Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18/17.4T8CSC.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
EDIFICAÇÃO URBANA
INCÊNDIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Ocorrendo um incêndio num apartamento, alastrando depois a outros do mesmo prédio, os vizinhos lesados não têm de alegar e provar a causa do incêndio – o que, exactamente, produziu o incêndio – para beneficiar da presunção de culpa do lesante, bastando-lhes demonstrar que o incêndio se iniciou no apartamento deste.
II - Na modalidade de responsabilidade civil extracontratual a que se refere o artigo 493º nº 1 do Código Civil, o detentor de direito, que não apenas o de facto, pode ser responsabilizado.
III - A ilisão da presunção de culpa opera, com atenção evidente aos factos concretamente apurados, na aplicação dum juízo de razoabilidade humana na apreciação dos deveres de vigilância de modo a que a responsabilização não se converta, praticamente, em objectiva.
IV - Assim, apurando-se que o incêndio teve origem num televisor existente num apartamento em que as instalações eléctricas e aparelhagens se encontravam visivelmente em bom estado de conservação e funcionamento, o proprietário do mesmo apartamento logra ilidir a presunção de culpa.
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
M (…), nos autos m.id., veio intentar a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra V (…), também nos autos m.id., peticionando a final a condenação deste no pagamento da indemnização global de €30.439,58€, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral cumprimento.
Alegou, em síntese, que no dia 01/03/2016 arrendou o apartamento X (…) do Edifício Cascais, localizada no ..º andar, que passou a habitar desde essa data. No dia 26/03/2016, pelas 03:07 horas, deflagrou um incêndio no apartamento Y (…) do mesmo prédio, sito no ..º andar, que só foi extinto às 19:45 horas do mesmo dia. Durante as dezassete horas que as chamas deflagraram, o apartamento tomado de arrendamento pela Autora, bem como todos os bens que lá se encontravam, foram consumidos pelo calor do fogo originado no apartamento Y. A casa ficou sem condições para ser habitada. Existiam no apartamento X diversos bens, no valor global de € 32.489,06. O incêndio gerou ainda encargos à Autora, no valor global de €6.899,00. A Autora, no incêndio, perdeu registos fotográficos que não mais poderá recuperar e ficou prejudicada no seu percurso académico-profissional, perdendo igualmente todas as roupas e objectos pessoais, e foi obrigada a alojar-se em estabelecimentos hoteleiros durante dias. Reclama uma indemnização por danos não patrimoniais que quantifica em 13.000,00€.
Atento o disposto nos artigos 483º, 562º e 496º do Código Civil, deve ser ressarcida dos prejuízos que sofreu e que foram causados pelo incêndio que deflagrou no apartamento do réu.
Contestou o R. por impugnação, o momento e o apartamento em que o incêndio deflagrou, os bens e prejuízos reclamados pela A., e invocou que, na altura do incêndio, o seu apartamento Y se encontrava arrendado e era ocupado e utilizado por um casal e duas filhas maiores, precisamente desde o dia 23.03.2016. O apartamento Y não estava dotado de instalação de gás nem tinha no seu interior, aquando do início da sua ocupação por aquele casal e suas filhas, objectos susceptíveis de combustão espontânea ou material facilmente inflamável ou explosivo (designadamente, produtos químicos ou combustível), o recheio era o próprio e comum de uma casa de habitação, o edifício foi construído e foi objecto de licença de utilização em 1992, e o apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação eléctrica), bem como o seu equipamento (designadamente, televisão, outros aparelhos eléctricos e extensões de tomadas), nunca foram objecto de qualquer modificação e estavam em bom estado de conservação, limpeza e funcionamento, não apresentando nem manifestando vício de construção, instalação ou funcionamento, em especial qualquer vestígio de queimadura (mancha negra) em aparelho, fio ou cabo, ficha, tomada ou interruptor, qualquer fumo ou qualquer ruído, cheiro ou desempenho anómalo, nem sinais de deterioração, nem as janelas permitiam a entrada de água, pelo que o apartamento e o seu equipamento não manifestavam situação de especial perigosidade nem em si o apartamento e o seu equipamento apresentavam especial aptidão a causar danos, não sendo exigível ao R. que representasse em abstracto a possibilidade do dano, cujo risco não era previsível. Não há facto ilícito e culposo, nem a A. alegou factos relativos à ilicitude e à imputabilidade ao R., nem há lugar a danos não patrimoniais.
Concluiu pela sua absolvição.

A A. requereu a rectificação de lapsos materiais e a ampliação do pedido, com alteração dos artºs 61, 62, 116, 127 e 129 da p.i., concluindo pela indemnização global de € 89.023,06.
O R. respondeu que os danos alegados já se haviam verificado e eram do conhecimento da A. quando da propositura da acção, impugnando-os de resto nos mesmos termos constantes da contestação.
Foi admitida a ampliação do pedido e convidada a A. a concretizar alegações da petição inicial, discriminando bens, tendo a A. junto articulado aperfeiçoado, ao qual o R. contestou, remetendo para a contestação antes apresentada, e alertando para que, no cotejo do alegado nos artigos 67º a 114º com o alegado nos artigos 10º a 59º e 61º, a A. pretende ser indemnizada pelo valor dos bens que alega ter perdido e, simultaneamente, pelo valor dos bens que alega ter adquirido para substituir aqueles.
Foi fixado à causa o valor de €52.338,00, proferido saneador tabelar, delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento sendo seguidamente proferida sentença de cuja parte dispositiva consta:
Pelo exposto, decide-se julgar a ação improcedente e, em consequência, absolver o R. do pedido.
Custas a cargo da Autora (artº 527º, nºs 1 e 2 do C.P.C.)”.
Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
A. Não se conforma a Autora, ora Recorrente, tenham sido dados como provados os pontos S) a T), V) a Z), AA) e CC), supra melhor identificados.
B. Igualmente, não se conforma a Autora, ora Recorrente, que tenham sido dados como não provados os pontos 1. a 3., supra melhor identificados.
C. Não concorda igualmente na imputação feita pelo Tribunal Recorrido à Autora nas motivações de facto e de direito quando refere que a Autora não invocou a causa do incêndio.
D. E discorda a Autora que não tenham sido aplicadas as normas constantes dos artigos 486º, 493º/ nos 1 e 2 e, ainda, 492º/nº1, todos do Código Civil.
E isto porque, na verdade:
E. Começando pela “não alegada causa de incêndio” invocada pelo Tribunal Recorrido, cumpre em primeira análise referir o facto de nem a existência de causa ou inexistência de causa estarem na matéria dada como provada ou não provada. Há uma omissão de decisão do Tribunal Recorrido quanto a este facto.
F. Depois, ainda nesta sede, cumprirá rever a prova documental junta. Ficou provado pelo teor do documento 4 junto com a PI e pelo relatório da ocorrência dos Bombeiros de Cascais, ficou igualmente provado que existiu um incêndio com origem no apartamento Y – propriedade do Réu, conforme documento 3 junto com a PI.
G. Do mesmo relatório é possível retirar a causa do incêndio (curto-circuito, sobreaquecimento… de uma televisão.)
H. Será que o Tribunal Recorrido não se interessou por aprofundar o que dizia o relatório dos bombeiros? É que este, dado por reproduzido nos autos (ao contrário do que alega do Tribunal Recorrido quanto à invocação da causa do incêndio) é bem explícito: o incêndio começou num televisor do apartamento Y!
I. O próprio comandante dos bombeiros atestou que a elaboração do relatório dos autos foi elaborado por si, baseado nas descrições dos seus subordinados; mais defendendo que não tinha dúvidas quanto à autenticidade das declarações de quem lhas tinha prestado. (Cfr. gravação 20180123163257_3882571_2871330, minuto 01:10 a 01:36; 03:00 a 03:40; 04:20 a 04:35)
J. Contudo, a tese que prevaleceu para o Tribunal Recorrido, é que o referido imóvel ardeu por causas que o Réu alegou pessoalmente desconhecer – portanto, um facto pessoal alegadamente desconhecido pelo Réu. Não se percebe e por isso se pretende que seja dada sem efeito tal fundamentação que é irrisória.
K. O Sr. Comandante dos Bombeiros de Cascais respondeu a todas as perguntas e foi bem preciso ao dizer que a causa do incêndio era a que constava do relatório: fracção Y, tendo ocorrido uma queixa no sentido de dizer que existia um televisor na mesma fracção a arder.
L. Em seguida, o referido incêndio – dúvidas não restam – alastrou a grande parte do edifício sito na Rua da …, nº …, Edifício Cascais, Lugar da Torre em Cascais, inclusive ao apartamento X arrendado pela Autora.
M. Tais factos foram confirmados pelo testemunho do Sr. P(…), cabeleireiro da Autora com salão junto ao referido condomínio onde o incêndio ocorreu, e pelo testemunho do Comandante dos Bombeiros, que para além de confirmar o teor do relatório da ocorrência, referiu expressamente que o incêndio teve origem no apartamento Y, propriedade do réu.
N. Relativamente aos danos patrimoniais da Autora, emergentes do referido incêndio, os mesmos ficaram comprovados pelo teor dos documentos 4, 6 e 7, bem como pelas declarações do Sr. P(…).
O. Pelas declarações do Sr. E (…), já que o mesmo confirmou dormir algumas vezes na casa da Autora, que a mesma tinha trazido mais de duas dezenas de malas quando veio do Brasil e se instalou em Portugal. Demonstrou, aliás, ser bastante conhecedor do recheio da casa e confirmou que não tinha conseguido salvar nada do recheio por não haver tempo na noite do incêndio, onde estava presente
P. Finalmente, confirmou as despesas que sucederam ao incêndio, como estadias em hotel, roupa, alimentos e demais despesas elencadas com o documento 7.
Q. Tudo isto resulta do depoimento da mesma testemunha: (Cfr. gravação 20180123144448_3882571_2871330, minutos 36:40 a 01:19:44)
R. Ainda nesta sede, prestou a Autora declarações que, pouco adiantando ao que já havia sido carreado para os autos, serviram apenas para esclarecer as imprecisões de outros testemunhos.
S. Nesta senda, confirmou a mesma que todo o recheio perdido se encontrava dentro da casa arrendada, que os bens relacionados foram apenas aqueles de que se conseguiu lembrar e explicou o modo como alcançou os valores dados aos bens perdidos.
Confirmou igualmente as despesas que sucederam ao incêndio, como estadias em hotel, roupa, alimentos e demais despesas elencadas com o documento 7.
T. Releve-se, agora em sede de danos não patrimoniais as declarações da Autora para confirmar a perda das fotografias, o adiar das suas intenções académicas, a falta de roupas adequadas à estação, perda de produtos de higiene, a perda de um tecto para pernoitar e do conforto que uma casa gera. (Cfr. gravação 20180221143208_3882571_2871330, minutos 23:40 a 29:16)
U. Quanto ao demais, nomeadamente quanto à prova produzida pelo Réu nesta sede, cumprirá dizer que o réu com as suas testemunhas limitou-se a esgrimir argumentos de facto e de direito que não afastam a responsabilidade civil do mesmo – ainda que, mal, o Tribunal Recorrido lhe tenha dado razão.
V. O apartamento, ao contrário do que o Réu alegou (e não logrou demonstrar), não estava em completas condições de segurança.
W. Salvo respeito, que é muito, por melhor decisão do Venerando Tribunal, regista-se que, tal como referido pela testemunha E (…), era sabido que o Réu arrendava temporariamente o seu apartamento a terceiros. As testemunhas do próprio Réu, inclusive o filho, testemunharam nesse sentido.
X. Portanto, ponto assente, o Réu arrendava temporariamente por pequenos períodos de tempo o imóvel a terceiros.
Y. Mais, ficamos a saber, porque o filho do Réu o disse nos autos, que na data do incêndio o referido apartamento se encontrava arrendado a uma família de espanhóis em férias e que o mesmo incêndio deflagrou com estes lá dentro.
Z. Ora, chegados aqui, cumprirá esclarecer o que é “Quem tiver em seu poder…” e “dever de vigilância” presente no número 1 do artigo 493º do Código Civil, e seus limites.
AA. Primeiramente, importa compreender a razão desta norma. Porque estabelece ela uma presunção de culpa de quem tem a coisa a seu encargo? A resposta aqui é evidente: para proteger os lesados.
BB. Claro que não deixa de proteger aqueles que, tendo a seu encargo a coisa, mas que logram provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
CC. Contudo, essencialmente a razão de ser desta norma é proteger os lesados pelos danos provocados por coisa que estava sob o encargo de alguém.
DD. Indo ao elemento literal da norma, e aqui discordando em absoluto da interpretação restritiva do Tribunal Recorrido, importa verificar atender ao que quis dizer o legislador quanto à expressão “Quem tiver em seu poder…”.
EE. Ora, em nosso entender, e partindo do espírito da lei de proteger quem realmente vê a sua esfera jurídica lesada, importa referir que em vários momentos da lei se fala de detenção (domínio de facto sobre uma coisa, mas sem intenção de agir como titular do direito correspondente ao exercido domínio de facto sobre uma coisa), de posse (domínio de facto sobre uma coisa acrescida da intenção de agir como titular do direito correspondente ao exercido domínio de facto sobre uma coisa) e de propriedade (direito de usar, fruir e dispor). Como bem sabemos, são todos conceitos diferentes. Mas neste caso o legislador não fala especificamente em detenção, posse ou propriedade. Fala-se em “Quem tiver em seu poder…”.
FF. Interpretando restritivamente a norma, mas sem atender à razão protetora de terceiros desta lei, o Tribunal Recorrido entendeu, mal, que a referida expressão “Quem tiver em seu poder…” se destina apenas ao detentor de facto da coisa. E, portanto, com esta interpretação da lei (errónea a nosso ver) vai o elemento literal da norma contra o seu espírito.
GG. Contudo, ensina o professor José Alberto Vieira: “Se o possuidor se afasta do prédio possuído com carácter sazonal (saltus hiberni et aestivi), não perde a posse.” (Cfr. A Posse, de José Alberto Vieira, Almedina, 2018, página 200).
