Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3100/12.0YXLSB.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
MONTANTE DA INDEMNIZAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO IN NATURA
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
SUB-ROGAÇÃO REAL
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Na apreciação da questão da excessiva onerosidade da reconstituição natural importa ter em consideração factores subjectivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado (no caso um veículo automóvel).
2. Nesta sede, o valor a ter em conta é o valor patrimonial do veículo, correspondendo este ao valor que o veículo representa dentro do património do lesado, ou seja, o valor necessário para o lesado adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses.

3. Sendo o valor estimado para a reparação dos danos sofridos pela viatura (€3.672,50), adicionado ao valor do salvado, superior a duas vezes mais o valor patrimonial da viatura, e tendo a lesada adquirido um outro veículo para substituir as utilidades do sinistrado e reconhecido, na fase negocial, que o seu interesse ficaria satisfeito mediante o recebimento de uma quantia na ordem dos €1500,00, a indemnização pela via da reconstituição natural, em face do sacrifício que importa exigir do lesante e da falta de um interesse específico da lesada na reparação do veículo sinistrado, torna-se absolutamente desproporcionada, havendo que que converter a reparação em obrigação pecuniária, que se fixa no montante de €1.500,00.

4. Só com o pagamento da indemnização, a título de perda total, cessa verdadeiramente o dever da seguradora (data em que a viatura sinistrada é substituída, em sub-rogação real, no património da lesada pelo respectivo valor patrimonial), pois que só então o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado

5. Os prejuízos da privação do uso, no período posterior à aquisição do novo veículo, reconduzem-se à impossibilidade do aproveitamento económico daquela quantia de €1.500,00.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. “ F, Lda." instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma sumária contra a Companhia de Seguros C SA, pedindo a condenação desta no pagamento das seguintes quantias:

- € 3.487,05, relativa à reparação da sua viatura;

- a quantia de €10,00 por cada dia de privação do uso dessa viatura, desde a data do acidente de viação (9/11/2011) até ao dia em que a mesma for reparada, os quais, em 1/09/2012, totalizam a quantia de €2.930,00;

- a quantia de €380,77 de reboque, acrescida dos juros de mora a contar da citação.

A Ré contestou, tendo confirmado que, com base nos elementos por si apurados, a responsabilidade pela ocorrência do acidente pertenceu à condutora do veículo por si garantido.

Alegou ainda que o veículo sinistrado tinha antes do acidente o valor de €700,00, pelo que a sua reparação é excessivamente onerosa, tendo, por carta de 17/11/2011, colocado à disposição da autora a indemnização no valor de €515,00 (€700,00-185,00, correspondente ao valor dos salvados), o que a mesma não aceitou; e que a indemnização pela privação do uso encontra-se limitada a 11 dias.

  Pelo despacho de fls. 73 foi dispensada a selecção da matéria de facto controvertida.

Iniciado o julgamento, a autora ampliou o pedido formulado – ampliação essa que foi admitida - e peticionou a condenação da ré no valor da reparação da viatura de matrícula 24-32-CO, para além do montante de €3.487,05, a liquidar em execução de sentença, por depender ainda da desmontagem da viatura.

Concluído o julgamento, foi proferida sentença na qual se condenou a ré a pagar ao Autor a quantia de € 2.880,00, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

A) A viatura sinistrada, de matrícula …, usada, é reparável;

B) Dos autos não resulta que a reparação a realizar não garante a restituição do lesado à situação em que se encontrava antes do acidente de viação;

C) Está provado que a reparação da viatura, num primeiro momento, ascende a € 3.487,05, sendo este valor susceptível de subir no caso de ser necessário reparar o motor e suspensão desta;

D) A recorrida recusou a reparação da viatura com fundamento no seu valor venal;

E) Para que a recusa da reparação tivesse relevância jurídica, a recorrida deveria ter alegado e provado que não tinha capacidade económica e financeira para a suportar ou que esta era desnecessária por não garantir que a viatura sinistrada ficaria no estado em que se encontrava antes do acidente- acórdão do STJ de 10.02.2004, Proc. 03A4468, in dgsi.pt ;

