Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6713/14.2T8ALM.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
RELAÇÃO OBRIGACIONAL MÚLTIPLA E COMPLEXA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Nos termos do artigo 410º nº 1 do Código Civil, contrato promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato.

- Do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre autora e réus nasceu uma relação obrigacional múltipla e complexa, resultando para ambos deveres jurídicos que devem ser cumpridos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

MA intentou acção contra PD e CG, pedindo que a acção seja acção julgada totalmente procedente e, em consequência:
a) Deverá ser declarada os efeitos da declaração negocial, através do cumprimento do direito à execução específica, condenação dos Réus para cumprimento do contrato prometido, produzindo-se os mesmos efeitos da declaração negocial do faltoso, o qual deverá imediatamente proceder escritura de compra e venda do imóvel, mediante o pagamento do preço em falta acordado, o qual perfaz o valor de €236.856,87 (duzentos e trinta e seis mil oitocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e sente cêntimos)
b) Contudo, assim não se entenda, estamos perante um incumprimento definitivo por única e exclusiva responsabilidade dos réus, pelo que, os mesmos perderão, necessariamente a favor da Autora, o princípio de pagamento, entregue no momento da celebração do contrato promessa em 15/02/2007, no valor de €30.000,00 (trinta mil euros).
c) Devendo, ainda proceder ao pagamento de uma quantia indemnizatória pelos prejuízos causados pelo uso e fruição do imóvel sem a devida compensação, pela desvalorização do imóvel, que com o incumprimento definitivo do contrato, não deverá a Autora ter direito a receber dos réus uma indemnização, inferior a 90.000,00 (noventa mil euros), diferença entre o valor do imóvel na actualidade face ao preço acordado no contrato promessa.
d) Por fim, deverão ser condenados em caso de não exercício da execução especifica, contratual e expressamente convencionada pelas partes, deverão os Réus proceder, simultaneamente, à entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens, com entrega das respectivas chaves à Autora, devendo ainda suportar todos os danos causados decorrentes de má conservação do mesmo, a apurar o seu valor em sede de execução de sentença.
Alega, em síntese, que prometeu vender aos RR., que prometeram comprar, o imóvel sito na Rua AA, Foros de Amora, freguesia de Amora, concelho do Seixal, pelo preço de € 266.856,87, em documento escrito datado de 15.02.2007. Os RR entregaram, a título de sinal, € 30.000,00, ficando de entregar o remanescente na data da celebração da escritura.
A celebração da escritura devia ter lugar no prazo máximo de 120 dias, após a notificação pela autora de que a escritura de divisão de coisa comum do prédio se encontrava devidamente registada na Conservatória do Registo Predial do Seixal, e de que a licença de utilização havia sido emitida pela Câmara Municipal do Seixal, devendo a autora enviar, juntamente com aquela notificação, os documentos discriminados no contrato promessa.
Com a outorga do contrato promessa foram entregues aos RR as chaves do imóvel, passando os mesmos a utilizá-lo como habitação própria e permanente. A autora notificou os RR para procederem à marcação da escritura em 14.03.2014 e em 27.05.2014, tendo nesta sequência os RR comunicado à autora, em 20.06.2014, que se recusavam a proceder à marcação da escritura enquanto o imóvel não passasse a ter classificação energética B, mais invocando a existência de humidades, por falta de isolamento térmico, o que diminui a qualidade de vida dos habitantes, em particular o filho asmático dos RR. Os RR só invocaram defeitos de construção do imóvel quando foram instados ao cumprimento do contrato promessa.
Os réus contestaram, sustentando que o incumprimento do contrato promessa é imputável à autora, pelo que pugnam pela sua absolvição do pedido.
Pedem ainda, em sede de reconvenção, a condenação da autora na restituição do sinal em dobro, no valor de € 60.000,00, acrescidos de juros de mora desde 02.12.2014 até integral pagamento, contabilizando-se os juros de mora vencidos em € 2.156,71.
Pedem ainda que devem os réus/reconvintes ser reconhecidos como legítimos titulares do direito de retenção sobre a moradia dos autos, até a autora, reconvinda proceder à restituição do sinal em dobro.
Alegam, em substância, que o imóvel padece de defeitos de construção, que comunicaram oportunamente, de forma verbal, à autora, mas que esta se recusou a reparar de imediato, comprometendo-se, contudo, a fazê-lo até à data da celebração da escritura. Referem ainda que perante a falta de eliminação desses defeitos no prazo por si fixado, perderam o interesse na celebração do contrato prometido, tendo declarado à autora a resolução do contrato promessa, com fundamento em incumprimento definitivo por parte desta.
A autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções invocadas na contestação e da reconvenção, com fundamento em que os defeitos alegados pelos RR se devem à falta de manutenção e a elementos naturais exteriores.
Mais invocam a excepção peremptória da caducidade.
Os RR responderam à excepção peremptória da caducidade invocada na réplica, pugnando pela sua improcedência.