HH. Ou então veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/10/2006: “A posse do arrendatário é precária, já que a relação locatícia não tem ínsito – como num direito real – um dever geral de abstenção e o locatário (como o cessionário, trespassário ou arrendatário) detem a coisa em nome de outrem.” (Cfr. A Posse, de José Alberto Vieira, Almedina, 2018, página 614).
II. No mesmo sentido, o Tribunal da Relação de Lisboa diria no acórdão de 19/11/2015: “O locatário é um detentor ou possuidor precário, exercendo o proprietário a posse efectiva através dele.” (Cfr. A Posse, de José Alberto Vieira, Almedina, 2018, página 615).
JJ. Posto isto, é possível que o legislador tenha deixado esta mesma expressão “aberta” de propósito no sentido de responsabilizar não só quem tem o domínio factual da coisa (detentor e possuidor temporário) mas também direitos e interesses sobre a coisa e seus frutos (o proprietário da coisa e possuidor normal). Como é fácil de ver, tal interpretação menos restritiva permite a convergência com a razão de existir desta norma: a protecção da esfera jurídica de terceiros.
K. E quanto à palavra vigilância? O étimo Vigilância, indo ao cerne verbal, corresponde ao acto de vigília, de vigiar, entendendo-se vigiar como observar atentamente. Salvo melhor entendimento do Venerando Tribunal, foi desta acepção que o Tribunal Recorrido se socorreu;
LL. Mas há mais: Vigilância guarda em si mesmo um lote de outros sentidos como zelar, cuidar e ou ficar de prevenção.
MM. Chegados aqui, cumprirá então pensar no que deveria o Réu, enquanto proprietário da fracção objecto dos presentes autos, certificar-se antes de arrendar por curtos períodos de tempo (entre uma semana e quinze dias) a mesma fracção.
NN. Sem sombra de dúvida, certificar-se que a fracção tem todas as condições de habitabilidade, certificar-se que a mesma fracção tem todas as componentes móveis necessárias de habitabilidade, certificar-se que os referidos componentes móveis se encontram em perfeitas condições de segurança e, por fim, certificar-se que os seus alojados têm ao seu dispor todas as indicações e condições relativas ao uso de toda a fracção e seus componentes, quer de uso comum, quer de uso especial e para emergência. Finalmente, porque é sua obrigação legal, tem o proprietário a obrigação de contratar um seguro de incêndios.
OO. Assim, descordando da fundamentação do Tribunal Recorrido, e para o caso em apreço, o dever de vigilância da coisa imóvel não se esgota em saber quem tem a posse da mesma.
PP. Resulta do testemunho de todas as testemunhas do Réu que o mesmo arrendava temporariamente o referido imóvel Y e, portanto, logicamente ganhava dinheiro com as rendas resultantes do arrendamento temporário, e este tipo de arrendamentos temporários (sempre a expressão usada pela defesa do Réu) enquadram-se no regime especial da Portaria nº 517/2008, de 25 de Junho, em vigor à data dos factos (que não pretende revogar o regime de arrendamento geral, mas sim completá-lo especialmente...), que estabelece os requisitos mínimos a observar pelos estabelecimentos de alojamento local.
E é aqui que faz toda a diferença,
QQ. Há obrigações legais, que correspondem a um alargar dos deveres de zelo e vigilância, para o proprietário da fracção; e nenhum deles foi demonstrado em juízo pelo Réu.
RR. A título de exemplo, não foi junta qualquer autorização por parte da Câmara Municipal de Cascais a autorizar a referida actividade de alojamento local. (Veja-se o artigo 3º da Portaria)
SS. Não foi feita prova da capacidade do apartamento para receber uma família. (Veja-se o artigo 4º da Portaria)
TT. Não foi feita prova sequer que o apartamento tivesse água, algo útil para apagar incêndios. (Veja-se o artigo 5º da Portaria)
UU. Mais, extintores e mantas de incêndio acessíveis e em quantidade adequada ao número de unidades de alojamento? Manual de instruções de todos os electrodomésticos existentes nas unidades de alojamento ou, na falta dos mesmos, de informação sobre o respetivo funcionamento e manuseamento? Indicação do número nacional de emergência (112)? Tudo requisitos de segurança fixados pelo artigo 7º da referida Portaria 517/2008, de 25 de Junho. Contudo, nenhuma prova foi feita que os referidos mecanismos de segurança se encontravam no apartamento.
VV. Registe-se que nem apólice de seguro de incêndios (obrigatória, diga-se) foi accionada nem a referida família de espanhóis foi chamada a intervir neste processo.
WW. Portanto, o zelo normal para um bom pai de família dado como provado pelo Tribunal Ad Quo foi nenhum e, por isso, viu arder a Autora todo o recheio da sua casa.
XX. Considerou o Tribunal Recorrido que não houve condutas ilícitas por parte do Réu.
Todavia, olhando para todas as obrigações legais que o Réu não cumpriu, há falta de ilicitude nos comportamentos omissos do Réu. Onde está o ser vigilante que se impunha?
YY. Mais, quanto à televisão que incendiou, e que para algumas testemunhas do Réu estava a uns sete metros da janela, para outros estava a metro e meio. Descrições da televisão? E manual de instruções? Móvel que a sustentava?
ZZ. É que o Tribunal Recorrido exige a prova de marcas à Autora, mas não exige saber a marca da televisão? E talvez até fizesse mais sentido, uma vez que existem marcas de televisão tão antigas (e que já não são produzidas) que talvez permitisse aferir a idade do televisor. Não há aqui desproporcionalidade?
AAA. Mais, quando questionado, o filho do Réu nem sequer foi capaz de dizer onde se encontravam habitualmente os produtos da limpeza destinados a limpar e desinfectar a casa. Como pode ser valorado o testemunho desta testemunha se nem sequer sabe onde se encontra o balde e a esfregona destinadas à limpeza?
BBB. Ou seja, o Réu, homem que arrendava temporariamente o seu apartamento Y, não logrou demonstrar que agiu de modo cauteloso nem se precaveu, como era sua obrigação, contra qualquer eventualidade ocorrida durante o alojar de terceiros debaixo do seu tecto.
CCC. E talvez pensemos, a lei se calhar exige demais… isto são só uns arrendamentos pequeninos… Mas pensemos: ninguém vem de férias e quer que uma casa arda. (Assim como ninguém arrenda uma casa para ver uma semana depois o seu recheio todo ardido.)
DDD. Talvez ter destacado o número 112 no apartamento tivesse dado jeito à família de espanhóis para alertar os bombeiros e evitar que o incêndio subisse dois pisos. Talvez água, um extintor ou uma manta de incêndios tivesse dado jeito a uma família de espanhóis que quisesse controlar um pequeno fogo que de repente se transformou no inferno que foi.
EEE. A quem incumbia esta responsabilidade, à família de espanhóis? À Autora?
FFF. Não! A responsabilidade, enquanto alojador local, era do Réu e de mais ninguém!
GGG. Portanto, precaver-se, ser cuidadoso, zelar… era o que um bom pai de família deveria ter feito; mas o Réu não o fez. Era só um apartamento pequenino que se arrendava temporariamente a terceiros e servia para ganhar um dinheiro extra.
HHH. Portanto, concluindo a análise crítica da prova, ficou provado que existiu um incêndio originado no apartamento do Réu, originado por o aquecimento de uma televisão, que o mesmo incêndio devastou parte do edifício e, nesse alastrar, destruiu o recheio da casa arrendada da Autora e provocou a esta todos os danos alegados na fase dos articulados.
O que não ficou provado foi o zelo e o cuidado do Réu na qualidade de proprietário e alojador local.
III. Mais, o seguro de incêndio, que cobre o risco de danos provocados no imóvel por incêndio, é obrigatório para os edifícios em regime de propriedade horizontal. Deve cobrir cada fracção autónoma e as partes comuns do edifício.
JJJ. De quem era a obrigação de contrair o seguro? Da Autora? Da família de espanhóis?
KKK. Mais, o seguro deve ser feito pelos proprietários de cada fracção (condómino s). (Veja-se o artigo 1429º do Código Civil e os artigos 149º e seguintes do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril)
LLL. Não se percebe em primeira instância a falta de chamamento de qualquer entidade seguradora uma vez que o referido contrato de seguro é obrigatório.
MMM. Mais, por todo o exposto, existem claras omissões por parte do Réu, o que dá origem à aplicação do artigo 486º e 493º do Código Civil e que obriga assim o Réu a responder pelas suas graves omissões.
NNN. Mais, sendo o Réu uma pessoa que promovia a actividade de alojamento local no referia apartamento Y, exercia uma actividade e, tal como ficou demonstrado, o imóvel ardeu na posse de uma família em férias. Entrará aqui o critério do Venerando Tribunal de saber se a actividade de arrendar um apartamento a vários turistas por ano, que querem divertir-se, ora comendo ora bebendo, e relaxar, ora vendo televisão até às tantas ora fumando… é uma actividade perigosa. E, se considerar que tal actividade, in casu, era susceptível de criar perigo para os demais moradores do condomínio, deve aplicar-se o nº 2 do artigo 493º do Código Civil
OOO. Mais, ainda que assim não se entenda, aplicar-se-á o instituto da responsabilidade previsto no artigo 492.º do Código Civil, que diz que: “1. O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.”
PPP. A este propósito, veja-se o acórdão do STJ de 27-02-2018, retirado do Boletim do Ministério da Justiça, 467.º - 565, e plasmado na página 512º do Código Civil Anotado – 18.ª Edição Revista e Anotada de Abílio Neto.
QQQ. Bem como o acórdão do STJ de 06/02/1996, retirado do Boletim do Ministério da Justiça, 454 (1996), páginas 697 e seguintes.
RRR. Subsumindo-se os factos ao direito, teremos então que deve ser substituída a decisão constante da Sentença Recorrida por melhor decisão, devendo o Réu ser condenado a indemnizar, nos moldes vertidos nos autos, a Autora, uma vez que o incêndio originado no apartamento Y, apartamento este utilizado para alojamento local, levou à mesma Autora todo o recheio da sua casa, lhe provocou graves desconfortos e apreensão e, por fim, se revelou o Réu incapaz de demonstrar qualquer zelo e cuidado na conservação do seu apartamento que afastasse, no caso, a sua culpa.
Nestes termos, e nos demais que o Venerando Tribunal saberá suprir, requer-se que se digne o Venerando Tribunal a ordenar a alteração da Sentença Recorrida, devendo o Réu ser declarado civilmente responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Autora e, em consequência, ser condenado a pagar à Autora uma indemnização global de 89 023,06€ (…) acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até ao efectivo e integral cumprimento, bem como as demais custas de parte que se vierem a apurar.
Contra-alegou o recorrido sem formular contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, as questões a decidir são a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e saber se o R. deve ser condenado a ressarcir a Autora.
III. Matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido é a seguinte:
“3.1 Matéria de facto provada
Com relevância para a decisão da causa estão provados os seguintes factos:
A) A Autora celebrou, no dia 01/03/2016, um contrato de arrendamento, nos termos do qual tomou de arrendamento, para fins de habitação, a fração sita na Rua da …, nº…, Edifício Cascais, ..º Andar, Apartamento (X), Lugar da Torre, 2750-768 Cascais, com início em 01/03/2016.
B) A Autora passou a habitar o apartamento no dia 01/03/2016.
C) No dia 26/03/2016, pelas 03:07 horas, deflagrou um incêndio na Rua da …, nº …, no ..º piso, apartamento (Y).
D) A propriedade do referido apartamento mostra-se inscrita no registo predial a favor do Réu.
E) Tal incêndio afetou mais de 60 apartamentos integrados nesse edifício, do 4º ao 8º piso, incluindo o apartamento nº (Y), e só foi extinto às 19:45 horas do mesmo dia.
F) Aquele incêndio foi dominado, em todos os pisos, cerca das 09h39 desse mesmo dia, iniciando-se então as operações de rescaldo, as quais perduraram até cerca das 19h45 e tendo-se verificado, cerca das 22h15, apenas um reacendimento no 8º piso, rapidamente debelado.
G) Em resultado do incêndio o apartamento (X), bem como todos os bens que lá se encontravam, foram consumidos pelo calor do fogo originado no apartamento Y.
H) O apartamento X ficou sem condições para ser habitado, pelo que em veio a ser revogado o contrato de arrendamento.