F) Não o tendo feito, dos factos dados por provados, resulta que a viatura da recorrente pode ser reparada;

G) Na sentença em crise, o Tribunal “a quo" deveria ter fundamentado que a recorrida não tinha capacidade financeira para suportar uma reparação excessivamente onerosa;

H) Tal omissão de pronúncia, leva a que o facto índice previsto no artigo 566º,nº1, do C.C, não esteja preenchido;

I) É público e notório, não necessitando de alegação e prova, que as companhias de seguros têm capacidade financeira para suportar os danos causados pelos seus segurados;

J) O Juiz “a quo" ao não fundamentar a impossibilidade da devedora, ora recorrida, em suportar os custos da reparação da viatura, impede a recorrente de repor o veículo sinistrado no estado em que se encontrava antes do acidente de viação e obriga-a a aceitar a sua perda total, o que vai contra a regra fundamental na responsabilidade civil por facto ilícito a reparação integral do dano;

K) O valor da reparação pedida, no valor de € 3.487,05, acrescido ou não da reparação do motor e da suspensão da viatura da recorrente, não é excessivamente onerosa para a recorrida;

L) Na fixação do dano, o Juiz “a quo" faz uma errada aplicação e interpretação do disposto nos artigos 562º e 566º, ambos do Código Civil;

M) Demonstrado a viabilidade da reparação da viatura sinistra, a recorrente tem direito a ser ressarcida, a título de privação do uso da viatura, entre a data do sinistro e o dia em que a mesma ficar reparada e pronta circular;

N) Pelo juízo de equidade, de acordo com o já decidido pelo STJ, Ac. do STJ nº1247/07.4TJVNF.P1.S1, 1º secção, in www.gde.mj.pt. é ajustado condenar a recorrida em € 10,00, por cada dia de privação do uso de viatura, os quais em 1.09.2012, ascendiam a € 2.930,00;

O) A sentença em crise deve ser revogada na parte objecto deste recurso e, em conformidade ser a recorrida condenada a pagar a reparação da viatura sinistrada, no valor já apurado de € 3.487,05, acrescido ou não do valor necessário para a reparação do motor e suspensão desta, a apurar em liquidação de julgado;

P) Ser a recorrida condenada a pagar, a título de indemnização, por cada dia de privação do uso de viatura, desde a data do sinistro até ao dia em que a viatura for reparada e pronta a circular, à razão diária de € 10,00, os quais em 1.09.2012, ascendiam a € 2.930,00.

A ré apresentou contra-alegações, nas quais propugnou pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

1. A tem por objecto social o comércio de chás, cafés e farinhas.

2. Para o exercício da sua actividade comercial, nomeadamente para o contacto com os clientes e transportes de mercadorias, a Autora adquiriu um veículo comercial, de marca V, modelo P, de matrícula ….

3. A referida viatura está segura na Cª de Seguros L, através da apólice n° ….

4. No dia … de Novembro de 2011, pelas 12.15 o funcionário da Autora, JR, conduzia a viatura …, pela Rua …, em Lisboa, no sentido norte/sul (…), na sua faixa de rodagem.

5. Ao chegar ao cruzamento com a Rua …, em Lisboa, a viatura da Autora foi embatida pela viatura de marca R, modelo M, matricula …, que seguia no sentido este/ este pela referida rua, conduzido por SA.

6. A viatura R, de matricula … está segurada na Cª de Seguros C, ora Ré, pela Apólice nº ….

7. No seu sentido de marcha, a viatura da autora apresentou-se pela direita em relação à viatura de matrícula … que lhe embateu no cruzamento entre a rua … e a rua …, em Lisboa.

8. Após o embate foi chamada ao local a PSP, tendo esta elaborado o respectivo auto de ocorrência, o croqui do acidente e o auto de declaração manuscrita do acidente.

9. O condutor do veículo propriedade da autora preencheu e assinou a declaração amigável de acidente de automóvel.

10. Na declaração amigável de acidente a autora solicitou veículo de substituição.

11. Em consequência do embate a viatura da autora sofreu danos em toda a sua lateral esquerda, ou seja, desde o para choques frente esquerdo até ao paraquedas da retaguarda lado esquerdo onde se incluem as rodas, pneus, portas e frisos.

