Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
964/16.2PBLSB-A.L1-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: IMPEDIMENTO
MEDIDA DE COAÇÃO
FASE DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUÍDA COMPETÊNCIA AO JUÍZ TITULAR
Sumário: Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.° do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.° - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.° do CPP, por não se reportar a uma intervenção em fase anterior do processo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Conflito de Competência


1.–
1.1–

Em 20.12.2018 foi deduzida acusação contra o arguido JR a quem é imputado em autoria material e na forma consumada um crime de perseguição, previsto e punido nos termos do nº 1 do artigo 154º-A, do Código Penal, tendo o MºPº promovido a aplicação ao arguido da medida de coação de proibição de contactos com a ofendida e com colegas de trabalho desta e o afastamento do local de trabalho da ofendida, devendo o seu cumprimento ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

Por despacho de 26/07/2020 foi aplicada, pela Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa — Juiz 14 - a quem foi distribuído e que por despacho de 31/10/2019, recebera a acusação e designara dia para julgamento pelos factos referidos na dita acusação - a medida de coação de proibição de contactos, por qualquer meio, nomeadamente pessoal, contacto telefónico, carta ou e-mail, com a ofendida e com colegas de trabalho desta, implicando o afastamento do mesmo da residência da família e da sua família, bem como do local de trabalho da ofendida e áreas geográficas adjacentes, devendo o seu cumprimento ser fiscalizado por meios técnicos.

Nesse mesmo despacho o Juiz 14 Juízo Local Criminal de Lisboa, em face do despacho proferido, com a aplicação ao arguido da medida de coação de proibição de contactos, nos termos do artigo 40.º, alínea a), declarou-se impedida para a ulterior tramitação do processo, devendo o mesmo passar a ser tramitado pela minha Exma. Substituta Legal.

1.2.–
Remetidos os autos à substituta legal por esta foi proferido despacho, em 26/09/2020, em que considerando que, a circunstância de a Exma. Colega ter, já na fase de julgamento, aplicado ao arguido a medida de coacção de proibição de contactos com a ofendida, não integra o impedimento a que alude a alínea a) do artigo 40º do Código de Processo Penal, porquanto tal impedimento só existe se tal intervenção tiver ocorrido em fase processual anterior, ou seja, em inquérito ou instrução, e não na mesma fase processual, isto é, em julgamento pelo que considerou-se a mesma incompetente para a realização da aludida audiência de discussão e julgamento.


1.3.–
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 36º, n.º 1 CPP, perante o conflito negativo de competência.

1.4.–
A Exm.ª PGA junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de aderir à posição sustentada pela Exm.ª Srª Juíza substitua por considerar que a situação em apreço se não enquadra na previsão da norma constante na al) a) do artigo 40° do CPP, não consubstanciando qualquer impedimento , nem se integrando no conceito contido nesta norma legal pois que uma tal disciplina aplicar-se-ia apenas se a mencionada medida de coacção tivesse sido aplicada pela Senhora Juíza do julgamento em anterior fase processual, qual seja, a fase de inquérito ou de instruçã, pelo que conclui não haver fundamento legal para que o julgamento não seja efectuado pela Excelentíssima Juíza titular do processo.

2.–
É manifesto que não nos deparamos com um verdadeiro conflito negativo de competência, tendo em conta que este, de acordo com o disposto no art. 34º, do CPP, só ocorre quando dois ou mais tribunais de diferente ou da mesma espécie se considerarem competentes ou incompetentes para conhecer do mesmo crime imputado ao mesmo arguido.
A questão concreta reporta-se a um impedimento de carácter pessoal invocado pela srª juiz 14 do Juízo Local Criminal de Lisboa, sendo que bastaria a simples circunstância de haver a mudança de magistrado daquele tribunal para desaparecer o motivo legal de impeditivo de intervenção no processo.
Uma situação de verdadeiro conflito surge quando conflituam entre si tribunais e não as pessoas que exercem o cargo.
Porém, há que decidir é se há real motivo de impedimento e, em tal situação “transferir” o processo para o substituto do impedido (não se questiona que se seja substituto, mas apenas que não há motivo justificado para fazer funcionar o regime de substituição).
De todo o modo, há que pôr termo à situação e decidir quem deve tramitar o processo.

3.–
Aderindo a todos os fundamentos desenvolvidos na decisão da Srª Juíza substituta, de 26/09/2020, com os quais se concorda na íntegra, considera-se que a Exma. Srª Juíza do Juiz 14 do Juízo Local Criminal de Lisboa, enquanto Juiz de Julgamento não ficou impedida, nos termos e para os efeitos do artigo 40º alínea a) do Código de Processo Penal, por ter aplicado ao arguido a medida de coacção de proibição de contactos, porque o fez já na fase de julgamento e não teve qualquer intervenção em fase anterior, nomeadamente no inquérito, como Juiz de Instrução.

Citando a título exemplificativo o acórdão da Relação de Évora de de 14 de Março de 2018 (processo 32/18.2YREVR, in www.dgsi.pt), que apreciou um caso tudo semelhante aos dos autos, referenciado pela decisão de 26/09/2020 e que, por seu turno, seguiu o entendimento da Relação de Coimbra de 25-06-2008, proferido no processo n.° 1522/02.4TACBR.C1:

“Nos impedimentos do artigo 40.º do CPP releva a consideração de qual tenha sido a intervenção do juiz no processo, nas fases anteriores à do julgamento. (...) Assim, podemos dizer que, em regra, o impedimento do art. 40.º, al. a), do C. Processo Penal, na atual redação, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz que, nas fases preliminares do processo, lhe aplicou medida de coação prevista nos arts. 200.º a 202.º, do C. Processo Penal. E é essa a linha interpretativa que também tem sido seguida pelo Tribunal Constitucional, que tem mantido, a propósito desta questão, uma linha orientadora no sentido de que o critério da admissibilidade da intervenção no julgamento de juiz que tenha tido intervenção anterior no processo passa pela distinção entre intervenções que pela sua frequência, intensidade ou relevância, sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência e intervenções pontuais ou isoladas. Só no primeiro caso a estrutura acusatória do processo veda a participação do juiz no julgamento. Já a prática de atos isolados durante o inquérito não constitui, em princípio, causa de quebra objetiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu impedimento no julgamento.

Impõe-se ainda referir que a alteração legislativa decorrente da Lei n.° 59/98, de 25 de Agosto, conexionou os institutos do impedimento e da suspeição, de forma inequívoca, ao introduzir o n.° 2 do artigo 43.° do CPP, onde se prevê que pode constituir fundamento de recusa (e também de escusa), nos termos do n.°1, a intervenção do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º. (...)
Como referem ainda os Professores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, no texto supracitado, a fls.20, a propósito da redação e interpretação do artigo 40.°, al. a) do CPP, na sua redação atual «É ainda incompreensível a ausência de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134.° da Lei 3/99, mas inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases do inquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica aberta a porta ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela primeira vez, aplica ao arguido uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200.° a 202.° (v. g., proibindo o arguido de manter qualquer contacto com as testemunhas da acusação arroladas para o julgamento, depois de conhecidas pressões e ameaças por ele exercidas sobre testemunhas do processo já na pendência da audiência de discussão e julgamento).» (sublinhado e negrito do relator). Um entendimento literal do preceito implicaria necessariamente um bloqueio do sistema processual, o que não terá sido querido pelo legislador. E, de facto, lendo os trabalhos preparatórios, a Proposta de Lei n.° 109/X, não vemos claramente que tenha sido intenção do legislador alargar o impedimento ao juiz de julgamento que apenas nesta fase do processo decreta uma das medidas elencadas na referida alínea a) do citado artigo 40.° do CPP. Com efeito, a justificação apresentada na exposição de motivos para alteração do preceito, diz-nos tão-somente que: “O regime de impedimentos, previsto no artigo 40.°, é modificado. Estabelece-se que o juiz que tenha recusado aplicar o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo por considerar insuficiente a sanção ou haja aplicado uma medida de coacção assente na existência de fortes indícios da prática do crime está impedido de participar nas fases ulteriores de julgamento e recurso. Não se estende o impedimento ao juiz que tenha mantido a medida de coacção, porque tal proibição não tem a seu favor justificação tão intensa e seria de difícil aplicação prática..

“(...) O art. 40º do C. Processo Penal, na redacção da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, dispõe:
“Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.”.
Na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o art. 40º do C. Processo Penal passou a dispor:
“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a)-Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b)-Presidido a debate instrutório;
c)-Participado em julgamento anterior;
d)-Proferido ou participado em decisão de recurso ou pedido de revisão anteriores;
e)-Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.”.

Comparando as duas redacções podemos afirmar, secundando a decisão da Srª juíza substituta que, tendo em conta as alterações que o art. 40º do C. Processo Penal tem sofrido desde a sua versão original, o legislador assumiu como critério para definir as situações em que a imparcialidade do juiz, que já participou em fase anterior do processo é objectivamente posta em causa, o do grau de intensidade da sua intervenção.

Assim, pode dizer-se que, em regra, o impedimento do art. 40º, a), do C. Processo Penal, na actual redacção, ocorre quando intervém como juiz do julgamento de um arguido, o juiz de instrução que, na fase do inquérito ou da instrução, lhe aplicou medida de coacção prevista nos arts. 200º a 202º, do C. Processo Penal.
Como se pode ler no também citado Acórdão do STJ de 10 de Março de 2010 no Processo 36/09.6GAGMR.G1-A.S1:
“O envolvimento do juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, assim afectando a sua imparcialidade objectiva, conduziu o legislador a impedi-lo de intervir nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados.
Tendo em conta todas as causas de impedimento taxativamente previstas na lei (als. a) a e) do art. 40.º), certo é constituir elemento comum de todas elas a intervenção anterior do juiz do processo, ou seja, a intervenção em fase anterior do processo.”

Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.° do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo a prevista no artigo 200.° - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.° do CPP, por não se reportar a uma intervenção em fase anterior do processo.

4.–
Pelo exposto, decide dirimir-se o presente conflito de modo a manter a competência no juiz 14 do Juízo local Criminal de Lisboa, juiz do julgamento.
Sem custas.


Lisboa,02-06-2020


Filomena Lima