I) No dia 26/03/2016 encontravam-se no interior do apartamento nº X os seguintes bens:
1. Um armário branco de seis portas; 2. Três cadeiras de alumínio praia, no valor de € 89,95; 3. três malas grandes de viagem; 4. duas malas pequenas de viagem; 5. um escadote de Alumínio 6 degraus; 6. um Berbequim Black and Decker; 7. uma Aparafusadora Dexter; 8. um Kit ferramentas; 9. um Kit parafusos e diversos; 10. uma caixa de Brocas e Bicos; 11. uma Caixa de ferramentas (alicates, chaves); 12. um Aspirador; 13. uma tábua de passar roupa; 14. um ferro a vapor; 15. um telefone sem fios novo na caixa Philips 2 bases; 16. um tapete pequeno; 17. um vaso; 18. uma mesa de entrada; 19. um Quadro ”Ferdinando o Grande”; 20. um vaso cristal; 21. um tapete de entrada passadeira; 22. uma Luminária de Pé; 23. Rack preta; 24. uma Tv grande 58” Samsung Full HD, no valor de € 499,00; 25. uma Tv Led LG 47”, no valor de € 599,00; 26. um DVD Samsung; 27. um Rooming; 28. um Tapete; 29. uma “Rack;” 30. um tapete 2.0 x 2.90 Nepal; 31. um Aquecedor 2.000W, no valor de € 22,99; 32. um Transformador 110v/220v, no valor de € 48,87; 33. uma Petisqueira cristal vista alegre;
34. um Conjunto Mesa de Porcelana Vista Alegre 56 peças; 35. Conjunto Chá e Café Porcelana Vista Alegre 30 peças; 36. uma Saladeira cristal; 37. um Conjunto de Taças Cristal 62 peças; 38. 06 Taças Conhaque cristal; 39. 06 Tacinhas Vodka cristal; 40. Faqueiro; 41. um Balde de Gelo; 42. um misturador de cocktails; 43. Bebidas (1 Jack Daniel Especial; Black Label; Ballantines; Dalmore; Baileys; Amarula; Cointreau; Mozart Gold ; Sheridans, Ginja de Portugal Cristal; Absolut; Grey Goose; Cognac Louis Royer XO; Vinho do Porto Fonseca 2000; Moet & Chandon); 44. um Sofá, no valor de € 1 295,00; 45. uma mesa de canto; 46. Folhagem com vaso de vidro; 47. 03 vasos de rattan; 48. 03 folhagens grandes; 49. 03 cestos rattan; 50. uma máquina de lavar loiça inox Bosch; 51. uma Tv 43” LG, no valor de € 367,77; 52. um Conjunto de Panelas; 53. 01 Liquidificador, no valor de € 36,99; 54. 01Microondas Samsung C/ Gril metálico, no valor de € 169,00; 55. Varinha mágica, no valor de € 39,99; 56. Panela elétrica arroz; 57. Torradeira; 58. Grelha elétrica, no valor de € 19,99; 59. Gril; 60. 01 Robô cozinha Moulinex; 61. 01 Fritadeira; 62. 01 cafeteira Nespresso; 63. 01 iogurteira; 64. 01 centrifugador frutas; 65. 01 máquina de fazer pão; 66 e 67. Louças do dia-a-dia (pratos, copos, chávenas, pires, canecas); 68. Artigos de brigadeiro/bolos/muffins/; 69. Formas tefalizadas de assar; 70. Talheres Diários; 71. Talheres de Cozinhar inox; 72. Toalhas de mesa; 73. Artigos de tecido (panos de prato, pegas, aventais); 74, 75, 76. Bens alimentares diversos; 77. Potes de vidro; 78. Potes plástico; 79. Artigos diversos de cozinha (escorredouro de loiça, ganchos, porta talheres, coador, descascador de batatas, colher de sorvete, abre-latas, conjunto de facas de corte grande, moedor, rolode massa); 80. dois jarros de vidro; 81. duas Vassouras; 82. dois Baldes; 83. Produtos de limpeza da casa; 84. uma Panela de Pressão; 85. uma balança, no valor de € 17,90; 86. dois gavetões brancos com vidro; 87. dois gavetões com espelho; 88. um espelho; 89. uma “Chaise longue” Mistral, no valor de € 499,00; 90. um colchão casal; 91. quatro travesseiros grandes; 92. três almofadas; 93. um edredão king superaquecimento; 94. uma Capa King; 95. um edredão; 96. duas Capas king; 97. uma colcha; 98. duas mantas de Lã; 99. três conjuntos roupa de cama; 100. um conjunto roupa cama king; 102. uma “rack” preta; 103. monitores de computador; 104. uma impressora scanner multifunções HP, no valor de € 64,90; 105. um computador portátil HP; 107. dois Ipad Mini Apple; 108 e 109. dois telemóveis; 110. 4 jogos de toalhas de banho; 111. 4 jogos de cama; 112. 2 mantas de solteiro; 113. um secador de cabelo Phillips, no valor de € 24,00; 114. um ventilador 40cm, no valor de € 26,95; 115. um aparelho de ar condicionado humificador portátil; 116. artigos de decoração diversos, 117. um Gps TomTom, no valor de € 159,98; 205. uma máquina de depilar manual fotodepil depilação; 210. uma máquina de costura Elgim; 211. um carregador de mesa sem fio Samsung; 212. quatro roupas de cachorro; 213. uma cama de cachorro;
J) Os bens enunciados na alínea I), sob os nºs 1, 3 a 23, 26 a 30, 33 a 43, 45 a 50, 52, 56, 57, 59 a 84, 86 a 88, 90 a 103, 117, 205, 210 a 213 têm valor não concretamente apurado.
K) Nessa data encontravam-se ainda no interior daquele apartamento nº … outros bens, designadamente mobiliário diverso, outros utensílios, outros objetos de bricolage, produtos de higiene, cremes e outros artigos de beleza, diversos artigos de vestuário, de calçado, joias e bijuteria, relógios, óculos, perfumes, acessórios de moda – bens estes não concretamente discriminados (número e/ou marca) e de valor não concretamente apurado.
L) Em resultado do incêndio a A. teve que pernoitar em alojamento hoteleiro, no que despendeu a quantia de € 370,00, do dia 06/04/2016 até ao dia 19/04/2016.
M) E teve que renovar o seu passaporte no que despendeu € 100,00 e 20,00 em despesas de registo civil.
N) A Autora tinha várias fotografias emolduradas no apartamento bem como inúmeras fotos guardadas na memória do computador portátil que ardeu durante o incêndio, tendo perdido todas elas.
O) A Autora passou dias inteiros sem o conforto da sua casa, ficou sem as suas roupas e artigos de higiene.
P) Após o incêndio, e para substituir alguns dos bens mencionados supra, a A. adquiriu diversos bens, conforme alguns dos documentos de fls. 85 e ss., cujo teor se dá por reproduzido.
Q) Com início em 23.03.2016 o R. cedeu o gozo do apartamento Y a um casal e duas filhas, de nacionalidade espanhola, que o utilizaram até à data do incêndio.
R) Aquando do incêndio, o R. encontrava-se em Castelo Novo, no concelho do Fundão.
S) O apartamento Y não estava dotado de instalação de gás, nem tinha no seu interior, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, objetos suscetíveis de combustão espontânea ou material facilmente inflamável ou explosivo (designadamente, produtos químicos ou combustível).
T) O recheio desse apartamento Y era o próprio e comum de uma casa de habitação e tal apartamento não era utilizado como arrecadação ou depósito de objetos.
U) O edifício que integra esse apartamento Y foi construído e foi objeto de licença de utilização em 1992.
V) O apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), nunca foram objeto de qualquer modificação e estavam em bom estado de conservação, limpeza e funcionamento.
W) Esse apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), não apresentavam, nem manifestavam, qualquer anomalia de construção, instalação ou funcionamento, em especial qualquer vestígio de queimadura (mancha negra) em aparelho, fio ou cabo, ficha, tomada ou interruptor, qualquer fumo ou qualquer ruído, cheiro ou desempenho anómalo.
X) Nesse apartamento Y os fios ou cabos do equipamento (designadamente, da televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas) que nele se encontrava, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, não se apresentavam deteriorados (designadamente, com a capa isolante removida), nem se encontravam pressionados, as tomadas e interruptores de electricidade estavam devidamente colocados nas paredes e as janelas, quando fechadas, não permitiam a entrada de água provinda do exterior.
Y) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, só se encontravam ligados à instalação elétrica, na sala, a televisão, o leitor de DVD, o leitor de VHS e o rádio/leitor de CD, ligados a uma extensão com quatro tomadas e ligação à terra e tal extensão estava ligada a uma tomada, na parede, com ligação à terra, sendo que os aparelhos existentes na cozinha estavam ligados a tomadas com ligação à terra.
Z) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, a televisão e os leitores de DVD, de VHS e de CD, bem como a referida extensão, não se encontravam tapados ou cobertos.
AA) Nesse apartamento Y, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, os aparelhos elétricos estavam colocados em local distante das janelas (designadamente, a televisão, os leitores de DVD, de VHS e de CD e a referida extensão estavam colocados a, pelo menos, cerca de dois metros da respectiva janela), não podendo ser atingidos por água ou humidade.
BB) Nenhum incidente ou anomalia se verificou, em data anterior à daquele incêndio, com a instalação elétrica ou equipamento, incluindo qualquer aparelho ou extensão de tomada, existente nesse apartamento Y (designadamente, os disjuntores desligarem a corrente elétrica, sentir-se um choque elétrico ou ocorrer qualquer faísca, qualquer fumo ou qualquer cheiro, ruído ou funcionamento anómalo).
CC) Nenhum incidente ou anomalia, relativamente a esse apartamento Y (designadamente, com a instalação elétrica) ou seu equipamento, incluindo qualquer aparelho ou extensão de tomada, foi transmitido ao R. por qualquer membro do referido casal ou qualquer das suas filhas, antes daquele incêndio.
DD) A potência contratada para fornecimento de eletricidade a esse apartamento Y era de 10,35 kVA, à data daquele incêndio, sendo que o R. nunca solicitou a alteração dessa potência.
3.2 Matéria de facto não provada
Com relevância para a decisão da causa não se provaram os seguintes factos :
1. No dia 26/03/2016 estivessem no interior do apartamento X um computador portátil marca Aces 8GB 2,5 GHz; as verbas mencionadas nos artºs 10º a 59º da p.i., com exceção daqueles que se mostram repetidos constantes da alínea I) supra, assim como os bens concretamente descritos nos nºs 118 a 204 e 206 a 209 da tabela constante do artº 61º da p.i. aperfeiçoada – outrossim, o que consta das alíneas I), e K) dos factos provados.
2. Os valores dos bens mencionados na alínea I), sob os nºs 1, 3 a 23, 26 a 30, 33 a 43, 45 a 50, 52, 56, 57, 59 a 84, 86 a 88, 90 a 103, 117, 205, 210 a 213.
3. As marcas e/ou modelos e/ou características e/ou número de peças dos bens descritos nos nºs 1, 3, 4, 7, 8, 12, 14, 16 a 18, 20, 23, 27 a 31, 33 a 41, 52 a 54, 56, 60, 61, 63, 64, 67, 69, 71 a 76, 81, 83, 94, 96, 97, 99, 100, 103, 108, 109, 111, 117, todos da alínea I).
4. A Tv 58” Samsung Full HD tivesse o valor de € 515,37 - provando-se, outrossim, o que consta do da alínea I), nº 24.
5. O GPS fosse do modelo 750 pro e tivesse o valor de € 320,00 - provando-se, outrossim, o que consta da alínea I), nº 117.
6. Em resultado do incêndio a Autora ficou prejudicada no seu percurso académico profissional.
7. A A. suportou a quantia de 200,00 pelo novo pedido de passaporte – provando-se, outrossim, o que consta das alíneas M) supra.
8. No dia do incêndio a A. não pode tratar normalmente da sua higiene pessoal por conta de ter perdido todos os artigos de higiene nas chamas.
9. O R. arrendou o apartamento Y a C(…) – provando-se, outrossim, o que consta da alínea Q) supra.
10. O referido nas alíneas X), Y), Z), AA) ocorresse no dia 23/03/2016 - provando-se, outrossim, o que consta dessas alíneas.
Não foram consideradas demais alegações por conclusivas, conterem matéria de direito, se encontrarem em oposição com factos considerados provados ou constituírem mera negação de factos considerados provados ou não provados, serem irrelevantes para a decisão da causa.
3.3 Motivação da decisão de facto
Relativamente aos factos provados o Tribunal formou a sua convicção na apreciação conjunta e crítica da prova produzida, advinda designadamente dos depoimentos das testemunhas, que o prestaram de forma isenta, convincente e credível e na medida em que revelaram a fonte de conhecimento dos mesmos, infra analisada:
- P(…) (alíneas C, K), por à data de 26/03/2016 residir num prédio em frente ao Edifício Cascais Atrium, possuir um cabeleireiro num prédio ao lado, que a A. frequenta como cliente e ter entrado no apartamento onde a A. residia, em data anterior ao referido incêndio, por duas vezes. Referiu que às 8 horas ainda havia fumo e que o fogo atravessou o prédio todo. Apercebeu-se que A. só usa roupa de marca, gosta de quadros, relógios, joias, usava óculos de sol.
- E (…) (alíneas B, C, E, G a P), por conhecer a A. há mais de 4 anos, ter relacionamento amoroso com a A. e se encontrar a residir no apartamento nº X, à data do incêndio.
Relatou as circunstâncias em que se apercebeu do incêndio, o que viu quando abandonou o apartamento, nomeadamente as chamas no apartamento nº Y, por onde passou. Mencionou o estado em que ficou o apartamento X, a destruição de todo o recheio (móveis, eletrodomésticos, roupas, computadores, artigos de higiene, relógios, joias, óculos, etc. Esclareceu que antes de residir no apartamento X a A. tinha habitado no piso 2. O apartamento X foi arrendado contendo apenas 1 “rack”, 1 televisão, um sofá e cortinados, que a A. reformou. Confrontado com as fotografias de fls. 25 e ss. descreveu as divisões e alguns dos bens que ali se encontravam e ficaram destruídos (televisão, aparelhagem, chaise longue, sofá, monitor de computador, impressora, ipad, colchões, computador portátil, máquina de louça Bosh, telefone novo ainda em caixa). Esclareceu que algumas das fotografias foram tiradas por si nos dias seguintes ao incêndio, que a A. não recuperou nada e que na data do incêndio se encontrava no Brasil, de onde regressou um ou dois dias depois. Também tinha objetos com valor sentimental (dela e das filhas, como molduras, fotografias), documentos, etc. Teve que tirar segunda via dos documentos e adquiriu roupa, calçado e novo mobiliário quando foi para nova casa (confirmou alguns dos artigos constantes dos documentos de fls. 84 e ss.). A A. teve que se alojar no Hotel M(…) por 30 dias. A A. ficou muito abatida, chorou muito. Mencionou que existiam 4 televisões, mas um delas pertencia ao senhorio. Confirmou a existência no apartamento, na generalidade, dos bens elencados na alínea I), sem, todavia, indicar valores e nalguns casos as respetivas marcas.
- J (…) (alíneas C, E, F), por ser o coordenador operacional dos Bombeiros Voluntários de Cascais e ter elaborado o relatório junto a fls. 182 e ss., cujo teor confirmou. Referiu que pelas 3h08m do dia 26/03/2016 foi recebido um telefonema a dar conhecimento de um incêndio no apartamento Y. Descreveu a evacuação efetuada, a conclusão dos trabalhos cerca das 19 horas (com rescaldo). Referiu que o grau de destruição de alguns apartamentos era muito elevado.
Confrontado com fotografias do apartamento junto aos autos identificou o tipo de cenário que visualizou em vários apartamentos. Confirmou que, tal como consta do relatório, o incêndio teve origem no apartamento nº Y, desconhecendo a respetiva causa.
- A (…) (alíneas S, T, V a CC), por ser amiga do R. e ter passado no apartamento nº Y alguns períodos de férias bem como fins de semana; a última vez em Janeiro/fevereiro de 2016. Relatou o recheio deste apartamento, o estado de limpeza e conservação do apartamento, seu recheio e equipamentos, ausência de instalação de gás.