12. A participação do sinistro automóvel deu origem ao processo n° ….

13. Por fax de 28 de Novembro de 2011 a ré informou o funcionário da autora que, em consequência da peritagem efectuada aos danos da viatura de matrícula … a reparação da viatura ascendia a € 2.559,14 o valor venal do veículo era de 700,00 e o valor do veículo danificado era de €185,00.

14. Pelo referido fax a ré considerou a perda total do veículo e colocou à disposição da autora a quantia de € 515,00.

15. A proposta da Ré respondeu a autora por correio electrónico de 30 de Novembro de 2011.

16. Pelo referido correio electrónico a autora recusou a proposta da ré, tendo em contrapartida proposto um valor de € 1.500,00 para encerrar o assunto, tendo em consideração a antiguidade da viatura e a mesma estar aprovada para circular, atento à ultima inspecção.

17. Na mesma resposta foi a ré alertada para os custos da reparação, para os prejuízos com a imobilização da viatura e para o facto de a autora ter tido necessidade de adquirir outra viatura para o seu serviço.

18.  A autora exigiu uma indemnização pela privação do uso da viatura e o valor da reparação da viatura, então orçada em € 2.559,14 através de correio electrónico remetido à ré ou aos seus representantes em 24.01.2012, 25.01.2012 e 24.04.2012.

19. Perante o silêncio da ré a autora mandou fazer novo orçamento para a reparação da sua viatura de matrícula ...-...-....

20. Pelo orçamento apresentado pela firma J, Lda., a reparação da viatura da autora, de matrícula … em 6 de Junho de 2012 importava na quantia de €3.487,05.

21. Pelo orçamento apresentado prevê as seguintes reparações:

a) reparar as partes sinistradas em toda a lateral esquerda, no valor de € 1100,00;

b) desmontar e montar motor e caixa de velocidades, no valor de € 250,00;

c) pintar partes sinistradas, no valor de € 200,00;

d) material de pintura, no valor de € 65,00;

e) material diverso/peças, no valor de € 1.200,00;

f) alinhar a direcção, no valor de € 20,00.

22. Desde a data do acidente, em 9 de Novembro de 2011 que a viatura da autora se encontra imobilizada e a aguardar ordem de reparação.

23. Para suprir a falta do uso da viatura sinistrada no seu giro comercial, a autora adquiriu uma nova viatura.

24. A ré não colocou à disposição da autora uma viatura de substituição.

25. A viatura sinistrada foi removida da via pública onde se encontrava estacionada a aguardar ordem de reparação por parte da ré, pela PSP no dia 13 de Agosto de 2012.

26. Pela remoção da viatura do Parque Municipal sito no … a autora pagou a quantia de € 249,00.

27. E pelo transporte da viatura sinistrada do Parque Municipal para as suas instalações em … a autora pagou a quantia de € 131,77.

*

III. As questões a decidir resumem-se a saber:

- se a restauração natural é excessivamente onerosa para a ré;

- se é caso de alterar o valor arbitrado pelo dano da privação do uso.

*
IV. Da questão de mérito:
Na sentença decidiu-se, sem impugnação, competir à ré suportar os danos sofridos pela autora decorrentes do acidente de viação em apreço nos autos.
Naquela decisão a ré foi condenada no pagamento à autora das seguintes quantias:

            a.  €1.500,00, a título de indemnização pela perda total do veículo sinistrado;

b. €1.000,00, a título de indemnização pela privação do uso;

c. €380,00, pelas despesas com o transporte da viatura.

           No recurso a autora/apelante discorda dos valores referidos em a) e b).

Quanto aos danos sofridos pela viatura:

Na sentença exarou-se que:

“Peticiona o Autor o pagamento pela Ré da quantia de € 3.487,05 para a reparação da viatura.

