanço, o inventário, os contratos).
– Assim, quando se trata de uma pequena parte dessa escrituração, como a apresentação dos livros de actas das reuniões dos Conselhos de Administração na secretaria do tribunal, com vista a que o autor possa identificar quais as reuniões de que pretende cópias para serem juntas aos autos, a pretensão não se rege pelo disposto na legislação comercial, obedecendo antes aos normativos e princípios atinentes previstos no CPC, maxime o princípio geral da cooperação, previsto no art.º 417º nº 1, do CPC, justificando-se que as apelantes, apesar de não serem parte na causa, estejam sujeitas ao dever de colaborar para a descoberta da verdade.
- Esta interpretação é conforme ao acolhimento, restrito, do sigilo profissional do comerciante o qual, embora se apresente como necessário a garantir um mínimo de segurança e confiança no funcionamento do comércio e no comerciante ou sociedade comercial, deve ceder perante um interesse público superior, o da realização da justiça.
- Não permitir o acesso aos documentos em causa, além de contrário ao espírito que anima a moderna dogmática processual civil, de uma exigência crescente quanto a um processo civil assente no apuramento da verdade, configuraria uma violação do princípio geral do processo justo e equitativo, consagrado no art.º 20º nº 4 da Constituição e com manifestações em instrumentos de direito internacional, máxime no “direito à prova”, consagrado na al. d) do nº 3 do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem para o “direito à prova em processo criminal”, deduzido daí para todos os processos jurisdicionais.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
1. Na acção ordinária[1] que o A move contra os RR, veio aquele requerer, além de outros meios de prova, “ao abrigo do disposto no artigo 432.º do CPC:
a) A notificação da Companhia A-S.A…, para vir juntar aos autos:
(i) Cópia certificada dos livros de atas do Conselho de Administração de 2000 a 2009 (ambos inclusive) para contraprova dos pontos 12 a 14, 15 a 23, 24, 25 a 32, 33 a 40, 46 a 49, 62 a 64, 83 a 86 e 93 dos temas de prova;
(ii) Cópia certificada do Regulamento do Conselho de Administração da Sociedade para prova/contraprova do ponto 61 dos temas de prova;
b) A notificação da B-S.A.…, para vir juntar aos autos:
(i) Cópia certificada dos livros de atas do Conselho de Administração de 2000 a 2009 (ambos inclusive) para contraprova dos pontos 15 a 23, 25 a 32, 41 a 45, 51 a 55, 72, 87 a 89 e 93 dos temas de prova;
(ii) Cópia certificada das atas da Comissão de Remunerações da Sociedade de maio e dezembro de 2003 para contraprova dos pontos 74 e 75 dos temas de prova.
c) A notificação da C-S.A,  …. , para vir juntar aos autos cópia do livro de atas do Conselho de Administração de 2004 para contraprova dos pontos 74 e 75 dos temas de prova”
Notificados, vieram os RR opor-se pugnando que o requerido pelo A quanto à junção aos autos de cópia certificada dos livros de atas do Conselho de Administração da A-S.A. de 2000 a 2009, quanto à junção aos autos de cópia certificada dos livros de atas do Conselho de Administração da B-S.A. de 2000 a 2009 e quanto à junção aos autos de cópia certificada dos livros de atas do Conselho de Administração da C-S.A. de 2004 seja indeferido.
Notificado o A, com vista a justificar a impossibilidade ou onerosidade de obter os documentos, veio informar ser-lhe impossível obter as actas em causa, por si, e justificar não só a razão subjacente à junção de tais actas, mas também porque é que não identificou concretamente as actas e que só o pode fazer acedendo aos livros de actas.
No processamento ulterior dos autos, foi proferido o despacho certificado a fls 77/78 que decidiu:
“Termos em que se determina, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 432º e 433º do NCPC, a apresentação, na secretaria, no prazo de 10 dias, pelas sociedades mencionadas nas als. a) a c), dos livros de actas dos conselhos de administração respeitantes aos anos indicados pelo A., o qual disporá de 10 dias para proceder à consulta e indicação de quais aquelas que pretende sejam extraídas cópias e juntas aos autos.”.
2. É desta decisão que, inconformadas, as notificadas vieram apelar, pretendendo a revogação da decisão recorrida.
Alegando, concluem:
A.  O presente recurso vem interposto do despacho proferido fls. 1564-1565, nos termos do qual foi ordenado às Recorrentes que apresentassem na Secretaria da Ir Vara Cível de Lisboa, os Livros de Actas dos respectivos Conselhos de Administração respeitantes aos anos 2000 a 2009 inclusive (no caso da Recorrente C-S.A. apenas o do ano de 2004), para que o Autor pudesse, no prazo de 10 dias, proceder à consulta e indicação de quais as actas que pretende sejam extraídas cópias e juntas aos autos.
B.   As ora Recorrentes não são partes nestes autos, mas a decisão contida nesse despacho prejudica-as directa e efectivamente, assistindo-lhes o direito de reagir contra tal diligência, já que são elas as titulares dos interesses que são protegidos pelas restrições legais a que tais exames estão sujeitos e que
não foram tidas em conta pelo Tribunal "a quo"

C.  O art. 4350 do CPC dispõe que a exibição judicial dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na lei comercial, sendo admitido pela generalidade da doutrina e da jurisprudência que a escrituração comercial abrange, para além da contabilidade do comerciante, diversos registos e arquivos, tais como actas, contratos, correspondência e outros documentos.
D.   A matéria relativa à escrituração mercantil, no que se refere às situações e condições em que a mesma pode ser exibida judicialmente, encontra-se regulada nos art.ºs 41º a 440 do Código Comercial, sendo indiscutível que tais normas especiais não foram revogadas pelos artigos do Código de Processo Civil referentes à prova, nomeadamente em poder de terceiro, mantendo-se a regra de que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
E.  O acórdão uniformizador de jurisprudência n." 2/98, de 22 de Abril de 1997 (publicado no DR, I Série-A, n." 6, de 8/1/1998, págs. 119 a 122, no BMJ nº 466, págs. 86 a 92 e disponível em www.dgsi.pt) decidiu que "O artigo 43º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida. "
F.  O art. 43° CCom impõe que a exibição dessa escrita só seja admissível quando a entidade a quem pertença tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação foi exigida, o que não se verifica no caso concreto, como fez questão de salientar o Tribunal "a quo" ao indeferir a intervenção provocada de duas das ora Recorrentes.
G.  O "Tribunal a quo" devia ter tido em conta que a escrituração mercantil é propriedade particular do negociante e não pode ser exibida e devassada, podendo - quanto muito - admitir-se a exibição de parte dessa escrita, desde que se entenda que a mesma é indispensável para o que se discute nos autos e apenas se se verificar um interesse público superior que justifique essa exibição, o que não foi sequer alegado pelo Autor no requerimento de junção de documentos.
H.  As decisões de Tribunais Superiores, que têm admitido exame à escrita mercantil de entidade que não seja parte na causa, ao abrigo do disposto no actual artigo 417° do CPC, têm-no feito de modo restritivo e com a justificação de que a entidade a quem pertence a escrita e documentos tem interesse ou responsabilidade na questão que se discute nos autos, o que não foi alegado, nem demonstrador pelo Autor.
I.  O Autor não justifica por que motivo necessita de ver todas as actas referentes a 9 anos de exercícios das Recorrentes, pelo que não podia o Tribunal “a quo" ter deferido esse pedido, sendo que tal decisão não respeita o princípio da proporcionalidade que deve estar presente na ponderação a efectuar entre o direito ao segredo mercantil e as exigências da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, sendo, por isso, ilegal.
J.  O despacho posto em crise é ilegal por violação do disposto nos artigos 42º e 43° do Código Comercial, aplicáveis à situação dos autos por força do art. 435° do CPC.
K.  Ainda que assim não se entenda - o que se equaciona, sem conceder - a realizar-se tal exame aos Livros de Actas das Recorrentes, tal só poderia
ocorrer nos termos prescritos no art. 43° do Cód. Com, ou seja, na sede das
Recorrentes e na sua presença, limitando-se o Autor a averiguar e extrair o
que respeita aos pontos relacionados com a questão que se discute nos autos. 

3. O A apresentou contra-alegações, nas quais pugna que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.  
4. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto
A factualidade relevante a tomar em consideração para a decisão do recurso é a constante do relatório supra, documentalmente comprovada.

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2. De direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[2].
Decorre do exposto que a questão que importa dilucidar e resolver, pode, no essencial, equacionar-se da seguinte forma:
O despacho recorrido é ilegal, desde logo por violação do disposto nos art.ºs 42º e 43º do Código Comercial[3], mas também porque as recorrentes não têm interesse ou responsabilidade na questão em que a apresentação das actas em causa é exigida, o A não justificou o motivo ou necessidade de ver todas as actas referentes a nove anos de exercício das recorrentes, não sendo ainda respeitado o princípio da proporcionalidade e, a realizar-se o exame aos livros de actas das recorrentes, tal só poderia ocorrer nos termos prescritos no art.º 43º do CCom, ou seja, na sede das recorrentes e na sua presença?  
Vejamos.

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A tese das recorrentes quanto à ilegalidade do despacho recorrido parte de um pressuposto, a violação do disposto nos art.ºs 42º e 43º do CCom, que na sua perspectiva seriam os preceitos aplicáveis por força do art.º 435º.
Analisados os argumentos das recorrentes afigura-se-nos, ressalvada melhor opinião em contrário, que os mesmos não são procedentes e que o despacho recorrido não é ilegal, tendo antes procedido a uma correcta aplicação do direito, nomeadamente dos princípios gerais aplicáveis à prova, como a seguir se procurará justificar.
         Não se duvida que os art.ºs 42º e 43º do CCom. se encontram em vigor, desde logo por força da doutrina que se pode extrair do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/98 invocado pelas apelantes na conclusão E das alegações, mas também porque ainda recentemente o legislador alterou o art.º 42º do CCom., como adiante se justificará, mantendo-o assim em plena vigência. Afigura-se-nos porém, ressalvando melhor opinião em contrário, que não são os mesmos aplicáveis à situação em causa nos autos, ao contrário do que defende a apelante.   
         Na verdade, o que o art.º 435º ressalva e manda reger pelo disposto na legislação comercial é a “exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos” [4]  (sublinhado da nossa autoria).
         Por outro lado cabe notar que a redacção actual do art.º 42º do CCom., introduzida pelo art.º 8º do DL nº 76-A/2006, de 29.03, é a seguinte: “A exibição judicial da escrituração mercantil e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de insolvência”.
Esta redacção alterou a anterior, do seguinte teor: “A exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de insolvência” (sublinhado igualmente da nossa autoria), que é a redacção a que as recorrentes fazem apelo no fundamento 12 das alegações, embora de forma desactualizada.
O preâmbulo do DL 76-A/2006 não nos fornece ajuda expressa no sentido de interpretar qual foi o sentido e alcance do legislador ao proceder à alteração que introduziu no art.º 42º. Mas conhecendo-se a divergência jurisprudencial sobre o alcance e extensão do segredo comercial, que culminou no referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência e atendendo a que se suprimiu a expressão “por inteiro” do art. 42º do CCom., até por argumentação à contrário sensu, cremos que o propósito do legislador foi no sentido de harmonizar ou clarificar a legislação comercial e a legislação processual civil (então o art.º 534º do CPC de 1961). Ou seja, quando se tratasse da exibição judicial, “por inteiro” dos livros da escrituração comercial e dos documentos a ela relativos essa questão era regulada pela legislação comercial. Não sendo uma exibição judicial “por inteiro” as regras aplicáveis seriam as do processo civil.
Aquela harmonização ou clarificação estão conformes com um acolhimento, restrito, do sigilo profissional do comerciante o qual, embora se apresente como necessário a garantir um mínimo de segurança e confiança no funcionamento do comércio e no comerciante ou sociedade comercial, deve ceder perante um interesse público superior, o da realização da justiça.
         Em anotação àquele art.º 534º do CPC revogado e após fazer a sua evolução legislativa, Lebre de Freitas conclui que: “(...) A exibição por inteiro dos livros e da escrituração comercial está, em princípio, vedada, mas tal não impede o exame ou inspecção parcial, na parte em que seja necessária à prova, para tanto bastando que se requeira o exame da escrituração que for necessária para apuramento de determinados factos"[5].
         Também no domínio do anterior CPC mas com jurisprudência que é invocável no âmbito do actual CPC, dada a redacção das normas em causa ser a mesma, decidiu o Ac. do TRPorto de 17.11.2008 (Relatora: Maria Adelaide Domingos)[6] que “O sigilo comercial não impede a junção aos autos de documentos inseridos na escrituração comercial de um terceiro, que não tenha interesse ou responsabilidade nos autos, nomeadamente facturas relativas aos negócios em discussão no processo entre as partes”.
Debruçando-nos sobre a questão concreta em causa nos autos, cumpre salientar que, do que se trata, não é de uma exibição judicial, por inteiro, da escrituração comercial das apelantes, ou seja, a exibição de toda a escrituração comercial e documentos a ela relativos (os livros comerciais, máxime as compras, as vendas, o balanço, o inventário, os contratos), colocando ou podendo colocar em causa o segredo mercantil quanto às apelantes. Não estamos, assim, perante aquilo que as apelantes se queixam: “uma inadmissível intromissão e devassa da sua vida societária”
Com efeito o que o A pretendia era apenas uma pequena parte dessa escrituração, com a junção dos livros de actas das reuniões dos Conselhos de Administração das apelantes (em relação a duas delas dos anos de 2000 a 2009 e em relação a outra do ano de 2004) sendo certo que o que foi decidido pelo despacho recorrido foi a apresentação desses livros na secretaria do tribunal, com vista a que o A possa identificar quais as reuniões de que pretende sejam extraídas cópias para, quanto a estas, poderem ser juntas aos autos.
Nestas circunstâncias não estamos, in casu, perante uma situação em que por força da amplitude do que se pretendesse – uma exibição judicial integral da escrituração comercial – se justificava que essa pretensão fosse analisada e decidida segundo as regras previstas na legislação comercial.
         Estamos antes perante a necessidade de junção de alguns documentos, constituídos por algumas actas das reuniões dos conselhos de administração de sociedades.
Consequentemente, a junção desses documentos, constituídos por algumas actas de reuniões dos conselhos de administração das sociedades, não se rege pelo disposto na legislação comercial, obedecendo antes aos normativos e princípios atinentes previstos no CPC que, in casu, se nos afigura terem sido observados.
         Desde logo o princípio geral da cooperação, previsto no art.º 417º nº 1, de que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, …, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”, a não ser nas situações de recusa legítima previstas no nº 3 do mesmo preceito, o que não é o caso dos autos.
         Compreende-se e justifica-se assim o apelo feito no despacho recorrido às “exigências crescentes de um processo civil assente no apuramento da verdade”, pois esse é o espírito que anima a moderna dogmática processual civil. Esta, com efeito, vem acentuando cada vez mais a ideia de que o processo não é apenas um assunto das partes ou uma “controvérsia privada” e que o mesmo deve ser resolvido não por uma qualquer decisão, com base numa qualquer “verdade formal”, mas deve ser resolvido por uma “decisão justa”. Considerando Michel Taruffo, de forma expressiva que “é condição necessária (mas não suficiente) para que se obtenha uma decisão justa que esta se funde na determinação da verdade dos factos da causa”[7]
         Nem se pretexte que as apelantes são terceiro, estranhas à lide e, como tal, aquelas exigências não se lhes imporiam da mesma forma ou com a mesma intensidade. Embora na verdade as apelantes não sejam parte na causa, a circunstância de serem terceiro não lhes permite uma maior margem para não estarem sujeitas ao mesmo dever de colaborar para a descoberta da verdade.
         Aliás deve fazer-se notar que as apelantes não são, in casu, um terceiro qualquer, ou seja, um terceiro completamente estranho à lide. Como flui dos autos as sociedades apelantes estão em relação de grupo societário com as RR - sociedades gestoras de participações sociais - sendo aliás dominadas ou participadas pelas RR., tendo o A desempenhado as funções de administrador (executivo ou não executivo) das mesmas. Assim, estando em causa nos autos decidir-se, além do mais, se houve justa causa de destituição do A e se há fundamento para condenar o A a pagar os danos peticionados em sede de reconvenção, parece-nos perfeitamente compreensível e justificável o interesse em se apurar qual foi a actuação global do A, enquanto administrador indicado pelas RR, nas reuniões dos conselhos de administração de tais sociedades apelantes.
Não constitui assim argumento válido o expendido pelas recorrentes de que não têm interesse ou responsabilidade na questão em que a apresentação das actas em causa é exigida. Na verdade, além de terem interesse, ainda que indirecto, o que está em causa é o direito do A a defender-se da responsabilidade que lhe é assacada pelas RR., ao deduzirem pedido reconvencional, com fundamento no exercício das suas funções, as quais incluíram a actividade de administrador executivo e não executivo das apelantes, indicado para o efeito pelas RR. 
  O que seria pelo contrário incompreensível e injustificável era permitir que as RR pudessem fazer a prova – já para não falar na “prova selectiva” aludida nas contra-alegações do apelado - dos factos em que consubstanciam o pedido reconvencional, por terem facilidade de acesso a todos os documentos das apelantes, dado estas serem dominadas ou participadas pelas RR., e o A se visse limitado na contra-prova (aliás note-se que é para esse fim, contra-prova, que é requerida a junção dos documentos em causa) que queira levar a cabo.
Mas, mais do que incompreensível, isso seria violador do princípio da igualdade das partes consagrado no art.º 4º, como alega o apelado. Ora, nos termos deste preceito, cumpre ao tribunal o dever de assegurar aquela igualdade, que não é uma qualquer igualdade formal, antes a substancial e efectiva, ou seja, a que tem o propósito de “assegurar o fim visado pelo princípio do contraditório”[8], que desta forma seria manifestamente colocado em causa. Nesta medida, in casu, até para assegurar aquela igualdade substancial das partes deve ser facultado o acesso aos documentos – actas - que consubstanciam as posições do A, enquanto administrador executivo ou não executivo das sociedades em causa, a fim de se poder analisar da correcção da sua actuação enquanto administrador.
         Deve ainda acrescentar-se que a tese das apelantes, de não se permitir o acesso aos documentos em causa, não poderia ser subscrita por este tribunal pela circunstância de isso configurar uma violação do princípio geral do processo justo e equitativo, consagrado no art.º 20º nº 4 da Constituição e com manifestações em instrumentos de direito internacional, máxime no “direito à prova”, consagrado na al. d) do nº 3 do art.º 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem para o “direito à prova em processo criminal”, e deduzido daí para todos os processos jurisdicionais.
Por outro lado, não assiste razão às apelantes quando invocam que o A não justificou o motivo ou necessidade de ver todas as actas referentes a nove anos de exercício das recorrentes.
         Não só o A justificou essa necessidade com o período em que exerceu aquelas funções de administrador executivo ou não executivo das apelantes, sendo que quanto a uma delas restringiu essa necessidade ao livro de actas de 2004, como justificou porque é que não conseguia indicar as reuniões concretas em que esteve presente e em que tomou posição, enquanto membro do conselho de administração, nas decisões deste órgão das sociedades, pois só o poderia fazer consultando precisamente tais livros. Foi assim dado cumprimento ao estatuído no art.º 429º, aplicável ex vi art.º 432º, que exige apenas que a parte “identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar”.
         Igualmente não têm razão as apelantes na alegada violação do princípio da proporcionalidade.
Na verdade, o direito ao segredo mercantil, nos termos previstos nos art.ºs 42º e 43º do CCom. não é aqui invocável, por não estarmos perante uma exibição por inteiro da escrituração comercial e, por outro lado, as exigências da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, como acima se procurou expor, foram devidamente valoradas e compatibilizadas com as necessidades das apelantes, que ficam apenas privadas dos livros de actas em causa (que nem são os que lhes estão a ser necessários no dia a dia), por um período de dez dias, os quais nesse período ficam depositados na secretaria do tribunal, aliás em consonância com o previsto no art.º 432º, para o A poder identificar quais as actas de que pretende sejam juntas cópias aos autos.
Nesta medida, também por inaplicabilidade do art.º 43º do CCom. e antes por aplicação do art.º 432º, não assiste igualmente razão às apelantes quanto consideram que o exame aos livros de actas das recorrentes só poderia ocorrer na sede das recorrentes e na sua presença e não na secretaria do tribunal.   
                   Em suma e em resumo, é de responder negativamente à questão supra equacionada, improcedendo assim as alegações das recorrentes, devendo pois confirmar-se o despacho recorrido.     *

III- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
Custas a cargo das apelantes.

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     Lisboa, 29-01-2015

(António Martins)

(Maria Teresa Soares)

(Maria de Deus Correia)

[1]  Proc. nº 313/11.6TVLSB da Comarca de Lisboa – Lisboa – Instância Central – 1ª Secção Cível – J8 
[2]    Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos por força do disposto no art.º 5º nº 1 da citada lei, diploma a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3]              Adiante designado abreviadamente de CCom.
[4]              Esta formulação vem já do CPC de 1961, inicialmente no nº 4 do art.º 519º e, depois da reforma de 1995/1996, introduzida pelo DL 329-A/95 de 12.12 e DL 189/96 de 25.09, no art.º 534º.
[5]  Código de Processo Civil Anotado, Volume II, págs. 437 e 438.
[6]Proferido no processo nº 0855318, acessível em http://jusnet.wolterskluwer.pt/, sob o nº de documento JusNet 6064/2008
[7]              Michel Taruffo, Tres observaciones sobre “Por quê um estándar de prueba subjectivo y ambiguo no es um estândar” de Larry Laudan, Doxa, Cuadernos de Filosofia Del Derecho, nº 28, Marcial Pons Ediciones Jurídicas e Socieles, Madrid, 2005,  pág. 118
[8] António Martins, Código de Processo Civil-Comentários e Anotações Práticas, Almedina, 3ª edição, pág. 23.