- V (…) (alíneas T, V), por ser amigo do R. e ter estado no apartamento deste (nº Y) uma ou duas vezes como visita (última vez nos finais do Verão de 2015). Descreveu o apartamento, o tipo de recheio, estado de conservação e limpeza do recheio e equipamento.
- M (…) (alíneas E, Q a T, V a CC), por ser filho do R. e conhecer o apartamento nº Y, que utilizou por várias vezes ao longo dos anos e onde viveu determinado período. Esteve no apartamento uma semana antes do incêndio. Descreveu o tipo de recheio, a ausência de instalação de gás e de modificações na instalação elétrica, o equipamento, o estado de conservação dos equipamentos. Esclareceu que uma filha do casal a quem foi cedido o gozo do apartamento depois do incêndio foi lá no intuito de recuperar bens próprios e afirmou que o apartamento estava impecável. Não conseguiu recuperar nada porque estava tudo destruído.
- P (…) (alíneas R a T, V, W, Z), por ser irmão do R. e conhecer o apartamento nº Y, onde se deslocou pela última vez no princípio do ano de 2016. Relatou o recheio deste apartamento, o estado de limpeza e conservação do apartamento, seu recheio e equipamentos,
Valorámos as declarações de parte da A. no tocante aos esclarecimentos relativamente à máquina de lavar louça, marca Bosch, em inox, no sentido de ser sua (enquanto que a máquina de lavar roupa era do senhorio), ao facto de ter ficado sem roupa para vestir, bem como fotografias e cartas das filhas, com valor sentimental, ter ficado em choque. Esclareceu que na data do incêndio estava no Brasil, regressou dois dias depois, esteve alojada no Hotel M(…), durante um mês. Referiu ter adquirido, depois do incêndio, mobílias para o novo apartamento. Mais aludiu a algumas joias, relógios, óculos de sol, roupa, remetendo para o que alega na p.i. Esclareceu que os valores que reclama foram obtidos na internet. As declarações de parte da A., relativamente aos bens e valores, mencionados nos itens 1 a 3 dos factos não provados, assim como no tocante ao curso profissional (item 6) que afirmou não ter frequentado como resultado do incêndio – facto este não concretizado na p.i. - desacompanhadas de meios probatórios fiáveis, tratando-se de declarações interessadas, parciais e não isentas, por corresponderem ao interesse que tem na ação enquanto parte, não foram valoradas para prova de factos relativamente aos quais não foram produzidos outros meios probatórios credíveis de sustentação, “sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório”. Neste sentido v. Ac.R.P. de 15/09/2014, in www.dgsi.pt.
Com efeito, a testemunha E (…) afirmou que a A. era possuidora de joias e bijuteria, não sabendo precisar quantidades, marcas. Por outro lado, também afirmou que a A., à data do incêndio, tinha consigo no Brasil algumas joias, sem concretizar. Relativamente à roupa, acessórios de moda, etc., a mesma testemunha explicou que não podia confirmar o número de peças, algumas das marcas.
Perante a escassez de elementos probatórios produzidos foram considerados tal como consta da alínea K) dos factos provados – e correspondentemente, a sua concretização consta do item 1 dos factos não provados.
Valorámos, de forma conjugada com os depoimentos das testemunhas, os documentos anexos à p.i. sob os nºs 1 (alínea A), nº 2, a fls. 16 e ss. (alíneas C, E, F), nº 3, a fls. 21 e ss. (alínea D), nº 4, a fls. 25vº e ss. (alíneas G, H), nº 5, a fls. 47 e ss. (alínea H), nº 7, a fls. 82vº a 83vº (alínea L), nº 7, a fls. 85 e 85vº (alínea M); anexos ao requerimento datado de 31/01/2017, sob os nº 1 (alínea K); anexos à contestação sob os nº 1 a 4 (alínea E), nº 5 (alínea U), nºs 6 e 7 (alínea DD).
Relativamente ao valor dos bens descritos na alínea I), sob os nºs 2, 24, 25, 31, 32, 44, 51, 53, 54, 55, 58, 85, 89, 104, 113, 114, 117 atendemos essencialmente aos documentos de fls. 60vº, 73, 73vº, 76, 77, 74, 75vº, 75, 77vº 74vº, 60vº, 78 (doc. 6 anexo à p.i.), e quanto à sua descrição valorámos essencialmente o depoimento da testemunha E (…) que confirmou a sua existência e destruição, mas que não aludiu a marcas e/ou modelos – pelo que face à ausência de qualquer outro meio probatório, não foram tais elementos considerados provados.
Os factos descritos no ponto 3.2 foram considerados não provados pelas razões já acima apontadas e, ainda:
- quanto às verbas genericamente descritas nos artºs 10º a 59º da p.i. por remissão para documentos, na sua maioria impercetíveis quanto à descrição dos artigos, os quais não foram confirmados por qualquer outro elemento probatório e, ainda, porque desses documentos não resulta por si só que estivessem no interior do apartamento arrendado à A. e que tivessem ficado destruídos e por a testemunha E (…) não ter sido confrontada com os mesmos, mas tão só perguntado relativamente à tabela constante do item 61º. Por outro lado, a testemunha apenas referiu espontaneamente o portátil HP.
- por total ausência de suporte probatório quanto aos itens 2, 3, 8, 9. Note-se que tanto a A. como a testemunha E (...) mencionaram que a A. se encontrava no Brasil à data do incêndio, tendo regressado cerca de dois dias depois. Por outro lado, pese embora o filho e irmão do R. tenham mencionado a celebração de um arrendamento pelo R. a um casal de espanhóis e duas filhas, o seu conhecimento provém daquilo que o R. lhes terá relatado. Não foi junto qualquer documento comprovativo, e nenhuma testemunha tinha conhecimento direto do acordo. Todavia quer do relatório elaborado pelos bombeiros, quer pelo irmão e filho do R. foi mencionada a utilização pelo casal e filhas, tendo o filho do R. referido o contato posterior com uma das filhas com vista a recuperar bens que lá havia deixado.
- por se ter provado realidade diversa (itens 4, 5 e 7), pois consta dos documentos de fls. 73, 78 e 84, respetivamente, que o preço da TV 58” é de € 499,00; o preço do GPS de 159,98 e o respetivo modelo e o passaporte da A. importou em € 100,00 (sendo irrelevante que a testemunha E (…) tivesse feito pedido do seu passaporte).
- quanto ao item 10, por a prova testemunhal (único meio produzido) ter situado o conhecimento do estado do apartamento Y, na sua generalidade, alguns meses antes do incêndio, sendo que a testemunha M (…) se deslocou ao mesmo cerca de uma semana antes. Nenhum outro elemento probatório relevou quanto à data de 23/03/2018”.
IV. Apreciação
1ª questão:
Não se conforma a Recorrente, com a prova dos factos sub S) a T), V) a Z), AA) e CC), nem que não tenham sido dados como provados os factos referidos nos pontos 1 a 3 dos não provados.
A saber, portanto:
S) O apartamento Y não estava dotado de instalação de gás, nem tinha no seu interior, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, objetos suscetíveis de combustão espontânea ou material facilmente inflamável ou explosivo (designadamente, produtos químicos ou combustível).
T) O recheio desse apartamento Y era o próprio e comum de uma casa de habitação e tal apartamento não era utilizado como arrecadação ou depósito de objetos.
V) O apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), nunca foram objeto de qualquer modificação e estavam em bom estado de conservação, limpeza e funcionamento.
W) Esse apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), não apresentavam, nem manifestavam, qualquer anomalia de construção, instalação ou funcionamento, em especial qualquer vestígio de queimadura (mancha negra) em aparelho, fio ou cabo, ficha, tomada ou interruptor, qualquer fumo ou qualquer ruído, cheiro ou desempenho anómalo.
X) Nesse apartamento Y os fios ou cabos do equipamento (designadamente, da televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas) que nele se encontrava, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, não se apresentavam deteriorados (designadamente, com a capa isolante removida), nem se encontravam pressionados, as tomadas e interruptores de electricidade estavam devidamente colocados nas paredes e as janelas, quando fechadas, não permitiam a entrada de água provinda do exterior.
Y) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, só se encontravam ligados à instalação elétrica, na sala, a televisão, o leitor de DVD, o leitor de VHS e o rádio/leitor de CD, ligados a uma extensão com quatro tomadas e ligação à terra e tal extensão estava ligada a uma tomada, na parede, com ligação à terra, sendo que os aparelhos existentes na cozinha estavam ligados a tomadas com ligação à terra.
Z) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, a televisão e os leitores de DVD, de VHS e de CD, bem como a referida extensão, não se encontravam tapados ou cobertos.
AA) Nesse apartamento Y, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, os aparelhos elétricos estavam colocados em local distante das janelas (designadamente, a televisão, os leitores de DVD, de VHS e de CD e a referida extensão estavam colocados a, pelo menos, cerca de dois metros da respectiva janela), não podendo ser atingidos por água ou humidade.
CC) Nenhum incidente ou anomalia, relativamente a esse apartamento Y (designadamente, com a instalação elétrica) ou seu equipamento, incluindo qualquer aparelho ou extensão de tomada, foi transmitido ao R. por qualquer membro do referido casal ou qualquer das suas filhas, antes daquele incêndio.
1. No dia 26/03/2016 estivessem no interior do apartamento X um computador portátil marca Aces 8GB 2,5 GHz; as verbas mencionadas nos artºs 10º a 59º da p.i., com exceção daqueles que se mostram repetidos constantes da alínea I) supra, assim como os bens concretamente descritos nos nºs 118 a 204 e 206 a 209 da tabela constante do artº 61º da p.i. aperfeiçoada – outrossim, o que consta das alíneas I), e K) dos factos provados.
2. Os valores dos bens mencionados na alínea I), sob os nºs 1, 3 a 23, 26 a 30, 33 a 43, 45 a 50, 52, 56, 57, 59 a 84, 86 a 88, 90 a 103, 117, 205, 210 a 213.
3. As marcas e/ou modelos e/ou características e/ou número de peças dos bens descritos nos nºs 1, 3, 4, 7, 8, 12, 14, 16 a 18, 20, 23, 27 a 31, 33 a 41, 52 a 54, 56, 60, 61, 63, 64, 67, 69, 71 a 76, 81, 83, 94, 96, 97, 99, 100, 103, 108, 109, 111, 117, todos da alínea I).
Mas mais, sobre as conclusões E e seguintes, a Recorrente discorre, e vamos repetir: 
E. Começando pela “não alegada causa de incêndio” invocada pelo Tribunal Recorrido, cumpre em primeira análise referir o facto de nem a existência de causa ou inexistência de causa estarem na matéria dada como provada ou não provada. Há uma omissão de decisão do Tribunal Recorrido quanto a este facto.
F. Depois, ainda nesta sede, cumprirá rever a prova documental junta. Ficou provado pelo teor do documento 4 junto com a PI e pelo relatório da ocorrência dos Bombeiros de Cascais, ficou igualmente provado que existiu um incêndio com origem no apartamento Y – propriedade do Réu, conforme documento 3 junto com a PI.
G. Do mesmo relatório é possível retirar a causa do incêndio (curto-circuito, sobreaquecimento… de uma televisão.)
(…)”
O artigo 640º do CPC estabelece os ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Importa que quem recorre indique quais são os factos provados ou não provados que devem ter resposta diversa por parte do tribunal de recurso e porquê.
Se isto foi cumprido quanto às alíneas e números que supra descrevemos, já quanto à questão do incêndio ter tido origem num televisor existente no apartamento Y a situação é menos clara: por um lado, aponta-se omissão ao tribunal quanto à causa do incêndio - isto é, não deu como provada ou não provada a causa do incêndio – e por outro declara-se que a causa é, segundo a prova produzida, bastante clara: incêndio no televisor. Pode-se pensar que, para todo o bom estado que o tribunal deu como provado relativamente ao apartamento Y, seu recheio e equipamento, para a reapreciação desses factos, ou de parte deles, saber que o incêndio se originou no televisor poderá levar à reprovação da decisão que sancionou tal bom estado. Por outro lado, podemos rever a alínea C dos factos provados em aperfeiçoamento, dizendo que o incêndio começou no televisor existente no apartamento Y.
Convirá, é o que o Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente afirmado, não ser particularmente formalista no que toca ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do CPC, em tanto que tal formalismo prejudique, injustificadamente, o apuramento da verdade material. Neste sentido, entendemos que apesar da Recorrente não elencar o facto a aditar ou a alínea que deve ser revista, em todo o caso ela manifesta veementemente que o tribunal tem de considerar que o incêndio começou no televisor existente no apartamento Y, o que não é o mesmo que simplesmente dar como não provado que todo o equipamento eléctrico desse apartamento estivesse em boas condições de funcionamento.
Assim, entendemos que podemos reapreciar a decisão também quanto à questão da origem do incêndio, na reapreciação ou concretização da alínea C dos factos provados. Repare-se outrossim, ainda que isto mais pertença ao raciocínio de direito, que causa do incêndio é um conceito, e não isento de complicações e conformações diversas, ao passo que origem do incêndio – literalmente, saber onde o incêndio começou – é um facto.
Quanto à omissão apontada ao tribunal, em rigor ela não existe, precisamente não só porque causa do incêndio é esse tal conceito complexo, que resulta de múltiplos factos conjugados que explicam a proporção do incêndio que atinge o arrendado pela Autora, dois pisos acima, mas também porque em rigor nenhuma das partes alegou a causa de incêndio e o tribunal não tinha necessariamente, segundo as várias soluções de direito pensáveis, de a afirmar, para objectivar algum tipo de responsabilidade, bastando-lhe saber que houve um incêndio no apartamento Y e que ele se propagou ao apartamento X.
Este tribunal procedeu ao exame da prova documental e à audição integral do julgamento.
Ora, sobre a questão da origem do incêndio, foi, de relevante, ouvido o Comandante Operacional dos Bombeiros Voluntários de Cascais e foi ouvida a testemunha E…, amigo da Autora e que pernoitava no apartamento Y na noite do incêndio. Todos os restantes nada disseram de concreto sobre a origem.