O artigo 562.° do Código Civil estabelece o princípio da reposição natural quanto à indemnização: o dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam, se não se tivesse produzido o dano. A reposição natural, conforme sublinha o Prof. Vaz Serra, "não supõe necessariamente que as coisas são repostas com exactidão na situação anterior: é suficiente que se dê a reposição de um estado que tenha para o credor valor igual e natureza igual aos que existiam antes do acontecimento que causou o dano. Com isto, fica satisfeito o seu interesse".

(…)

 - Por um lado, o art. 566.°, n.º 1 manda, em princípio, reparar o dano mediante a reconstituição natural: se o dano (real) consistiu na destruição ou no desaparecimento de certa coisa ... ou em estragos nela produzidos, há que proceder à aquisição de uma coisa da mesma natureza e a sua entrega ao lesado, ou ao conserto (reparação) ou substituição da coisa por conta do Agente" (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol, 1, 6ª edição, p. 875).

 - Por outro lado, o princípio da reposição natural, nos termos deixados expostos, sofre as limitações referidas no próprio art. 566.°, n.º 1: sempre que não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Ora, quando poderá dizer-se que a reposição natural do dano (a aquisição da coisa nova quando houve destruição; o conserto/reparação da coisa estragada) é excessivamente onerosa para o devedor?

Será excessivamente onerosa para o devedor "quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável", conforme sublinham P. Pires de Lima e A. Varela, que acrescentam: "Imaginemos um caso: inutilizou-se um automóvel velho que vale 100 e são precisos 200 para o substituir por um novo. Seria injusto à substituição, onerando o devedor com um encargo superior ao prejuízo e beneficiando o credor com a substituição dum automóvel velho por um novo" ("Código Civil Anotado", vol, 1, 4a edição, p. 582).

No mesmo sentido está Menezes Cordeiro quando diz: "Recorrendo aos princípios gerais, diremos que uma indemnização específica é excessivamente onerosa quando a sua exigência atente gravemente contra os princípios da boa fé" ("Direito das Obrigações", vol, 2, p. 401).

(…) para efeitos de considerar se a reconstituição natural traduzida na reparação do veículo é ou não excessivamente onerosa para o devedor, nos termos da parte final do n," 1 do art. 566.° do Código Civil, não basta ter em conta apenas o valor venal do veículo, mas, ainda e cumulativamente, o valor que tem o uso que o seu proprietário extrai dele e que se computa pelo facto de o proprietário ter à sua disposição um automóvel que usa, de que dispõe, de que disfruta e que a mera consideração do valor venal «tout court» sonega, elimina ou omite. (Cfr. Ac. do STJ, de 16/11/2000, CJ-­STJ, ano 2000, Tomo 3, página 125).

(…)

O valor do dano consistente na não manutenção do uso da coisa, sem a devida reposição, será apurado através de critérios de equidade: razões de conveniência, de oportunidade e, principalmente, de Justiça concreta (art. 566.°, n." 3 do Código de Processo Civil).

(…)

À luz das reflexões expostas, dos princípios enunciados, em conjugação com a factualidade apurada - nomeadamente, provou-se que a reparação do veículo sinistrado ascende ao montante total de €3.487,05 e o veículo tinha um valor venal não superior a € 700,00 - temos de concluir que a peticionada reparação do veículo sinistrado é excessivamente onerosa para o devedor, já que, existe manifesta desproporção entre o valor venal do veículo à data do acidente e o valor da sua reparação - e sem prejuízo de termos consciência de que qualquer decisão a fixar a retribuição apelando à equidade é sempre discutível - mas isso não implica que fiquemos por um cómodo non liquet ou pelo protelamento da decisão recorrendo à liquidação em execução de sentença - há que decidir com a segurança possível e a temperança própria da equidade, pelo que, entendemos justa e adequada a quantia de €1.500,00, como indemnização pela perda total do veículo sinistrado.

Relativamente ao valor dos salvados, parece-nos que não deixam de representar danos sofridos pelo acidente, uma vez que as partes integrantes da viatura que constituem os salvados não a podem reconstituir só por si.

Consequentemente, para efeitos de fixação de indemnização, não há que descontar no valor venal da viatura o valor dos salvados”.