Foi proferida SENTENÇA nos seguintes termos:
“O Tribunal decide julgar a acção parcialmente procedente, e a reconvenção improcedente, e em conformidade:
1. Declara resolvido o contrato promessa celebrado entre as partes por incumprimento definitivo do mesmo pelos RR. PD e CG;
2. Declara perdido a favor da A. MAo sinal prestado pelos RR., no valor de € 30.000,00;
3. Absolve a A. do pedido dos RR. de devolução do sinal em dobro;
4. Absolve os RR. dos pedidos indemnizatórios formulados pela A.;
5. Condena os RR. a restituírem o imóvel objecto do contrato promessa à A., livre e devoluto de pessoas e bens”.
Não se conformando com a douta sentença, dela recorreram os réus, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1. O Tribunal a quo desconsiderou, sem fundamento bastante, o teor do depoimento prestado pela testemunha AS, funcionária bancária, que revelou conhecimento directo sobre a factualidade alegada no n.º 60 dos Factos Não Provados;
2. Ao contrário da fundamentação de facto da douta sentença impugnada, a testemunha AS descreveu e justificou pormenorizadamente os motivos que levariam à impossibilidade de os Apelantes contratarem o financiamento bancário para aquisição do imóvel dos autos;
3. AS afirmou, de modo objectivo e convincente, que as anomalias patentes na moradia obstavam ao financiamento bancário, sendo que, conforme resultou provado (Cfr. Facto Provado n.º 59), para obterem a aprovação do empréstimo, sempre teria o imóvel de ser avaliado pelo Banco, na medida em que o mesmo seria dado como garantia do empréstimo;
4. Ao contrário da fundamentação de facto da douta sentença impugnada, o declarado pela testemunha AS não poderá ser tido por um mero juízo opinativo de alguém “ sem qualquer formação ou experiência na área ”, pois a testemunha foi inequívoca ao relatar em juízo que avaliou “ a casa porque na altura eu estava a trabalhar nos serviços centrais da Caixa Geral de Depósitos e a PG pediu-me uma opinião acerca de um empréstimo. Na altura, eu estava a fazer as recuperações e tinha alguns colegas que estavam a trabalhar na parte da aprovação dos créditos ”;
5. Ou seja, a testemunha ASnão só era funcionária bancária como, também, trabalhava com os responsáveis pela “ parte da aprovação dos créditos ”;
6. A testemunha AS foi concisa ao afirmar que os Apelantes “ ou faziam as obras antes ou então esse crédito ” não seria obtido;
7. Tanto que resultaram provadas uma miríade de anomalias e deficiências de construção, após realização da perícia dos autos (Cfr. Factos Provados n.os 28 a 43), sendo que as mesmas determinaram uma desvalorização do imóvel, pois “ em 2016, o imóvel foi avaliado em € 167.658,50, tendo sido apontadas como causas da desvalorização da moradia o facto do mercado imobiliário estar em baixa e o facto de a casa necessitar de obras ” (Cfr. Facto Provado n.º 70);
8. A avaliação bancária, que, como decidido pelo Tribunal a quo, seria necessária para a obtenção do empréstimo, revelaria que o imóvel objecto do contrato teria um valor (€ 167.658,50 – Cfr. Facto Provado n.º 70) que é substancialmente inferior ao valor do financiamento pretendido pelos Apelantes, que ficaram de entregar a restante parte do preço, no montante de € 236.856,87 (duzentos e trinta e seis mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos) no dia da celebração da escritura de compra e venda (Cfr. Factos Provados n.os 5 e 6);
9. Dizem-nos as regras da experiência comum e da normalidade da vida, que tal facto só poderia determinar uma consequência possível, ou seja, a recusa de qualquer financiamento bancário em qualquer instituição bancária;
10. Na verdade, nenhum banco aceitaria financiar os Apelantes dando estes como uma garantia um imóvel de valor inferior ao capital mutuado, sendo tal depreciação do valor do imóvel também resultante das anomalias e deficiências construtivas (Cfr. Facto Provado n.º 65);
11. O que foi sobejamente demonstrado no depoimento da testemunha AS; 12. Logo, estando demonstrado que os Apelantes encetaram diligências para obtenção do financiamento bancário (tendo, para o efeito, abordado a funcionária bancária AS), não poderia, pois, o Tribunal a quo considerar que os Apelantes não tentaram “ obter acesso ao crédito para pagamento do preço remanescente ”;
13. Neste sentido, entendem os Apelantes que, face à prova produzida, nomeadamente atendendo-se às regras da experiência comum, aos Factos Provados n.os 28 a 43, 58, 59, 65 e 70 e ao depoimento da testemunha AS– para tanto reapreciando-se a prova gravada -, deverá considerar-se como provada a matéria vertida no artigo 60.º dos Factos Não Provados (artigo 73.º da Contestação) nos seguintes termos: - Face ao estado de degradação em que se encontra o imóvel, nenhum Banco aceitaria efectuar o empréstimo;
14. E, em consequência, atendendo-se, também, às regras da experiência comum, aos Factos Provados n.os 27 a 29, 32 a 45, 49, 51 e 58 e ao depoimento da testemunha AS– para tanto reapreciando-se a prova gravada – sempre deverá considerar-se como não provada a matéria vertida no n.º 21 dos Factos Provados (artigo 29.º da PI);