A testemunha E… deu uma versão que se revela contraditória com o que consta do relatório do incêndio, no que toca a horas de começo e a quem o avisou, lhe bateu à porta para avisar que o prédio estava a arder. E disse ainda que passou pela porta do apartamento Y, que era dela que vinham as chamas. Esta referência, em bom rigor, era escusada. Ninguém, excepto o Réu, teve dúvidas de que o incêndio começou no apartamento Y. E era escusada porque num incêndio, com o prédio a ser evacuado, não se tem a curiosidade de ir passar lá à porta, quando se está a descer pelas escadas do 7º piso, para o 6º, e dali para baixo. Apenas se podia admitir, mas isto a testemunha não disse, que como os corredores eram abertos para o átrio central, quem corresse pelos corredores para as escadas podia ver qual a porta que estava a arder.
Segundo E…, entre as 01:00 e as 02:00, (que depois passou a 03:00) o porteiro ter-lhe-á batido à porta. Segundo o relatório houve uma chamada poucos minutos depois das 03:00, os bombeiros chegaram poucos minutos depois, o porteiro estava sossegado no seu posto, não tinha ido ajudar os ocupantes do Y nem tinha avisado ninguém, nem os ajudou.
Deixemos isto, porque não tem grande interesse, e nem mesmo serve para destronar a valia do depoimento de E… para outros pontos impugnados. O que interessa mesmo é que o Comandante confirmou o relatório, que foi ele que elaborou, atestando que é verdade tudo o que nele está inscrito, e por isso a sua afirmação de que a causa do incêndio é desconhecida percebe-se no contexto da afirmação de que a secção da PJ especializada em apurar causas de incêndio é que ficou a investigar, é que saberá, e que ele, eles bombeiros, não sabem. Simplesmente, quanto à origem, e confirmado o relatório e o que dele consta, então é absolutamente seguro e faz todo o sentido que quem liga para os bombeiros seja precisamente quem está a braços com o foco de incêndio que já não consegue controlar. Por isso, e contrariamente à afirmação que terá sido a portaria a ligar, o condomínio ou populares, o que consta do relatório é uma chamada telefónica vinda dum número de telefone espanhol – relatório de ocorrência, fls. 182, “alerta”, “via telefone”, “telefone nº 0034 (…)”, e anexo I a fls. 184, onde se lê “Cerca das 03h08, foi recebido um alerta (…) para foco de incêndio numa televisão com muito fumo no interior, na Rua (…) 5º piso (…) Ao chegar ao local, na portaria, são informados pelo segurança privado que se encontrava paulatinamente sentado no interior da portaria, que se tratava de um incêndio num televisor, o mesmo permaneceu sentado (…)” – o que com grande probabilidade indica que foram os espanhóis que consabidamente estavam alojados no apartamento Y que ligaram para os bombeiros, justamente porque ninguém melhor que eles estaria em condição de o fazer, ao deparar-se, no próprio apartamento, com um fogo que ou já não conseguiam debelar, ou relativamente ao qual os esforços de debelar se tinham revelado ineficazes. E o facto do segurança estar e continuar sentado significa evidentemente que a noção de perigo não era tão grande assim, o que é perfeitamente compatível com o incêndio radicar-se e resumir-se a uma televisão. Quem comunicou o incêndio, quem chamou os bombeiros, referiu que o incêndio era num televisor. Tudo em absoluta normalidade e sem nenhuma dúvida. 
Porque razão o televisor se incendiou não se sabe, não podendo o tribunal lançar-se a adivinhar ou concluir, que tenha mesmo sido um curto-circuito ou uma sobrecarga, ao contrário do que a Recorrente refere poder retirar-se do relatório dos bombeiros, mas sabe-se que o incêndio começou no televisor existente no apartamento Y.
Assim, relativamente à alínea C dos factos provados, cujo teor é “C) No dia 26/03/2016, pelas 03:07 horas, deflagrou um incêndio na Rua da …, nº …, no ..º piso, apartamento Y”, altera-se o seu teor para “C) No dia 26/03/2016, pelas 03:07 horas, deflagrou um incêndio na Rua da …, nº …, no ..º piso, num televisor existente no apartamento Y”.
Prossigamos, não sem antes dizer que em relação a outras afirmações que encontramos nas alegações, designadamente quanto a ser ponto assente que o Réu se dedicava a alojamento local, os ónus de impugnação concreta não foram cumpridos: 
S) O apartamento Y não estava dotado de instalação de gás, nem tinha no seu interior, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, objetos suscetíveis de combustão espontânea ou material facilmente inflamável ou explosivo (designadamente, produtos químicos ou combustível).
T) O recheio desse apartamento Y era o próprio e comum de uma casa de habitação e tal apartamento não era utilizado como arrecadação ou depósito de objetos.
V) O apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), nunca foram objeto de qualquer modificação e estavam em bom estado de conservação, limpeza e funcionamento.
W) Esse apartamento Y e suas partes integrantes ou componentes (designadamente, a instalação elétrica), bem como o seu equipamento (designadamente, a televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas), não apresentavam, nem manifestavam, qualquer anomalia de construção, instalação ou funcionamento, em especial qualquer vestígio de queimadura (mancha negra) em aparelho, fio ou cabo, ficha, tomada ou interruptor, qualquer fumo ou qualquer ruído, cheiro ou desempenho anómalo.
X) Nesse apartamento Y os fios ou cabos do equipamento (designadamente, da televisão, outros aparelhos elétricos e extensões de tomadas) que nele se encontrava, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, não se apresentavam deteriorados (designadamente, com a capa isolante removida), nem se encontravam pressionados, as tomadas e interruptores de electricidade estavam devidamente colocados nas paredes e as janelas, quando fechadas, não permitiam a entrada de água provinda do exterior.
Y) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, só se encontravam ligados à instalação elétrica, na sala, a televisão, o leitor de DVD, o leitor de VHS e o rádio/leitor de CD, ligados a uma extensão com quatro tomadas e ligação à terra e tal extensão estava ligada a uma tomada, na parede, com ligação à terra, sendo que os aparelhos existentes na cozinha estavam ligados a tomadas com ligação à terra.
Z) Nesse apartamento Y, pelo menos, até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, a televisão e os leitores de DVD, de VHS e de CD, bem como a referida extensão, não se encontravam tapados ou cobertos.
AA) Nesse apartamento Y, pelo menos até cerca de uma semana antes do dia 23/03/2016, os aparelhos elétricos estavam colocados em local distante das janelas (designadamente, a televisão, os leitores de DVD, de VHS e de CD e a referida extensão estavam colocados a, pelo menos, cerca de dois metros da respectiva janela), não podendo ser atingidos por água ou humidade.
CC) Nenhum incidente ou anomalia, relativamente a esse apartamento Y (designadamente, com a instalação elétrica) ou seu equipamento, incluindo qualquer aparelho ou extensão de tomada, foi transmitido ao R. por qualquer membro do referido casal ou qualquer das suas filhas, antes daquele incêndio.
A tese do Réu foi a de que tudo estava perfeitamente bem no seu apartamento e recheio, incluída a aparelhagem eléctrica, sendo que não havia aparelhagem a gás, e sendo, como se sabe, que estes dois tipos são os que maior potencialidade têm de provocar incêndios. Para confirmar esse bom estado, ouviu-se uma amiga do Réu que não só visitava a casa, como ali permaneceu durante estadias de fim de semana e de férias, com a sua família, relativamente à qual referiu ter um filho de 5 anos e portanto ter maiores cuidados de observação de perigos, um amigo do Réu que visitava a casa em confraternizações, o filho do Réu, que ali se albergou quer acompanhando os pais, quer o pai, quer sozinho, e que portanto é a pessoa com mais capacidade de afirmação sobre o estado da casa, ainda que obviamente o seu depoimento possa revelar natural favorecimento do pai, e finalmente o irmão do Réu, que ali fazia também visitas sem ter pernoitado.
Estamos a falar dum estrato social relativamente elevado e instruído, dum prédio de prestígio num local de prestígio, e dum apartamento T2 destinado não a habitação permanente mas sobretudo a fins de semana e férias. Ora, esse estrato relativamente instruído tem a clara noção do efeito daquilo que depõe, o que explica a repetição intensiva, nas várias testemunhas, de expressões como “nunca, não nunca” e “de todo”. Isto porém não invalida o essencial da sua credibilidade. Esse prestígio e essa localização de prestígio explicam que a normalidade das situações não inclui manterem-se “ao serviço” televisões com 20 anos, veja-se por exemplo que a alta-fidelidade dos anos 90 deu lugar a “uma pequena alta-fidelidade” como referiu o irmão do Réu, nem inclui manter a televisão tapada com mantas, panos, bordados ou jarras com flores frescas. Quer isto dizer que não é normal – e agora, e vista a alteração que fizemos à alínea C, vamos concentrar-nos na televisão e na sua ligação à tomada quádrupla e na ligação desta à tomada da parede – que a televisão fosse tão velha que pudesse já estar a “fritar”, ou dela saírem faíscas perante espectadores calmamente sentados no sofá, ou dela se desprender um odor a queimado. Até porque não estamos a falar de gente impreparada nem desprevenida, e se tal tivesse acontecido a televisão teria seguido de imediato para o lixo. Não vamos, porque o incêndio se dá na televisão, saber se faz sentido – e não faz muito, para dizer a verdade – que as visitas da casa andem a ver as tomadas e a verificar as manchas de queimado, nem que se dediquem a controlar a extensão de fios eléctricos para ver se estão descarnados, nem é normal que as pessoas se dediquem a espiolhar atrás do móvel de televisão para ver como estão os fios e as tomadas. Mas com o devido respeito, ser o prédio de 1992 e estarmos em 2016 não implica que a instalação eléctrica tivesse de ser substituída, tanto mais quanto se trata de uma casa de férias e fins de semana. Tudo o mais relativamente ao recheio normal, à não existência de gás, de produtos facilmente inflamáveis, de gasolina, de produtos de limpeza facilmente inflamáveis, nada disso tem interesse em função de se saber que o incêndio se dá na televisão, mas nada disso deixa, mesmo na perspectiva distanciada das visitas, de ser razoavelmente considerado como verdadeiro: - é um apartamento de férias normal, com recheio normal, obviamente quem tem um apartamento no Cascais Atrium para ali passar fins de semana e férias e quem muito gosta do apartamento não o usa como arrecadação ou depósito, menos ainda de materiais inflamáveis, em geral não há necessidade de ter depósitos de plástico com gasolina em casa, e assim por diante. E de resto, em boa verdade, a Recorrente, para rebater as alíneas provadas sobre o bom estado da casa, também não dá qualquer outra prova consistente que assim não fosse, que as testemunhas não pudessem ser consideradas credíveis.
Perguntemos finalmente se dar como provado que o incêndio teve origem na televisão significa ao menos que a televisão em si, os fios de ligação à extensão e desta à tomada, estivessem em visível mau estado, fossem velhos, descarnados ou estivessem dobrados ou enrodilhados, ou se foram afinal os ocupantes espanhóis que vieram passar a Páscoa, quem se dedicou a um sem número de tropelias com os fios ou a deitar água sobre a televisão, ou em Março deixou a janela aberta para um vendaval a atingir enquanto ligada. E a resposta é “não, nada”. Sobre o que tivessem feito os espanhóis que entraram para a casa três dias antes, nada sabemos, excepto que o alerta é dado pelas 3 da manhã, e que portanto, com razoável probabilidade, estivesse a televisão ligada ou não, estariam a dormir – o que é imperioso porque um casal com duas filhas não continua a ver o filme enquanto a televisão arde. E isto – estarem a dormir – muito possivelmente explica que o incêndio se tenha engrandecido por não terem dado conta dele no seu início. Mas é tudo absolutamente incerto e aqui temos de dar uma nota: não é o tribunal quem tem de investigar, quem tem de determinar a identificação dos espanhóis, de os chamar a depor, porque não estamos em sede de processo crime, estamos em sede de princípio dispositivo que o dever de averiguação da verdade material não supre. Finalmente, não, que a televisão tivesse ardido não determina necessariamente que ela não estivesse em bom estado, nem que os fios e tomadas não estivessem em bom estado. O filho do Réu, sem o saber e sem ninguém ter dado conta, diz qualquer coisa de extremamente relevante: - o apartamento tinha uma empregada de limpeza frequente, aliás como convém quando se aluga a estrangeiros por curtos períodos, e os fios não estavam enrodilhados precisamente porque ela precisava limpar. Ora, como é medianamente claro, não sempre uma instalação ou equipamento eléctrico arde por causa de estar em mau estado, podendo arder por estar mal instalado, designadamente por a respectiva ficha não estar completa e seguramente introduzida na tomada, caso em que se produzem faíscas e calor que podem levar a derreter a tomada e os fios. Sem continuar aqui a especular, existe uma probabilidade mais ou menos frequente de que quem limpa – ainda mais quando a empregada até era a empregada da mãe do Réu – não tenha o cuidado suficiente com o material eléctrico, sem que sequer se aperceba do estado em que o deixa, como sucede quando se arrastam móveis ou se puxa com menos delicadeza o aspirador ou se esgrime mais vigorosamente a esfregona. Por outro lado, não é raro ter-se notícia de aparelhos novos que simples e inesperadamente explodem, como telemóveis ou automóveis, sem que de modo algum disso se pudesse suspeitar ou ter sinais.
Significa isto que dar como provado que o incêndio começou na televisão não implica alterar a decisão sobre o bom estado dos equipamentos e instalação respectiva.
Estas explicações feitas, apesar dalgum empenho de demonstração por parte das testemunhas, apesar do exagero dos ferrinhos nas tomadas, não vemos como alterar a decisão do tribunal recorrido quanto às alíneas S), T), V), W), X), Y), Z), AA) e CC).

Passemos então à questão dos danos sofridos pela Recorrente, reapreciando os factos não provados sub 1 a 3.
Ora, relativamente aos bens que o tribunal deu como provado existirem, no apartamento arrendado pela Recorrente, no dia do incêndio, na alínea I, estamos em presença de móveis e artigos de decoração e equipamentos, e relativamente aos bens igualmente considerado estarem no apartamento e descritos genericamente na alínea K estamos perante roupas, jóias, bijuterias, acessórios, perfumes e produtos de higiene e beleza, ou seja, os bens pessoais da Recorrente.
