Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6689/03.1TBCSC-A.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALIENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – O síndrome de alienação parental é um distúrbio que afecta crianças, que rejeitam completamente um dos progenitores, sem razões justificadas, no âmbito de conflitos judiciais, no âmbito da responsabilidade parental de um menor.
II – O conceito de síndrome de alienação parental não se aplica a casos em que o menor foi efectivamente alvo de abusos por parte do progenitor alienado.
III – Deve ser negado o direito a visitas ao progenitor que abusou sexualmente do menor.
(Sumário do Relator - JL)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em .... B... requereu, no Tribunal de Família de ...., que se alterasse provisoriamente a regulação do poder paternal respeitante à menor C..., sua filha e de D..., de molde a este não poder estar com a filha.
Alegou, em síntese, que a filha afirmara que o pai “lhe mexia no pipi” e “lhe meteu a pila na boca e o rabo na cara.”
Em 01.10.2004 foi proferido despacho que determinou, cautelarmente, a suspensão do regime de visitas da menor ao pai.
Citado, o Requerido negou a prática dos actos que lhe eram imputados e afirmou desconhecer se a menor tinha feito as afirmações supra referidas. Pediu que o despacho supra indicado fosse revogado, mantendo-se o regime de visitas constante da regulação do poder paternal. Requereu a alteração do regime de poder paternal no sentido de ficar a menor à guarda e cuidados do pai, caso os exames e perícias a efectuar levassem a concluir que a vivência da menor com a mãe prejudica a sua educação e o seu desenvolvimento.
Realizou-se conferência de pais, na qual não houve acordo quanto à alteração requerida.
Os pais apresentaram alegações, em que reiteraram as posições já anteriormente expressas.
Realizaram-se perícias médico-legais à menor e aos seus pais.
Tendo o Requerido invocado a possibilidade de ocorrência de síndrome de alienação parental, foi solicitado ao perito que examinou a menor que se pronunciasse sobre essa possibilidade no caso concreto.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo-se procedido à gravação dos depoimentos. A final foi proferida decisão sobre a matéria de facto.
Em 07.11.2008 foi proferida sentença, em que se decidiu alterar o regime de regulação do poder paternal, eliminando-se as cláusulas D) a H), ou seja, as que previam e regulavam o direito de visita da menor por parte do pai.
O Requerido apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I - O Tribunal agiu incorrectamente, ao determinar a suspensão das visitas, no próprio dia em que deu entrada o requerimento acusatório da mãe, não cuidando de investigar, ainda que de forma sumária, a probabilidade da efectiva ocorrência dos gravosos factos, imputados ao pai, que está totalmente inocente;
II - Só após avaliação, ainda que perfunctória, e se da mesma fossem carreados elementos suficientes no sentido da confirmação de tão grave acusação, haveria fundamento para tal drástica medida;
III - Do confronto dos vários depoimentos gravados e atrás referenciados, ressalta que a sentença fez uma desadequada valoração dos testemunhos da tia materna da menor e do médico E..., cujas convicções se bastam com meros relatos de uma criança de 4 anos, descontextualizados, em termos de tempo, modo e lugar, e desacompanhados de quaisquer outros meios de prova concreta e objectiva;
IV - Por outro lado, a sentença não valora, minimamente, os factos que, embora profusamente relatados pelas testemunhas do progenitor, dão conta de um pai e homem sério, com excelente relacionamento com a criança;
V - Além disso, a Senhora Juíza a quo aceitou como pertinentes e definitivas, avaliações cuja metodologia era e é totalmente desadequada à realidade em causa, como referido no douto parecer junto, para o qual remetemos;
VI - Não obstante, a sentença não levou em conta o parecer dos peritos e do Dr. E..., no sentido de a menor não dever ser privada do contacto com o pai;
VII - Por outro lado, sendo inconclusiva a perícia realizada, nunca teria cabimento a decisão sub judice, tudo apontando para a manutenção das visitas e um acompanhamento da família, adaptado ao caso;
VIII - Decidindo como decidiu, a Ma Juiz fez uma incorrecta apreciação da matéria factual constante dos autos, incorrendo em erro sobre os pressupostos da decisão;
IX - O Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais rege-se pelo princípio basilar do respeito pelo superior interesse do menor;
X - Sendo de jurisdição voluntária (cfr. art° 150° da O.T.M.), o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna, podendo investigar livremente, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art°s 1409°, n° 2 a 1410° do C.P.C.);
XI - Ainda, segundo o art.° 265, n° 3 do C.P.C., ao juiz incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio;
XII - A decisão em análise desrespeita estas normas e princípios, ao valorar incorrectamente a matéria de facto, e não determinando a realização de diligências de prova, realmente adaptadas ao caso sub judice, nos termos atrás expostos;
XIII - Do mesmo modo, e como corolário da ofensa dos preceitos atrás apontados, foram, igualmente, violados o princípio do respeito pelo contraditório (art° 3°, n° 1 do C.P.C.) e da igualdade das partes (art° 3°- A do C.P.C.);
XIV - Finalmente, foi manifestamente ofendido o preceito constitucional do art° 68°, n° 1 da C.R.P., que consigna o "Direito à protecção dos pais e das mães, por parte da sociedade e do Estado, na realização da sua insubstituível acção, em relação aos filhos".
XV - Deverá, pois, a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, determinada a reposição em vigor das Cláusulas D) a H) do regime de Regulação do Exercício do Poder Paternal vigente, devendo a criança passar a poder conviver com o pai, nos termos ali prescritos;
XVI - Certos, contudo que, dado o grande lapso de tempo decorrido, desde a suspensão das visitas, tal reaproximação deverá ser efectivada de forma progressiva;
XVII - Assim, e num primeiro momento, não superior a 3 meses, a criança deverá estar com o pai 4 horas por semana com o acompanhamento, se necessário for, de algum elemento da família paterna e não materna.
XVIII - Passado o referido período de adaptação, o convívio da menor com o pai deverá ser restabelecido na sua plenitude, nos moldes constantes das mencionadas cláusulas D) a H) do regime em vigor.
A apelada contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. Nem as alegações nem o parecer com elas junto atingem o bem fundado da sentença sub judice.
