Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1633/15.6PFLSB.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: FURTO QUALIFICADO
PROVAS
PROVA POR IMPRESSÕES DIGITAIS
PERÍCIA
PRESUNÇÕES
SILÊNCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1.– Sendo a única prova em julgamento a detecção de um vestígio palmar na parte exterior da montra do estabelecimento assaltado, tal apenas demonstra que, antes do crime, a hora e por razões desconhecidas, o arguido esteve no local.
Nada mais se pode inferir ou presumir desse facto e sequer que o arguido teria de dar quaisquer explicações da razão desse vestígio ali se ter encontrado.
2. O uso do direito ao silêncio proíbe o aproveitamento contra si da sua não explicação da existência daquele vestígio palmar.

(Sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – 5ª SECÇÃO (PENAL)


I-RELATÓRIO

1.1 Por sentença de 27 de Março de 2017 em processo comum e com intervenção de tribunal singular, o arguido F.M., ora recorrente, foi condenado nos termos seguintes:

“I.RELATÓRIO:
O Ministério Público deduziu acusação e requereu julgamento, em processo comum e com intervenção de Tribunal Singular, de:
F.M.,
imputando-lhe, em autoria material, a prática de factos que, em seu entender, integram um crime de furto qualificado, p.p. pelos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, ns.º 1, al. f) e 2, al. e), ambos do Cód. Penal, consubstanciados nos factos descritos na acusação formulada a fls. 61 a 66, que aqui se dá por reproduzida.
(…)

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa, com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:
 1. No dia 18 de Outubro de 2015, pelas 06H00, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado “P., Ld.ª”, destinado à venda de produtos em pele, sito na Rua de Santa Justa.
2. Uma vez aí, junto à montra do estabelecimento, o arguido, munido de uma pedra, desferiu uma pancada no vidro da montra, partindo-o.

3. Em seguida, o arguido entrou pela montra, no interior do estabelecimento, de onde retirou e levou os seguintes objectos:
- 1 necessaire com a referência 011245/1, no valor de € 43,00;
- 1 necessaire com a referência 0113377/2, no valor de € 47,50;
- 1 bolsa chinelos com a referência 01BC, no valor de € 15,00;
- 1 bolsa cintura com a referência 0515116/1, no valor de € 31,00;
- 1 chapéu de chuva com a referência 082518/1, no valor de € 20,58;
- 1 chapéu de chuva com a referência 080915/2, no valor de € 18,27;
- 1 porta cartões alumínio com a referência 16CASE2, no valor de € 20,40;
- 1 porta cartões alumínio com a referência 16CASE1, no valor de € 15,70;
- 1 porta cartões alumínio com a referência 16CASE1, no valor de € 15,70;
- 1 porta cartões com a referência 010729/1, no valor de € 10,70;
- 1 porta cartões com a referência 010691, no valor de € 9,90;
- 1 porta cartões com a referência 010358/1, no valor de € 7,40;
- 1 porta moeda com a referência 010675/1, no valor de € 10,05;
- 1 carteira com a referência 169184, no valor de € 19,00;
- 1 porta cartões com a referência 010708/1, no valor de € 19,00;
- 1 porta cartões com a referência 010708/1, no valor de € 9,55;
- 1 porta moedas com a referência 19732, no valor de € 7,00;
- 1 carteira com a referência 19278C, no valor de € 13,00;
- 1 porta moeda com a referência 196262, no valor de € 11,00;
- 1 porta cartões com a referência 010164/3, no valor de € 18,10;
- 1 carteira com a referência 010715/1, no valor de € 12,10;
- 1 carteira com a referência 010704/1, no valor de € 21,40;
- 1 porta notas com a referência 196013, no valor de € 13,00;
- 1 porta telemóvel com a referência 19313, no valor de € 8,00;
- 1 cinto com a referência 19902, no valor de € 14,50;
- 1 filofax com a referência 010149, no valor de € 6,50;
- 1 carteira com a referência 010714/1, no valor de € 18,20;
- 1 carteira com a referência 196184, no valor de € 19,00;
- 1 carteira com a referência 010702/1, no valor de € 26,50;
- 1 carteira com a referência 010700/1, no valor de € 25,70;
- 1 carteira com a referência 010701/1, no valor de € 24,50;
- 1 carteira com a referência 010706/1, no valor de € 27,10;
- 1 carteira com a referência 010706, no valor de € 27,10.
4. Do interior da caixa registadora, o arguido retirou a quantia de € 100,00 (cem euros), que constituíam o fundo de caixa.
5. Na posse dos referidos objecto e quantia, perfazendo o montante global de € 686,75, o arguido abandonou o local, fazendo-os coisa sua.
6. O arguido deixou impressões digitais no vidro da montra, onde apoiou a palma da mão direita.
7. O arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar dos objectos e valores acima descritos, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que, ao apoderar-se destes, actuava contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário.
8. Sabia o arguido que não estava autorizado a entrar naquele espaço e, ainda assim, agiu do modo descrito.
9. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta penalmente punível.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:
10. O arguido possui, como habilitações literárias, o 9.º ano de escolaridade, que concluiu, com a idade de 19 anos, na Escola Secundária S., em Queluz. No seu percurso escolar, o arguido registou três reprovações, que tiveram lugar, uma no quarto ano de escolaridade, e duas no quinto ano de escolaridade.
11. Em termos profissionais, o arguido já trabalhou nas actividades de reposição de painéis, de montagem de centros de inspecções, como vidraceiro e como operador de call center.
12. Actualmente, e desde há cerca de um ano, o arguido exerce a actividade profissional de empregado de mesa, na marisqueira “ C.A.”, sita na Av.ª do Brasil, em Lisboa, sendo o seu horário laboral, de 3.ª-feira a domingo, das 12H00 às 15H30 e das 18H00 às 24H00, auferindo um salário mensal não inferior a € 557,00.
13. O arguido vive sozinho, em casa arrendada, pagando a quantia mensal de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) de renda de casa.
14. O arguido não tem condenações averbadas no respectivo registo criminal.
*

B)– MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Da discussão da causa resultaram provados todos os factos constantes da acusação, pelo que inexistem factos não provados.
*

C)– MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nos termos do art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei, consagrando o Código de Processo Penal a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
O arguido F.S. remeteu-se ao silêncio, relativamente ao objecto da acusação, direito que processualmente lhe é conferido, de maneira que não contribuiu, em nada, para o apuramento dos factos, pelo que, no caso vertente, a convicção do tribunal, no que respeita à factualidade dada como provada, se formou com base na apreciação global e crítica da prova produzida nos autos, mormente a prova documental e pericial, e nos depoimentos das testemunhas F.F., agente da PSP, J.N., vigilante/segurança da empresa “Securitas”, e V.C., proprietário do estabelecimento comercial “P., Ld.ª”, que esclareceram as circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorreu o crime objecto dos presentes autos, e a forma como o assaltante acedeu ao interior do estabelecimento, tendo a testemunha V.C. dado conta ao tribunal dos objectos subtraídos e respectivo valor, tendo, neste particular, corroborado a conteúdo da listagem de artigos furtados e respectivo valor, junta a fls. 10 dos autos, tendo explicitado que o seguro o ressarciu, na íntegra, dos prejuízos que sofreu em resultado do crime de furto que o vitimou. Todas as testemunhas demonstraram possuir conhecimento directo a respeito dos factos sobre os quais foram inquiridas, e depuseram de forma isenta, credível e, no essencial, coincidente, logrando, desta forma, convencer o tribunal da veracidade das suas declarações.
No que respeita à autoria do crime de furto em análise, o tribunal sedimentou a sua convicção no relatório de inspecção judiciária, junto a fls. 13 a 16, e no relatório de exame pericial, que integra fls. 22 a 27, de onde resulta que o vestígio palmar recolhido na face externa do vidro da montra do estabelecimento “P., Ld.ª” se identifica com parte do quirograma correspondente à região superior da palma da mão direita do ora arguido, o que demonstra, de forma indubitável, que, em momento anterior à ocorrência do assalto, o ora arguido apoiou a sua mão direita na face externa do vidro da montra do estabelecimento, sendo certo que tendo-se o arguido, na audiência de julgamento, remetido ao silêncio, não adiantou qualquer explicação para a existência do aludido vestígio lofoscópico. A este respeito, importa vincar que fazendo o arguido prevalecer em audiência o seu direito ao silêncio, essa escolha tem consequências: se com essa escolha não pode ver juridicamente desfavorecida a sua posição, pois o silêncio não pode ser valorado como indício ou presunção de culpa, deixa de poder ser beneficiado em virtude de uma eventual confissão, e pode mesmo ser prejudicado de um mero ponto de vista fáctico, quando do silêncio derive o definitivo desconhecimento ou desconsideração de circunstâncias que serviriam para justificar ou desculpar, total ou parcialmente, a infracção.
Ora, em face do exame de perícia lofoscópica, documentos juntos aos autos, depoimentos das testemunhas e da sua conjugação com as regras da experiência comum, dúvidas não restaram ao tribunal da prova de toda a factualidade apurada, enunciada nos pontos 1. a 6. da Matéria de Facto Provada.
O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 7. a 9., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que o arguido F.S. agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
Os factos dos pontos 10. a 13. resultaram provados, tendo por base as declarações do arguido, quanto às respectivas condições pessoais e laborais, que se consideraram credíveis, não sendo postas em causa, sendo certo que, apesar de o arguido se ter recusado a responder quando questionado a respeito do montante do salário por si auferido, o tribunal considerou como demonstrado que tal salário se computa em valor não inferior a € 557,00, valor actual do salário mínimo nacional, sopesando a natureza da actividade profissional por si exercida e o respectivo horário de trabalho, trabalhando o arguido seis dias em cada semana, num total de nove horas e trinta minutos em cada dia de trabalho. A ausência de antecedentes criminais do arguido mostra-se certificada a fls. 94, com data de emissão de 09/03/2017.
(…)

IV.DECISÃO
Assim, pelo exposto, e tendo em conta as disposições legais consideradas, o tribunal julga a acusação do Ministério Público procedente, por provada, e, consequentemente:

A) Condena o arguido F.M., pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e), por referência ao art. 202.º, als. d) e e), todos do Cód. Penal, e art. 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23/09, e 73.º, ns.º 1, als. a) e b) e 2 do Código Penal, na pena especialmente atenuada de 1 (um) ano de prisão;
B) Nos termos dos artigos 43.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, decide substituir a pena de 1 (um) ano de prisão, cominada ao arguido, a que é feita referência em A), por 240 (trezentos e sessenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (sete euros), o que perfaz o montante global de 1920,00 (mil novecentos e vinte euros).”


1.2–Desta decisão  recorreu o arguido dizendo em conclusões da motivação apresentada:

A)Da Condenação: Nos termos da douta sentença proferida, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts 203.°, n.° 1 e 204.°, n.° 2, ais. a) e e), todos do do Código Penal e art 4,° do DL n° 401/82, de 23/09, e 73°, n.°s 1, ais. a) e b) e 2 de Cod. Penal, na pena especialmente atenuada de 1 (um) ano de prisão, substituída por 240 dias dias de multa, à razão diária de 8,00€, perfazendo o montante global de 1.920,00€. Mais fois o arguido condenado nas custas do processo, as quais foram fixadas e, 2 Ucs.
B) Salvo o devido respeito, que é grande, o arguido discorda da sua condenação, visto que considera que não foi produzida prova suficiente e necessária para tal condenação
C) No apuramento da factualidade provada o Tribunal formou a sua convicção com base no relatório de inspecção judiciária, junto a fls 13 a 16, e no relatório de exame pericial, que integra fls 22 a 27, de onde resulta que o vestígio palmar recolhido na face externa do vidro da montra do estabelecimento "P..Lda" se identifica como parte do quirograma correspondente à parte superior da palma da mão direita do arguido, o que demonstra que em momento anterior à ocorrência do assalto, o arguido apoiou a sua mão direita na face externa do vidro da montra do estabelecimento.
D) A douta sentença reconhece que o arguido exerceu o direito ao silêncio e que não deu qualquer explicação para a existência do referido vestígio, reconhecendo também que o exercício do direito ao silêncio nunca o poderá prejudicar ou desfavorecer judicialmente a sua posição, pois o silêncio não pode ser valorado como indício ou presunção de de culpa.
E) Refere a douta sentença que face ao exame de perícia lofoscópica, documentos juntos aos autos, depoimentos das testemunhas e da sua conjugação com as regras da experiência comum, dúvidas não restaram ao tribunal da prova de toda a factualidade apurada, enunciada nos pontos 1 a 6 da matéria de facto provada.
F) Mais refere a sentença que o tribunal se socorreu de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes nos pontos 7. a 9., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos e que o arguido terá agido com vontade livre e consciente, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
G) O arguido não pode concordar com a matéria de facto dada como provada, nem muito menos concorda com a ponderação efectuada dos elementos probatórios e no cumprimento da alínea a) do n° 3 do artigo 412° do CPP o arguido refere expressamente que não pode concordar com os pontos 1., 2., 3., 4., 5., 6., 7., 8. e 9. da matéria de facto, porquanto os mesmos não encontram fundamento suficiente na prova realizada em sede de Audiência de Julgamento, senão vejamos:

H) Relativamente à prova testemunhal, ressalta o facto de que nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou a ocorrência do crime, nem viu ninguém a praticá-lo, pelo que apenas prestaram depoimentos sobre o contacto que tiveram com a cena do crime em momento posterior à sua ocorrência, pelo que, nunca poderá a prova testemunhal ser invocada para efeitos de imputação objectiva da prática de qualquer crime ao arguido.

I) Relativamente à prova documental analisada em sede de audiência, constata-se que a única prova que relaciona o arguido com o local onde ocorreu o crime é a impressão palmar que foi recolhida na face exterior do vidro da montra da loja furtada.

J) Ou seja, existe uma prova em como nalgum momento anterior à ocorrência do crime, o arguido terá estado no exterior da loja, na via pública e terá apoiado a sua mão na montra.

K) Da análise conjugada do elementos supra, fácil é de concluir que, aparte a certeza de que o arguido, em momento anterior à detecção do crime, esteve na via pública, junto à loja e se aproximou desta e tocou na montra, referia-mos, aparte esse facto, inexistem quaisquer evidências de que o arguido se tenha introduzido no estabelecimento ou tenha furtado o que quer que seja.

L) De facto respeitosamente se invoca, que a sentença ora em crise fundou toda a motivação da prova da matéria de facto numa inferência, que tem por base a existência de uma impressão palmar no exterior da loja, porém e porque o princípio do in dúbio pro reu assim o exige, resulta óbvio que é impossível considerar que alguém que esteve na via pública, junto ao exterior de um local assaltado, apenas com base nessa evidência e perante a total ausência de provas que o liguem ao que ocorreu no interior da loja, possa ser presumido como autor material de um furto ocorrido naquele local.

M) Pelo que, em vez da redacção actual e, quando muito: Os pontos 1., 2., 3., 4. e 5. da matéria dada como provada deverão ser dados como liminarmente não provados
N) Já o ponto 6., da matéria de facto dada como provada, deverá passar a ter a seguinte redacção:
“6 - Foram encontradas impressões digitais da palma da mão direita do arguido na face exterior do vidro da montra (no lado exposto à via pública).”
O) Quanto aos pontos 7., 8., e 9., . da matéria dada como provada, também deverão ser dados como liminarmente não provados, por resultarem de inferências sobre a subjectividade de actos não provados objectivamente.
P) Termos em que, sendo a matéria de facto justamente alterada, como se alega, deverá o Arguido ser absolvido nos presentes autos, porquanto inexiste a possibilidade de lhe imputar objectivamente a prática dos actos pelos quais foi acusado.
Q) Da Contradição Insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - Art. 410.º n.° 2 al. b) do CPP:

R) Conforme resulta da análise da sentença, fácil é de perceber que a mesma utiliza como fundamento para a decisão factos que não são objectivamente imputáveis ao arguido, ou seja, não basta que se prove que o arguido esteve junto ao local que foi assaltado, para com base nesse facto entender que também fica provado que o arguido esteve no interior desse local, ou que praticou um qualquer crime.

S) O Código Penal é claro e a sua tipicidade é objectiva, porquanto só pode ser condenado quem veja reunir contra si, em sede de julgamento, as provas necessárias para que objectivamente e para além de duvidas razoáveis fique demonstrada a sua autoria na prática do crime.

T) Termos em que, deverá o Arguido ser absolvido nos presentes autos, porquanto, inexiste a possibilidade de lhe imputar objectivamente a prática de qualquer crime.”

1.3 Em resposta disse o MºPº, em síntese:

O recurso do arguido não merece provimento em qualquer das suas vertentes, pelo que deverá manter-se integralmente a douta sentença recorrida.

1.4 Admitido o recurso e remetido a esta Relação, o MºPº emitiu parecer no sentido de  se manter a decisão negando-se pois provimento.

1.5 Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.

II CONHECENDO

2.1 O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP ([1]).
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis  no âmbito dos poderes desta Relação.

2.2 Está em  discussão para apreciação , em síntese,  o seguinte  conjunto de questões:
O ARGUIDO FOI O AUTOR DO FURTO OU AS IMPRESSÕES PALMARES ENCONTRADAS NO VIDRO DA MONTRA DO ESTABELECIMENTO ASSALTADO NÃO IMPÕEM, SEM MAIS, QUE SE CONCLUA TER SIDO ELE AUTOR OU COMPARTICIPANTE DOS FACTOS?

2.3 A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

O recorrente alega vício de contradição entre os fundamentos e a decisão.
Não tem razão. O vício seria de contradição se o tribunal a quo tivesse avançado para uma decisão através de premissas erradas e contraditórias. A premissa de convicção baseou-se em prova que considerou suficiente. Logo, a decisão de condenação foi coerente com essa premissa.
Mas de diferente questão se tratará quando essa prova, sendo insuficiente, leve a uma condenação ou, se suficiente, a uma absolvição. Aí estaremos perante erro de julgamento, e se notório, perante um vício diferente (o de erro notório) .
O raciocínio em que o tribunal se colocou não foge necessariamente a regras da experiência mas ficou limitado  numa visão pouco ampla das consequências do direito ao silêncio do arguido.
É o que veremos de seguida.
No ordenamento jurídico português processual penal e constitucional, o arguido é tido como sujeito processual e não como objecto de prova, sendo assim considerado por ser uma pessoa dotada de deveres mas também de verdadeiros direitos de defesa, garantidos na nossa Constituição.
De entre eles assume  relevo de limite probatório  fundamental o direito ao silêncio. Garantido no n.º 1 do artigo 32.º da CRP e concretizado na alínea d) do art.º 61.º do CPP, não pode ser valorado negativamente e utilizado contra quem dele se socorrer, sob pena de estarmos perante um método de obtenção de prova proibido e consequentemente de uma prova nula.
Esta garantia concede ao arguido legitimidade para não responder ou para não fornecer provas, sempre que destas resultem elementos auto-incriminatórios,  não é obrigado a contribuir para a sua auto-responsabilização nem obrigado a produzir prova contra si mesmo. Assim, pode aquele não responder às perguntas que lhe são colocadas no âmbito de uma investigação.
Tal direito ao silêncio não é absoluto, pelo que, de acordo com os critérios de proporcionalidade previstos no artigo 18.º da CRP, conhece uma limitação quer em matéria de identificação pessoal quer em matéria de antecedentes criminais (mas, embora na fase de julgamento se veja legalmente obrigado a responder sobre a sua identificação pessoal mas já não sobre os seus antecedentes criminais, tal como resulta do artigo 342.º do CPP.
O silêncio no direito processual penal, nessas circunstâncias, não pode ser valorado negativamente e utilizado contra quem dele se socorrer, sob pena de estarmos perante um método de obtenção de prova proibido e consequentemente de uma prova nula. Euma das consequências da nulidade, se utilizada na decisão condenatória, poderá ser efectivamente a absolvição do arguido.
Por outro lado o arguido sabe que o direito ao silêncio é reconhecido na sua plenitude no processo  penal, quando sente que a liberdade de declarações é inviolável e respeitada na íntegra.
Segundo CATARINA VEIGA, a liberdade de declarações “enquanto emanação normativa da dignidade humana e do livre desenvolvimento da personalidade, este princípio ou direito de defesa não comporta descontinuidades, sequer graduações, em função das sucessivas  fases do processo ou da intervenção das sucessivas instâncias formais” (in “Os antecedentes criminais do arguido  no processo penal, Coimbra:Almedina, 2000, p. 43.).
Por sua vez, na opinião de FRANCISCO GARRETT “ o silêncio não só espelha arrependimento como gera quase sempre no subconsciente do juiz uma presunção da existência de culpa” (in FRANCISCO DE ALMEIDA GARRETT, Sujeição do arguido a diligências de prova e outros temas, Porto: Fronteira do caos Editores Lda., 2007, p. 37)
Partindo do pressuposto que se uma pessoa é inocente irá sempre contrapor a acusação, tentando demonstrar a verdade dos factos, contudo, sabemos que também pode ser adoptado como uma “estratégia” de defesa.  ( idem, aut.citº- Sujeição do arguido a diligências de prova e outros Temas , Porto: Fronteira do caos Editores Lda., 2007, p. 37. )

Ora, descendo ao caso concreto que nos ocupa:

O recorrente considera que a detecção de um vestígio palmar na montra do estabelecimento assaltado sem outra prova apenas demonstra que ele, antes do crime, a hora e por razões desconhecidas, esteve no local e apôs no vidro da montra a mão. Nada mais se pode inferir desse facto e sequer o arguido teria de dar quaisquer explicações da razão desse vestígio ali se ter encontrado.

Por um lado, o silêncio do arguido não o pode desfavorecer. Mas no caso desfavoreceu-o, pois que o tribunal considerou que ele teria de poder ter explicado a razão do vestígio palmar ter sido encontrado. Como se remeteu ao silêncio, logo foi tido como culpado.

É verdade que o senso comum, cujo direito do arguido ao silêncio não reveste sociologicamente nenhum tipo de preocupação jurídico-constitucional, levaria a essa mesma conclusão.

Mas se o arguido esteve ali no local por outras razões? Imagine-se por exemplo que não as queria revelar para não comprometer a sua vida privada ou alguém seu amigo? E faz dele um assaltante? O senso comum diz que faz. A lei em vigor diz que não faz. Trata-se de um crime punível. O arguido não tinha que explicar fosse o que fosse. E até podia ter estado envolvido como cúmplice, mero auxiliar do crime  ou simplesmente ter visto algo que não quis comprometer ninguém das suas relações.

Ou, mesmo até, podia ter sido ele a partir a montra, entrar no estabelecimento e levar consigo os objectos. Ou então ter previamente passado no local, sinalizado a situação e permitir que outros levassem a cabo o assalto. Podia ter sido mero receptador ou simplesmente nem sequer se lembrar de ali ter estado. O direito ao silêncio tem destas consequências, talvez infelizes, mas é o direito que temos. O tribunal presumiu mal, muito para além do que se lhe permitiria presumir.

Existem demasiadas variáveis  de acontecimento possíveis, todas elas também com possível suporte em regras da experiência.

Mas, na dúvida, e esta é mais do que razoável, usou-se em demasia dos efeitos negativos do direito ao silêncio.

Consequentemente, o arguido deveria ter sido absolvido por via de insuficiência de prova concludente  e cabal apenas baseada na impressão digital detectada no exterior do vidro da montra do estabelecimento assaltado.

Os factos que o colocaram como autor do assalto e no plano intencional doloso e da posse de consciência de ilicitude e liberdade de acção terão de ser havidos como não provados.

IIIDECISÃO

3.1 Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e, face às dúvidas colocadas, absolve-se o arguido da imputação criminal que lhe foi dirigida na sentença.



Lisboa,  24 de Outubro   de  2017

                                                          
(texto elaborado em  suporte informático , revisto e rubricado pelo relator – (artº 94º do CPP)



Os Juízes Desembargadores
                                                    
(Agostinho Torres)                                                          
(João Carrola)



[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95
[2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de  Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda  jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.