(…)
Adita-se portanto à matéria de facto provada que “No dia 26/03/2016 estava no interior do apartamento X um computador portátil marca Aces 8GB 2,5 GHz, de valor não concretamente apurado”. 
Segundo aspecto: - as verbas não provadas e que resultam dos artigos 10º a 59º da PI aperfeiçoada estavam no interior do apartamento X no dia do incêndio?
(…)
Aditamos assim “56º. Verba 47, constituído por vestido, sobretudo e camisola, no valor de 79,89€”, “57º. Verba 48, constituído por peças de roupa, no valor de 155,80€”, “58º. Verba 49, constituído por peças de roupa, no valor de 94,95€” e “59º. Verba 50, constituído por peças de roupa, no valor de 140,75€”.
Terceiro aspecto: - os bens concretamente descritos nos nºs 118 a 204 e 206 a 209 da tabela constante do artº 61º da p.i. aperfeiçoada, estavam no interior do apartamento X no dia do incêndio?
(…)
Assim, aditamos aos factos provados os valores indicados para todos os artigos menos para estes, eliminando-se o nº 2 dos factos não provados e passando a constar dos factos provados:
“118. 04 vestidos social no valor de €240,00;
119. 14 vestidos de verão (10 curtos + 4 longos) no valor de € 1.200,00;
120. 12 vestidos de inverno no valor de €1.200,00;
121. 08 camisas de trabalho manga longa no valor de €480,00;
122. 06 camisas sociais no valor de €360,00;
123. 06 camisas sociais trabalhadas no valor de €480,00;
124. 04 coletes no valor de €200,00;
(…)
209. 01 caixa de artigos de costura no valor de €50,00”.
Em conclusão, procede parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos que assinalámos a negrito.
questão:
Em matéria de direito, a sentença recorrida, depois de rejeitar a verificação cumulativa dos pressupostos da responsabilidade extracontratual imputada ao Réu, debruçou-se sobre “(…) se o caso sub judice se enquadra no disposto no artº 493º, nº 1 do C.C. – porquanto nenhuma atividade perigosa exercida pelo R. foi alegada nem demonstrada (o que desde logo exclui a aplicação do nº 2), assente que também não é subsumível à previsão do artº 492º” discorrendo então, e voltamos a citar no que toca aos pontos essenciais do raciocínio do tribunal recorrido:
“O artº 493º, nº 1 dispõe que :
“Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Este preceito legal estabelece uma presunção de culpa, a qual implica uma inversão do ónus da prova (artºs 487º, nº 1, 350º, nº 1 do C.C.).
Não se trata de responsabilidade civil objetiva – ou seja, não se prescinde da culpa, esta apenas se presume, presunção essa que pode ser ilidida pelos obrigados à vigilância do imóvel (artº 350º, nº 2), provando a falta de culpa ou que os danos se teriam produzido ainda que sem culpa sua.
O funcionamento da presunção estabelecida no art.º 493º, nº 1 do C.Civil tem como pressuposto o dever de vigilância da coisa por parte de quem a tem em seu poder com o dever de a vigiar.
Assim, por força deste preceito à A. bastaria provar que a causa dos danos que sofreu teve origem em coisa sobre a qual o R. estava adstrito a um dever de vigilância, e que sucedeu a violação desse dever de vigilância.
Ainda que se entenda que o lesado não tem que alegar e provar as circunstâncias do evento, não está dispensado de alegar e demonstrar o facto que serve de base à presunção legal.
Nos termos do artº 493º, nº 1 do Código Civil, na parte que ora releva, os danos causados pela coisa têm de resultar de uma actuação humana (por ação ou omissão) que leva a que a coisa padeça de defeitos que originem ocorrências danosas, em consequência da violação de um dever de vigilância sobre a coisa.
Conforme entendimento, que sufragamos, expresso no Ac.R.C. de 11-09-2007, base de dados citada, que aprecia a aplicabilidade do artº 493º, nº 1 do C.C.:
“ Mas, para que possa funcionar a presunção de culpa (dispensando o A. de provar a culpa), antes de mais é necessária a prova da base da presunção. A base da presunção engloba factos pelos quais se há-de demonstrar que:
a) O alegado responsável tem em seu poder determinada coisa;
b) O alegado responsável tem o dever de vigiar essa coisa;
c) Essa coisa causou danos ao impetrante da indemnização.
E a prova da base da presunção incumbe a quem faz valer o direito de indemnização, o A., porque se trata de facto constitutivo do seu direito (art. 342º nº 1 do CC).
(…)
No mesmo sentido, v. Ac. STJ de 17-06-2004:
“Como é sabido, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - nº1 do artigo 350 do Código Civil -, competindo-lhe apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção (...)”.
Transpondo para o caso dos autos, incumbia à A. a alegação e prova de que o incêndio que teve origem no apartamento do R. resultou de qualquer defeito de construção ou manutenção da coisa, que o R. tinha em seu poder (detenção material), estando obrigado à sua vigilância e que aquela coisa lhe causou danos.
Embora o R. tenha sustentado a tese de que apenas resulta do relatório elaborado pelos bombeiros que tiveram intervenção no sinistro, que se encontrava ativo um incêndio no apartamento nº Y, o que não significa que o incêndio não tivesse deflagrado em momento anterior, nem significa que tivesse origem (e não apenas propagação) nesse apartamento – verdade é que o relatório é expresso quanto ao foco de incêndio, com origem no apartamento do R., o que, aliás, foi confirmado pelo seu relator em audiência de julgamento.
Ora, a A. apenas alegou ser o R. proprietário da fração onde deflagrou o incêndio. Todavia, não foi a fração do R., em si, que causou os danos, sendo desconhecida a “coisa” que está na origem do incêndio.
É, assim, pressuposto de aplicação da norma em análise que os danos tenham sido causados pela coisa sob vigilância – e não foi alegado nem ficou determinado qual foi a coisa causadora do incêndio: se um defeito no sistema elétrico, numa televisão, etc..
Como ensina Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, p. 520: “Trata-se, é bom advertir, dos danos provocados pelas coisas ou pelos animais e não dos danos causados pelo agente com o emprego das coisas ou dos animais, visto nenhuma razão haver para excluir estes do regime geral da responsabilidade civil.”
Acresce que a responsabilidade em causa recai sobre o detentor material da coisa, vinculado ao dever de vigilância da mesma, que pode ser o proprietário, o arrendatário, o comodatário, o depositário, etc.. É este, consoante o caso, que o lesado tem que demandar. O que releva é o poder de facto daquele que detém a posse sobre a coisa, por si ou em nome de outrem, que pode sobre ela exercer um controlo físico e tenha a obrigação e se encontra em condições de a guardar, vigiar e tomar as medidas convenientes para esse efeito. Apenas ao detentor da coisa, que tem o encargo de a vigiar, é exigível que tome as medidas adequadas a evitar o dano.
Se é certo que se demonstrou que o R. é o proprietário do apartamento nº Y, verdade é que também se provou que à data do incêndio tal apartamento estava a ser ocupado e utilizado por um casal e duas filhas, a quem o R. havia cedido o respetivo gozo, com início em 23/03/2016, pelo que não estava na titularidade do R. a detenção material do apartamento, seus componentes e recheio.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in C.C. Anotado, vol. I, p. 469 “No nº 1 estabelece-se uma importante restrição à responsabilidade. Ela só existe se a pessoa que tem em seu poder a coisa móvel ou imóvel (...) está obrigada a vigiá-la. Pode tratar-se do proprietário da coisa ou do animal, mas não tem necessariamente de ser o proprietário (...). É a pessoa que tem as coisas ou animais à sua guarda que deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão. Pode tratar-se de um comodatário, do depositário, do credor pignoratício.”
Não se tendo apurado qual a causa do incêndio (não alegada, sublinha-se) - se originado por defeito de construção, de manutenção, com violação do dever de vigilância, que atento o curto período de tempo da cedência do gozo do imóvel, ainda deveria ser assacado ao R., enquanto seu proprietário; ou se por causa unicamente imputável a quem usava o apartamento, seus componentes e recheio, caso em que a responsabilidade competiria aos detentores de facto, no momento da eclosão do incêndio – não se mostram preenchidos os requisitos do artº 493º, nº 1 do C.C..” (fim de citação).
 A recorrente não se conforma, usando a seguinte linha argumentativa:
É possível apurar a causa do incêndio “G. Do mesmo relatório é possível retirar a causa do incêndio (curto-circuito, sobreaquecimento… de uma televisão.)”;
“V. O apartamento, ao contrário do que o Réu alegou (e não logrou demonstrar), não estava em completas condições de segurança” sendo que “X. (…) ponto assente, o Réu arrendava temporariamente por pequenos períodos de tempo o imóvel a terceiros”;
“Z. Ora, chegados aqui, cumprirá esclarecer o que é “Quem tiver em seu poder…” e “dever de vigilância” presente no número 1 do artigo 493º do Código Civil, e seus limites”, sendo que no primeiro caso abrange não apenas o detentor de facto mas também o detentor de direito, e que no segundo caso e sobretudo em vista da actividade de alojamento local a que o Réu se dedicava, o seu dever de vigilância é acrescido justamente das imposições relativas ao alojamento local;
Por outro lado, o Réu não contraiu seguro que é obrigatório para os proprietários de fracções condominiais, omitindo ainda este seu dever, nem se percebendo “LLL. (…) em primeira instância a falta de chamamento de qualquer entidade seguradora uma vez que o referido contrato de seguro é obrigatório”;
Acresce que “NNN. (…) sendo o Réu uma pessoa que promovia a actividade de alojamento local no referia apartamento Y, o tribunal de recurso deve ponderar se (…)a actividade de arrendar um apartamento a vários turistas por ano, que querem divertir-se (…) é uma actividade perigosa, caso em que se deve aplicar (…) o nº 2 do artigo 493º do Código Civil;
Finalmente “OOO. (…) ainda que assim não se entenda, aplicar-se-á o instituto da responsabilidade previsto no artigo 492.º do Código Civil, que diz que: “1. O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.”
Vejamos:
É certo que o tribunal não está vinculado pelas alegações de direito das partes, nos termos do artigo 5º nº 3 do CPC, mas também é certo que na base da convocação de qualquer norma de direito se tem de encontrar uma situação de facto que justifique tal chamada. A Autora não invocou na petição inicial, mesmo aperfeiçoada, que o R. se dedicava a uma actividade de alojamento local e o único facto que se provou, sendo, repetimos, que a Recorrente não peticionou com indicação concreta o aditamento de nenhum outro nem a alteração deste, foi o da alínea “Q) Com início em 23.03.2016 o R. cedeu o gozo do apartamento 512 a um casal e duas filhas, de nacionalidade espanhola, que o utilizaram até à data do incêndio”. Com o devido respeito, não pode daqui concluir-se que o Réu se dedicava à actividade de alojamento local, pelo que tudo o que a Recorrente alega quanto aos deveres acrescidos de vigilância e cuidado por parte do alojador local não pode ter aplicação no caso concreto, nem na parte em que a Recorrente pede ao tribunal de recurso que pondere se a actividade de alojamento não é perigosa, para efeitos de subsunção ao artigo 493º nº 2 do Código Civil.
Depois, de novo nos factos provados e não provados não encontramos qualquer referência à questão do seguro de responsabilidade civil, o que significa que não se sabe se havia ou não sido celebrado tal seguro pelo Réu, pelo que a referência a não ter sido feito o seguro não pode ser relevada em sede de decisão de direito, nem mesmo como menção de dever incumprido do Réu, a agravar, digamos, a sua culpa – e aqui, com o devido respeito, há um entendimento menos claro do dever de vigilância, pois ele não se refere às consequências do seu não cumprimento, mas apenas a si mesmo, ou seja, o dever de vigilância opera sobre o factualismo concreto que impede o dano, e não sobre os termos e possibilidade da reparabilidade subsequente ao dano. Por outro lado, o princípio do apuramento da verdade material não se confunde com a efectivação da justiça, estando inteiramente na disponibilidade das partes a escolha das pessoas a demandar ou a convocar para a lide, ou seja, tanto podia a Autora ter logrado apurar junto do condomínio a existência de subscrição de seguro por parte do Réu, e demandar então a seguradora, como podia o Réu ter-se defendido chamando a seguradora para a qual tivesse transferido a sua responsabilidade. Ao tribunal, seguramente, é que não competia oficiosamente desenvolver tal actividade.
Quanto à aplicabilidade da disciplina do artigo 492º do Código Civil, sendo certo que a menção é vista nalguns arestos, temos alguma dificuldade em estender a consumição pelo fogo dum apartamento (e mesmo de 63 apartamentos restantes) ao conceito de “ruir”, sendo ainda certo que no caso concreto nenhum facto provado – e recordamos que as partes são livres, em recurso, de formularem as pretensões que queiram quanto à matéria de facto e seu aditamento ou ampliação – existe sobre o pressuposto, em tal preceito legal vertido, de “vício de construção” ou “defeito de conservação”.
Voltemos ao princípio, e no fundo retomando o que já dissemos: ficou provado que o incêndio começou num televisor do apartamento do Réu, e portanto ficou provada a origem do incêndio, mas não a sua causa. É certo que podemos perspectivar isto, é o que fazem alguns arestos, como causa e sub-causa, sendo esta a explicação concreta do porquê de em determinada coisa ter acontecido um incêndio ou uma inundação ou qualquer fenómeno que produz danos, mas é uma mera mudança de palavras.