15. Em razão das anomalias verificadas no imóvel, todas elas denunciadas, em tempo e oportunamente, pelos Apelantes, à Apelada, que se recusou a repará-las (Cfr. Factos Provados n.os 44 e 50), considerou o Tribunal a quo, e bem, que “estamos em presença de uma situação que traduz cumprimento defeituoso, pois a moradia prometida vender não apresenta as qualidades que deveria ter ”;
16. Sucede, porém, que a douta sentença recorrida contém uma inflexão que, cremos, se mostra inquinado por erro de direito;
17. É que, apesar de considerar a verificação de uma causa legítima de invocação da excepção do não cumprimento, o Tribunal a quo, por entender que os Apelantes estão presentemente impossibilitados de celebrar o contrato prometido por falta de financiamento bancário, conclui que o seu intuito é o não cumprimento do contrato por não terem tentado obter acesso ao crédito para pagamento do preço remanescente e, por isso, considera o incumprimento a si imputável;
18. Na verdade, verifica-se o erro de direito da douta sentença recorrida quando aí se conclui que os Apelantes “agiram com a intenção de não celebrar o contrato prometido, por causa dessa situação [por falta de financiamento bancário]”;
19. Em erro de julgamento, descurou o Tribunal a quo que os Apelantes, após a tradição do imóvel, que foi destinado à sua habitação própria permanente (Cfr. Facto Provado n.º 9), foram se apercebendo de que o imóvel prometido comprar tinha anomalias no isolamento térmico, o que originou, com o decurso do tempo, humidades no interior e no exterior da moradia (Cfr. Facto Provado n.º 28), tendo tais humidades sido denunciadas ao procurador da A. (Cfr. Facto Provado n.º 29);
20. Ademais, resultou igualmente provado que o procurador da A. se recusou a proceder às obras necessárias no imóvel, “ tendo o mesmo chegado a dizer que antes da escritura de compra e venda as reparações seriam efectuadas ” (Cfr. Facto Provado n.º 30);
21. Ou seja, in casu, deparamo-nos perante anomalias no imóvel, que diminuíram a qualidade de vida do agregado familiar dos Apelantes (Cfr. Facto Provado n.º 32), tendo o procurador da Apelada, confrontado com a denúncia dos defeitos, se obrigado a reparar os mesmos em momento anterior à outorga do contrato prometido;
22. A assomar às deficiências referentes à falta de isolamento térmico, temos, ainda, por demonstrada uma miríade de outros defeitos supra citados (Cfr. Factos Provados n.os 28 a 43), oportunamente denunciados pelos Apelantes ao procurador da Apelada (Cfr. Facto Provado n.º 44);
23. Pelo que resulta de erro de julgamento a asserção do Tribunal a quo de que a “verdadeira” causa da não outorga do contrato prometido pelos Apelantes se deve à falta de financiamento bancário;
24. Tanto que, uma e outra vez, os Apelantes manifestaram a sua clara oposição com o estado da moradia dos autos (Cfr. Factos Provados n.os 29 e 44);
25. Com efeito, o comportamento dos Apelantes expresso na missiva melhor descrita no Facto Provado n.º 45, ou seja, fixando um prazo para a correcção das anomalias, revela a sua intenção de cumprir o contrato-promessa desde que a Apelada reparasse os defeitos;
26. Importa salientar que se verificaram defeitos e anomalias patentes, persistentemente denunciadas pelos Apelantes, e que a Apelada, através do seu procurador, prometeu corrigir (Cfr. Facto Provado n.º 30), mas sem nunca o concretizar;
27. Logo, resulta de erro de julgamento a conclusão do Tribunal a quo de que “ a recusa da realização de obras não é determinante do incumprimento [da Apelada] ”;
28. A este propósito relembre-se que resultou provado que os Apelantes, perante as comunicações da Apelada de 14 de Março de 2014 e de 27 de Maio de 2014 nas quais comunicava a pretensão de outorga do contrato definitivo de compra e venda, logo responderam que não iriam outorgar o contrato prometido enquanto não fossem eliminados os defeitos de construção existentes no imóvel (Cfr. Facto Provado n.º 45);
29. Assim, e tendo resultado provado que a eliminação dos defeitos é da responsabilidade da Apelada, tanto que o seu procurador garantiu que seriam eliminados antes da escritura de compra e venda (Cfr. Facto Provado n.º 30), surge perfeitamente justificável a postura dos Apelantes, vertida por escrito na sua carta de 20 de Junho de 2014, ao exigirem a reparação dos defeitos, como condição para a outorga da escritura definitiva;
30. Acontece que, como resultou provado, a Apelada não procedeu à reparação dos defeitos existentes na moradia no prazo suplementar fixado pelos Apelantes na sua interpelação admonitória de 5 de Agosto de 2014 (Cfr. carta de 5 de Agosto de 2014 de fls. 57 a 57 e Facto Provado n.º 49);
31. Assim, perante a intransigência demonstrada pela Apelada, manifestando, mais do que uma vez, a sua recusa na reparação das deficiências (as quais, repita-se, diminuem a qualidade de vida no imóvel dos autos), quando, anteriormente, havia prometido a sua reparação em data anterior à outorga do contrato definitivo (Cfr. Factos Provados n.os 30, 32 e 50) se considera que os Apelantes, com fundamento para tanto, procederam à resolução do contrato-promessa celebrado com a Apelada, o que fizeram por cartas dirigidas à própria Apelada e ao seu mandatário, de fls. 65 a 68, datadas de 16 de Setembro de 2014, melhor descritas no Facto Provado n.º 51;