Sustenta a apelante que:

- A recorrida recusou a reparação da viatura com fundamento no seu valor venal;

- Para que a recusa da reparação tivesse relevância jurídica, a recorrida deveria ter alegado e provado que não tinha capacidade económica e financeira para a suportar ou que esta era desnecessária por não garantir que a viatura sinistrada ficaria no estado em que se encontrava antes do acidente;

 - A viatura sinistrada, de matrícula …, usada, é reparável, nada resultando em contrário dos autos;

- É público e notório, não necessitando de alegação e prova, que as companhias de seguros têm capacidade financeira para suportar os danos causados pelos seus segurados;

- O valor da reparação pedida, no valor de € 3.487,05, acrescido ou não da reparação do motor e da suspensão da viatura da recorrente, não é excessivamente onerosa para a recorrida.

- A sentença em crise deve ser revogada na parte objecto deste recurso e, em conformidade ser a recorrida condenada a pagar a reparação da viatura sinistrada, no valor já apurado de € 3.487,05, acrescido ou não do valor necessário para a reparação do motor e suspensão desta, a apurar em liquidação de julgado.

A apelada sustenta, porém, que, em face do disposto no art. 41º do D.L. n.º 291/2007, de 21/8, e atento o valor venal da viatura e o da sua reparação, considera-se que o mesmo se encontra em situação de perda total (o valor da reparação é superior a 120% do seus valor venal).

Analisemos esta problemática.

O princípio geral na obrigação de indemnizar é o da restauração natural, sendo sucedâneo o da indemnização por equivalente – arts. 562º e 566º do CC

Estabelece o n.º 1 desta última disposição legal que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Quando ocorrer qualquer uma dessas situações, há conversão da obrigação de reparar com a reconstituição natural em obrigação pecuniária.

Nos autos a questão que se discute é primacialmente a de saber se a restauração natural é excessivamente onerosa para a ré.

A reconstituição natural será excessivamente onerosa para o devedor, e por isso um meio impróprio ou inadequado de indemnizar o le­sado, sempre que houver uma manifesta desproporção entre o interesse deste e o custo que a reparação natural envolva para o responsável - vide Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, vol. I, 4ª edição, pag. 813; Meneses Leitão, Direito Das Obrigações, vol. I, 5ª edição, pag.331.

Importa ter em consideração factores subjectivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado.

Nesta sede, o valor a ter em conta não é o valor comercial do veículo, mas sim aquilo que a jurisprudência apelida de valor patrimonial, correspondendo este ao valor que o veículo representa dentro do património do lesado, ou seja, o valor necessário para o lesado adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses – vide Acs. STJ de 14.12.2002 e de 19 de Março de 2009, in www.dgsi.pt.

Deste modo, a excessividade há-de aferir-se pela diferença entre dois polos: o preço de reparação e o valor patrimonial do veículo.

À autora cabia, aqui, a prova de que o veículo sinistrado era susceptível de ser reparado e do montante em que importava a sua reparação e à ré incumbia a prova de que esse valor seria excessivamente oneroso (matéria de excepção), em função do valor patrimonial do veículo.

Acontece que a ré não alegou, e, consequentemente, não provou o valor de um veículo de substituição.

O que se apurou foi que por fax de 28 de Novembro de 2011 a ré atribuiu ao veículo o valor venal de 700,00 e não que esse fosse o efectivo valor de substituição da viatura.

Ora, vem demonstrado que o veículo acidentado era destinado pela autora ao exercício da sua actividade comercial, para o contacto com os clientes e transportes de mercadorias.

Assim, ter um veículo para essa actividade representava para a autora um valor muito maior do que o valor da viatura.

Porém, deriva dos autos que, por carta datada de 30/11/2011, a autora/apelante recusou a proposta da ré/apelada, propondo um valor de € 1.500,00 para encerrar o assunto, referindo que veículos idênticos (do mesmo ano de matrícula) custam €1200,00 a €1500,00, de acordo com o SV.

Assim, é a própria autora que reconhece que o valor de substituição, ou seja, ao montante necessário para adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, variava entre os €1.200,00 e os €1.500,00.

Deste modo, está adquirido nos autos que, na tese da autora, era aquele o valor de um veículo de substituição (entre €1200,00 e €1.500,00).