2. As perícias juntas aos autos são claras, isentas, e reveladoras, não podendo deixar de ser, como foram, apreciadas em toda a sua verdadeira importância probatória.
3. O parecer da Sr.ª Dr.ª F..., não sendo um parecer de direito, é o parecer de uma técnica (psicóloga e mediadora familiar).
4. E como ensinava o insigne Alberto dos Reis, a cuja sombra é sempre reconfortante abrigar-se:
"Não é forçoso que os pareceres versem sobre questões de direito; podem ter por objecto questões de facto. Os pareceres de técnicos dizem respeito, em regra, a questões de facto; destinando-se a elucidar o tribunal sobre a significação e alcance de factos de natureza técnica, cuja interpretação demanda conhecimentos especiais (arts.º. 618° e 650°)" – Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. IV, reimpressão, 981, Coimbra Editora, 27.
"O que é verdadeiramente um parecer técnico em que se certifique o apuramento de determinado facto...?
É um documento testemunhal, segundo a nomenclatura dos escritores. Quer dizer, o conteúdo do escrito exprime o testemunho de pessoa que, solicitada extrajudicialmente para verificar determinados factos, narra o que viu e observou. Estamos, em rigor, perante prova testemunhal, perante o depoimento duma testemunha, e não perante prova documental ou perante prova por arbitramento. Temos assim, de um lado, o parecer de perito ou peritos recolhido em exame ou vistoria judicial; temos de, outro lado, o parecer de técnico emanado de exame extrajudicial, parecer que tem o caracter de prova testemunhal. Que valor deve atribuir-se a um e outro?
O art. 582.° formula o principio da livre apreciação da força probatória dos exames e das vistorias, principio idêntico enuncia o art. 625.° quanto aos depoimentos das testemunhas. Parece, pois, que o juiz tem o poder de dar ao parecer do técnico o mesmo valor que ao laudo do perito e até valor superior. Atente-se, porém, no seguinte: O art. 522.° dita o princípio da audiência contraditória; quer que as provas se produzam com audiência da parte a quem hão-de ser opostas. Faltando este requisito, a prova deixa de ter a eficácia normal. Daí a inferioridade da prova colhida extrajudicialmente, sem intervenção da parte contrária." – ibidem, 29.
5. O parecer não passa, aliás, de uma tentativa de julgar os autos, não consubstanciando um verdadeiro parecer técnico sobre o significado e alcance dos factos que a 1a instância considerou provados.
6. Como o recorrente reconhece, (conclusão X) 'Sendo de jurisdição voluntária... o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo, antes adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna..."
7. "A expressão "em cada caso" foi inserida intencionalmente para significar que, em vez de se orientar por qualquer conceito abstracto de humanidade ou de justiça pura, o julgador deve olhar para o caso concreto e procurar descobrir a solução que melhor serve os interesses em causa, que dá a esses interesses a solução mais conveniente e oportuna." – Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, reimpressão, 1982, Coimbra Editota, 400/401.
8. Precisamente o que fez a Sra. Juiza recorrida.
9. Só por incontrolável espírito litigante pode o recorrente brandir a descabidamente invocada ofensa ao art° 68°/1 CRP.
10. Bem ao contrário, a sentença recorrida mais não fez do que reconhecer a insubstituível acção da recorrida em relação à protecção da filha C....
11. E julgar segundo o mais estrito e obrigatório respeito pelo superior interesse da C....
12. Verdadeiramente, aquilo de que o recorrente discorda é de que a sentença não tenha julgado os factos segundo a suas, dele recorrente, convicções, mas segundo a prudente convicção da julgadora.
13. "A interpretação correcta do texto legal é, portanto, esta: Para resolver a questão posta em cada quesito, para proferir decisão sobre cada facto, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, forma a sua convicção como resultado de tal apreciação, e exprime a sua resposta" — Alberto dos Reis, CPC citado, Vol. IV, 571.
14. "O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração...: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis." — Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. 2°, Coimbra Editora, 635.
15. É o princípio da livre apreciação da prova excelsa, indubitavelmente, na jurisdição voluntária.
16. Face a todo o exposto, deve a sentença recorrida ser mantida, por ser de JUSTIÇA.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: se deve ser modificada a decisão sobre a matéria de facto; se, face aos factos provados, deve manter-se o regime de visitas vigente antes da decisão recorrida, antecedido de um período de adaptação.
Primeira questão (modificação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de Facto
1 C.... nasceu em 8.12.1999 e encontra-se registada como filha da requerente e do requerido.
2. Os pais da C... não são nem nunca foram casados entre si.
3. O Exercício do Poder Paternal referente à C... foi regulado no âmbito do processo nº ... do ...Juízo do T.F.M. de ..., por sentença proferida em 5.2.2001 e transitada em julgado em 22.2.2001, nos seguintes termos:
A) "A menor ficará entregue à guarda e cuidados da mãe, a qual exercerá o poder paternal.
B) A título de alimentos para a menor o pai contribuirá mensalmente com a quantia de 45.000$00, que até ao dia 30 de cada mês depositará na conta bancária de que é titular a mãe da menor, na C.G.D., agência de ...., com o nº .....
C) A quantia acima indicada será actualizada, anualmente, em Janeiro de cada ano, de acordo com o índice nacional da inflação publicado pelo INE.
D) O pai da menor poderá visitá-la aos sábados, indo buscá-la e levá-la a casa da mãe, pelas 14.00 horas e 19.00 horas, respectivamente, e, poderá visitar a filha na creche que a mesma frequenta sempre que o desejar.
E) Quando a menor completar 18 meses de idade, e, a partir dessa data, a menor passará com a mãe e com o pai os fins de semana, alternadamente, indo o pai buscá-la a casa da mãe aos sábados pelas 10.00 horas e levá-la aos domingos até às 19.00 horas.
F) A menor passará com cada um dos progenitores 30 dias do período de férias destes, seguidos ou interpolados, e, a partir da idade escolar passará ainda com cada um dos progenitores metade dos períodos das férias escolares do Natal e da Páscoa.
G) A menor passará alternadamente, com cada um dos progenitores, os períodos festivos do Natal, Fim de Ano e Páscoa.
H) No dia do seu aniversário a menor almoçará com cada um dos progenitores e jantará com o outro e passará com cada um dos progenitores o dia do aniversário destes, sem prejuízo do horário escolar e período normal de descanso.
I) As despesas de saúde da menor serão suportadas pelos serviços e seguros de saúde dos progenitores e na parte não abrangente serão suportadas por ambos, em partes iguais."
4. Em 21.06.2004, foi homologado acordo de Alteração da Regulação do Exercício do Poder Paternal, alterando o teor das alíneas D) e E) nos seguintes termos:
D) A filha passará com a mãe e com o pai fins-de-semana, alternadamente, indo o pai buscá-la a casa da mãe às 19 horas de sexta-feira e levá-la aos Domingos até às 19 horas.
E) A mãe e o pai comunicarão um com o outro até ao dia 30 de Abril de cada ano qual o seu período de férias. Em caso de coincidência, total ou parcial, dos períodos de férias, a filha passará com o pai, nesse ano, a primeira metade do período de coincidência e, no próximo ano, com a mãe e assim sucessivamente."
5. Em 1.10.2004 foi suspenso o regime de visitas ao progenitor.
Das alegações da Requerente:
6. Os progenitores da C... nunca viveram em comunhão.
7. Desde o seu nascimento, a C... tem vivido, de forma ininterrupta, com a mãe.
8. Após ter completado 18 meses de idade, a menor passava com o progenitor fins-de-semana alternados. A menor passava férias de Verão com o pai.
9. Por vezes a menor não queria ir passar o fim-de-semana com o pai.
10. Nos fins-de-semana e nas férias que passava com o pai, a menor dormia na cama com o pai.
11. No dia 12.7.2004, após ter voltado de um fim-de-semana com o pai, a menor disse que o pai lhe tinha "mexido no pipi", que "estava a dormir e sentiu uma coisa no pipi e pensou que era uma mosca, mas era a mão do pai”.
12. Por causa do relato referido no artigo anterior, a progenitora marcou uma consulta com um pedopsiquiatra, que passou a acompanhar a menor desde Julho de 2004 até à Pascoa de 2007.
13. A progenitora comunicou ao progenitor que a menor tinha dito que o pai lhe tinha"mexido no pipi". O pai negou a ocorrência de tais factos e acordaram que ambos os pais se submeteriam a exames médico-legais.
14. No Verão de 2004, a menor passou férias com o pai e voltou de tais férias calma e bem disposta.
15. No período das férias de Verão de 2004 em que a menor esteve com o pai, a progenitora não conseguiu contactar com a menor, dado que quando telefonava o pai não passava o telefone à C....
16. Depois das férias de Verão, a menor passou dois fins de semana com o pai: 3.9.2004 e 4.9.20O4 e 18.9.2OO4 e 19.9.20O4.
17. Após o fim-de-semana de 3.9.2004 a menor voltou com um documento escrito dentro da mala da roupa, documento que o pai completou com outro que enviou passados dias e que constam a fls. 25 a 43.
18. Após os fins-de-semana de 18.9.2004, a menor disse à mãe e à tia materna, G..., que o pai "lhe meteu a pila na boca".
19. Face aos relatos da menor, referidos no artigo anterior, a progenitora não autorizou a continuação das visitas da menor ao pai, sendo que o último fim-de-semana que a menor passou com o pai foi em Setembro de 2004.
Das alegações do Requerido:
20. Nos fins-de-semana em que estava com o pai, a menor mostrava-se alegre.
21. Em casa do pai, a menor tem um quarto próprio.
22. Nas férias de Verão de 2004, enquanto esteve na companhia do pai, a menor brincou e não apresentou alterações de comportamento.
23. No ano de 2002, a progenitora telefonou à madrasta do progenitor e disse que a menor tinha dito que o pai lhe pôs alfinetes no pipi.
24. A requerente informou o Requerido de que a menor tinha ido a uma consulta com o Dr. E... e informou o Requerido do telefone do consultório. O Requerido telefonou para o consultório.
25. O progenitor é ... da ....
26. A relação entre os progenitores sempre foi conflituosa.
Outros Factos apurados:
27. Em datas não apuradas mas que se situam nos fins-de-semana e nas férias que a menor passou com o pai, este mexeu na vulva da menor e introduziu o seu pénis na boca da referida menor.
28. A progenitora não tem outros filhos e vive sozinha com a filha, com a qual mantém forte relação afectiva.
29. A menor tem aproveitamento escolar.
30. A progenitora é psicóloga.
31. O progenitor vive com a madrasta e não tem outros filhos.
32. A menor não quer reatar os convívios com o pai.
O Direito
A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no artº 712º do Código de Processo Civil. Nos termos desse artigo (na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24.8., diploma que não é aplicável a estes autos – art.º 11º nº 1), a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 690º-A do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Resulta do teor das conclusões da alegação do recurso e do corpo da mesma que o apelante/Requerido considera que não deve dar-se como provada a matéria dos números 11, 18 e 27 da matéria de facto, pois assenta tão só nas declarações da menor, que são descontextualizadas e não foram alvo de avaliação adequada, sendo certo que, na opinião do apelante, sustentada por parecer que juntou aos autos, a menor foi sugestionada no âmbito de um “síndrome de alienação parental”.
A matéria de facto questionada e que foi dada como provada é a seguinte:
11. No dia 12.7.2004, após ter voltado de um fim-de-semana com o pai, a menor disse que o pai lhe tinha "mexido no pipi", que "estava a dormir e sentiu uma coisa no pipi e pensou que era uma mosca, mas era a mão do pai”.
18. Após os fins-de-semana de 18.9.2004, a menor disse à mãe e à tia materna, G..., que o pai "lhe meteu a pila na boca".
27. Em datas não apuradas mas que se situam nos fins-de-semana e nas férias que a menor passou com o pai, este mexeu na vulva da menor e introduziu o seu pénis na boca da referida menor.
O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto aos factos aludidos pela seguinte forma:
“Os factos constantes dos nº 9 a 19 resultaram provados com base numa apreciação critica e conjunta dos depoimentos dos tios maternos da menor, os quais revelaram relação de grande proximidade com a menor e conhecimento directo da vida diária desta. Refira-se que a tia alegou viver no mesmo prédio que a menor e contactar com a mesma diariamente.
(…)
Os factos descritos no ponto nº 27º foram dados como provados com base numa apreciação crítica e conjunta do depoimento da tia materna, do relatório pericial e esclarecimentos prestados em audiência pelo perito e do depoimento do pedopsiquiatra que acompanhou a C....
A testemunha de nome G..., tia materna da menor, afirmou que a menor lhe relatou que o pai lhe "mexeu no pipi" e que o pai "lhe meteu a pila na boca" e que ficou convicta de que a menor falava verdade. A menor relatou à tia, de forma detalhada, as circunstâncias em que tal ocorreu.
Esta testemunha vive no mesmo prédio que a menor e revelou ter forte ligação afectiva com mesma.
Esta testemunha mereceu crédito ao tribunal, pela forma firme como depôs.
A testemunha de nome E... afirmou que a menor o consultou desde Julho de 2004 até à Páscoa do corrente ano.
Afirmou tal testemunha que, por várias vezes, nas consultas, a menor lhe relatou que "o pai lhe pôs a pila na boca e lhe pôs a mão no pipi".
Referiu a mencionada testemunha que, após o acompanhamento, está convicto de que os relatos da C... se reportam a situações pela mesma vividas e que a menor não foi manipulada.
Mais referiu esta testemunha que a menor tem um desenvolvimento mental que lhe permite não confundir a realidade com a ficção.
Por fim, referiu que é fácil desmascarar uma mentira de uma criança. Referiu também que a menor não quer conviver com o pai.
Esta testemunha mereceu crédito ao tribunal pela forma segura e coerente como depôs.
- O relatório e os esclarecimentos do Perito:
Consta do relatório que:
"A menor interage e responde claramente na altura das observações pedopsiquiátricas. Não se verificam sinais de sofrimento emocional ou de falta de estabilidade psico-afectiva.
A capacidade de descernimento da menor em relação aos acontecimentos é adequado, a menor relata de forma coerente está orientada em espaço e tempo. Na presença da mãe fala repetitivamente sobre as coisas e o pai disse e não quer ir a casa do pai. Nota-se uma grande angústia de separação da menor com a mãe, assumindo quase uma postura protectora com a mãe e confirmando todos os conteúdos relacionados com o pai, relatados pela mãe.
Só pelas 3 observações até à data, é difícil de concluir, de forma coerente e consistente, que houve, ou não houve, (tentativa de) abuso sexual . Não existem indícios físicos comprovados. A menor falou durante as observações abertamente sobre os acontecimentos e existem fortes indícios no comportamento e nas verbalizações descritos que houve uma situação (de tentativa) de abuso sexual...".
Em sede de audiência de julgamento, o perito que realizou o exame e elaborou o relatório referiu que o discurso da menor é credível.
O Senhor Perito prestou esclarecimentos de forma cuidadosa e isenta.
Entende, pois, o tribunal que o relatório pericial e os depoimentos referidos, em particular os depoimentos do perito e do pedopsiquiatra que acompanhou a menor durante quase 3 anos, atentas as suas qualidades técnicas e considerando a isenção revelada, em conjunto com os supra referidos meios de prova, são suficientes para convencer o tribunal da ocorrência destes factos.”
Segundo o apelante, sustentado em parecer que juntou aos autos, evidencia-se no caso sub judice um síndrome de alienação parental (s.a.p.), levado a cabo pela mãe, coadjuvada por alguns membros da sua família.
Vejamos.
O síndrome de alienação parental (“parental alienation syndrome”) foi primeiramente identificado e descrito em meados dos anos 80 do século XX por Richard Gardner, psiquiatra americano. É um distúrbio que afecta crianças, que rejeitam completamente um dos progenitores, sem razões justificadas. Contém um componente de “lavagem ao cérebro” por parte do outro progenitor, processada tanto de forma consciente como inconsciente, mas inclui também factores inerentes à própria criança (Richard Gardner, “Recent trends in divorce and custody litigation”, New York, The American Academy of Psychoanalysis, Academy Forum, volume 29, number 2, Summer, 1985, páginas 3 a 7; consultável na internet, www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr85.htm). Richard Gardner registou um incremento desse fenómeno a partir do momento em que os tribunais americanos começaram a atender às reivindicações dos progenitores masculinos, que se insurgiam, nos processos de regulação do poder paternal, contra a aplicação da “presunção dos primeiros anos” (“tender-years presumption”) segundo a qual as mães estão melhor preparadas para cuidar de crianças de tenra idade (Richard Gardner, “Judges interviewing children in custody/visitation litigation”, New Jersey family lawyer, volume VII, number 2, August/September 1987, p. 26 e seguintes, consultável na internet, em www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr87.htm). Segundo os pais, aquela presunção seria sexista, assentava no pressuposto errado de que as mulheres são necessariamente melhores responsáveis parentais do que os homens. Em resultado dessas reivindicações, a partir de meados dos anos 70 o legislador e os tribunais americanos começaram a aplicar a noção de que “o superior interesse da criança” impunha que a atribuição da custódia devia ser cega perante o género (“sex blind”). Mais ainda, foi ganhando popularidade o conceito da atribuição de custódia conjunta. Isto pôs em causa a primazia tradicionalmente concedida às mulheres na guarda das crianças, o que, segundo Richard Gardner, contraria a realidade dos factos, ou seja, de que por razões de ordem biológica e de evolução das espécies, de uma forma geral as mulheres estão geneticamente melhor preparadas para cuidar de crianças, pelo menos nos primeiros anos de vida, do que os homens. E é nos primeiros anos de vida que se formam os mais sólidos laços de vinculação com o progenitor, os quais se estabelecem com aquele que primordialmente cuidou da criança, normalmente a mãe. Assim, acrescenta Gardner, quando esse progenitor e a criança sentem estar em perigo a manutenção desse laço, desencadeia-se uma situação de conflito que pode levar ao alegado síndrome de alienação parental. Este surge, pois, no âmbito de conflitos judiciais sobre a atribuição da responsabilidade parental de um menor.
Os principais sintomas do referido síndrome são (Richard Gardner, v.g., “The empowerment of children in the development of parental alienation syndrome”, The American Journal of Forensic Psychology, 20(2):5-29, 2002, consultável na internet, www.fact.on.ca/Info/pas/gard02c.htm):
- campanha de difamação (“campaign of denigration”) – a criança denigre sistematicamente a imagem do progenitor com quem não vive habitualmente, sem ser contrariado pelo outro progenitor;
- frivolidade das razões apontadas para a referida campanha – os motivos apresentados para a recusa de convívio com o outro progenitor são irracionais ou irrelevantes, como “ele arrota à mesa”, “uma vez disse “merda””, “manda-me ir para a cama muito cedo”;
- ausência de ambivalência – as crianças com uma relação saudável com os pais sabem que estes têm tanto coisas boas como más; a criança vítima de s.a.p. não encontra qualquer aspecto positivo no progenitor alienado;
- fenómeno do “pensador-independente” (“independent-thinker phenomenon”) – a criança proclama que as acusações são da sua exclusiva lavra, que não foram induzidas por outrem;
- apoio automático ao progenitor alienante (“reflexive support of the alienator”) – a criança, como medida de auto-protecção, identifica-se com o progenitor que considera ser o mais forte, apoiando-o contra o outro progenitor;
- ausência de sentimento de culpa – a criança não demonstra simpatia ou empatia em relação ao progenitor alienado;
- enredos emprestados (“borrowed scenarios”) – a criança usa palavras ou expressões que não fazem parte do seu vocabulário e cujo significado pode desconhecer, mas sabe que a sua utilização agrada ao progenitor alienante e é eficaz na campanha de difamação;
- alastramento da animosidade à família alargada e aos amigos do pai alienado – a criança rejeita não só o pai alienado mas também as pessoas que lhe estão associadas, sentindo-se apoiada nessa atitude pelo progenitor alienante.
Richard Gardner realça que o conceito de síndrome de alienação parental não se aplica a casos em que o menor foi efectivamente alvo de abusos por parte do progenitor alienado. Faz notar que a pedra de toque do s.a.p. é o exagero de pequenas fraquezas ou defeitos. Porém, dá conta de que as falsas acusações de abusos sexuais no contexto de s.a.p. têm-se tornado comuns (“The detrimental effects on women of the gender egalitarianism of child-custody dispute resolution guidelines”, Academy Forum, volume 38, nº 1,2 Spring/Summer 1994, p. 10-13, consultável na internet, www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr94.htm). Em regra surgem como “último recurso”, quando outras manobras de exclusão falharam. Por outro lado, Richard Gardner admite que a existência de s.a.p. pode ser invocada para mascarar situações de genuíno abuso ou negligência por parte do progenitor “alienado” (“Recommendations for dealing with parents who induce a parental alienation syndrome in their children”, Journal of Divorce & Remarriage, volume 28 (3/4), 1998, p. 1-21, consultável na internet, www.fact.on.ca/Info/pas/gardnr98.htm).
Que dizer, no caso concreto?
Antes de mais, constata-se que nos autos não foi descurada a possibilidade de ocorrer uma situação de s.a.p.. Foi pedida perícia sobre essa eventualidade ao Instituto Nacional de Medicina Legal, o qual sugeriu que essa questão fosse respondida, em aditamento, pelo perito pedopsiquiatra que examinara a menor (fls 511 e 512). Este último (Dr. H...) declarou que muitos factores influenciam o pensamento e o discurso de uma criança. Para eliminar eventuais factores de contaminação, realizou-se a observação pedopsiquiátrica da criança em consulta individual, incluindo-se nessa situações lúdicas, no sentido de chegar ao sentimento intrínseco (“menos contaminado”) da criança (fls 545). Em situação de observação individual a menor manifestou-se claramente, verbal e não-verbalmente. E nessa situação a menor disse que não sente saudades do pai e respondeu com um «sim» quando foi perguntada se o pai lhe fez mal, referindo “vem às vezes mexer no meu pipi, quando estava a dormir com ele estava a sentir às vezes as mãos dele a mexer.” Mais diz o perito que as observações revelaram uma criança harmoniosa e equilibrada do ponto de vista emocional e cognitivo. No jogo lúdico a figura paterna é excluída na dinâmica familiar. Nos desenhos não se verificaram conteúdos sexualizados. Quanto ao comportamento da menor na presença da mãe, o perito diz que a menor revela atitudes e comportamentos que transmitem uma postura de “lealdade”, ou melhor, de “ausência de imparcialidade”. O perito acrescenta que tendo em conta a idade cronológica da menor e a sua imaturidade fisiológica por altura dos acontecimentos, entende que os comportamentos revelados pela menor sugerem mais uma atitude de protecção inconsciente e medo em desagradar do que um discurso manipulado.
No relatório do exame pericial pedopsiquiátrico o mesmo perito afirmou que “só pelas 3 observações efectuadas até à data, é difícil de concluir, de forma coerente e consistente, que houve, ou não houve, (tentativa) de abuso sexual. Não existem indícios físicos, comprovados. A menor falou durante as observações abertamente sobre os acontecimentos e existem fortes indícios no comportamento e nas verbalizações descritos que houve uma situação (de tentativa) de abuso sexual” (sublinhado nosso).
Diz-se ainda no relatório (fls 199 dos autos) que “necessitam-se consultas pedopsiquiátricas regulares e contínuas para criar uma relação terapêutica de confiança, para responder adequadamente à questão da probabilidade que os factos descritos poderem não responder à verdade.”
Ora, a testemunha E..., médico pedopsiquiatra, acompanhou a menor desde as primeiras queixas (Julho de 2004) até à Páscoa de 2008. Foi, pois, um acompanhamento prolongado, que permitiu àquele especialista conhecer bem a criança. E o Dr. E... não manifestou dúvidas de que a menor relatava factos que efectivamente vivenciara, que a perturbavam, mantendo um discurso que era genuíno e espontâneo. Tudo isto em entrevistas individuais, em que a criança falava livremente. Este médico não detectou, segundo disse, a existência de síndrome de alienação parental. É sua convicção de que ao longo deste tempo a menor não foi expressamente manipulada nem pela mãe nem por outrem para produzir falsas declarações nem falsos testemunhos. A mãe adoptou uma atitude cautelosa e até tolerante, tendo deixado que a menor em Agosto fosse de férias com o pai, conforme estava estabelecido no regime de regulação do poder paternal, apesar da aparição das primeiras queixas em Julho.
Também não se nos afigura ser evidente, no caso, uma situação de síndrome de alienação parental. Embora a relação entre os pais sempre tenha sido conflituosa, a verdade é que tal não obstou a que a menor tenha sido acompanhada pelo pai desde muito cedo. Aquando da aparição das queixas a questão da atribuição da custódia da criança estava há muito resolvida, com a responsabilidade parental pacificamente atribuída à mãe. O pai sempre teve a possibilidade de ter a criança consigo, não se detectando a existência de obstáculos a tal por parte da mãe. Aliás, recentemente o regime de visitas havia sido alterado, por acordo, com a antecipação do início dos fins de semana com o pai para as noites de sexta-feira.
Note-se que se a mãe estivesse predisposta a aproveitar qualquer pretexto para obstar aos contactos entre a C... e o pai certamente tê-lo-ia feito aquando do episódio dos “alfinetes”, descrito sob o n.º 23 da matéria de facto. E aquando do primeiro relato da C..., ocorrido em 12 de Julho de 2004 (n.º 11 da matéria de facto), a mãe não foi a correr queixar-se ao tribunal: conforme relatado nos autos, procurou aconselhamento de especialistas e interpelou o pai, para saber o que se passava. Mais, deixou que a criança fosse de férias com o pai, conforme estipulado no regime de regulação do poder paternal, esperando, conforme disse o Dr. E... na audiência de discussão de julgamento, que o tempo ajudasse a esclarecer as coisas e depois de o pai ter declarado aceitar fazer uma avaliação psiquiátrica. Aliás, a própria requerente não teve problemas em admitir, no seu requerimento inicial, que a C... voltou das férias aparentemente calma e bem disposta. Foi só quando a criança, na sequência de outros fins de semana com o pai, relatou novos factos perturbadores, de comportamentos de índole sexual por parte do pai, e isto depois de no decurso das férias o Requerido ter dito que afinal já não aceitava sujeitar-se a qualquer avaliação psiquiátrica, por a reputar desnecessária, é que a Requerente recorreu ao tribunal, requerendo a suspensão do direito de visitas. De resto, no relatório do exame psiquiátrico-forense feito à Requerente conclui-se que “não se apura tendência à impulsividade, manipulação, confabulação e passagens ao acto. (…) Parece-me ser claro o seu desejo de proteger a filha não a determinando desejos mais agressivos, hostis, ou vingativos em relação ao pai da filha” (fls 156 e 157 dos autos).
É certo que a Requerente não participou criminalmente do Requerido (o que, à data dos factos, em regra era necessário para desencadear o procedimento criminal: art.º 178.º do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 99/2001, de 25.8). Justificou tal procedimento com o facto de na ocasião apenas ter conhecimento dos relatos da filha e o Requerido os ter negado e se ter disponibilizado para ser avaliado psicologicamente, tendo a Requerente optado por expor a situação ao tribunal de família a fim de que aí se ordenassem as diligências preventivas e probatórias adequadas à situação (fls 52 dos autos). Trata-se de uma atitude razoável, compatível com o desejo de evitar a potencial vitimação secundária emergente da sujeição da criança às diligências próprias de um processo criminal (problemática bem analisada por Catarina Ribeiro, in “A criança na justiça, trajectórias e significados do processo judicial de crianças vítimas de abuso sexual intrafamiliar”, Almedina, Maio de 2009).
Face aos elementos constantes nos autos e aos depoimentos prestados em audiência, não vemos que o tribunal a quo pudesse ter decidido a matéria de facto de forma diferente.
A irmã da Requerente fez um depoimento que nos pareceu sincero: emotivo, mas contido, sem sinais de representação nem de papagueamento de situações inventadas. Depôs nos termos indicados no despacho de decisão da matéria de facto. Acompanhou de muito perto toda a situação, dado morar no mesmo prédio da Requerente. Acompanhou a Requerente e a C... às consultas de pedopsiquiatria para que a criança não ficasse sózinha quando a Requerente era ouvida pelo médico.
Também o depoimento do Dr. E... foi prestado de forma clara, segura, coerente e equilibrada. Admitiu que o facto de ter sido alvo de uma participação disciplinar à Ordem dos Médicos por parte do Requerido o melindrou, sendo caso inédito na sua carreira, mas não afectou a sua isenção. Aliás, após as primeiras consultas elaborou uma informação em que sugeria que ambos os pais e a criança fossem alvo de observação psicológica por parte do Instituto de Medicina Legal (fls 53 dos autos).
No relatório do exame psiquiátrico feito ao Requerido conclui-se que “o examinando não apresenta um quadro que corresponde a qualquer quadro nosológico psiquiátrico. A personalidade é rígida, com alguns aspectos depressivos compreensíveis pela situação da avaliação, com alguns traços obsessivos e com núcleos paranóides superficiais que o levam a ter desconfiança, compreensível na sua perspectiva neste processo. (…) Nada existe na personalidade do examinando que nos permita confirmar alguma tendência para abuso da menor, não sendo igualmente possível excluí-lo, uma vez que alguns agressores não apresentam traços psicopatológicos que possam confirmar ou excluir esta tendência.” (fls 476 e 477). Os resultados da perícia de avaliação psicológica do Requerido (fls 168) não divergem dos supra referidos, sendo certo que em ambos os relatórios se salientou uma postura defensiva e agressiva, considerando-se no primeiro exame que “a avaliação foi pautada por defensividade, tentativa de controlo e procura da transmissão de adequação e normalidade com recurso à intelectualização e racionalização”, acrescentando-se que “os afectos são expressos à mínima, apurando-se pouco envolvimento na relação e consideração pelo outro” (fls 476).
As testemunhas arroladas pelo Requerido, familiares, amigos e colegas, dão nota de um “homem íntegro” e muito dedicado à filha, incapaz de praticar os actos supra referidos.
Infelizmente a boa inserção sócio-profissional do Requerido não garante a impossibilidade de ter praticado os actos referidos pela filha. Os abusos sexuais ocorrem em todas as classes sociais e níveis sócioeconómicos e culturais (Marisalva Fávero, “Sexualidade infantil e abusos sexuais a menores”, 2003, Climepsi, páginas 87, 88), os abusadores não têm qualquer caracterização social típica ou um comportamento público identificado (Marisalva Fávero, idem, pág. 119). Não existe também um perfil psicológico típico do abusador sexual. Em regra são pessoas que não apresentam psicopatologias (Marisalva Favero, obra citada, páginas 87, 144; Mauro Paulino, “Abusadores sexuais de crianças”, Março 2009, Prime Books, pág. 60). A existência de uma vida sexual normal também não garante a omissão de abusos sexuais sobre menores: os estudos denotam que existem dois grupos de agressores sexuais de menores - um primeiro grupo, formado por pessoas que se sentem atraídas exclusivamente por crianças, mantendo eventualmente contactos sexuais com adultos como forma de aceder às crianças (categoria a que vulgarmente se atribui a designação de pedófilo) e um segundo grupo, formado por pessoas que possuem a orientação sexual para adultos, mas que em determinadas circunstâncias abusam de crianças. A agressão sexual surge nestes casos como resultante de um factor stressante como uma crise conjugal, uma experiência traumatizante ou uma crise existencial (cfr. Marisalva Favero, obra citada, pág. 127; Mauro Paulino, obra citada, páginas 31 e seguintes).
Tanto o Dr. E... como o Dr. H... (perito que avaliou a menor) atestaram que esta sabe distinguir a realidade da fantasia, não tendo encontrado indícios de mentira ou sugestão. Nesse sentido o depoimento do Dr.E..., que acompanhou a C... ao longo de vários anos, foi particularmente convincente. De resto, os estudos revelam que a criança pode recordar e contar as suas experiências com precisão, desde uma idade muito baixa (nível pré-escolar), tendo desde muito cedo uma capacidade similar à dos adultos para discriminar acontecimentos imaginados e vividos (Cristina Soeiro, “O abuso sexual de crianças: contornos da relação entre a criança e a justiça”, revista Sub Judice, n.º 26, Outubro/Dezembro de 2003, pág. 24). As crianças em idade pré-escolar são tão exactas naquilo que recordam como as testemunhas mais velhas, embora evoquem menos pormenores. Por outro lado, embora as crianças mais novas sejam mais susceptíveis à sugestão do que as crianças mais velhas, não são mais sugestionáveis do que os adultos no que respeita a informação e acontecimentos que sejam significativos e tenham especial interesse para elas (A. Daniel Yarney, “Depoimentos de testemunhas oculares e auriculares”, in Psicologia Forense, obra colectiva, Almedina, 2006, pág. 231; Wiley, Bottoms, Stevenson e Oudekerk, “A criança perante o sistema legal: dados da investigação psicológica”, obra colectiva citada, páginas 326 e 327; Isabel Marques Alberto, “Abuso sexual de crianças: o psicólogo na encruzilhada da ciência com a justiça”, obra colectiva citada, pág. 453 e 454). É certo que a menor não terá dado muitos pormenores àcerca do contexto dos actos praticados. Tal é próprio da sua tenra idade, tendo-se concentrado naquilo que era mais importante para ela. No entanto, conforme narrado pela mãe e pela tia, houve alguma contextualização: segundo ela os actos ocorreram aquando das visitas de fim de semana, na casa do pai, nomeadamente quando a menor se encontrava deitada (estava a dormir e sentiu uma coisa no pipi, pensou que era uma mosca mas depois viu que era a mão do pai, perguntou porque é que ele estava a mexer e o pai disse que era porque gostava dela, ela disse que não gostava dele e ele deu-lhe um estalo – segundo relato feito à tia).
Entendemos, por conseguinte, que a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto não merece censura.
Diga-se, para terminar, que a decisão de suspensão do direito de visitas, tomada sem audição prévia do Requerido, deveu-se à urgência da situação. De resto o pai foi logo de seguida ouvido e, conforme foi várias vezes referido na audiência de julgamento, logo na conferência de pais foi sugerido que ele pudesse ver a filha, embora na presença de familiares da mãe da menor, o que recusou.
Segunda questão (manutenção do direito de visitas por parte do pai)
O anteriormente designado “poder paternal” (actualmente substituído pelo conceito de “responsabilidades parentais”, introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 61/2008, de 31.10) é um poder-dever, um poder funcional. Caracteriza-se como um conjunto de faculdades que devem ser exercidas altruisticamente, no interesse do filho, com vista ao seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral. Neste sentido o consagra a Constituição da República Portuguesa, em cujo artigo 36º, nº 5, se enuncia que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”. O artigo 1878º nº 1 do Código Civil explicita que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.”
A Constituição da República Portuguesa consagra, expressamente, a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges quanto à manutenção e educação dos filhos (artigo 36º, nº 3). Tal princípio foi concretizado no Código Civil de 1966 através do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro. Assim, no artigo 1901º, nº 1, daquele código, estipula-se que “na constância do matrimónio o exercício do poder paternal pertence a ambos os pais.” O número 2 do mesmo artigo acrescenta que “os pais exercem o poder paternal de comum acordo” e, se este faltar “em questões de particular importância”, o conflito decidir-se-á com a intervenção do tribunal, a requerimento de qualquer dos pais.
Nos termos da Reforma de 1977, no caso de divórcio “o destino do filho, os alimentos a este devidos e a forma de os prestar serão regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação do tribunal; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor” (artigo 1905º, nº 1).
O nº 2 deste artigo estipulava que “na falta de acordo, o tribunal decidirá de harmonia com o interesse do menor, podendo este ser confiado à guarda de qualquer dos pais” ou, em casos excepcionais, à guarda de outra entidade.
Nos termos do artigo 1906º, na redacção introduzida pela Reforma de 1977, “o poder paternal é exercido pelo progenitor a quem o filho foi confiado“ (nº 1). Ao progenitor que não exerça o poder paternal assiste o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (nº 3).
Deste regime resultava que, em caso de divórcio ou de separação de facto (ex vi artigo 1909º do Código Civil), o exercício do poder paternal caberia a um só dos cônjuges, que seria aquele a quem o filho fosse confiado, ou seja, aquele a quem coubesse a guarda do menor.
Regras estas aplicáveis aos progenitores não unidos pelo matrimónio (art.º 1912.º do Código Civil).
Na grande maioria dos casos o menor era confiado à mãe, que assim passava a exercer, em exclusividade, o poder paternal. Por sua vez o outro progenitor beneficiaria de um regime de visitas, a menos que excepcionalmente o interesse do menor o desaconselhasse (art.º 1905.º, n.º 3, do Código Civil, na redacção introduzida em 1977).
No início de 1995 um grupo de deputados do Partido Socialista apresentou um Projecto de Lei (Projecto de Lei nº 475/VI) que acolhia uma proposta de alteração de disposições do Código Civil respeitantes ao exercício da responsabilidade paternal, da autoria da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e do Centro Pai-Mãe-Criança.
O texto final aprovado (Lei nº 84/95, de 31 de Agosto) manteve a redacção do nº 1 do artigo 1906º do Código Civil (“o poder paternal é exercido pelo progenitor a quem o filho foi confiado”) e alterou o nº 2 do mesmo artigo, que passou a ter a seguinte redacção: “Os pais podem, todavia, acordar, nos termos do nº 1 do artigo anterior, o exercício em comum do poder paternal, decidindo as questões relativas à vida do filho em condições idênticas às que vigoram para tal efeito na constância do matrimónio.”
O número 3 do mesmo artigo consagrou ainda uma solução intermédia, ao estipular que “os pais podem ainda acordar (…) que determinados assuntos sejam resolvidos por acordo de ambos os pais ou que a administração dos bens do filho seja assumida pelo progenitor a quem o menor tenha sido confiado.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989 e ratificada em Portugal pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12.9, estipula que os Estados Partes devem respeitar “o direito da criança separada de um ou de ambos os seus pais de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos, salvo se tal se mostrar contrário ao interesse superior da criança” (nº 3 do artigo 9º).
A Recomendação nº R (84) 4, aprovada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 28 de Fevereiro de 1984 (consultável na internet, www.coe.int), recomendou aos governos dos Estados membros do Conselho da Europa que adaptassem a sua legislação de forma a que, em caso de dissolução do casamento ou de separação dos pais, a autoridade competente tome medidas sobre o exercício das responsabilidades paternais, por exemplo repartindo o exercício das responsabilidades entre os dois progenitores ou, se os pais nisso consentirem, decidindo que as responsabilidades sejam exercidas conjuntamente. A autoridade deverá tomar a sua decisão tendo em conta o eventual acordo concluído pelos pais, na medida em que não seja contrário ao interesse dos filhos (princípio nº 6).
Em 18 de Março de 1999 um grupo de deputados do Partido Socialista apresentou um Projecto de Lei (nº 644/VII, publicado no D.A.R., II série A, nº 46/VII/4, de 20.3.1999), o qual visava alterar o artigo 1906º do Código Civil.
Este processo legislativo culminou na redacção do artigo 1906º, introduzida pela Lei nº 59/99, de 30.6, que é a seguinte:
1 — Desde que obtido o acordo dos pais, o poder paternal é exercido em comum por ambos, decidindo as questões relativas à vida do filho em condições idênticas às que vigoram para tal efeito na constância do matrimónio.
2 — Na ausência de acordo dos pais, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que o poder paternal seja exercido pelo progenitor a quem o filho for confiado.
3 — No caso previsto no número anterior, os pais podem acordar que determinados assuntos sejam resolvidos entre ambos ou que a administração dos bens do filho seja assumida pelo progenitor a quem o menor tenha sido confiado.
4 — Ao progenitor que não exerça o poder paternal assiste o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho.”
Ficou claro, por conseguinte, que em caso de separação dos progenitores o exercício conjunto do poder paternal continua a depender do acordo daqueles, sendo certo que não teve sequência o intuito inicial de enunciar o exercício conjunto do poder paternal como regra.
A Lei n.º 61/2008, de 31.10, deu mais um passo no sentido do reforço da atribuição aos pais separados de responsabilidades parentais conjuntas. Assim, o nº 1 do art.º 1906.º passou a consagrar, como regra geral, que “as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio (…)”. Só não será assim quando tal for julgado contrário aos interesses do filho, devendo o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores (n.º 2 do art.º 1906.º).
Independentemente da atribuição das responsabilidades parentais a um só dos progenitores, o tribunal promoverá acordos e tomará decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos os progenitores, sempre de harmonia com o interesse do menor (n.º 7 do art.º 1906.º). A manutenção de uma relação de grande proximidade entre o menor e o progenitor a quem não seja confiado, de harmonia com o interesse do menor, já estava anteriormente prevista no art.º 1905.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 84/95, de 31.8. De resto, a CRP estipula que “os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial” (n.º 6 do art.º 36.º da CRP).
No caso dos autos, o poder paternal foi atribuído à mãe da menor, tendo sido consagrado um regime de visitas ao pai.
Posteriormente, conforme supra relatado, o regime de regulação do poder paternal foi alterado, tendo sido suprimido o direito de visitas ao pai da menor.
O tribunal a quo entendeu que no caso concreto o interesse da menor Maria entra em conflito com o direito de visitas do progenitor, devendo prevalecer o interesse da menor.
É desejável que as crianças convivam com ambos os progenitores, colhendo deles as referências que as nortearão para um desenvolvimento saudável. Porém, há casos excepcionais, em que esse contacto é nocivo e até contraproducente para o equilíbrio da criança. A situação sub judice é um desses casos. Os factos provados aconselham a que a menor seja afastada do pai, sem direito a visitas, sendo certo que, segundo foi afirmado na audiência de julgamento pelo pedopsiquiatra que a acompanhou (e foi dado como provado), a C... não quer ver o pai, o qual constitui para a menor uma referência negativa. O próprio pedopsiquiatra não aconselhou o retomar das visitas, considerando que hoje em dia o vínculo afectivo entre a menor e o pai quase se anulou.
Afigura-se-nos, pois, que a decisão recorrida não merece censura.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante.
Lisboa, 12.11.2009
Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Ana Paula Boularot