32. Em síntese, o Tribunal a quo, em erro de direito, não subsume a actuação omissiva da Apelada a um incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa dos autos;
33. Cremos, pois, que se impunha ao Tribunal a quo considerar que a recusa repetida de reparação de deficiências do imóvel, que – repita-se - limitam o fim para que o mesmo se destina (Cfr. Facto Provado n.º 32), constitui incumprimento do contrato-promessa;
34. Tal recusa reiterada de reparação pela Apelada, após interpelação admonitória (Cfr. Facto Provado n.º 49) dos Apelantes, constitui, pois, incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável à Apelada;
35. Em virtude do incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável à Apelada, está esta obrigada a restituir aos Apelantes, em dobro, o sinal por estes pago em 15 de Fevereiro de 2007 (Cfr. Facto Provado n.º 5), aquando da assinatura do contrato-promessa, à luz do preceituado no n.º 2 do artigo 442.º do CC;
36. Termos em que, ao contrário do doutamente decidido na decisão em crise, são os Apelantes titulares de um crédito sobre a A., no valor global de € 60.000,00, correspondente ao valor do sinal devido em dobro;
37. E consequência, têm os Apelantes direito de retenção sobre a moradia dos autos, ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC, até ao recebimento da Apelada de tal quantitativo monetário, o que, para mais, foi expressamente invocado pelos Apelantes perante a Apelada, por carta datada de 28 de Novembro de 2014 (Cfr. Facto Provado n.º 53);
38. Em conformidade com o supra exposto, terá de improceder o pedido da Apelada, porquanto não podem os Apelantes ser condenados a cumprir o contrato-promessa, mormente celebrando o contrato prometido, quando o contrato-promessa foi definitivamente incumprido pela Apelada e, com fundamento nesse facto, foi o mesmo resolvido pelos Apelantes através da sua carta de 16 de Setembro de 2014 (Cfr. Facto Provado n.º 51), não podendo, pois, os Apelantes ser condenados a cumprir um contrato que, para todos os efeitos legais, já não subsiste na ordem jurídica; 39. Naturalmente, se impõe, ainda, a improcedência do pedido de condenação dos Apelantes a entregar o imóvel à Apelada, pois têm direito de retenção sobre o mesmo enquanto a Apelada não restituir o sinal pago pelos Apelantes em dobro;
40. E, pelos mesmos motivos, deverá determinar-se a revogação da decisão de declaração de perda do sinal prestado pelos Apelantes a favor da Apelada;
41. Nestes termos, deverá, salvo melhor opinião, revogar-se a douta decisão recorrida e, em sua substituição, ser proferido Acórdão que declare o contrato promessa dos autos resolvido, por incumprimento definitivo imputável à Apelada, devendo, em consequência, absolver-se os Apelantes dos pedidos e condenar-se a Apelada no pagamento aos Apelantes da quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), a título de restituição do sinal em dobro, acrescida de juros de mora à taxa legal, contabilizados desde 2 de Dezembro de 2014 até integral e efectivo pagamento, declarando-se, ainda, os Apelantes legítimos titulares da garantia real do direito de retenção sobre a moradia dos autos até a Apelada proceder à restituição do sinal em dobro e demais acréscimos legais.
42. A sentença sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: Artigos 1365.°, n.º 1, e 1371.º, n.º 2, do Código Civil.
Termina, pedindo que seja considerado procedente o presente recurso,
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II -FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
Os factos provados são os seguintes:
Petição Inicial
1º - A. e RR celebraram, em 15 de Fevereiro de 2007, um acordo a que deram a designação de “contrato promessa de compra e venda”, o qual se mostra assinado por todos, estando as assinaturas reconhecidas (doc. 2 – fls. 26 a 32).
2º - No âmbito do mencionado contrato, os RR prometeram comprar à A., e esta prometeu vender-lhes o imóvel sito na Rua AA, freguesia da Amora, Concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amora sob o nº000, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 000 (cláusula 6ª) (docs. 2 e 3 – fls. 34 a 40).
3º - Foi consignado no contrato promessa:
a) que se encontrava a correr termos na Câmara Municipal do Seixal um projecto de loteamento, com respeito ao prédio supra identificado, o qual se encontrava em fase final de aprovação, correspondendo os avos propriedade da Primeira Outorgante ao lote 365, com a área de 316m2, sito na Rua António Jacinto da planta síntese do loteamento (cláusula 2ª);
b) que para o prédio identificado a Câmara Municipal do Seixal aprovou, pelo processo de construção nº 311/R/01, a construção de uma moradia, destinada a habitação, de rés do chão e primeiro andar, conforme consta no Alvará de Obras de Construção nº 00, emitido em 18 de Julho de 2002 pela Câmara Municipal do Seixal (cláusula 3ª);
c) que a Primeira Outorgante tem a moradia construída de acordo com os projectos aprovados pela Câmara Municipal do Seixal (cláusula 4ª).
4º - A. e RR estipularam para a prometida venda o preço de € 266.856,87 (duzentos e sessenta e seis mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos) (cláusula 7ª).