Por outro lado:

Estabelece o art. 41º do D.L. n.º 291/2007, de 21/08, que:

1 - Entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:

a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;

b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;

c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.

2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.

3 - O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro calculado nos termos do número anterior, deduzido do valor do respectivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário, de forma a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à indemnização.

4 - Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado:

a) A identificação da entidade que efectuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade;

b) O valor venal do veículo no momento anterior ao acidente;

c) A estimativa do valor do respectivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação.

5 - Nos casos de perda total do veículo a matrícula é cancelada nos termos do artigo 119.º do Código da Estrada.

Deste normativo deriva que sempre que se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos, considera-se em situação de perda total.

Trata-se, porém, de um preceito que não se aplica à fase judicial, mas sim na fase extrajudicial, visando a resolução simplificada, rápida e amigável dos litígios entre as seguradoras, os seus segurados e terceiros.

Não podemos, todavia, ignorar, na ponderação casuística que se irá levar a efeito, as linhas que emanam daquele diploma legal.

Ora, mesmo na tese da autora, o valor estimado para a reparação dos danos sofridos pela viatura, adicionado ao valor do salvado, é manifestamente superior ao valor de substituição do veículo (superior a duas vezes mais – €3.672,50 e €1.200,00/1.500,00, respectivamente).

Ademais:

De acordo com a missiva da autora de 30/11/2011, a mesma, nessa data, já tinha adquirido, pelos seus próprios meios, um veículo novo para substituir o sinistrado, assim satisfazendo as suas necessidades de utilização de um veículo automóvel na sua actividade comercial.

Este facto aponta para a perda de interesse da autora na reparação do veículo sinistrado, o que torna mais patente a desproporção entre o valor da reparação e o valor patrimonial do veículo.

De resto, na fase negocial, a autora reconheceu que o seu interesse ficava satisfeito mediante o recebimento de uma quantia na ordem dos €1500,00.

Num quadro com estes contornos, a indemnização da autora pela via da reconstituição natural, em face do sacrifício que importa exigir do lesante (custo da reparação) e da falta de um interesse específico da lesada na reparação do veículo sinistrado, torna-se absolutamente desproporcionada, devendo aquela exigência da autora ser considerada abusiva, por contrária à boa fé.

Haverá, por isso, que converter a reparação em obrigação pecuniária, a qual, no caso em apreço, satisfaz de forma plena o interesse da autora.

Deste modo, a indemnização arbitrada em 1ª instância (€1.500,00) afigura-se plenamente ajustada à situação, sendo equitativa em face da factualidade apurada.

Improcede, pois, nesta parte, a apelação.

Quanto aos danos da privação do uso da viatura:

Na sentença exarou-se que:

Peticiona o Autor o pagamento pela Ré da quantia de € 3.310,07, pelos danos patrimoniais.

Em consequência do acidente o veículo do Autor ficou imediatamente paralisado, tendo resultado para o mesmo a privação do gozo e fruição do mesmo.

A questão que se tem levantado ao nível doutrinário e jurisprudencial prende-se em saber se dessa ilegítima privação resultará a obrigação de ressarcir o lesado ou se, ao invés, este carece de comprovar inevitavelmente a existência de prejuízos concretos.

Ora, a formulação de juízos assentes em padrões de normalidade facilmente permite inferir que em regra, aquela privação comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos poderes de fruição sobre o veículo. A amplitude das consequências pode variar de acordo com as circunstâncias objectivas e subjectivas, mas ainda assim raramente será indiferente para o lesado a perda do uso temporário do veículo.

(…)

Ora, sendo que o nosso sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, o facto dessa faculdade não ter sido utilizada, designadamente, como no caso dos autos, porque a Ré entendeu que a reparação era excessivamente onerosa, oferecendo o valor venal do veículo à data, facto que o Autor não aceitou, não pode desembocar, sem mais, na total liberação do responsável.