Não secundamos a tese do tribunal recorrido no sentido de que era a Autora que tinha de alegar e provar a causa ou sub-causa com base do funcionamento da presunção de culpa. Há doutos acórdãos nesse sentido – ao lesado incumbe provar a causa concreta que produziu o dano e ao lesante provar que não teve culpa na ocorrência dessa causa, ou que mesmo se tivesse feito o que devia ter feito para evitar essa causa, o dano se produziria na mesma – mas parece-nos uma solução formal que dificulta extraordinariamente a defesa dos interesses do lesado, pessoa que se encontra numa posição de desequilíbrio ou desfavor relativamente à possibilidade de conhecimento da causa pelo próprio lesante. No caso concreto, se o incêndio se originou no apartamento do Réu, muito mais fácil é a este perceber porquê ou considerar as possibilidades disso ter acontecido, do que a alguém, como a Autora, que não tinha acesso ao apartamento. Neste sentido alinhamos com a jurisprudência que defende que o lesado não tem de alegar e provar a causa concreta ou sub-causa do evento que produz o dano. Veja-se, justamente em sentido contrário ao Acórdão do STJ de 21.4.2010 citado pelo Recorrido, o acórdão da Relação do Porto com o nº RP20150708897/10.6TVPRT.P1, datado de 08-07-2015 e que por comodidade passamos a citar:
“Assente que está que o incêndio proveio da casa do Réu e que se propagou à casa dos AA e que os danos nela sofridos foram causados pelo incêndio e pela água utilizada pelos bombeiros para o combater, estão provados, por parte dos AA, os pressupostos necessários da responsabilidade civil para responsabilizar o R pelos danos verificados.
Contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a culpa do R. presume-se, nos termos previstos no artº 493º nº1 do CC o qual prescreve que “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar (…) responde pelos danos que a coisa (…) causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
Com efeito, o preceito em análise prescreve uma solução assente na presunção de culpa do proprietário ou possuidor da coisa ou da pessoa a quem incumbe o dever de a vigiar, presunção que apenas se considera ilidida quando o agente a quem é imputada a responsabilidade demonstrar que não houve qualquer culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que agisse com toda a diligência.
Na justificação desta solução legal, Vaz Serra (Trabalhos Preparatórios do Cód. Civil, BMJ 85º, pág. 365) concluía que “quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano. As coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros e o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está (o obrigado à vigilância) em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda”.
Este preceito responsabiliza, assim, quem tem a vigilância de coisa imóvel pelos danos que essa coisa causar a terceiros.
E deve entender-se por vigilância – no caso de imóveis - todo o ato do proprietário (ou do obrigado à vigilância) necessário a cuidar do seu estado de conservação e bom estado, de modo a que os mesmos não ponham em risco a integridade das pessoas e das coisas alheias.
Daí que, se de um prédio, designadamente do seu interior, provém um incêndio, cabe ao respectivo proprietário responder pelos danos decorrentes da propagação desse incêndio e da água necessária para o combater, provocados nos apartamentos contíguos, visto que, feita a prova de que o incêndio provém de um determinado prédio e localizadamente do seu interior, isso significa que foi nesse prédio e no seu interior que teve origem, estando apenas indeterminado o facto concreto que levou à sua deflagração, mas não estando indeterminado o local de origem do mesmo.
Ora, conseguindo os lesados provar que o incêndio teve a sua origem, proveniência ou causa no interior do imóvel do réu, os lesados produziram a prova necessária e suficiente para ser imputada a este último a responsabilidade pelos danos causados, não sendo exigível que provassem a causa, ou melhor, a sub-causa que em concreto originou o dito incêndio, porventura um bico do fogão acesso ou um curto circuito na instalação elétrica.
Era, pois, ao réu que competia ilidir essa presunção de culpa demonstrando que não houve qualquer culpa da sua parte (justificando a causa do incêndio) ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que agisse com toda a diligência – o que não fez.
É o proprietário do imóvel que tem o dever de o vigiar, assim como o estado da sua conservação, de sorte a impedir que nele se ocasionem focos danosos (Ac STJ de 14 de Setembro de 2010, em www.dgsi.pt e Acs. do S.T.J. de 31-1-2002 (Moitinho de Almeida) (revista n.º 4050/01 - 2ª secção); Ac. do S.T.J. de 24-5-2005 (Barros Caldeira) (revista n.º 4695/04 -1ª secção); Ac. do S.T.J. de 7-12-2005 (Lucas Coelho) (P. 2154/2005); e Ac. do S.T.J. de 11-7-2006 (Fernandes Magalhães) (revista n.º 1780/06 - 6ª secção) todos citados no primeiro, no qual se refere que o lesado não tem de provar as sub-causas do facto danoso.
Como se decidiu no Ac desta Relação, de 23.01.2006, disponível em www.dgsi.pt: “Se o Autor demanda o Réu para obter dele o pagamento de indemnização por danos que se manifestaram no seu prédio, provocados por deficiente manutenção do saneamento de prédio contíguo, face à presunção de culpa do dono deste imóvel – art. 493º, nº1, do Código Civil – não tem o Autor/lesado que alegar a culpa do Réu – proprietário e detentor daquele imóvel – na produção de tais danos, face à presunção de culpa estabelecida naquele normativo, presunção essa que cabe ao Réu ilidir; face ao disposto no art. 1305º do CCivil, sendo o proprietário quem «... goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e disposição das coisas que lhe pertencem, ...» deve fazê-lo «... dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas», daí se depreendendo que sobre ele não só subsiste um dever de vigiar o imóvel, sua pertença, a fim de prevenir o surgimento nele de vício ou defeito que possa causar danos a terceiros, como de proceder à sua conservação de modo a que nele não surjam vícios causadores de danos em outros imóveis, designadamente, que lhe possam ser contíguos. Daí que, existindo presunção legal de culpa do lesante (proprietário e detentor do imóvel causador dos danos) face ao disposto no art. 493º, nº 1 do CCivil, não tem o lesado que provar e, consequentemente, alegar o facto integrador da culpa – cfr. art. 350º, nº 1 do CCivil -, cumprindo, pelo contrário, ao lesante provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos teriam ocorrido mesmo que não houvesse culpa sua, como, aliás, entendeu o, ora R., atenta a oposição que deduziu ao pedido formulado pelo A..”
Como consta também do sumário do Acórdão do STJ de 10.12.2013, proferido no proc. 68/10.1TBFAG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “A norma do art. 493.º, n.º 1, do CC estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar”.
E acrescenta-se: “O ónus da prova de que o facto danoso ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância incumbe ao autor, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC, e mostra-se cumprido com a prova de que o incêndio que destruiu o imóvel teve origem na casa das rés, mais precisamente, na sala onde a salamandra estava colocada e foi acesa; não é exigível a prova da sub-causa que, em concreto, originou o incêndio (sobreaquecimento ou rebentamento da salamandra, inopinada libertação duma acha do seu interior, etc.).”
(…)” (fim de citação).
Ora, deste mesmo acórdão, e ainda com mais clareza da citação nele feita de Vaz Serra, também nos parece menos defensável – com o devido respeito pelos acórdãos em sentido contrário – a tese da responsabilização exclusiva do detentor de facto em desresponsabilização do detentor de direito. É verdade que tem alguma lógica que quem, por deter de facto, por isso podendo evitar a produção do evento que produz o dano, seja responsável, mas no limite responsabilizar apenas o detentor de facto não tem justificação quando a detenção de facto é limitada, na possibilidade de conhecimento do perigo – como aliás a sentença recorrida até notou no caso da família espanhola a quem o imóvel tinha sido cedido poucos dias antes do incêndio – ou quando em rigor não há detentor de facto, como sucede precisamente com os imóveis, cujos proprietários ou utilizadores não têm de estar permanentemente neles. O proprietário da casa onde reside habitualmente e que é também proprietário duma habitação de férias que utiliza em exclusividade, não pode, por natureza, deter de facto ambas as casas.
Tendo-se provado que o incêndio teve origem no televisor existente no apartamento do Recorrido, aberta está, segundo a jurisprudência que perfilhamos, a possibilidade de responsabilização do Recorrido, que depende, num último passo da sua afirmação, de saber se o mesmo ilidiu a presunção de culpa.
Revela-se de grande clareza e utilidade proceder a mais uma citação, dum aresto que pontua pelo bom senso, e ao qual, tirada a menção à responsabilização do detentor de facto, aderimos.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.3.2016 ponderou:
“1. Neste recurso de revista nenhuma das partes questiona a aplicabilidade ao caso do art. 493º, nº 1, do CC, que faz recair sobre o proprietário de coisa móvel ou imóvel, a quem caiba o dever de vigilância, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, admitindo a exoneração de responsabilidade mediante a prova de que “nenhuma culpa houve da sua parte ou de que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
E efectivamente o litígio despoletado deve ser juridicamente enquadrado em tal preceito, importando unicamente apreciar se, em face dos factos que se apuraram, deve considerar-se ilidida a presunção de culpa que a lei faz recair sobre os RR. na sua qualidade de proprietários do prédio urbano em cujo logradouro se encontrava a árvore que tombou para o prédio contíguo, atingindo o A.
2. O art. 493º, nº 1, do CC, regula uma situação de responsabilidade extracontratual, em que a culpa se presume, a qual não se confunde com outras que envolvam responsabilidade objectiva, submetidas a tipificação legal, em que a obrigação de indemnizar é independente da existência de culpa do agente, apenas se admitindo o seu afastamento em casos de força maior (v.g. arts. 505º e 509º, nº 2, do CC).
Naquela situação, admite-se a exclusão da responsabilidade, mediante a prova de factos que traduzam ou a ausência de culpa, na modalidade de imprevidência, inconsideração ou negligência, ou uma situação de inevitabilidade em que os danos se produziriam mesmo sem qualquer culpa do proprietário da coisa de que naturalisticamente decorrem os danos para terceiros.
A responsabilidade não cabe ao proprietário, enquanto tal, mas apenas àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tinha o dever de o vigiar. Mais rigorosamente, recai sobre aquele que detiver o poder de facto sobre a coisa, no pressuposto de que, como referia Vaz Serra, “quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano” e que “as coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros” de modo que “o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda” (Trabalhos Preparatórios, BMJ 85º, pág. 365).
Rui Ataíde refere que não é o perigo inerente à coisa que fundamenta a regra especial de responsabilidade, antes “o dever de controlo correspectivo do poder de determinação sobre as coisas que ocupam um certo campo física e espacialmente delimitado”. E reportando-se especificamente a eventos com interferência de árvores, observa que não sendo as árvores em si perigosas, o que está normalmente em causa é “precaver a degradação do seu estado biomecânico e fitossanitário, aplicando os cuidados especificamente requeridos” (Responsabilidade Civil por Violação de Deveres do Tráfego, pág. 369). Mais adiante conclui que, “relativamente ao modo como influem nas fontes de perigo, os deveres de controlo tanto podem ter carácter preventivo, visando precaver o nascimento de perigos, como supressivo, eliminando-os, sempre que detectados pelo exame das coisas ou puramente gestionários, no sentido em que se proponham manter perigos inamovíveis dentro de limiares razoáveis de segurança” (pág. 712).
Segundo Menezes Leitão, a solução consagrada no nº 1 do art. 493º do CC pressupõe, “em face da perigosidade imanente de certas coisas ou de animais, o surgimento de um dever de segurança do tráfego, que impõe automaticamente a sua custódia em relação ao detentor” (Direito das Obrigações, vol. I, pág. 289).
3. O proprietário de imóveis tem o dever de exercer sobre os mesmos a necessária vigilância, de modo a prevenir a hipótese de serem lesados direitos subjectivos de terceiros.
Mas não podemos pretender – e o legislador, razoavelmente informado sobre estes fenómenos, não o pretendeu seguramente – que, só pelo facto de ter os bens à sua guarda, o proprietário deva exercer sobre os mesmos deveres de vigilância tais que, na prática, transformem a responsabilidade civil subjectiva, ainda que assente em culpa presumida, em responsabilidade objectiva ou pelo risco que apenas seria arredada em casos de força maior.
Um tal entendimento tornaria praticamente impossível ilidir aquela presunção, já que, como a realidade o demonstra com frequência, por mais diligência que fosse exercida para prevenir a ocorrência de sinistros, jamais se esgotariam as medidas que, em abstracto, seriam susceptíveis de o evitar … se acaso tivessem sido adoptadas.
(…)
4. Não foi seguramente este o regime que um legislador consciente da realidade terá idealizado para regular as situações da vida corrente, pelo que necessariamente teremos de encontrar para a norma do art. 493º, nº 1, do CC, um outro sentido que seja transponível para casos semelhantes ao que ora se aprecia e de que resulte uma regulação razoável dos conflitos de interesses.
Sem nos apegarmos unicamente a sinistros originados por quedas de árvores ou de ramagens, a solução que for encontrada deverá ter a potencialidade de ser aplicada a outros eventos danosos, designadamente os relacionados com elementos fixos existentes nos telhados ou nas fachadas de edifícios em bom estado de conservação, mas que, apesar disso e do correspondente dever de prevenção, acabem por se despenhar.
Não se ignora que noutros ordenamentos jurídicos a exclusão da responsabilidade do proprietário é rodeada de maiores exigências, apenas concebível para casos de força maior.
No entanto, não foi esta a solução consagrada no nosso ordenamento jurídico relativamente a danos naturalisticamente imputáveis a móveis, imóveis ou animais submetidos ao dever de guarda de outrem, em cuja regulação se procurou estabelecer uma distinção relativamente a outras situações para as quais se prescreve a responsabilidade objectiva, como ocorre nos casos de condução de veículos (art. 501º, nº 1), de exploração de instalações de energia eléctrica ou de gás (art. 509º, nº 1, do CC) ou de outros previstos em legislação avulsa.
Por certo que esta solução pode levar a que ocorram danos na esfera de terceiros sem que estes possam reclamar a indemnização dos sujeitos que têm o domínio do bem a que causal e naturalisticamente são imputados os danos. Mas tal constitui o resultado de uma opção legislativa que evitou alargar o âmbito da responsabilidade objectiva a situações, como a dos autos, conexas com riscos genéricos.
Atalhando a resposta, importa assumir que nem todos os danos naturalisticamente imputados a alguma coisa móvel, imóvel ou animal são passíveis de despoletar uma obrigação de indemnização, importando encarar, sem excessos, mas também sem subterfúgios, que a vida em sociedade comporta alguns riscos e que nem sempre será possível assacar a outrem a responsabilidade civil pelos danos que sejam provocados.
É este um dos efeitos da opção que se traduziu na limitação, a casos tipificados, da responsabilidade objectiva, sem implicar para os detentores dos bens imóveis, móveis ou animais, só por esse facto, a obrigação de reparação de danos.