5º - Os RR entregaram nessa data à A., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) (cláusula 7ª, alínea a)).
6º - Ficando de entregar a restante parte do preço, no montante de € 236.856,87 (duzentos e trinta e seis mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e sete cêntimos) no dia da celebração da escritura de compra e venda (cláusula 7ª, alínea b)).
7º - A. e RR., no momento da celebração do contrato, convencionaram que o contrato de compra e venda seria outorgado no prazo máximo de 120 dias após a notificação, por parte da A., a indicar que a escritura de divisão de coisa comum do prédio supra identificado se encontrava devidamente registada na Conservatória do Registo Predial, e após a Câmara Municipal do Seixal emitir a necessária licença de utilização para o imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda (cláusula 8ª).
8º - Ficou ainda convencionado que a A. apenas teria de enviar, juntamente com a notificação descrita, certidão predial do prédio com o lote de terreno devidamente inscrito a favor da Primeira Outorgante e a moradia averbada, licença de utilização da moradia e registos provisórios de aquisição a favor dos Segundos Outorgantes (cláusula 8ª).
9º - Simultaneamente com a celebração do contrato promessa de compra e venda foram entregues aos RR as chaves do supra identificado imóvel, passando os mesmos a utilizá-lo como residência própria e permanente (cláusula 9ª).
10º - Após a aprovação, pela Câmara Municipal do Seixal, do projecto de loteamento do prédio, da celebração da escritura de divisão de coisa comum, e da emissão da licença de utilização, a A. notificou, em 14.03.2014 e 27.05.2014, os RR para procederem à marcação do contrato de compra e venda.
11º - Nessa sequência vêm os RR, em carta datada de 20.06.2014, comunicar à A. que se recusam a proceder à outorga da escritura de compra e venda enquanto o imóvel supra identificado não passar de classe energética C para classe energética B (doc. 5 – fls. 43 a 45).
12º - O certificado energético nunca foi alvitrado nas negociações celebradas entre as partes, nem foi contratualmente contemplada qual a classe energética do referido imóvel, não tendo a celebração do contrato de compra e venda ficado dependente de tal circunstância.
13º - Vieram os RR invocar, naquela carta de 20.06.2014, a existência de humidades, pelo facto da moradia não ter alegadamente o necessário isolamento térmico, diminuindo a qualidade de vida dos seus moradores, sobretudo do filho asmático, cujos problemas de saúde se tinham agravado desde que tinham ido viver para o citado imóvel, bem como problemas nas banheiras, sifões, intercomunicadores, portões de casa, fecho automático, caldeira e outros problemas (doc. 5 – fls. 43 a 45).
14º - A A. remeteu uma carta aos RR, datada de 28.07.2014, na qual:
- lhes comunicou que o imóvel foi entregue nas devidas e melhores condições, sem quaisquer defeitos de construção e com o escrupuloso cumprimento e observância das normas técnicas gerais e específicas de construção, bem como das disposições legais e regulamentares aplicáveis ao projecto;
- lhes comunicou que a hipoteca legal já se encontrava levantada e os registos provisórios a seu favor já estavam feitos, e lhes enviou a certidão predial e os documentos comprovativos dos registos;
- fixou o dia 20.08.2014, pelas 14:30 horas, no Cartório Notarial Fátima Logrado, no Seixal, para a celebração da escritura (doc. 6 – fls. 46 a 53).
15º - Até à data nunca os RR apresentaram qualquer orçamento escrito ou parecer técnico que alicerçasse os seus fundamentos.
16º - O imóvel em apreço foi exclusivamente habitado pelos RR., tendo sido entregue novo/a estrear, encontrando-se o imóvel e todos os seus componentes novos aquando da entrega das chaves aos ora RR.
17º - A A. nunca foi notificada por escrito para proceder a quaisquer reparações no supra identificado imóvel até à carta dos RR de 20.06.2014.
18º - Em carta datada de 05.08.2014, os RR reiteraram que não fariam a escritura enquanto não fossem reparados os alegados defeitos e alegaram não ter recebido os registos provisórios, mas apenas “a Requisição de Registo nº 7377 2014/07/28, não se comprovando dessa forma que os registos provisórios de aquisição foram efectuados em nosso nome” (doc. 7 – fls. 56 a 57).
19º - Em carta datada de 09.09.2014, a A. respondeu à carta dos RR de 05.08.2014 o seguinte: “No que concerne aos registos provisórios, reiteramos o seu envio, podendo os mesmos ser consultados on-line na conservatória do registo predial, facultando-se para o efeito a certidão permanente nº PP-0000”, mais notificando os RR para procederem à marcação da escritura de compra e venda, no prazo máximo de 7 dias (doc. 8 – fls. 58 a 60).
20º - O intuito dos RR é o não cumprimento do contrato por não terem tentado obter acesso ao crédito para pagamento do preço remanescente.
21º - Foi consignado no contrato promessa que o seu não cumprimento importa o direito à execução específica, nos termos do artigo 830º do Código Civil (cláusula 15ª).