Desta forma, a recomposição da situação danosa tem de passar pela atribuição de um equivalente pecuniário. Na verdade, se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de constituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. O fazer depender a indemnização pela privação de uso da prova de ocorrência de danos imputáveis directamente dessa privação pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos "benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, ou a despesas acrescidas que o evento determinou, mas já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação, ou seja, aos danos emergentes.

Somos, pois de considerar que a simples privação do uso do veículo constitui um dano emergente e como tal é indemnizável de forma autónoma.

(…)

Cabe, pois, ao lesante (ou à sua seguradora, como é o caso) reparar o mais depressa possível os danos por forma a que estes não se agravem. No caso de veículo sinistrado incumbia-lhe, designadamente, facultar ao lesado um veículo de substituição ou indemnizá-lo pelas despesas que teve que suportar em consequência da privação do veículo.

Por outro lado, a lei - art. 496º - aceita a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, limitando-se àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Cabe, portanto, ao tribunal, em dado caso, dizer se o dano é, ou não, merecedor de tutela jurídica. O montante da indemnização, correspondente aos danos não patrimoniais, deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vidas.

E qual o quantum indemnizatório que deve ser considerado?

A quantia pode ser diversa, conforme as circunstâncias concretas em apreço, devendo ser ajustada às especificidades do caso. Ora, neste campo e no caso sub judicie, impõe-se avaliar qual a compensação ajustada, de acordo com a gravidade das repercussões negativas e o destino que, em concreto era dado ao veículo sinistrado.

Com interesse, apurou-se que o veículo com a matrícula … era o meio de transporte do Autor, tendo este para compensar a falta da viatura no seu giro comercial, adquirido uma nova viatura em virtude de a Ré não ter disponibilizado uma viatura de substituição.

Alega o A. que o aluguer de uma viatura similar ao V, modelo … ascende actualmente entre 25,20€ e 23,20€ por dia, de acordo com a tabela da Avis Rent a Car, no entanto e considerando que a viatura sinistrada é um modelo do ano 1993, tornando-se impossível a sua substituição por uma do mesmo ano e quilometragem, em regime de aluguer na medida em que as companhias de rent-a-car renovam as suas frotas de dois em dois anos.

Pelo que conclui o A. por fixar o valor de € 10.00 por dia a contabilizar desde a data do sinistro até ao dia em que a viatura for reparada e entregue ao A. em condições de circular e devidamente reparada , tendo o A. fixado o montante de € 2.930,00 até 1 de Setembro de 2012 - no entanto esta matéria não resultou provada.

No entanto recorrendo uma vez mais a equidade, e atendendo aos critérios acima enunciados, justa e adequada a quantia de € 1.000,00, como indemnização pela privação de uso do veículo”.

A apelante contrapõe que:

- Demonstrado a viabilidade da reparação da viatura sinistra, a recorrente tem direito a ser ressarcida, a título de privação do uso da viatura, entre a data do sinistro e o dia em que a mesma ficar reparada e pronta circular;

- Pelo juízo de equidade, é ajustado condenar a recorrida em € 10,00, por cada dia de privação do uso de viatura, os quais em 1.09.2012, ascendiam a € 2.930,00;

- Deve a recorrida ser condenada a pagar, a título de indemnização, por cada dia de privação do uso de viatura, desde a data do sinistro até ao dia em que a viatura for reparada e pronta a circular, à razão diária de € 10,00, os quais em 1.09.2012, ascendiam a € 2.930,00.

De sua vez a apelada sustenta que a apelante adquiriu um novo veículo, pelo que não esteve impossibilitada de exercer a sua actividade, razão pela qual a indemnização arbitrada é equitativa.

Vejamos.


Não vem questionado na apelação o direito à reparação dos danos decorrentes da privação do uso do veículo sinistrado, mas sim o seu montante.

E, conforme resulta do que supra se deixou expresso, o valor da indemnização oferecido pela ré seguradora para ressarcimento dos danos provocados na viatura (€515,00) não corresponde ao valor indemnizatório a que a autora tem direito (€1.500,00), correspondendo apenas a cerca de 1/3 desse montante.

Consequentemente, a recusa da autora em aceitá-la foi justificada, não se tendo a ré exonerado da sua responsabilidade.

Por outro lado, só com o pagamento da indemnização, a título de perda total, cessa verdadeiramente o dever da seguradora (data em que a viatura sinistrada é substituída, em sub-rogação real, no património da lesada pelo respectivo valor patrimonial), pois que só então o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que substitua o que foi danificado – cfr. neste sentido o acórdão do STJ de 21-04-2005, in www.dgsi.pt.

Até lá mantém-se o dever de ressarcir os danos que advieram da frustração das respectivas utilidades e da impossibilidade do respectivo aproveitamento económico.

 

No que toca à quantificação desse dano, haverá que recorrer à equidade – art. 566º, n.º 3, do C. Civil.
Na sentença recorrida computou-se o valor do dano no montante de €1000,00.
Sustenta todavia a autora que pelo juízo de equidade, de acordo com o já decidido pelo acórdão do STJ de 9/03/2010, é ajustado condenar a recorrida em € 10,00, por cada dia de privação do uso de viatura, os quais em 1.09.2012, ascendiam a € 2.930,00.
Porém, contrariamente ao sustentado pela apelante, no referido acórdão do STJ não se apreciou a questão do montante diário da indemnização devida, por tal questão não constituir objecto do recurso, dando-se, por isso, por assente o valor diário (€10,00) considerado nas instâncias.
Seja como for, é perante o circunstancialismo de cada caso que se devem formular os juízos de equidade.

Por relevantes, importa considerar para este efeito os seguintes factos:

- desde a data do acidente (…/11/2011) até à prolação da sentença em 1ª instância (2014-01-…) decorreram dois anos e 82 dias;

- no dia 30/11/2011 a autora já tinha adquirido um novo veículo automóvel para substituir o sinistrado.

Daqui decorre que, após o acidente, a autora esteve privada do veículo sinistrado.
Cerca de 20 dias depois a lesada adquiriu um novo veículo para substituir o sinistrado, pelo que desde então o específico dano da privação do uso do veículo destruído deixou de subsistir com os contornos que se verificavam anteriormente, esbatendo-se aqueles danos, embora, como supra deixámos expresso, só com o pagamento da indemnização verdadeiramente se possa deixar de falar na privação do uso.

Aceita-se, pois, que até a aquisição do novo veículo o dano deveria ser computado no montante diário que seria necessário para alugar um veículo de idênticas características (o que, à razão diária de €10, apontaria para um valor na ordem dos €200,00).

A partir da aquisição de um novo veículo e durante um período superior a dois anos, os prejuízos da autora decorrem do facto de não ter podido dispor da quantia de €1.500,00, que tem direito a receber da ré, para substituir as utilidades do veículo sinistrado.

 Teve, por isso, que recorrer a meios próprios para o efeito.

Assim, os prejuízos da privação do uso, no período posterior à aquisição do novo veículo, reconduzem-se à impossibilidade do aproveitamento económico daquela quantia de €1.500,00.

E na falta de alegação e prova pela autora do recurso ao crédito bancário ou da ocorrência de outros danos, o prejuízo reconduz-se ao rendimento (juros) que aquele dinheiro poderia produzir e de que a autora não pode usufruir por o ter aplicado na aquisição da nova viatura.

Por outro lado, desde a fixação da indemnização em 1ª instância, a ora autora poderá executar a sentença e nessa sede peticionar o pagamento de juros de mora, pelo que a partir daí os prejuízos podem ser ressarcidos por essa via – arts. 703º e 704º do CPC.

Consequentemente, o período a considerar por esta Relação reconduz-se ao tempo decorrido desde 30/11/2011 até à prolação da sentença recorrida.

 Tendo presente estes dados de facto, considera-se que a indemnização fixada em 1ª instância (€1.000,00), em sede de formulação de um julgamento equitativo, não peca por defeito, tendo-se, pois, como justa e equilibrada.

Improcede, por isso, a apelação.
*

*
V. Decisão:

Pelo acima exposto, decide-se:

Julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida;

Custas da apelação pela recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 9 de Julho de 2014

(Manuel Ribeiro Marques - Relator)

(Pedro Brighton - 1º Adjunto)

(Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta)