Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
304/15.8PHAMD-A.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: DEPOIMENTO ESCRITO
DECLARAÇÃO PARA MEMÓRIA FUTURA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: No decurso de inquérito, com o escopo de apurar da eventual prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal ou de crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), sendo a vítima (igualmente também eventualmente conhecedora de elementos fácticos relativos a agressões à sua progenitora) uma criança de onze anos de idade e o arguido seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados, deve o Juiz de Instrução Criminal proceder à tomada de declarações para memória futura ao menor como requerido pelo Ministério Público.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


1. Nos autos com o NUIPC 304/15.8PHAMD, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra - Instância ... – ...ª Secção de Instrução Criminal – J..., foi proferido despacho, aos 04/07/2016, em que se decidiu indeferir a pelo Ministério Público requerida tomada de declarações para memória futura ao menor D. no decurso de inquérito.

2. O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1. No inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º nº 1 al. d), do C. Penal;
2. A vítima deste ilícito tem 11 anos de idade pelo que por força do disposto nos artigos 67º-A nº 1 al. b), e nº 3, com referência ao art. 1º al. j), todos do CPP, art. 26º da Lei de Proteção de Testemunhas e art. 2º al. b) da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica é considerada vítima especialmente vulnerável.
3. Nos termos do art. 28º da Lei de Proteção de Testemunhas, as declarações de testemunha especialmente vulnerável devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e sempre que possível deve ser evitada a repetição da sua audição.
4. O instituto da tomada de declarações para memória futura constitui exatamente um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da vítima e protege-la do perigo de revitimização.
5. Doutro modo, por se tratar de uma criança muito pequena, a sua inquirição no mais breve espaço de tempo possível, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos traumáticos na sua plenitude e com a precisão e rigor necessários à investigação.
6. Nos termos dos arts. arts. 24º do Estatuto de Vítima, 33º da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica e 271º do CPP, estão reunidos no caso concreto os pressupostos de audição para memória futura do menor D.
7. Assim, não pode o Sr. Juiz de Instrução recusar a realização da diligência em causa apenas porque entende, sem qualquer fundamento legalmente atendível, não ser este o momento certo para o fazer.  
8. Por outro lado, é ao Ministério Público, como titular da ação penal e a quem cabe a direção do inquérito, que compete definir a estratégia investigatória e determinar a sequência temporal da realização das diligências.
9. Pelo que se deixa exposto, o despacho ora em recurso violou o disposto nos arts. 24º do Estatuto de Vítima, 33º da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica, 271º do CPP, 67º-A nº 1 al. b), e nº 3, com referência ao art. 1º al. j), todos do CPP, 26º da Lei de Proteção de Testemunhas, 2º al. b) da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica, 28º da Lei de Proteção de Testemunhas e 53º nº 2 al. b) e 263º nº 1, do CPP,
10. Razão pela qual deve ser substituído por outro onde se determine a audição para memória futura da vítima menor D. com o devido acompanhamento técnico especializado.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida.

3. T., nos autos constituído arguido, apresentou resposta à motivação de recurso, concluindo por lhe dever ser negado provimento.

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido em que reitera a posição anteriormente assumida.

6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

1.   Âmbito do Recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a de saber se existe fundamento legal para o indeferimento pelo Juiz de Instrução Criminal da pelo Ministério Público impetrada tomada de declarações para memória futura ao menor em sede de inquérito.

2. Elementos relevantes para a decisão.

2.1- Aos 27/06/2016, o Ministério Público requereu como a seguir se transcreve:
Nos presentes autos, no qual se investiga a prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 alínea d) do Código Penal, ou crime de maus-tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, n° 1 alínea a) do mesmo Código, importa proceder à tomada de declarações para memória futura ao ofendido, o menor D. de 11 anos de idade, a fim de salvaguardar a menor, atenta a sua idade, nos termos conjugados dos artigos 33º, nº 1 da Lei 112/2009, de 16-09 (alterada pela Lei 129/2015, de 3-09), bem como os artigos 26º, nº 1 e nº 2 e 28º, nº 2 da Lei 93/99, de 14-07 (Lei de Protecção de Testemunhas).
Importa apurar se o menor foi agredida pelo pai e, na afirmativa, de que modo (recurso a cinto, chapadas, murros, pontapés), qual a frequência de tais agressões. Importa ainda esclarecer se presenciou o pai a agredir a mãe, e, na afirmativa, de que modo.
Remeta os autos ao TIC, para apreciação.
Mais solicite à CPCJ que informe qual a técnica que acompanha o processo da menor.
Após, informe o TIC, de modo a notificar a mesma técnica para estar presente nas declarações para memória futura.

2.2- Tem o seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):

O enunciado da promoção do Ministério Público revela, por si só, que é desconhecida da investigação se existe algum depoimento do menor que deva ser preservado para memória futura.
A finalidade das "declarações para memória futura" tal como previstas no artº 271º, do CPP, é a de preservar, para memória futura, aquelas declarações que interessarão para fases posteriores do processo.
Não constituem um acto de investigação que deva ser realizado pelo Juiz de Instrução Criminal.
Cabe ao Ministério Público, coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal, dirigir o inquérito e realizar os actos de investigação que entender necessários.
Apenas após o apuramento dos factos deverá requerer a intervenção do juiz de instrução para a realização daqueles actos expressamente previstos na lei.
Não é o caso do presente inquérito, no estado actual em que se encontra a investigação.
Pelo exposto, indefiro as requeridas declarações para memória futura.
Notifique e devolva.

Apreciemos.

No decurso de inquérito com o escopo de apurar da eventual prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal ou de crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), do mesmo diploma legal, o Ministério Público requereu a tomada de declarações para memória futura “ao ofendido” D., menor de 11 anos de idade, ao abrigo do estabelecido no artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09 (com a redacção introduzida pela Lei nº 129/2015, de 03/09) e artigos 26º, nºs 1 e 2 e 28º, nº 2, da Lei nº 93/99, de 14/07.

O Mmº Juiz a quo indeferiu o requerido, por entender, em síntese, que resultava do peticionado ser desconhecida da investigação se existe algum depoimento do menor que deva ser preservado para memória futura, sendo que as declarações para memória futura não constituem um acto de investigação que deva ser realizado pelo Juiz de Instrução Criminal e que apenas após o apuramento dos factos deverá requerer a intervenção do juiz de instrução para a realização daqueles actos expressamente previstos na lei.

Importa ter em consideração o quadro normativo aplicável.

De acordo com o artigo 26º, da Lei nº 93/99, de 14/07:
“1- Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
2- A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”

E, no artigo 28º, da mesma Lei preceitua-se que “sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal” – nº 2,

O conceito de “testemunha”, nos termos do artigo 2º do mesmo diploma legal abrange “qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, percepção ou apreciação de factos que constituam objecto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo anterior” e a protecção tem aplicação independentemente do tipo de crime em causa.

Por seu lado, a Lei nº 112/2009, de 16/09, que estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência das suas Vítimas, contém no seu artigo 33º norma específica para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.

Nele se explicita:

“1- O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2- O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3- A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7- A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Contudo, ao contrário do que sucede nos casos de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que a tomada de declarações para memória futura é obrigatória, como resulta do nº 2, do artigo 271º, do CPP, encontrando-se em investigação crimes de violência doméstica ou maus tratos, como na situação em apreço esse acto não tem natureza de imperatividade, ou seja, não é obrigatória a sua prática, de onde surge a problemática do critério a considerar para saber quando, requerida que seja, se admite ou indefere a tomada de declarações.

Elucida-nos o Acórdão deste Tribunal da Relação de 11/01/2012, Proc. nº 689/11.5PBPDL-3, disponível em www.dgsi,pt, que “esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça”.

No caso sub judice a vítima (igualmente também eventualmente conhecedora de elementos fácticos relativos a agressões à sua progenitora) é uma criança de onze anos de idade, sendo que o arguido é o seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados.

Como resulta do auto de fls 155 – fls. 3 do presente apenso – o menor foi até já inquirido em 17/12/2015 no âmbito deste inquérito por Magistrado do Ministério Público, tendo o requerimento para tomada das declarações para memória futura sido efectuado em 27/06/2016, pelo que os fundamentos do despacho recorrido para o seu indeferimento não merecem acolhimento.

Face ao que, cumpre julgar o recurso procedente, devendo o Mmº JIC proceder durante a fase de inquérito deste processo à tomada de declarações para memória futura ao menor D., como requerido pelo Ministério Público.

III - DISPOSITIVO.

Nestes termos, acordam os Juízes da ...ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a inquirição para memória futura do menor D., como impetrado pelo Ministério Público.
Sem tributação.


Lisboa, 13 de Setembro de 2016.

                                 
(Artur Vargues)                                 
(Jorge Gonçalves)