Contestação
22º - À data da celebração do contrato promessa, os RR já tinham dois filhos menores a cargo, um com sete anos de idade e outro com cerca de dois anos de idade, o que, aliás, era do conhecimento do procurador da A., Álvaro Fernando de Almeida (docs. n.ºs 1 e 2 – fls. 139 a 139-v).
23º - O procurador da A., que foi quem representou sempre a A., assegurou aos RR que conseguiria legalizar o imóvel dos autos no prazo máximo de seis meses e que poderiam, por isso, ficar descansados.
24º - Ao longo dos anos, os RR foram se apercebendo que, também por causa de anomalias no isolamento térmico, se originaram, com o decurso do tempo, humidades no interior da moradia.
25º - Humidades que foram denunciadas pelos RR ao procurador da A.
26º - Recusando-se o procurador da A. a proceder, de imediato, às obras necessárias no imóvel, tendo o mesmo chegado a dizer que antes da escritura de compra e venda as reparações seriam efectuadas.
27º - A moradia apresenta um acentuado défice de desempenho energético, tendo-lhe sido atribuída a classe energética “C”, que se situa abaixo do mínimo exigido para os edifícios novos, em cerca de 18% (doc. n.º 14 – fls. 145-v a 148-v).
28º - As humidades existentes no interior do imóvel diminuem a qualidade de vida dos seus moradores.
29º - Mormente do filho mais velho da R., hoje com 15 anos de idade, cujos problemas de saúde se agravaram desde que os RR foram viver para a moradia dos autos.
30º - Logo em Abril de 2007, um problema no sistema de gás quase fez deflagrar um incêndio na moradia e, por pura sorte, não deixou um amigo dos RR queimado, o que foi oportunamente comunicado ao procurador da A.
31º - As paredes da arrecadação sita no vão das escadas apresentam grandes fissuras.
32º - Algumas portadas da moradia encontram-se estragadas.
33º - As banheiras das casas de banho da moradia não podem ser cheias de água, pois se o forem começa a jorrar água pelos sifões, sendo que a canalização da rede de esgotos domésticos está mal efectuada, o que originou que tivesse havido uma inundação na residência dos RR.
34º - O aquecimento central funcionou só no primeiro ano, porquanto a caldeira que foi colocada na moradia estava avariada e acabou por rebentar, pelo que tiveram de ser os RR. a colocar, a suas expensas, um esquentador para terem água quente para satisfazerem as suas necessidades básicas diárias, sendo que enquanto o esquentador não foi colocado ocorreu a situação aludida em 30º..
35º - Os acabamentos no exterior da moradia encontram-se num estado de acentuada degradação, mormente os portões, facto que tem vindo a agravar-se com o decurso do tempo.
36º - A A. não procedeu à anulação do espaço onde estava instalada, inicialmente, a fossa da moradia, o que originará o abatimento de toda aquela zona, e motivou que os RR fossem aconselhados a deixar as viaturas no exterior da moradia.
37º - O fecho automático da porta exterior que dá acesso à moradia encontra-se avariado, bem como o intercomunicador que permite a abertura da mesma a partir do interior da moradia.
38º - As pedras mármore que envolvem as entradas da casa também apresentam fissuras.
39º - Verifica-se desnivelamento acentuado do piso da parte traseira da moradia; quando chove, a água infiltra-se por debaixo das portas que dão acesso à cozinha e à garagem, provocando estragos no chão destas divisões da moradia.
40º - Todas as desconformidades acima enunciadas foram oportunamente denunciadas ao procurador da A.
41º - Na carta datada de 20.06.2014 os RR fixaram um prazo de 60 dias para a resolução das anomalias acima descritas (fls. 43 a 45).
42º - À data, encontrava-se ainda registada uma hipoteca legal sobre o imóvel prometido vender, constituída a favor da Câmara Municipal do Seixal para garantia de obras de urbanização (fls. 34 a 40), facto que impedia a obtenção de qualquer financiamento pelos RR para a aquisição do imóvel.
43º - A A. prometeu vender aos RR o imóvel livre de ónus e encargos.
44º - Até 20 de Junho não tinha ainda a A. enviado aos RR os registos provisórios de aquisição do imóvel a favor destes.
45º - Em carta datada de 05.08.2014, os RR fixaram um prazo suplementar de 30 dias para a A. proceder às obras necessárias, com a cominação de que, se nesse prazo não se iniciassem os trabalhos de eliminação dos defeitos, os RR, promitentes compradores, consideravam para todos os efeitos que a A., promitente vendedora, tinha incumprido o contrato promessa de compra e venda (fls. 56 a 57).
46º - A A. declarou expressamente na sua missiva de 09.09.2014 que não iria proceder a quaisquer obras de reparação dos alegados defeitos existentes na moradia (fls. 58 a 60).
47º - Os RR exigiram à A., na sua carta de 16.09.2014, a restituição do sinal prestado em singelo, no valor de € 30.000,00, no prazo máximo de 30 dias após a recepção da referida carta, contra a entrega da moradia devoluta de pessoas e bens, tendo declarado nessa carta a resolução do contrato promessa (fls. 65 a 68).
48º - A A. não respondeu.
49º - Os RR invocaram perante a A., por carta datada de 28 de Novembro de 2014, os direitos de receberem o sinal em dobro e de exercerem retenção sobre o imóvel até esse pagamento (doc. nº 26 – fls. 128 a 129-v).