Ora, uma tal solução não pode ser contrariada através da adopção de critérios de tal modo rigoristas no que concerne à ilisão da presunção de culpa que acabem por produzir resultado idêntico ao que o legislador pretendeu evitar, o que se traduziria, em concreto, na responsabilização do proprietário dos bens móveis ou imóveis (maxime árvores) pelo respectivo risco.
5. A apreciação das condutas (acções ou omissões) dos agentes, designadamente dos proprietários do imóvel de que emergem os danos não pode ser feita num plano puramente abstracto, devendo incidir sobre as circunstâncias concretas que envolveram o sinistro. E para a eventual exoneração da sua responsabilidade, não devem ser descuradas sequer as dificuldades de demonstração das específicas condições que se verificavam na ocasião do sinistro.
Dependendo a ilisão da presunção de culpa da formulação de juízos de valor relativamente à actuação dos obrigados ao dever de vigilância, tal implica a apreciação do cuidado que foi observado, em comparação com aquele que deveria ter sido adoptado por um proprietário normalmente diligente, previdente e atento aos riscos inerentes ao bem à sua guarda (in casu, uma árvore de grande porte), seguindo os padrões do bonus pater familia que serve de matriz à apreciação da culpa (art. 487º, nº 2, do CC).
Os fenómenos metereológicos são, por natureza transitória, enfrentando os interessados quer as dificuldades de previsão, quer as dificuldades de comprovação das condições específicas que, de forma isolada ou em associação, se verificavam na ocasião e no local onde ocorreu o sinistro. Os registos que são feitos, mesmo por entidades públicas, apenas permitem uma aproximação a essas reais condições, dando indicações de cariz genérico, para determinadas zonas ou para determinados períodos, sem a garantia de uma efectiva correspondência com as verdadeiras circunstâncias que se verificavam.
Por isso, na apreciação dos deveres de vigilância ou de guarda que recaem sobre os onerados, assim como na ponderação dos efeitos decorrentes de circunstâncias de ordem externa causalmente ligadas ao sinistro, os Tribunais não podem exigir dos interessados aquilo que é humanamente inexigível, bastando apreciar os factos apurados à luz da experiência comum.
6. (…)
7. (…)
8. (…)
9. (…)
10. Conexas com bens de outra natureza, encontramos na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça outros arestos que apontam o mesmo caminho, assumindo especiais deveres de diligência e de vigilância em determinadas situações particulares em que existe um risco acrescido ou em que existem normas que especialmente impõem determinados deveres de conduta, diferenciando-as de outras em que a elisão da presunção de culpa se basta com a prova do cumprimento dos deveres de diligência que as circunstâncias reclamavam.
Às primeiras situações se reportam designadamente os seguintes arestos (acessíveis através de www.dgsi.pt):
- O Ac. do STJ, de 9-7-15, sobre o incumprimento de normas que implicavam para o proprietário ou para o locatário de um terreno uma actuação que levasse ao resguardo ou cobertura eficaz de um poço que estava coberto por vegetação e no qual veio a cair um indivíduo que andava em exercício de caça;
- O Ac. do STJ, de 22-1-15, manteve a responsabilidade presumida num caso em que o acidente numa lagoa ficou a dever-se ao facto de a embarcação (uma gaivota) se encontrar em más condições de conservação;
- O Ac. do STJ, de 30-10-14, considerou a existência de responsabilidade da empresa que operava um equipamento defeituoso de descarga de bagagens pelo facto de o ter deixado em funcionamento;
- O Ac. do STJ, de 7-10-14, concluiu pela existência do dever de vigiar do proprietário de uma fracção autónoma, responsabilizando-o pelos danos decorrentes da ruptura de uma canalização, depois da ocorrência de uma primeira inundação;
- O Ac. do STJ, de 10-12-13, considerou não ilidida a presunção de culpa numa situação em que foi provocado o incêndio de uma habitação por ter sido deixada acesa e sem vigilância uma salamandra existente numa sala;
- O Ac. do STJ, de 11-7-13 confirmou a responsabilidade pelo facto de o sinistro ter ocorrido num silo que gerava gases e que não se encontrava protegido contra a intrusão de terceiro;
- O Ac. do STJ, de 14-3-13 (relatado pelo ora relator) afirmou a responsabilidade da concessionária de auto-estrada numa situação em que não se demonstrou o cumprimento de uma reforçada obrigação de meios tendentes a prevenir acidentes de viação causados por animais ou objectos existentes na faixa de circulação.
Já, porém, foi considerada ilidida a presunção de culpa e afastada a responsabilidade da entidade que explorava um parque aquático num caso o sinistro ocorreu, apesar de terem sido cumpridos todos os deveres de diligência e de prevenção (Ac. do STJ, de 10-7-12).
Solução diversa, aliás, da que foi adoptada em face de um sinistro conexo com uma porta automática situada num estabelecimento comercial muito frequentado e relativamente ao qual foi elevado o patamar da exigibilidade a um plano que nos parece excessivo (Ac. do STJ, de 28-6-12).
(…)”.
(fim de citação).
Algumas ideias importantes deste acórdão e que merecem a nossa inteira concordância[1]:
- “2. O art. 493º, nº 1, do CC, regula uma situação de responsabilidade extracontratual, em que a culpa se presume, a qual não se confunde com outras que envolvam responsabilidade objectiva, submetidas a tipificação legal, em que a obrigação de indemnizar é independente da existência de culpa do agente, apenas se admitindo o seu afastamento em casos de força maior (v.g. arts. 505º e 509º, nº 2, do CC).
Naquela situação, admite-se a exclusão da responsabilidade, mediante a prova de factos que traduzam ou a ausência de culpa, na modalidade de imprevidência, inconsideração ou negligência, ou uma situação de inevitabilidade em que os danos se produziriam mesmo sem qualquer culpa do proprietário da coisa de que naturalisticamente decorrem os danos para terceiros”.
Portanto, não há que confundir a responsabilidade extracontratual prevista no artigo 493º com a responsabilidade objectiva. E por isto mesmo, não há que ser extraordinariamente exigente com o responsável na ponderação dos deveres de vigilância e na ilisão da presunção de culpa. É que:
- “3. O proprietário de imóveis tem o dever de exercer sobre os mesmos a necessária vigilância, de modo a prevenir a hipótese de serem lesados direitos subjectivos de terceiros.
Mas não podemos pretender – e o legislador, razoavelmente informado sobre estes fenómenos, não o pretendeu seguramente – que, só pelo facto de ter os bens à sua guarda, o proprietário deva exercer sobre os mesmos deveres de vigilância tais que, na prática, transformem a responsabilidade civil subjectiva, ainda que assente em culpa presumida, em responsabilidade objectiva ou pelo risco que apenas seria arredada em casos de força maior.
Um tal entendimento tornaria praticamente impossível ilidir aquela presunção, já que, como a realidade o demonstra com frequência, por mais diligência que fosse exercida para prevenir a ocorrência de sinistros, jamais se esgotariam as medidas que, em abstracto, seriam susceptíveis de o evitar … se acaso tivessem sido adoptadas.
(…)
4. Não foi seguramente este o regime que um legislador consciente da realidade terá idealizado para regular as situações da vida corrente, pelo que necessariamente teremos de encontrar para a norma do art. 493º, nº 1, do CC, um outro sentido que seja transponível para casos semelhantes ao que ora se aprecia e de que resulte uma regulação razoável dos conflitos de interesses.
(…)
Não se ignora que noutros ordenamentos jurídicos a exclusão da responsabilidade do proprietário é rodeada de maiores exigências, apenas concebível para casos de força maior.
No entanto, não foi esta a solução consagrada no nosso ordenamento jurídico relativamente a danos naturalisticamente imputáveis a móveis, imóveis ou animais submetidos ao dever de guarda de outrem, em cuja regulação se procurou estabelecer uma distinção relativamente a outras situações para as quais se prescreve a responsabilidade objectiva, como ocorre nos casos de condução de veículos (art. 501º, nº 1), de exploração de instalações de energia eléctrica ou de gás (art. 509º, nº 1, do CC) ou de outros previstos em legislação avulsa.
Por certo que esta solução pode levar a que ocorram danos na esfera de terceiros sem que estes possam reclamar a indemnização dos sujeitos que têm o domínio do bem a que causal e naturalisticamente são imputados os danos. Mas tal constitui o resultado de uma opção legislativa que evitou alargar o âmbito da responsabilidade objectiva a situações, como a dos autos, conexas com riscos genéricos.
Atalhando a resposta, importa assumir que nem todos os danos naturalisticamente imputados a alguma coisa móvel, imóvel ou animal são passíveis de despoletar uma obrigação de indemnização, importando encarar, sem excessos, mas também sem subterfúgios, que a vida em sociedade comporta alguns riscos e que nem sempre será possível assacar a outrem a responsabilidade civil pelos danos que sejam provocados.
É este um dos efeitos da opção que se traduziu na limitação, a casos tipificados, da responsabilidade objectiva, sem implicar para os detentores dos bens imóveis, móveis ou animais, só por esse facto, a obrigação de reparação de danos”.
Portanto, o legislador fez uma opção política, assumindo que há riscos na vida em sociedade, que por isso mesmo ser do conhecimento geral, todos podem contar com a possibilidade desses riscos, assim se justificando equilibrar os eventuais prejuízos com uma abordagem não excessivamente rigorosa dos deveres de vigilância que, na impossibilidade prática de serem exaustiva ou minuciosamente cumpridos, acabaria por importar numa responsabilidade objectiva. Se pensarmos que mesmo relativamente a aparelhos novos não há garantia de não terem defeito, o Réu, para tomarmos esse exemplo, teria de se manter perto de todos os aparelhos para verificar que eles não pegariam fogo. Se pensarmos em alguém que tem uma casa com 20 anos de idade, essa pessoa não poderia abandonar a casa para cumprir com rigor o seu dever de a vigiar, de modo a que não ocorressem danos: - a partir de “x” anos o proprietário tem de mudar os canos (norma que não se encontra em lado algum) ou então tem de ficar em casa para garantir que não há inundações que venham a afectar os vizinhos. Por esta impossibilidade, o acórdão citado prossegue com mais uma ideia importante:
- “Ora, uma tal solução não pode ser contrariada através da adopção de critérios de tal modo rigoristas no que concerne à ilisão da presunção de culpa que acabem por produzir resultado idêntico ao que o legislador pretendeu evitar, o que se traduziria, em concreto, na responsabilização do proprietário dos bens móveis ou imóveis (maxime árvores) pelo respectivo risco.
5. A apreciação das condutas (acções ou omissões) dos agentes, designadamente dos proprietários do imóvel de que emergem os danos não pode ser feita num plano puramente abstracto, devendo incidir sobre as circunstâncias concretas que envolveram o sinistro. E para a eventual exoneração da sua responsabilidade, não devem ser descuradas sequer as dificuldades de demonstração das específicas condições que se verificavam na ocasião do sinistro.
(…)
Por isso, na apreciação dos deveres de vigilância ou de guarda que recaem sobre os onerados, assim como na ponderação dos efeitos decorrentes de circunstâncias de ordem externa causalmente ligadas ao sinistro, os Tribunais não podem exigir dos interessados aquilo que é humanamente inexigível, bastando apreciar os factos apurados à luz da experiência comum”.
Digamos então que para não aportar a um resultado de responsabilidade pelo risco – que a lei não preveniu para este tipo de casos, antes reservou para outros em que o perigo é mais evidente e também, de algum modo, mais inevitável, como o caso da condução automóvel ou do “transporte” de energia eléctrica ou gás (o que não é manifestamente aqui o caso) – os deveres de vigilância do proprietário de coisa imóvel exigíveis não podem exceder o que seja mediana e humanamente razoável, medida ou critério que se estende à apreciação do cumprimento do dever de vigilância.
Ora, indo agora ao caso dos autos, a verdade é que existem milhares de edifícios muito mais antigos que o dos autos, não existe uma norma expressa sobre a validade ou duração das instalações eléctricas nem das aparelhagens eléctricas, não existe sequer uma recomendação técnica de revisão de aparelhos em determinados prazos, e no contexto dum apartamento dos anos 90, equipado que fosse por instalação eléctrica e aparelhagens desse época (e na reapreciação dos factos abordámos a improbabilidade da aparelhagem ser tão antiga), o dever de suspeita de que essa simples idade das instalações e equipamentos pudesse fazer surgir, a qualquer momento, um incêndio, em bom rigor nem se afigura muito razoável. Numa instalação eléctrica normal (isto é, embutida nas paredes), os fios estão protegidos e não bastam vinte e poucos anos para que se deteriorem, sobretudo quando estamos em presença duma casa de férias e não de um imóvel de utilização permanente. Depois, sendo verdade que as aparelhagens estão mais sujeitas a deterioração, também não é verdade que o proprietário da casa tenha de examinar minuciosamente, ao menos de tempos a tempos, o estado delas, até porque salvo casos claros de cablagens cortadas, fios descarnados e similares, que a normal prudência aconselha a imediatamente por de lado, o normal é não se ver nada de anormal quando se está ou se utiliza a casa. Por outro lado, há também uma noção, que importa importar para a apreciação da ilisão da presunção de culpa, de que determinado tipo de aparelhos, pela sua própria dimensão reduzida, têm o perigo, no máximo, de gerar um pequeno incêndio, facilmente dominável. 
Em vista dos factos provados sobre o estado da instalação e aparelhagem, no fundo também sobre o estado visível das mesmas, a partir do qual se poderia suscitar no proprietário a dúvida que o obrigasse a implementar o dever de cuidado e vigilância, o que tais factos relevam é um cenário de normalidade que não convoca dúvida, ou seja, em face de tais factos, o proprietário, com alguma razoabilidade, poderia confiar que a televisão não se iria incendiar a qualquer momento.
Cremos assim que se mostra ilidida a presunção de culpa, pelo que, ainda que por razões jurídicas algo diversas, haverá de confirmar a sentença recorrida.
Em consequência, improcede o recurso.
Tendo nele decaído, é a Recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso e em consequência, ainda que com fundamentação jurídica diversa, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2019

Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
Manuel Rodrigues

[1] Sublinhados nossos.
Decisão Texto Integral: