Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
639/20.8YRLSB-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
LEGITIMIDADE ACTIVA
SINDICATO
COMPETÊNCIA EXCLUSIVA
FRAUDE À LEI
LITISPENDÊNCIA
CASO JULGADO
DIREITO PROCESSUAL PORTUGUÊS
DIREITO LABORAL
DIREITO PÚBLICO
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 – A natureza e função da ação de revisão de sentença estrangeira implicam que, em primeira linha, e independentemente de outros legitimados, terão legitimidade para esta ação as partes que intervieram na ação revidenda e foram afetados na sentença nela proferida.
2 – Um acordo nos termos do qual uma das partes se obriga a não exigir o cumprimento de qualquer obrigação previdenciária, declara integralmente satisfeitos os pedidos por si deduzidos em ações devidamente identificadas e ainda que aceita a junção do acordo como pedido de desistência, em todos os processos e procedimentos em que o outro contraente seja parte, não permite, seja à luz do direito português, seja à luz do direito brasileiro, a conclusão de que a vontade real das partes correspondia à assunção de uma obrigação de desistência genérica em ações ainda não intentadas.
3 – A al. c) do art. 980º do CPC acolhe a tese da unilateralidade atenuada: o tribunal de revisão não controla a competência do tribunal que julgou de mérito, exigindo-se apenas que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes e que a competência do tribunal de origem não seja provocada em fraude à lei.
4 – Para os efeitos da alínea d) do art. 980º do CPC, os requisitos da litispendência e do caso julgado são determinados de acordo com o direito processual de reconhecimento (português), embora sem o efeito de exceção dilatória: a procedência gera uma decisão de mérito de indeferimento do pedido de revisão de sentença relativamente à qual se possa invocar litispendência ou caso julgado.
5 – A reserva de ordem pública internacional é um conceito indeterminado, cujo conteúdo não pode ser definido senão em concreto.
6 – A aplicação de direito privado laboral estrangeiro a relações jurídicas às quais é domesticamente aplicável, em regra, o direito público português, não viola a ordem pública internacional.
7 – Não ofende o princípio constitucional da igualdade uma decisão judicial que aplica a determinados trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, num determinado país, condições diversas das de outros trabalhadores da administração pública portuguesa, exclusivamente em função do circunstancialismo do concreto caso em julgamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
O Sindicato X, em representação dos seus associados A, B, C, D, E, F, G, H e I.
veio intentar contra o Estado Português, a presente ação declarativa com processo especial, ao abrigo dos artigos 978.º a 985.º do Código de Processo Civil, pedindo a revisão e confirmação da sentenças proferidas por tribunal brasileiro, transitadas em julgado que, respetivamente, condenaram o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo a pagar aos seus representados montante a quantificar em execução de sentença e homologou os cálculos para fixação do montante a pagar, correspondentes, à data de 24/02/2020, a € 289.253,46.
O Ministério Público foi citado, em representação do estado e deduziu oposição, pedindo, a final a sua absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, a sua absolvição do pedido.
Excecionou a ilegitimidade ativa dos associados F e G, por estarem aposentadas, não sendo habitual que os aposentados estejam sindicalizados e do associado C, por ter celebrado um acordo extrajudicial com o Estado Português que implicou desistência deste em todos os processos em que seja parte o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo.
Mais excecionou a existência de litispendência e caso julgado porquanto foram intentadas várias ações pelo Sindicato requerente contra o MNE com o mesmo pedido e causa de pedir, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
Em sede de mérito da pretensão, defende que o tribunal brasileiro que proferiu a sentença cuja revisão se pretende é incompetente por o litígio ter emergido de uma relação jurídico-administrativa portuguesa. Os representados do requerente integram os serviços do MNE e detêm com o Estado uma relação jurídica de emprego público em regime de contrato de trabalho em funções públicas, competindo aos tribunais administrativos e fiscais os julgamentos das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais – arts. 212º nº3 da CRP e 12º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Mais alega que a sentença em causa aplicou direito privado laboral a relações jurídicas às quais é aplicável direito público português, circunstância que ofende a ordem pública do Estado Português. Ofende igualmente a conceção de justiça do direito material, na medida em que os pedidos dos trabalhadores formulados perante os Tribunais dos Trabalho brasileiros resultam da aplicação da lei portuguesa que foi aplicada a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.
O Sindicato X veio responder, pedindo sejam julgadas improcedentes as exceções deduzidas e alegando, em síntese:
- quanto à exceção de ilegitimidade ativa das suas representadas F e G que as mesmas se mantêm como suas associadas aposentadas;
- quanto à ilegitimidade ativa do representado C, que se confunde legitimidade com uma eventual causa de extinção da obrigação, a qual apenas deverá ser conhecida em eventual e futura ação executiva. Ainda que assim se não entenda, a ação na qual foi proferida a sentença a rever não corresponde a qualquer das mencionadas no acordo celebrado em 19-08-2013, sendo que a ação aqui em causa apenas deu entrada em tribunal em 13/02/2014, na sequência da aplicação do Decreto regulamentar 3/2013;
- quanto à exceção de litispendência e caso julgado não tendo sido feita menção a qualquer decisão nem junta qualquer certidão, terá a exceção que improceder;
- quanto à violação dos critérios de repartição de competências internacionais dos tribunais, sendo o controlo da atividade de confirmação de uma sentença estrangeira meramente formal, o invocado é ininteligível, tendo sido consideradas violadas, pelo tribunal brasileiro, normas imperativas de ordem pública local, designadamente o princípio da irredutibilidade salarial, princípio comum ao ordenamento jurídico português.
Mais alega que no processo nº 968/12.4YRLSB que reviu sentença brasileira com idêntico objeto, nada obstou ao seu reconhecimento na ordem jurídica portuguesa.
O Estado Português veio, por requerimento autónomo, juntar cópias relativas a ações administrativas intentadas no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que havia protestado identificar.
Notificado o requerente não impugnou os documentos oferecidos e alegou verificar-se, dos mesmos, inexistir identidade de partes, de pedido e de causa de pedir.
Cumprido o disposto no art. 982º do CPC, o Ministério Público pronunciou-se pela recusa da revisão e confirmação dada a respetiva inadmissibilidade nos termos do disposto no art. 980º, als. c) e f) do CPC. Alega, em síntese, além das exceções já alegadas, que a sentença revidenda ofendeu a reserva de competência dos tribunais portugueses e que, ao aplicar direito privado brasileiro a relações jurídicas às quais é imperativamente aplicável o direito público português ofendeu princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
O Sindicato X veio igualmente pronunciar-se pedindo sejam as sentenças revidendas revistas e confirmadas e alegando, em síntese, que o sistema de revisão de sentenças estrangeiras é de ordem formal ou quase formal, afirmando a legitimidade ativa das trabalhadoras aposentadas e do trabalhador que celebrou o acordo, a improcedência das exceções de litispendência e caso julgado, quanto à alegada violação dos critérios de repartição de competências internacionais dos tribunais e reserva de ordem pública que o tribunal brasileiro aplicou normas imperativas de ordem pública local e que em idêntico caso este tribunal já reviu e confirmou sentenças de tribunal brasileiro.
Foram colhidos os vistos.
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2. Saneamento
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e da hierarquia.
Não há nulidades que invalidem todo o processado.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias.
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O Estado Português veio excecionar a ilegitimidade ativa do Sindicato requerente no tocante à representação das associadas F e G, alegando que estas se encontram aposentadas e não é habitual os trabalhadores aposentados serem sindicalizados.
Excecionou igualmente a ilegitimidade ativa do requerente quanto ao associado C, alegando que este celebrou acordo com o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo mediante o qual se obrigou a desistir em todas as ações em que seja parte o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo.
O requerente respondeu, pedindo a improcedência da exceção, respetivamente, quanto às duas representadas por continuarem a ser sindicalizadas, apesar de aposentadas e, quanto a C, estar a ser confundida legitimidade com uma eventual causa de extinção da obrigação, a qual apenas deverá ser conhecida em eventual e futura ação executiva. Ainda que assim se não entenda, a ação na qual foi proferida a sentença a rever não corresponde a qualquer das mencionadas no acordo celebrado em 19-08-2013, sendo que a ação aqui em causa apenas deu entrada em tribunal em 13/02/2014, na sequência da aplicação do Decreto regulamentar 3/2013.
Com relevância para a decisão da exceção mostram-se apurados os seguintes factos, com base nos termos dos autos e nos documentos e referencias juntos e não impugnados:
1 – As sentenças cuja revisão é peticionada nestes autos foram proferidas em ação intentada por A, B, C, D, E, F, G, H e I, contra o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, conforme certidão de sentença estrangeira junta aos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2 – Foi celebrado, com data de 19 de agosto de 2013, entre o Estado Português (Ministério dos Negócios Estrangeiros) como Primeiro Outorgante e C, como Segundo Outorgante, o termo de acordo e quitação junto aos autos com a oposição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta, nomeadamente, na cláusula segunda que:
- “Pelo montante recebido, o Segundo Outorgante dará quitação quanto às parcelas discriminadas no presente termo, comprometendo-se a não acionar o Primeiro Outorgante para exigir o cumprimento de qualquer obrigação previdenciária, sem prejuízo de eventuais reivindicações diretamente junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por benefícios previdenciários a que tiver direito junto àquele órgão.”
3 – Mais consta na cláusula quarta que:
- “O Segundo Outorgante declara ainda, sem reservas, que estão integralmente satisfeitos todos os pedidos deduzidos por si ou através de representante sindical, judicial ou administrativamente, em Portugal e no Brasil, designadamente:
No processo n° 00752006920075020007, que tramita perante a 7a Vara do Trabalho da Capital de São Paulo, Brasil;
No processo 2755/10.5BESLB, a correr termos na 3a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;
No processo n° 764/11.6BELSB, a correr termos na 5a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;
No processo n°1240/11.2BELSB, a correr termos na 5a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
2. Os Outorgantes desde já aceitam, sem reservas, que o presente acordo seja junto aos autos respectivos, como pedido de desistência do Segundo Outorgante, em todos os processos ou procedimentos em que o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou o Consulado Geral de Portugal em São Paulo, seja Parte.”
4 – Constando ainda, na cláusula quinta:
- “O Primeiro Outorgante declara, pelo presente, que aceita a desistência dos pedidos discriminados no nº1 da cláusula quarta (letras "a.b.c.d") para todos os efeitos legais.”
5 – A ação na qual foi proferida a primeira decisão cuja revisão é aqui peticionada foi interposta por petição inicial datada de 13 de fevereiro de 2014, conforme documento nº2 junto com o requerimento inicial.
6 – O Sindicato X é uma associação constituída por tempo ilimitado pelos trabalhadores não pertencentes ao quadro diplomático ou equiparado do Ministério dos Negócios Estrangeiros que exerçam profissão técnica, administrativa ou auxiliar nos consulados, missões diplomáticas e organismos portugueses dependentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros no estrangeiro (conforme estatutos publicados no BTE nº40 de 29/10/2011).
7 – Nos termos do disposto no art. 7º nº1 dos referidos Estatutos “Podem aderir ao Sindicato todos os trabalhadores que estejam nas condições previstas no artigo 1º dos presentes estatutos.”
8 - Nos termos do art. 9º dos referidos estatutos: “Os trabalhadores que, por motivo de aposentação ou reforma, cessem a sua atividade profissional podem manter a sua qualidade de sócios, mediante comunicação escrita dirigida à comissão executiva.”
9 - F é sócia (aposentada) nº 870 do Sindicato dos Trabalhadores Consulares e das Missões Diplomáticas no Estrangeiro, tendo procedido ao pagamento das quotas relativas aos meses de janeiro a dezembro de 2020, conforme docs. 2 e 4 juntos com o requerimento de 31/03/2020, que aqui se dão por reproduzidos.
10 - G é sócia (aposentada) nº 458 do Sindicato dos Trabalhadores Consulares e das Missões Diplomáticas no Estrangeiro, tendo procedido ao pagamento das quotas relativas aos meses de janeiro a dezembro de 2020, conforme docs. 1 a 3 juntos com o requerimento de 21/09/2020, que aqui se dão por reproduzidos.
Apreciando:
Os arts. 978º e ss. do CPC não contêm qualquer norma específica quanto à legitimidade na presente ação especial, pelo que valerão as regras gerais.
 Nos termos do art. 30º nº1 do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. Nos termos do nº3 do mesmo preceito, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo A., preceito que veio por fim à conhecida querela entre as posições de Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela posição do segundo.
O interesse em demandar, prescreve o nº2 do preceito, exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
A natureza e função da ação de revisão de sentença estrangeira levam-nos a afirmar que, em primeira linha, e independentemente de outros legitimados, terão legitimidade para esta ação as partes que intervieram na ação revidenda e foram afetados na sentença nela proferida.
Aliás, como referido no Ac. TRP de 12/06/1984 (Joaquim Gonçalves) a tal legitimidade é mesmo indiferente a posição primitiva processual das partes (na ação revidenda) “A revisão de uma sentença estrangeira pode ser pedida conjuntamente por aqueles quer nela intervieram como autores e como réus.” (disponível em www.dgsi.pt).
Como se escreveu na decisão sumária TRL de 04/10/11 (Paulo Rijo Ferreira) a propósito da legitimidade processual em ação de revisão de sentença estrangeira: “Sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser directamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a acção – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação).” (disponível em www.dgsi.pt).
Assim, e quanto aos representados F, G e C, nenhuma questão de legitimidade processual se levanta – foram AA. e vencedores na ação em que foi preferida a sentença revidenda, pelo que dispõem de legitimidade para requerer a sua revisão.
O que o oponente Estado Português questiona é a legitimidade do requerente Sindicato para representar F e G, defendendo que elas não serão suas associadas por se terem aposentado.
Apurou-se, no entanto, que, apesar de aposentadas, F e G são associadas atuais do Sindicato requerente, pelo que, nos termos do disposto no art. 5º nº2, al. c) do Código de Processo de Trabalho, o Sindicato pode exercer o presente direito de ação em representação de ambas.
Quanto ao representado C:
A alegação efetuada dirige-se, não à legitimidade processual do representado, mas antes à inexistência do direito que se pretende fazer valer – de revisão da sentença estrangeira – mediante a invocação de acordo extrajudicial que terá abrangido a ação em que foram proferidas as sentenças revidendas.
Trata-se, assim, de uma questão de legitimidade substantiva, a ser dilucidada em sede de apreciação de mérito da presente ação de revisão, e não de legitimidade processual, face ao disposto no nº3 do art. 30º do CPC, como já referido.
Improcede, assim, a arguida ilegitimidade ativa do Sindicato requerente relativa aos representados F, G e C.
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As partes são legítimas.
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O Estado Português arguiu, como exceção dilatória litispendência e caso julgado, alegando terem sido por este sindicato e seus associados intentadas várias ações em Portugal, nos Tribunais Administrativos, com os mesmos autor, sindicato, pedido e causa de pedir, pelo que pede a absolvição da instância nos termos do disposto no art. 577º, al. l) do CPC.
Juntou, posteriormente, peças processuais de três ações intentadas no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
O requerente respondeu, alegando inexistir identidade de autores, pedido e causa de pedir relativamente às ações identificadas, pedindo a improcedência da exceção.
Apreciando:
Pese embora a expressa alegação de litispendência e caso julgado como exceção dilatória[1], a concreta alegação do requerido e a concreta defesa do requerente dirigem-se, não à arguição de litispendência ou caso julgado em relação à presente instância de revisão de sentença estrangeira, que seria subsumível às regras dos arts. 580º, 581º, 576º e 577º, al. i), todos do CPC, mas sim à condição de confirmação prevista na alínea d) do art. 980º do CPC.
De facto, o que se alega é uma verificação de litispendência ou caso julgado entre ações intentadas em tribunais portugueses e a ação em que foi proferida a sentença a rever, a esta se dirigindo as alegações de identidade de partes, pedido e causa de pedir.
Tal alegação, na presente sede, não configura uma exceção dilatória desta instância de revisão de sentença estrangeira, mas sim uma condição de confirmação da sentença a rever, a apreciar, não em saneamento, mas em sede de mérito[2].
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Não há outras nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e que impeçam o conhecimento de mérito.
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3. Objeto da causa
A única questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da decisão estrangeira apresentada, havendo que conhecer, face às alegações das partes:
- existência do direito à revisão por parte do representado da requerente, C;
- averiguação da concorrência dos requisitos previstos nas als. a) a f) do art. 980º do CPC (nomeadamente aqueles cuja não verificação foi expressamente invocada – alíneas c), d) e f) do referido preceito).
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4. Fundamentação
4.1. De facto:
Resultam da prova documental produzida, com relevância para a decisão da causa (artigos 607º, nº 4 do CPC e 371º do Código Civil), os seguintes factos:
1 - A, B, C, D, E, F, G, H e I, intentaram contra o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo, mediante petição inicial datada de 13 de fevereiro de 2014, reclamação trabalhista com processo ordinário, que, sob o nº 0000787-98.2014.5.02.0085, correu termos no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 85ª Vara do Trabalho de S. Paulo, pedindo, a final, “o reconhecimento da nulidade da alteração unilateral da forma de cálculo do salário dos reclamantes (operada pelo Decreto Regulamentar nº 3/2013 que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013) (…) e a determinação ao reclamado para que restabeleça definitivamente o pagamento dos salários com base na cotação do Euro na data do vencimento da obrigação, bem como seja o reclamado condenado a pagar aos reclamantes as seguintes verbas:
a) diferenças salariais decorrentes da alteração da fórmula de cálculo dos salários, a partir de Setembro de 2013, com reflexos sobre horas extras, 13º e 14º salários, férias+1/3 e FGTS+40%, (…) a apurar;
b) 13º salário integral de 2012 (que alegaram não ter sido pago por dificuldades financeiras do governo português) (…) a apurar;
c) férias integrais de 2012 em dobro acrescidas do terço (alegado como não pago) (…) a apurar;
d) indemnização por perdas e danos relativa às despesas com advogado no importe de 20% sobre o total da condenação (…) a apurar;”
conforme documentos nº1e nº2 juntos com o requerimento inicial.
2 – Por sentença de 29/08/2014, proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 85ª Vara do Trabalho de S. Paulo, foi decidido:
“ANTE O EXPOSTO, declaro nula, de forma incidental, a alteração, na forma de apuração dos salários promovida pelo Decreto Regulamentar 03/2013 (capítulo “3”) e decido julgar PROCEDENTES EM PARTE os pedidos da reclamação trabalhista proposta por A, B, C, D, E, F, G, H e I para condenar a reclamada Consulado Geral de Portugal em São Paulo, nos exatos termos da fundamentação, que se incorpora a este dispositivo, às seguintes obrigações e verbas:
a) o restabelecimento da antiga forma de apuração dos salários, ou seja, o pagamento em moeda nacional e atrelada à cotação do Euro na data do pagamento dos salários, a contar de 10 dias da publicação desta sentença, sob pena de aplicação de multa única de R$ 20.000,00 a ser revertida aos trabalhadores (capitulo “3”);
b) diferenças salariais, conforme a determinação acima, a partir de setembro de 2013 e reflexos em décimo terceiro salário, férias + 1/3 e FGTS (capítulo “3”);
c) décimo terceiro salário referente a 2012, nos moldes previstos na Lei -4.090/62, autorizando-se a dedução das parcelas já pagas sob o mesmo titulo (capitulo “4”);
d) férias + 1/3 referente ao período de 2012, observando-se os períodos aquisitivos e de gozo em relação a cada reclamante, de forma a apurar em fase de liquidação se deve ser paga de forma simples ou dobrada, autorizando-se a dedução do montante já pago sob o mesmo título (capitulo “5”).
Tudo a ser apurado em liquidação de sentença, através de cálculos (art. 879 da CLT), acrescidos de juros de mora no importe de 1% ao mês a contar da data do ajuizamento da ação e atualização monetária na forma da lei, atentando-se para Súm. 200 do TST e considerando-se como época de correção monetária o mês subsequente ao vencido, conforme fundamentação.
Descontos previdenciários sobre o salário de contribuição, observada a legislação própria e a incidência mês a mês. Descontos fiscais nos moldes do art. 12-A da Lei 7.713/88, com a nova redação dada pela Lei 12.350/2010. Tudo conforme fundamentação.” conforme doc. nº4 junto com o requerimento inicial e doc. nº1 junto em 02/03/2020, com o requerimento ref.ª 35019224.
3 – Por Acórdão do Tribunal Regional de Trabalho da 2ª Região de 25/06/2015, transitado em julgado, foi tomado conhecimento do recurso interposto da decisão referida em “5” e, no mérito, foi negado provimento ao mesmo (conforme doc. nº1 junto em 02/03/2020, com o requerimento ref.ª 35019224).
4 – Por sentença de 4 de agosto de 2016, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 85ª Vara do Trabalho de S. Paulo, foi decidido:
“Homologo os cálculos apresentados pelo reclamante a fls. 316/410 ante a conformidade com os termos do julgado. Descontos fiscais e previdenciários conforme determinado em sentença.
Posto isso, fixo o valor bruto da condenação em R$ 1.373.201,87 atualizado até 01/10/2015, atualizáveis até a data do efetivo pagamento.
O valor total da execução refere-se ao:
- Valor bruto da reclamante A no importe de R$ 140.464,84, sendo R$ 122.950,58 referentes ao principal e RS 17.514,26 de juros, cm 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a titulo de imposto de renda (R$ 4.305,26, ref.29 meses e R$ 93.474.18 de Base tributável, nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 8.625,72);
- INSS ré R$ 23.482,98;
- Valor bruto da reclamante B no importe de R$ 127.383.81, sendo R$ 111.781,90 referentes ao principal e R$ 15.601.91 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a título de imposto de renda (R$ 1.747,91, ref. 29 meses e R$ 76.425,19 de Base tributável, nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 7-522,12);
- INSS ré R$ 19.307,88;
- Valor bruto da reclamante C no importe de R$ 68.641,47, sendo R$ 58.866,90 referentes ao principal e R$ 9.774,57 de - juros, em 01/10/2015. Deverão, ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a título de imposto de renda (Isento, nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (RS 3.347,27);
- INSS ré R$ 9.028,16;
- Valor bruto da reclamante D no importe de R$ 119.795,29, sendo R$ 105.041,29 referentes ao principal e R$ 14.753,99 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a título de imposto de renda (RS 1.496,49, ref. 29 meses, ref R$ 71.797.50 nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 7.223.10);
- INSS ré R$ 18.174,74;
- Valor bruto do reclamante E no importe de R$ 68.897,99, sendo R$ 60.389.86 referentes ao principal e R$ 8.508,13 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a titulo de imposto de renda (Isento nos termos da IN/RFB n. 1127/201 1) e INSS-quota empregado (R$ 3.713,59);
- INSS ré R$ 10.081.63;
- Valor bruto da reclamante F no importe de R$ 221.537,61, sendo R$ 191.936.58 referentes ao principal e R$ 29.601,03 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a titulo de imposto de renda (R$ 13.916.47, ref. 27 meses, ref. R$ 131.718,26 nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 11.263,86);
- INSS ré R$ 32.885,89;
- Valor bruto da reclamante G no importe de R$ 208.281,61, sendo R$ 180.396.53 referentes ao principal e R$ 27.885,08 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a titulo de imposto de renda (R$ 11.614,70, ref. 27 meses, ref. R$ 123.348,18 nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 10.834,45);
- INSS ré R$ 30.862,00;
- Valor bruto do reclamante H no importe de R$ 57.330,65, sendo R$ 50.299,72 referentes ao principal e R$ 7.030,92 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a título de imposto de renda (Isento nos termos da IN/RFB n. II27/2011) e INSS-quota empregado (R$ 3.001,20);
- INSS ré R$ 8.273,37;
- Valor bruto da reclamante I no importe de R$ 184.268,46, sendo R$ 156.342,50 referentes ao principal e R$ 27.925,96 de juros, em 01/10/2015. Deverão ser deduzidos do crédito bruto do reclamante os valores apurados a título de imposto de renda (R$ 11.369.73, ref. 19 meses. ref. R$ 98.423.92 nos termos da IN/RFB n. 1127/2011) e INSS-quota empregado (R$ 8.113,05);
- INSS ré R$ 24.503,50;
- Custas processuais de R$ 1.204,73.”, conforme doc. nº4 junto em 02/03/2020 com o requerimento referência 35019287.
5 – Foi celebrado, com data de 19 de agosto de 2013, entre o Estado Português (Ministério dos Negócios Estrangeiros) como Primeiro Outorgante e C, como Segundo Outorgante, o termo de acordo e quitação junto aos autos com a oposição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e do qual consta, nomeadamente, na cláusula segunda que:
- “Pelo montante recebido, o Segundo Outorgante dará quitação quanto às parcelas discriminadas no presente termo, comprometendo-se a não acionar o Primeiro Outorgante para exigir o cumprimento de qualquer obrigação previdenciária, sem prejuízo de eventuais reivindicações diretamente junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por benefícios previdenciários a que tiver direito junto àquele órgão.”
6 – Mais consta na cláusula quarta que:
- “O Segundo Outorgante declara ainda, sem reservas, que estão integralmente satisfeitos todos os pedidos deduzidos por si ou através de representante sindical, judicial ou administrativamente, em Portugal e no Brasil, designadamente:
No processo n° 00752006920075020007, que tramita perante a 7a Vara do Trabalho da Capital de São Paulo, Brasil;
No processo 2755/10.5BESLB, a correr termos na 3a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;
No processo n° 764/11.6 BELSB, a correr termos na 5a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa;
No processo n°1240/11.2 BELSB, a correr termos na 5a Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
2. Os Outorgantes desde já aceitam, sem reservas, que o presente acordo seja junto aos autos respectivos, como pedido de desistência do Segundo Outorgante, em todos os processos ou procedimentos em que o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou o Consulado Geral de Portugal em São Paulo, seja Parte.”
7 – Constando ainda, na cláusula quinta:
- “O Primeiro Outorgante declara, pelo presente, que aceita a desistência dos pedidos discriminados no nº1 da cláusula quarta (letras "a.b.c.d") para todos os efeitos legais.”
8 - O Sindicato X, mediante petição inicial entrada em 09/05/2011, em defesa coletiva dos interesses individuais dos seus associados, representando, entre outros, dos aqui requerentes apenas A, B, C, D, E, F e G, intentou contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o Instituto Camões, IP e o Ministério das Finanças e da Administração Pública, ação administrativa comum, que, sob o nº 1240/11.2BELSB, correu termos na 5ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo a condenação solidária das entidades demandadas:
“de acordo com as suas atribuições, a não prolatar ato administrativo de atribuição e processamento dos vencimentos e abonos dos associados do A., com fundamento no artigo 19º nºs 1 e 4, al. a) da Lei do Orçamento, no mês de janeiro de 2011 e em todos os meses subsequentes;
Ou seja,
Devem as entidades demandadas ser condenadas a atribuir e processar os vencimentos e abonos dos associados do A. em conformidade com o quadro normativo-legal vigorante em 2010.”, fundando a sua pretensão na inconstitucionalidade formal e material da Lei nº 55-A/2010 de 31/12/2010, conforme doc. nº1 junto com o requerimento de 19/05/2020.
9 – Por sentença de 31/12/2015, proferida no processo nº 1240/11.2BELSB, pela 5ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi decidido:
“Termos em que decido julgar extinta a presente instância por inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, de acordo com a alínea e) do art. 277.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto nos arts. 1.º e 42.º, n.º1, do CPTA.”
10 - O Sindicato X, mediante petição inicial entrada em 23/03/2011, em defesa coletiva dos interesses individuais dos seus associados, representando, entre outros, dos aqui requerentes apenas A, B, C, D, E, F, G e I, e, intentou contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério das Finanças e da Administração Pública, ação administrativa comum, com o nº 764/11.6BELSB, da 5ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo a condenação solidária das entidades demandadas:
“em cumulação de pedidos, a compensar os associados do A. ora representados pelas percas cambiais para cada um identificadas por via da majoração das suas retribuições, nos termos acima concretizados, com efeitos a 1 de janeiro de 2010.”, invocando a depreciação sofrida pelos trabalhadores a exercer funções fora da zona euro devido às variações cambiais, conforme doc. nº2 junto com o requerimento de 19/05/2020.
11 - O Sindicato X, em defesa coletiva dos interesses individuais dos seus associados, representando, entre outros, dos aqui requerentes apenas A, B e C, intentou contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o qual foi citado em 14/01/11 e o Ministério das Finanças e da Administração Pública, ação administrativa comum, com o nº 2755/10.5BELSB, da 3ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo a condenação solidária das entidades demandadas:
“a pagar aos associados do A., nos termos explicitados e de acordo com a documentação junta relativa a cada interessado, a quantia global de € 5.947.228,20, referente a capital, por referência às diferenças salariais a que cada um tem direito, incluindo os juros vencidos, contados desde 1 de janeiro de 2009, assim como os juros vincendos até efetivo e integral pagamento, procedendo, sobre cada uma das quantias a processar e por referência a cada trabalhador, à retenção na fonte dos valores devidos a título de impostos, segurança social e quotização sindical.”, invocando a discriminação salarial entre trabalhadores sujeitos ao regime da função pública e trabalhadores sujeitos ao regime de contrato individual de trabalho com as mesmas categorias e a desempenhar as mesmas funções, conforme doc. nº3 junto com o requerimento de 19/05/2020.
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4.2. De direito:  
O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se no denominado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal, o que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa[3].
Nos termos do disposto no nº1 do art. 978º do CPC, «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.»
Nos termos deste preceito, a primeira averiguação em sede de revisão é a determinação de se estamos ante uma decisão estrangeira sobre direitos privados.
As decisões cuja revisão é peticionada foram emitidas por tribunal estadual brasileiro, nenhuma questão surgindo, quanto à qualificação como decisão estrangeira.
Alberto dos Reis[4] ensinava que a alteração, no anterior código de processo civil, da expressão “sobre direitos civis” para “sobre direitos privados”, teve por fito estabilizar o que a doutrina já então defendia, a inclusão das decisões sobre direito comercial e excluir da mesma as decisões sobre direitos públicos, políticos ou não políticos, designadamente as sentenças criminais. Mas já então o Ilustre Processualista advertia que a natureza do tribunal não era de considerar: “o que importa é o objeto da decisão, e não a natureza do tribunal. Que este seja comum ou especial, é indiferente.”
Como ensina Luís de Lima Pinheiro[5] a qualificação da decisão estrangeira como decisão sobre direitos privados é feita de acordo com o direito de reconhecimento português, “com base numa interpretação autónoma dos conceitos utilizados para delimitar a previsão da norma de reconhecimento.”
Nomeadamente, quanto ao carater privado da decisão, depois de concordar que o que importa é o objeto da mesma e não a natureza do tribunal que a proferiu, esclarece que “A decisão deve ter por objeto uma relação que no Estado de reconhecimento seja considerada “privada”. Para efeitos desta apreciação a relação tem de ser caraterizada juridicamente perante a ordem jurídica do Estado de origem. É uma qualificação segundo o Direito de reconhecimento do foro com base numa caraterização feita perante a ordem jurídica do Estado de origem.” Em resumo, “o carater privado da relação controvertida deve ser entendido com autonomia relativamente ao direito material interno”[6].
No caso concreto, face ao conteúdo das decisões a rever, que versam a relação laboral entre o Estado Português e trabalhadores seus a prestar serviço em território brasileiro, não se levanta qualquer questão[7] quanto à qualificação desta relação de um empregador com os seus funcionários como privada, à luz do direito brasileiro e à luz do direito nacional.
Resta, e porque a parte passiva neste pedido de revisão de sentença estrangeira é o Estado Português, afirmar que, dada a matéria objeto da decisão a rever, não estamos perante matéria em que pudesse ter sido invocada – como não foi – imunidade de jurisdição[8].
Como se escreveu no Ac. TRC de 10/05/2016 (Maria João Areias)[9] “A imunidade Jurisdicional dos Estados Estrangeiros constitui uma regra de direito internacional segundo a qual um Estado soberano não pode ser demandado num tribunal de um outro Estado, traduzindo, assim, uma garantia que o Estado disfruta em relação a si próprio e aos seus bens e que impede que outros Estados exerçam jurisdição sobre os atos que realiza no exercício do seu poder soberano.
Na consolidação da teoria relativa da imunidade de jurisdição do Estado, dela se consideram atualmente excluídos os atos de gestão (respeitantes a atos e contratos privados), apenas sendo considerados atos de imunidade de jurisdição dos estados os praticados sob a denominação de atos de império.”
Assim, e face à conclusão já acima atingida sobre a natureza privada dos direitos versados nas decisões revidendas, estamos claramente situados nos atos de gestão do Estado Português, não sendo aplicável a regra da imunidade de jurisdição[10].
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4.2.1. Direito à revisão por parte do representado do requerente, C
Recordando, o oponente excecionou a ilegitimidade ativa do sindicato requerente quanto ao associado C, alegando que este celebrou acordo com o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo mediante o qual se obrigou a desistir em todas as ações em que seja parte o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros ou o Consulado Geral de Portugal em S. Paulo.
O requerente respondeu, pedindo a improcedência da exceção, por estar a ser confundida legitimidade com uma eventual causa de extinção da obrigação, a qual apenas deverá ser conhecida em eventual e futura ação executiva. Ainda que assim se não entenda, alega que a ação na qual foi proferida a sentença a rever não corresponde a qualquer das mencionadas no acordo celebrado em 19-08-2013, sendo que a ação aqui em causa apenas deu entrada em tribunal em 13/02/2014, na sequência da aplicação do Decreto regulamentar 3/2013.
Em sede de saneamento entendeu-se ser a questão de legitimidade substantiva, relegando-se a sua apreciação para a presente sede.
A questão suscitada analisa-se na alegação de um acordo extrajudicial que, na perspetiva do oponente, abrangerá a ação na qual foram proferidas as decisões a rever. O representado foi parte naquela ação e, como se referiu, a sua legitimidade processual para a presente ação de revisão não está em causa.
A perspetiva do requerente, é de que tal apenas poderá ser apreciado em futura e eventual execução (se concedido o exequatur). No entanto, tal não se afigura correto dadas as finalidades do instituto de revisão. Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[11] “Ponto é que se verifique relativamente ao pedido de revisão o interesse em agir revelado pelas vantagens que a revisão da sentença possa determinar para o requerente ou requerentes e que não possam ser alcançadas com a mesma segurança por outra via.”
Se o representado não tiver direito nem interesse na executoriedade da sentença estrangeira, não tem, igualmente, interesse em ver decretada a respetiva revisão, devendo a existência desse direito ser averiguada nestes autos e não em futura execução – se a revisão for concedida.
E apreciando, dir-se-á que, confrontando os termos do acordo (constantes de 5, 6 e 7 da matéria de facto provada) com os dados da ação na qual foram proferidas as decisões revidendas, desde logo se verifica que o acordo foi celebrado em 19/08/2013 e que a ação deu entrada posteriormente, em 13/02/2014.
O acordo resume-se à assunção, por parte do segundo outorgante, da obrigação de não acionar o Estado Português para exigir o cumprimento de qualquer obrigação previdenciária e da declaração de satisfação e consequente desistência do pedido de várias ações.
Consta textualmente da cláusula 4ª, nº2: “Os Outorgantes desde já aceitam, sem reservas, que o presente acordo seja junto aos autos respectivos, como pedido de desistência do Segundo Outorgante, em todos os processos ou procedimentos em que o Estado Português, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou o Consulado Geral de Portugal em São Paulo, seja Parte.”
Esta cláusula, lida conjuntamente com a cláusula 5ª significa, com clareza, uma declaração de desistência do pedido em quatro ações judiciais identificadas no nº1 da cláusula 4ª.
Porque parte dessas ações são ações judiciais pendentes em tribunais portugueses, é-nos lícito recorrer, para a interpretação deste acordo, ao sentido normal da declaração, nos termos do art. 236º do Código Civil Português, atento o disposto no art. 35º do mesmo diploma.
A ação na qual foram proferidas as decisões cuja revisão se pretende não é uma das ali identificadas – o que bem se entende dado que foi interposta posteriormente. Logicamente, também esta concreta ação de revisão de sentença estrangeira não se encontra ali listada.
Assim, as questões relevantes são somente as seguintes:
- se esta ação (onde foram proferidas as decisões a rever) corresponde à exigência do cumprimento de uma obrigação previdenciária; e assim sendo teremos que ponderar qual a amplitude da obrigação assumida e de que modo afeta este pedido de revisão;
- se o nº2 da cláusula quarta pode ser interpretado como uma desistência do pedido do representado em processos ainda não intentados naquela data.
Quanto à primeira questão, basta a consulta de um dicionário generalista online[12] para confirmar a intuição de que previdenciário é o que é relativo à previdência social, ou seja, ao direito consagrado no art. 6º da Constituição Federal[13] e que corresponde à nossa Segurança Social.
Compaginando esta noção com o direito que se fez valer na ação estrangeira e cujas decisões se pretendem confirmar, ou seja, um pedido de “reconhecimento da nulidade da alteração unilateral da forma de cálculo do salário dos reclamantes (operada pelo Decreto Regulamentar nº 3/2013 que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013) (…) e a determinação ao reclamado para que restabeleça definitivamente o pagamento dos salários com base na cotação do Euro na data do vencimento da obrigação, bem como seja o reclamado condenado a pagar aos reclamantes” as verbas que discrimina a relativas aos pagamentos e processamentos já efetuados, resulta claro que não estamos ante a exigência, ao estado português do cumprimento de uma obrigação previdenciária ou de segurança social.
Note-se que esta interpretação é efetuada também à luz dos arts. 111º a 114º do Código Civil Brasileiro[14] que consagram, para a interpretação dos negócios jurídicos uma posição intermediária entre as teorias da vontade e as teorias da declaração, mas que acaba por se aproximar do direito civil português[15].
E passando à segunda questão identificada, não temos qualquer indício de que a vontade real das partes passasse pela assunção de uma obrigação de desistência em ações a intentar, que, se fosse o caso, ficaria perfeitamente expressa por uma declaração de renúncia a intentar ações ou exigir outro tipo de direitos. Se essa eventual cláusula seria válida ou aceitável para o ordenamento jurídico português, é uma outra questão e que aqui não nos ocupa, dada a resposta negativa que atingimos.
Assim sendo, não podemos senão concluir que o acordo extrajudicial outorgado entre o identificado representante da requerente e o requerido em agosto de 2013 em nada afeta ou regula a ação intentada em fevereiro de 2014 e, consequentemente, não afeta o direito daquele de pedir a revisão das decisões ali proferidas.
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4.2.2. Requisitos de confirmação da sentença estrangeira
Os requisitos necessários à confirmação de sentença estrangeira estão previstos no artigo 980.º do Código de Processo Civil, no qual se dispõe, sob a epígrafe “Requisitos necessários para a confirmação”:
«Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.»
Mesmo nos casos de não dedução de oposição, o tribunal não pode dispensar-se de conhecer oficiosamente das condições ou requisitos de confirmação, atento o disposto no art. 984 do CPC.
O sistema português de reconhecimento da eficácia da sentença estrangeira combina, assim, o princípio da revisão formal e da revisão de mérito (artºs 980º e 984º do CPC). A revisão tem, em certa medida, o carácter de mérito quando o tribunal português verifica se a sentença não contém uma decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português (artº 980º, al. f) do CPC)[16].
No caso concreto não foram suscitadas quaisquer questões ou dúvidas quanto à verificação do requisito da alínea a) do art. 980º do CPC. Também para o tribunal, da análise da documentação junta aos autos, que serviu de suporte à factualidade considerada provada, não resultaram dúvidas acerca da sua autenticidade e inteligibilidade.
No tocante aos requisitos previstos nas alíneas b) e e) do art. 980º não foi, igualmente, suscitada qualquer questão pelas partes, igualmente não se suscitando a este tribunal quaisquer dúvidas sobre o respetivo preenchimento[17].
Refira-se, a este propósito, que quanto aos requisitos das alíneas b) a e), face ao disposto no art. 984º do CPC, são unânimes a doutrina e a jurisprudência no sentido da dispensa de prova e presunção de existência se o tribunal não apurar a sua falta (mediante o exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções)[18].
Tendo sido arguido o não preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas c), d) e f) do art. 980º, é da respetiva verificação que iremos ocupar-nos em particular.
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4.2.2.1. Al. c) do art. 980º do CPC: proveniência de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria de exclusiva competência dos tribunais portugueses
O requerido veio argumentar que decisão judicial estrangeira a rever foi proferida por um tribunal incompetente, porquanto os tribunais brasileiros não têm competência internacional para conhecer de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas portuguesas. Todos os associados do A. integram os serviços externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e têm com o estado uma relação jurídica de emprego público em regime de contrato de trabalho em funções públicas (exceto as duas reformadas), pelo que estão abrangidos pelo estatuto do pessoal dos serviços externos do MNE, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 444/99, de 3 de novembro.
Nos termos do disposto no art. 212º nº3 da CRP é da competência dos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais pelo que a decisão brasileira infringiu as regras de competência internacional dos tribunais nacionais, nos termos do disposto nos arts. 12º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 96º, al. a) e 62º, als. a) e c) do CPC.
Questiona, assim, a competência do tribunal de origem.
O requerente respondeu ter sido apreciada matéria de natureza laboral, tendo o tribunal brasileiro considerado existir violação de normas imperativas de ordem pública local, que se aplicam necessariamente às relações laborais visadas, de acordo com o art. 2º da Lei nº 47/2013, que revogou o Decreto-Lei n.º 444/99 de 3 de novembro. Refere caso similar, tratado no processo nº 968/12.4YRLSB, no qual nada obstou ao seu reconhecimento na ordem jurídica portuguesa.
Apreciando:
A competência do tribunal de origem é uma condição de confirmação e, na sua atual redação, aplicável no caso concreto, acolhe entre nós a tese da unilateralidade atenuada, que já era defendida pela maioria da nossa doutrina.
Resumindo Lima Pinheiro[19] nesta matéria vingou, por muito tempo, a tese da bilateralização. Contra esta posição, tradicional, foi defendida a tese da unilateralidade, segundo a qual os tribunais dos outros países não podem estar sujeitos às normas de competência internacional estabelecidas pelo legislador nacional, sendo então segundo as normas em vigor no estado de origem que se deveria apreciar a competência internacional do tribunal estrangeiro.
Esta tese apresenta duas variantes, a unilateralidade simples – só não seria aceite a regra de competência estrangeira que contrariasse a ordem púbica internacional do estado do reconhecimento – e a unilateralidade atenuada ou dupla, na qual a regra de competência dos tribunais de origem é também limitada pela competência exclusiva dos tribunais do estado de reconhecimento.
A nossa lei, desde a revisão de 1995, consagra uma redação que, claramente, afasta a tese da bilateralização e foi influenciada pela teoria da unilateralidade: o tribunal de revisão não controla a competência do tribunal que julgou de mérito, exigindo-se apenas que os tribunais portugueses não sejam exclusivamente competentes e que a competência do tribunal de origem não seja provocada em fraude à lei. Em crítica à lei vigente, o autor que vimos seguindo acrescenta ainda que a revisão pode ser recusada com base no carater exorbitante da competência do tribunal de origem quando esta competência exceda os limites fixados pelo direito internacional público. E ensaia tais limites: “Parece que a competência dos tribunais de um Estado que não apresente conexão pessoal ou territorial com a relação controvertida, nem resulte da autonomia da vontade, do critério dos efeitos ou do critério da necessidade, é, em princípio, exercida fora da sua jurisdição.” Neste caso os efeitos de tal decisão não serão suscetíveis de reconhecimento por força do direito internacional público geral.
Tornando ao caso concreto, diremos que o art. 62º do CPC, cujas alíneas a) e c) foram aqui invocadas, consagra os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, seja exclusiva, seja concorrencial.
A alínea a) consagra o princípio da coincidência, ou seja, sede acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional. Se se tratar de uma das causas previstas no art. 63º, será uma competência exclusiva. As normas de determinação da competência territorial revestem, assim, uma dupla funcionalidade.
A alínea c) do preceito consagra uma cláusula de salvaguarda, tendente a evitar que dada a impossibilidade prática ou jurídica o direito pudesse ficar sem tutela efetiva. “Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição de competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal, seja de natureza real.[20]
Mas na verdade, e face à alínea c) do art. 980º do CPC, não é do preenchimento simples das alíneas do art. 62º do CPC que temos que cuidar, mas antes do art. 63º do mesmo diploma. Na perspetiva da revisão de sentença estrangeira o tribunal não procura saber se o tribunal português teria competência internacional para julgar a ação que foi julgada no estrangeiro, antes se, em qualquer daqueles casos, tal ação seria de competência exclusiva de tribunal português[21].
É no art. 63º do CPC que se encontra consagrada a reserva de competência exclusiva dos tribunais portugueses: em matéria de direitos reais sobre imóveis e arrendamento de imóveis situados no Estado Português; em matéria de validade da constituição ou dissolução de sociedades sediados e Portugal e de validade das decisões dos seus órgãos; em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal; execuções sobre imóveis situados em Portugal; e insolvências e revitalizações  de pessoas domiciliadas em Portugal ou e pessoas coletivas cuja sede se situe em território português.
É bastante claro que a causa na qual foram proferidas as decisões a rever não se insere em qualquer das alíneas do art. 63º do CPC.
O que temos que aferir é se, de alguma das regras próprias do ordenamento jurídico português, resulta a reserva, para os tribunais portugueses de outras causas, designadamente de causas em que trabalhadores do Estado Português residentes e a prestar serviço noutro país demandem este.
Os representados do requerente são trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, cujo estatuto se regula pelo Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, o qual concretizou a transição dos trabalhadores dos serviços externos do MNE para as carreiras gerais da Administração Pública (conforme exposição de motivos do diploma).
O Regime aplicável a estes trabalhadores está previsto no art. 2º nº1 do referido Decreto-Lei, no qual se estabelece que: « Aos trabalhadores dos serviços administrativos e consulares dos SPE do MNE são aplicáveis as disposições legais relativas aos trabalhadores em funções públicas, designadamente a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de dezembro, 3-B/2010, de 28 de abril, 34/2010, de 2 de setembro, 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro, 66/2012, de 31 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, doravante designada por LVCR, e a Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, alterada pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 124/2010, de 17 de novembro, e pelas Lei n.os 64-B/2011, de 31 de dezembro, e 66/2012, de 31 de dezembro, doravante designada por RCTFP, com as especialidades decorrentes do presente decreto-lei e das normas imperativas de ordem pública local.»
Após a entrada em vigor deste diploma, a Lei nº 12-A/2008, de 27 de fevereiro, foi revogada pela Lei 35/2014, de 20 de junho, que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (ou LGTFP), à exceção das normas transitórias, passando todas as referências àquela lei a serem entendidas como feitas para as correspondentes normas desta lei (art. 42º nº1, al. b) e nº3 da LGTFP).
O art. 12º da LGTFP prescreve que «São da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público.»
Esta regra estabelece a jurisdição competente, em recorte com o disposto no art. 126º da LOSJ (que estabelece a competência cível dos juízos de trabalho) e em consonância com o disposto no art. 4º nº2, al. b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e é uma regra de competência material interna: tal como referido pelo requerido, em Portugal, são os tribunais administrativos e fiscais o foro competente para preparar e julgar os litígios emergentes do vínculo de emprego público.
Nem o ETAF nem o CPTA contêm uma regra de conteúdo similar ao disposto no art. 63º do CPC (reserva de competência internacional). As regras já citadas podem funcionar em dupla funcionalidade e gerar a competência internacional dos tribunais administrativos portugueses nas matérias que preveem (designadamente o art. 4º do ETAF). Mas tal servirá como critério de atribuição de competência aos tribunais administrativos portugueses[22] e não de critério de atribuição de competência exclusiva aos mesmos.
O requerido aponta o nº3 do art. 212º da Constituição da Republica Portuguesa como impeditivo da competência dos tribunais laborais brasileiros no nosso caso concreto. Teremos que aferir se esta norma constitucional pode ser tida como fixando uma reserva de competência internacional exclusiva dos tribunais administrativos portugueses.
Estabelece o art. 212º da CRP, sob a epígrafe “Tribunais administrativos e fiscais”:
«1. O Supremo Tribunal Administrativo é o órgão superior da hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
2. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito de entre e pelos respectivos juízes.
3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.»
Trata-se de uma norma introduzida na 2ª revisão constitucional que consolidou o estatuto constitucional dos tribunais administrativos e fiscais, qualificada por Gomes Canotilho e Vital Moreira como uma das inovações mais relevantes desta revisão da Constituição[23] e que foi adensada com a posterior aprovação do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
E a função da norma é exatamente a de operar esta consolidação. “Isto quer dizer que a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa.”[24]
Os mesmos respeitados constitucionalistas advertem que a letra deste nº3 do art. 212º não deixa qualquer margem para exceções: consente que estes tribunais possam julgar outras questões e consente “…que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais.”[25], mais referindo que não são poucas as áreas em que a lei tradicionalmente confia a outros tribunais competência para o julgamento de questões que, em princípio se devem ter por administrativas.
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros[26], em anotação ao mesmo preceito referem que “Após a revisão constitucional de 1989, foi doutrinalmente debatida a questão de saber se o artigo 212.º, n.º 3, consagra uma reserva material absoluta de jurisdição em favor dos tribunais administrativos e fiscais, impedindo o legislador ordinário de atribuir aos tribunais judiciais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais ou aos tribunais administrativos e fiscais o poder de dirimir litígios emergentes de relações jurídicas de outra natureza.
O entendimento que veio claramente a prevalecer na doutrina foi o de que não nos encontramos, aqui, perante uma reserva absoluta. O legislador dispõe, assim, de uma certa margem de liberdade de conformação, no espeito pelo núcleo essencial caracterizador do âmbito material de cada uma das jurisdições, pelo que pode proceder à atribuição pontual a uma das jurisdições, do pode de dirimir litígios que, na ausência de tal determinação, corresponderiam à outra jurisdição.” Os constitucionalistas prosseguem, com indicação da aceitação deste entendimento pela doutrina e pela jurisprudência, quer dos tribunais administrativos quer do próprio Tribunal Constitucional.
Ora se esta norma, tal como é entendido de forma pacífica, não fixa uma reserva absoluta material de competência na ordem jurídica interna, não temos qualquer base para a arvorar em delimitadora de competência internacional dos tribunais administrativos e fiscais portugueses.
Aqui chegados podemos concluir que não podemos considerar que as sentenças revidendas tenham sido proferidas por tribunal estrangeiro em matéria de exclusiva competência dos tribunais portugueses.
Não deixaremos, porém, de verificar se temos elementos para concluir pelo carater exorbitante da competência do tribunal de origem em excesso dos limites fixados pelo direito internacional público.
E a resposta é, claramente, negativa. A causa de pedir respeita a trabalhadores ao serviço do Estado português, mas que exercem a sua atividade no estado brasileiro e aí residem. Tratam-se de dois elementos de conexão poderosos, aliás, eleitos como tal pela lei brsileira[27], pelo que podemos concluir pela verificação da condição de confirmação prevista na al. c) do art. 980º do CPC.
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4.2.2.2. Al. d) do art. 980º do CPC: que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição
O Estado Português invocou a exceção dilatória de litispendência e caso julgado, alegando terem sido por este sindicato e seus associados intentadas várias ações em Portugal, nos Tribunais Administrativos, com os mesmos autor, sindicato, pedido e causa de pedir, pelo que pede a absolvição da instância nos termos do disposto no art. 577º, al. i) do CPC.
Juntou, posteriormente peças processuais de três ações intentadas no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que constam dos nºs 8 a 11 da matéria de facto provada.
O requerente respondeu, alegando inexistir identidade de autores, pedido e causa de pedir relativamente às ações identificadas, pedindo a improcedência da exceção.
Apreciando:
Previne-se, com a regra em causa, o surgimento de casos julgados contraditórios na ordem jurídica portuguesa.
Alberto dos Reis[28] ensinava que “Deve ser negada a confirmação quando perante tribunal português está a correr ou já foi decidida acção idêntica à julgada pela sentença cuja revisão se pede, salvo se, antes de a ação ser proposta em Portugal, já havia sido intentada perante o tribunal estrangeiro.”
A determinação do momento de instauração da ação no tribunal estrangeiro faz-se de acordo com a lei processual do Estado de origem[29].
Os requisitos da litispendência e do caso julgado são determinados de acordo com o direito processual de reconhecimento (português), embora sem o efeito de exceção dilatória. Neste caso a procedência gera uma decisão de mérito de indeferimento do pedido de revisão desta sentença relativamente à qual se possa invocar litispendência ou caso julgado.
Não há, por isso, qualquer incompatibilidade entre este preceito e o nº3 do art. 580º do CPC, no qual se estabelece a irrelevância da litispendência estrangeira, por se tratarem de preceitos com domínios de aplicação diversos[30].
Temos então que analisar se entre a ação na qual foram proferidas as decisões revidendas e qualquer das três ações sumariamente descritas em 9 a 11 da matéria de facto existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
Se concluirmos pela identidade teremos que aferir se foi prevenida a jurisdição pelo tribunal estrangeiro, o que tem como pressuposto a competência concorrente entre o tribunal português e o tribunal brasileiro[31].
Atento o disposto no nº1 do art. 580º do CPC, desde logo se pode afastar a existência de caso julgado. O requerido não juntou qualquer certidão judicial, apenas cópias de peças processuais e de uma sentença, sem qualquer nota de trânsito em julgado, documentos que foram consideradas em obediência ao disposto nos arts. 170º e 364º do Código Civil, dada a aceitação da parte contrária[32]. Mas não se pode dar como assente o que não consta dos documentos, pelo que, rigorosamente, o que estamos a analisar é a existência de litispendência, tão só.
Nos termos do disposto no art. 581º nºs 1, 2, 3 e 4 do CPC, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – nas ações constitutivas e de anulação é assim considerado o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Munidos destes conceitos e percorrendo os factos elencados nos nºs 1 a 4 e 8 a 11 da matéria de facto provada encontramos (sinteticamente):
- quanto às partes: do lado ativo não encontramos em nenhuma das três ações pendentes em Portugal todos os aqui representados da requerente; do lado passivo as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica e reconduzem-se ao Estado Português;
- quanto ao pedido: todos os pedidos são diversos entre si, como resulta da transcrição efetuada e que aqui se dá por reproduzida;
- quanto à causa de pedir: há uma única parte da causa de pedir em comum, o facto dos requerentes serem todos funcionários dos serviços externos do requerido (estado português); a partir daí todas as causas divergem: na ação em que foram proferidas as sentenças a rever a invocada ilegalidade da aplicação do Decreto Regulamentar nº 3/2013 que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013 e o não pagamento total de férias e subsídio de férias do ano de 2012, e nas demais três ações, respetivamente, a inconstitucionalidade formal e material da Lei nº 55-A/2010 de 31/12/2010 (na ação nº 1240/11.2BELSB), a depreciação salarial sofrida pelos trabalhadores a exercer funções fora da zona euro devido às variações cambiais (na ação nº 764/11.6BELSB) e a discriminação salarial entre trabalhadores sujeitos ao regime da função pública e trabalhadores sujeitos ao regime de contrato individual de trabalho com as mesmas categorias e a desempenhar as mesmas funções(na ação nº 2755/10.5BELSB).
Sem necessidade de outras considerações, podemos verificar que não estão preenchidos os requisitos, quer do caso julgado, quer da litispendência, pelo que não há necessidade de averiguar se foi prevenida a jurisdição e, sem mais, na improcedência dos argumentos do requerido, podemos dar por verificado o requisito previsto na al. d) do art. 980º do CPC.
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4.2.2.3. Al. f) do art. 980º do CPC: que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português
O requerido alega que a aplicação do direito estrangeiro cogente, no caso concreto, resulta uma contradição flagrante e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional, pelo que deve ter aplicação a exceção de ordem pública internacional, dado que a sentença a rever aplicou direito privado laboral a relações jurídicas às quais é aplicável o direito público português.
Mais argumenta que ofende igualmente a conceção de justiça de direito material, na medida em que os pedidos formulados perante os tribunais de trabalho brasileiros resultam da aplicação da lei portuguesa que se aplicou igualmente a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.
O requerente defendeu não ocorrer ofensa aos princípios da Ordem Pública Portuguesa, no direito interno português.
Apreciando:
Esta alínea f) do art. 980º “exige que a sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”[33]
Com vista a aferir se o resultado do reconhecimento viola a ordem pública internacional deve fazer-se “um exame global, o qual poderá ter em conta os fundamentos da decisão e o processo”, sendo o momento relevante o do reconhecimento da decisão, e não se exigindo, para a verificação deste requisito, um controlo de mérito. “Não é necessário averiguar qual o direito que foi aplicado, nem a forma porque o foi.”[34]
Deve antes de mais distinguir a ordem pública internacional da ordem pública interna, aqui relevando apenas os princípios da primeira.
“A reserva de ordem pública internacional distingue-se da chamada ordem pública interna tanto pela sua função como pelo seu conteúdo. Pela sua função, porque apenas se destina a intervir, como resulta do exposto, em situações de cariz internacional, obstando a que sejam derrogados nelas, pelo menos quando apresentem alguma conexão com o Estado do foro, os princípios jurídicos de que este não abdica ainda que a situação sub judice se encontre sujeita a uma lei estrangeira. Pelo seu conteúdo, porque, dada a abertura a conteúdos jurídicos estrangeiros e ao reconhecimento de situações jurídicas neles fundadas que é postulada pelo método da conexão adotado pelo DIP português, o conceito de ordem pública internacional tem um alcance necessariamente mais restrito do que o de ordem pública interna, pelo menos na medida em que se reconduza a esta a generalidade das normas de Direito interno inderrogável por efeito da vontade dos interessados ou ius cogens: trata-se, como afirmou o STJ, dos «princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações.”[35]
Por vezes a ordem pública é invocada expressamente como atributo de certas regras, o que não implica se tratem de matéria de ordem pública internacional[36].
Isto porque a reserva de ordem pública internacional é um clássico conceito indeterminado, cujo conteúdo não pode ser definido senão no concreto do caso.
Ainda assim, a jurisprudência e a doutrina têm vindo a apontar-lhe algumas caraterísticas fundamentais:
- são leis rigorosamente imperativas, que consagram interesses superiores da comunidade local e estão em divergência profunda comas leis estrangeiras e a cuja aplicação servem de limite[37];
- “a) a imprecisão; b) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles ); e) a excecionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); d) a flutuação e a atualidade (intervém em função das conceções dominantes no tempo do julgamento país onde a questão se põe); e e) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado Português)” – Ac. STJ de 26/09/17 (Alexandre Reis), citado por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[38] - no qual se indicam como consensuais as normas e princípios constitucionais, em especial as que tutelam direitos liberdades e garantias, bem como os princípios fundamentais da União Europeia, e ainda certos princípios tidos como fundamentais como a boa-fé, os bons costumes, a proibição do abuso de direito, a proporcionalidade, a proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, a proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e as regras basilares do direito da concorrência;
- a sua excecionalidade, cuja intervenção deve reduzir-se ao mínimo, a atualidade ou relatividade temporal, cujo preenchimento se faz em função do sentimento ético-jurídico prevalecente no momento do julgamento e o carater nacional ou relatividade espacial por ser “a expressão da ideia de direito que informa o ordenamento jurídico do foro”[39];
- a sua integração pelos princípios fundamentais da Constituição, especialmente os relativos a direitos fundamentais; normas e princípios de direito internacional e europeu; sendo uma cláusula com intervenção limitada aos casos de violação manifesta ou ostensiva[40].
O primeiro argumento invocado pelo requerido é de que as decisões a rever ofendem a ordem pública internacional do Estado Português por terem aplicado direito privado laboral a relações jurídicas às quais é aplicável o direito público português.
A violação é imputada ao processo e não ao respetivo resultado – e, efetivamente, a condenação de um Estado no pagamento de determinadas quantias a particulares não é um resultado que ofenda a ordem pública internacional.
As relações jurídicas sobre as quais as decisões se debruçaram, ou seja, a relação entre os funcionários dos serviços periféricos externos do Estado Português e este, nesta veste de empregador, são materialmente direito laboral, seja em Portugal, seja no Brasil.
Como já referimos, a estes trabalhadores aplica-se, por via do disposto no art. 2º nº1 do Decreto-Lei n.º 47/2013, de 5 de abril, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Este diploma regula o vínculo de trabalho em funções públicas (art. 1º nº1), remetendo parte desse regime para o Código do Trabalho (que, em Portugal, regula o “direito privado laboral”), nos termos do respetivo art. 4º.
Mas, especificamente quanto à aplicação desta lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estabelece o nº5 do art. 1º do diploma que: «A aplicação da presente lei aos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, relativamente aos trabalhadores recrutados para neles exercerem funções, incluindo os trabalhadores das residências oficiais do Estado, não prejudica a vigência:
a) Das normas e princípios de direito internacional que disponham em contrário;
b) Das normas imperativas de ordem pública local;
c) Dos instrumentos e normativos especiais previstos em diploma próprio.
Ou seja, mesmo em termos de direito interno, o direito público aplicável ao caso concreto admite, quanto a certos aspetos, a aplicação de direito “privado” (no sentido de não público) às relações de emprego publico e, concretamente, quanto às concretas relações de emprego público do caso concreto admite a aplicação de normas imperativas de ordem pública local, sem distinguir, obviamente, se tais normas serão de natureza privada ou pública.
O único princípio que conseguimos retirar das normas internas é de que, por regra, às relações de emprego público se aplica direito público, mas que a essas relações também se pode, em determinadas circunstâncias, aplicar direito privado.
Assim sendo, não conseguimos concluir pela existência de um princípio estruturante do sentido ético-normativo da ordem jurídica interna com o conteúdo alegado que obrigue, por via da cláusula de reserva da ordem pública internacional, ao afastamento da aplicação de direito privado laboral estrangeiro a relações jurídicas às quais é domesticamente aplicável o direito público português.
Passando ao segundo segmento da alegação dirigida à invocação da reserva de ordem pública internacional, verifica-se que o princípio alegado como violado é uma regra constitucional que tutela direitos fundamentais, o princípio da igualdade, pelo que sempre termos que verificar se, com esta decisão, resulta uma desigualdade material.
O requerido argumenta a existência de desigualdade no afastamento da lei portuguesa pelos tribunais de trabalho brasileiros dado que a lei afastada por aqueles tribunais foi aplicada igualmente a todos os restantes trabalhadores da administração pública portuguesa.
O princípio da igualdade, encontra-se consagrado na CRP nos seguintes termos: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (art. 13º, nº 1, concretizando o nº 2 do preceito este princípio geral).
A proteção conferida por este direito abrange a proibição do arbítrio (proíbe diferenciações de tratamento sem justificação objetiva razoável ou identidade de tratamento em situações objetivamente desiguais) e da discriminação (não permite diferenciações baseadas em categorias subjetivas ou em razão dessas categorias).
Na sua vertente de proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como tal[41].
Valendo como princípio objetivo de controlo esta regra “não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjetivo público a igual tratamento, a não ser que se violem direitos fundamentais de igualdade concretamente positivados (por exemplo, igualdade dos cônjuges) ou que a lei arbitrária tenha servido de fundamento legal para atos da administração ou da jurisdição lesivos de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.”[42]
Na vertente de proibição de discriminações a regra não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. “O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.”[43]
Gomes Canotilho e Vital Moreira sublinham ainda que as decisões mais recentes do Tribunal Constitucional continuam a assinalar corretamente que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante, sendo o ponto central da discussão em torno do princípio da igualdade “saber se existe fundamente material bastante para diferenciações de tratamento jurídico, o que nem sempre é fácil de averiguar…”[44]
No caso concreto temos trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros que, prestando o seu trabalho no Brasil, se entenderam prejudicados por um ato regulamentar (Decreto Regulamentar nº 3/2013) que procedeu à indexação dos salários dos reclamantes a cotação fixa do euro a partir de setembro de 2013.
Este ato, aplicado a todos os trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros em todos os locais e países onde estes se encontram, regulamenta o disposto no nº1 do art. 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013 de 27 de abril - «As tabelas remuneratórias dos trabalhadores dos SPE do MNE, fixadas por país e por categoria, em euros, salvo nos casos em que seja obrigatório o pagamento na moeda local, são aprovadas por decreto regulamentar, o qual deve estabelecer os respetivos critérios.»
Os trabalhadores a prestar serviço no Brasil estão numa situação objetivamente diversa dos demais trabalhadores da administração pública portuguesa e mesmos dos demais trabalhadores dos serviços periféricos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
A própria lei reconhece a diversidade destes trabalhadores em relação aos demais trabalhadores da administração pública (com a regra do art. 12º do Decreto-Lei n.º 47/2013) e reconhece mesmo a diferenciação destes trabalhadores entre si, de local para local, de país para país, ao prever, no nº4 do já referido art. 12º que: «Em caso de acentuada perda de poder de compra em qualquer país pelo efeito isolado ou conjugado da inflação e da variação cambial, designadamente quando se verifique que a remuneração base mensal é inferior ao salário mínimo local, pode haver lugar à revisão intercalar das respetivas tabelas remuneratórias.»
Não pode, assim, argumentar-se com a violação do princípio da igualdade entre estes específicos trabalhadores representados da requerente e todos os demais trabalhadores da administração pública portuguesa.
E a ausência de similitude que permitisse a conclusão pela violação do princípio da igualdade resulta, quanto a nós, tanto mais evidente quanto o resultado que se entende violador é uma sentença judicial.
A sentença revidenda não formou caso julgado em relação a todos os outros trabalhadores da administração pública portuguesa, nem o formou sequer em relação aos demais trabalhadores dos serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Nem nunca o poderia fazer, pois enquanto que, por via do comando constitucional, a lei não pode operar discriminações, um processo judicial não obedece à mesma lógica, porque o tribunal julga um caso em concreto e não todos os outros casos equiparáveis existentes.
O princípio constitucional da igualdade não exige a qualquer tribunal, nacional ou estrangeiro, que julgue como se legislasse, não sendo esse o alcance do preceito constitucional em causa.
Assim, por esta via não surpreendemos igualmente qualquer fundamento para fazer operar a cláusula de reserva de ordem pública internacional do Estado português.
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Conclui-se, assim, nada obstar à revisão e confirmação.
A decisão a rever versa sobre a validade de atos jurídicos e respetivas consequências patrimoniais. O valor processual da causa deve, por isso, determinar-se de harmonia com o carácter do objeto da decisão cuja confirmação se pede e que se fixa em € 289.253,46 (arts. 296º nºs 1 e 2, 297º, 299º nº1, do CPC, e 44º nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto; valor indicado da conversão de R$ 1.373.201.87 em euros à data da propositura da presente ação especial de revisão).
A base tributável para efeitos de taxa de justiça é igual ao valor processual da causa e, dada a natureza especial do processo, não compreendido na Tabela II, corresponde-lhe a taxa de justiça constante da Tabela I-A (artºs 6 nº 1, 7º nº 1 e 11º do Regulamento das Custas Processuais).
Porque vencido, o requerido é responsável pelo pagamento das custas, ao abrigo do disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar procedente a presente ação, confirmando-se as seguintes decisões, que passarão a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa:
1 - Sentença de 29/08/2014, proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 85ª Vara do Trabalho de S. Paulo, Brasil, que declarou nula, de forma incidental, a alteração, na forma de apuração dos salários promovida pelo Decreto Regulamentar 03/2013 e julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados por A, B, C, D, E, F, G, H e I, condenando o Consulado Geral de Portugal:
a) no restabelecimento da antiga forma de apuração dos salários, ou seja, o pagamento em moeda nacional e atrelada à cotação do Euro na data do pagamento dos salários, a contar de 10 dias da publicação desta sentença, sob pena de aplicação de multa única de R$ 20.000,00 a ser revertida aos trabalhadores;
b) no pagamento de diferenças salariais, conforme a determinação acima, a partir de setembro de 2013 e reflexos em décimo terceiro salário, férias + 1/3 e FGTS; décimo terceiro salário referente a 2012, nos moldes previstos na Lei -4.090/62, autorizando-se a dedução das parcelas já pagas sob o mesmo titulo; férias + 1/3 referente ao período de 2012, observando-se os períodos aquisitivos e de gozo em relação a cada reclamante, de forma a apurar em fase de liquidação se deve ser paga de forma simples ou dobrada, autorizando-se a dedução do montante já pago sob o mesmo título, tudo a ser apurado em liquidação de sentença, através de cálculos, acrescidos de juros de mora no importe de 1% ao mês a contar da data do ajuizamento da ação e atualização monetária na forma da lei, e considerando-se como época de correção monetária o mês subsequente ao vencido, conforme fundamentação, com descontos previdenciários sobre o salário de contribuição, observada a legislação própria e a incidência mês a mês e descontos fiscais nos moldes do art. 12-A da Lei 7.713/88, com a nova redação dada pela Lei 12.350/2010;
2 - Sentença de 4 de agosto de 2016, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, 85ª Vara do Trabalho de S. Paulo, Brasil que homologou os cálculos apresentados pelo reclamante e fixou o valor bruto da condenação em R$ 1.373.201,87 atualizado até 01/10/2015, atualizáveis até a data do efetivo pagamento e discriminou o valor em relação a cada um dos ali reclamantes.
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Fixam à causa o valor processual de € 289.253,46.
Custas pelo requerido.
Registe e notifique.
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Lisboa, 27 de outubro de 2020
Fátima Reis Silva
Vera Antunes
Amélia Sofia Rebelo
_______________________________________________________
[1] Por claro lapso de escrita foi indicada a al. l) do art. 577º do CPC, quando certamente se queria indicar a alínea i) do mesmo preceito legal.
[2] Cfr. neste sentido Ac. TRL de 12/05/20 (Maria Adelaide Domingos), disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. acórdão do STJ de 12.7.2011, proferido no processo n.º 987/10.5YRLSB.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Em Processos Especiais, vol. II - reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, págs. 144 e 145.
[5] Em Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II, Reconhecimento de sentenças estrangeiras, AAFDL Editora, 2019, 3ª edição refundida, pgs. 28 e 29.
[6] Lima Pinheiro, local citado na nota anterior, pg. 199.
[7] E as partes nada objetaram quanto a este aspeto particular.
[8] Neste sentido, de que se exige o respeito dos limites resultantes das imunidades de jurisdição, Luís de Lima Pinheiro, local citado na nota 6, pg. 229.
[9] Disponível em www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, versando também a revisão de sentença estrangeira em caso laboral, o Ac. TRL de 10/05/2007 (Fátima Galante), também disponível em www.dgsi.pt.
[11] Em Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, pg. 425.
[12] No caso foi consultado www.dicio.com.br.
[13] Consultada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
[14] Consultado em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.
[15] Cfr. neste sentido Marcel Moraes Mota em A interpretação dos contratos nos direitos inglês, português e brasileiro, RJLB, Ano 4 (2018), nº4, pgs. 1400 e ss., em especial 1401 e 1406 a 1407, disponível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/4/2018_04_1355_1422.pdf.
[16] António Marques dos Santos, Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras no Novo Código de Processo Civil de 1997 (Alterações ao Regime Anterior), Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, págs. 108 e 109; Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, págs. 142 e 143.
[17] Não tendo sido suscitada nem resultando do exame da causa a respetiva falta, é de presumir a sua verificação - Cfr. Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 163.
[18] Cfr. nota anterior e ainda Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, local citado na nota 10, pg. 433 e os Acs. STJ de 21/02/06 e de 19/06/19, ali citados e, entre outros, o Ac. TRC de 11/06/2019 (Emídio Santos), disponível em www.dgsi.pt.
[19] Local citado, pgs. 207 a 223.
[20] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, obra citada, Vol.I, pg. 94.
[21] Neste sentido Ac. TRC de 09/05/06 (Regina Rosa), disponível em www.dgsi.pt.
[22] Ver Ac. STA de 14/01/2010 (Rui Botelho), disponível em www.dgsi.pt.
[23] Em Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª edição revista, reimpressão, Coimbra Editora, pg. 564.
[24] Gomes Canotilho e Vital Moreira, local citado na nota anterior, pg. 565.
[25] Idem.
[26] Em Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pgs. 143 e ss., em especial 148 e 149.
[27] Ver arts. 114º, I, da Constituição Federal Brasileira (consultada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm), 651º da Consolidação das Leis do Trabalho (consultada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm), art. 12º da
Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (consultada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm) e art. 198 do Código de Bustamante promulgado elo Decreto nº 18.871, de 13 de agosto de 1929 (consultado em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-18871-13-agosto-1929-549000-publicacaooriginal-64246-pe.html).
[28] Local citado, pg. 169.
[29] Luís de Lima Pinheiro, local citado, nota 824 a pgs. 224.
[30] Para usar a linguagem de Alberto dos Reis, no local já citado, pg. 170.
[31] Como melhor explica Alberto dos Reis, local já citado, pgs. 169 a 171.
[32] A prova da existência e pendência de ações judiciais apenas poder ser feita mediante certidão judicial, sendo a certidão uma formalidade ad probationem, nos termos do art. 170º do CPC, pelo que tem plena aplicação o disposto no nº2 do art. 364º do Código Civil podendo a respetiva prova ser substituída por confissão judicial.
[33] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, obra citada, Vol. II, pg. 428.
[34] Lima Pinheiro, local citado, pgs. 227 a 229.
[35] Dário Moura Vicente, em Código Civil Comentado, Vol. I, Parte Geral, CIDP-Fdul, Almedina, 2020, pg. 155.
[36] É o caso do art. 13º do CPTA, ao estabelecer que «O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.». A referencia representa uma realidade diversa da ordem pública internacional, tal como refere Luís Barreto Xavier, em anotação ao art. 22º do Código Civil, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pg. 87.
[37] Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II - reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 177.
[38] Local citado na nota 34, pg. 429.
[39] Dário Moura Vicente, local citado, pgs. 155 e 156.
[40] Luís Barreto Xavier, em Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pgs. 87 e 88.
[41] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, pg. 339.
[42] Autores e loc. cit.
[43] Autores e loc. cit., pg. 340.
[44] Autores e loc. cit., pg. 341.