50º - O procurador da A. ficou sempre com um conjunto de chaves do imóvel.
51º - E, na posse de tais chaves, o procurador da A. chegou a entrar várias vezes no imóvel, sem autorização dos RR.
52º - Nos termos da cláusula 10.ª do contrato promessa, a A. obrigou-se a executar até 31 de maio de 2007 uma nova pintura exterior da moradia, incluindo os muros da mesma.
53º - Os RR estão presentemente impossibilitados de celebrar o contrato prometido por falta de financiamento bancário.
54º - Para obterem a aprovação do empréstimo, sempre teria o imóvel de ser avaliado pelo Banco, na medida em que o mesmo seria dado como garantia do empréstimo.
55º - Pela avaliação teriam os RR que pagar custos com comissões bancárias e taxas de avaliação.
56º - Por isso, por várias vezes, os RR explicaram ao procurador da A. que sempre se teria primeiro de efectuar as obras de reparação da moradia e só depois se poderia iniciar o processo de contratualização do empréstimo com vista à celebração da escritura de compra e venda da moradia, entendimento que o procurador da A. sempre rejeitou.
57º - As Finanças avaliaram o imóvel dos autos em € 168.640,00, a 23.02.2014 (doc. n.º 29 – fls. 134-v a 135).
58º - O imóvel desvalorizou, designadamente, pela crise do mercado imobiliário e pela má construção do mesmo.

Réplica
59º - As anomalias descritas sob 28º, 36º e 37º decorrem também da falta de manutenção do imóvel; a anomalia descrita sob 39º decorre da falta de manutenção do imóvel e de elementos naturais exteriores.

Mais se provou que:
60º - Foi consignado no contrato promessa que o alvará de obras de construção da moradia ficou condicionado ao disposto no artigo 51º da Lei 91/95, de 2 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei 165/99, pelo que a licença de utilização só poderia ser emitida após a entrada em vigor do título de reconversão e da outorga da escritura de divisão de coisa comum (cláusula 5ª).
61º - O alvará de loteamento nº 2, de 08.04.2010, foi inscrito pela Ap. 2742, de 21.10.2011, e a aquisição, com fundamento em divisão de coisa comum, foi inscrita pela Ap. 980, de 02.12.2011 (fls. 34 a 40).
62º - A licença de utilização da moradia foi emitida em 20.02.2014 (fls. 243).
63º - Em perícia realizada nos autos, em 2016, o imóvel foi avaliado em € 167.658,50, tendo sido apontadas como causas da desvalorização da moradia o facto do mercado imobiliário estar em baixa e o facto de a casa necessitar de obras (fls. 228 a 229).

B) Fundamentação de direito
As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, são as seguintes:
- Impugnação da decisão sobre matéria de facto;
- A questão de direito.

IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO

Preliminarmente, há que recordar que, consoante refere Abrantes Geraldes[1], as diferentes circunstâncias em que se encontra o Tribunal de 1ª instância e o Tribunal de 2ª instância «deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados».
Dito de outro modo, quanto aos recursos que têm por objecto a reapreciação da matéria de facto, vigora o princípio da livre apreciação da prova – Cfr artigo 607°/5 do CPC - segundo o qual “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Além deste princípio de livre apreciação da prova, vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Posto isto, iremos apreciar a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto
Impugnam os apelantes a decisão proferida sobre os seguintes factos:
Ponto nº 60 dos factos não provados
Este facto, que corresponde ao artigo 73º da contestação e que a sentença considerou como não provado, tem a seguinte redacção:
“ Face ao estado de degradação em que se encontra o imóvel, nenhum Banco aceitaria efectuar o empréstimo”.
Entendem os apelantes que esta matéria deverá considerar-se como provada nos seguintes termos:
“Face ao estado de degradação em que se encontra o imóvel, nenhum Banco aceitaria efectuar o empréstimo do valor necessário para os réus pagarem o remanescente do preço devido à Autora”.

Facto provado sob o nº 21 (actual nº 20 após a correcção da numeração).
Este facto, que corresponde ao artigo 29º da petição e que a sentença considerou como provado, tem a seguinte redacção:
“ O intuito dos réus é o não cumprimento do contrato por não terem tentado obter acesso ao crédito para pagamento do preço remanescente”.
Alegam os apelantes que tal matéria deverá considerar-se como não provada.

Cumpre decidir.
Depoimento da testemunha AS, Trabalha na Companhia de Seguros Fidelidade. É amiga da ré PG, que foi sua professora e não conhece a autora, nem o seu representante legal.

Advogado dos Apelantes: Já foi à casa da D. PG?
AS: Sim, sim. Já fui.
Advogado dos Apelantes: Já foi. Quando é que lá foi a primeira vez?
AS: Foi, mais ou menos, em 2013/2014…
Advogado dos Apelantes: A casa estava normal (sem quaisquer problemas) ou, pelo contrário, quem entrava via que havia ali algum problema na casa?
AS: Sim, havia. A casa, quando se entra, sente-se um cheiro de humidade. Bastante humidade, que até parece aquele cheiro de mofo, digamos assim… E tem alguma problemas, sim…
Advogado dos Apelantes: Era só o cheiro?
AS: O cheiro… A humidade, que até é bastante...
Advogado dos Apelantes: A humidade… Que é que quer dizer? Porque é que diz que a casa tem humidade?
AS: Porque vi. A casa está… Os tectos estão completamente pretos, principalmente os quartos dos meninos e casa-de-banho…
(…)
AS: Eu fui lá a casa porque na altura eu estava a trabalhar nos serviços centrais da Caixa Geral de Depósitos e a PG pediu-me uma opinião acerca de um empréstimo. Na altura, eu estava a fazer as recuperações e tinha alguns colegas que estavam a trabalhar na parte da aprovação dos créditos. A PG mostrou-me a casa e a PG pediu-me opinião acerca de pedir um empréstimo, na altura, de € 230.000,00… Eu disse: “ PG, da maneira que a casa está vai ser complicado… Havendo uma avaliação (uma peritagem), que terá de ser feita, vai ser complicado darem-te esse valor, porque a casa está da maneira como está… Ou fazem obras antes ou então esse crédito… Podes sempre “fazer” o crédito, mas duvido que, quando fizerem a peritagem (a avaliação), que consigas esse valor ”.
Advogado dos Apelantes: Quando disse “fazer o crédito” é iniciar o processo?
AS: Sim, sim. Iniciar o processo.
(…)
Advogado dos Apelantes: A senhora, então, disse que, primeiro, tinha de se fazer as obras e depois iniciar-se o processo?
AS: Claro que sim. Sim. Sim. Da maneira como a casa estava…
Advogado dos Apelantes: Da maneira como a casa estava não haveria hipótese de conseguir o financiamento?
AS: Não. Não. Todos nós sabemos que as avaliações têm dinheiro e eu disse à PG que ela iria ter de gastar dinheiro com essa avaliação…
Advogado dos Apelantes: E depois não iria ter resultados (da maneira como a casa estava)? AS: Não. Não iria ter resultado.

Análise crítica da prova
O depoimento da testemunha Ana Cláudia é muito vago, pouco consistente e nada convincente, quer em relação ao facto não provado sob o nº 60, quer ao facto provado sob o nº 20º.
Nada melhor que incorporar aqui partes da fundamentação da sentença que merece a nossa total concordância e oferece solução com acerto e ponderação, evitando, assim, repetições inúteis.
Quanto ao facto não provado nº 60, ali se considerou e bem, que, “relativamente ao empréstimo alegado pelos RR., pese embora esta situação tenha sido verbalizada em audiência pelos mesmos, a verdade é que os únicos documentos juntos aos autos não respeitam a um empréstimo, mas a um contrato de locação financeira imobiliária (fls. 184 a 186), o que são realidades substancialmente distintas, pois os contratos de mútuo são celebrados para permitir a aquisição do imóvel pelos interessados, enquanto no contrato de locação financeira imobiliária o adquirente do imóvel é o Banco (no caso o BPI), ficando os interessados na mera posição de locatários.
Nestes casos o adquirente, na escritura de compra e venda, é o Banco, e não os interessados, e por isso os registos provisórios de aquisição são feitos em nome do Banco, e não dos interessados – veja-se o que consta do formulário de fls. 185, a respeito dos documentos que tinham de ser enviados ao Banco, com vista à realização da escritura: “Cópia simples (certificada pela Conservatória do Registo Predial) do requerimento do registo provisório de transmissão do imóvel a favor do Banco BPI, S.A.”.
Por outro lado, da carta remetida aos RR. consta que o prazo para entrega dos documentos necessários para a escritura é de 90 dias, e que tais documentos têm a validade de 6 meses, pelo que não foi julgada provada a matéria constante dos pontos 24. a 26. da matéria de facto.
Refere-se ainda a este propósito que pese embora se considere provado que para aprovar um empréstimo um Banco necessita de avaliar o imóvel objecto do contrato de compra e venda, pois é do conhecimento geral que a garantia destes empréstimos são as hipotecas constituídas sobre os imóveis, não se considerou provado que o Banco não concedesse um empréstimo, atento o estado do imóvel.
Com efeito, a R. reconheceu que não formalizou qualquer pedido de empréstimo e a testemunha ASconfirmou as declarações da R. de que foi ver a casa. Depois discutiu a questão com um colega seu da CGD, o qual lhe disse que ia ser muito complicado obter o empréstimo que pretendiam, no estado em que a casa se encontrava, pelo que ou faziam obras, ou não conseguiam esse valor.
Porém, a testemunha AS não tem qualquer formação ou experiência na área da construção civil, nem na área do crédito bancário imobiliário. Ora, atendendo a que o seu colega da CGD não viu a casa nem teve acesso a qualquer documentação sobre a mesma, como foi referido pela testemunha, não podemos considerar provados os factos descritos sob 60. e parte do 61., sendo certo também que não conceder um empréstimo é uma realidade distinta de conceder um empréstimo em valor inferior ao que foi pedido, e foi esta a situação relatada ao Tribunal pela testemunha. Aliás, a própria R., nas suas declarações de parte, apontou o valor de € 100.000,00 como sendo aquele que lhe foi dito que lhe emprestariam, em função do estado da casa.
De todo o modo assinale-se que as Finanças avaliaram a casa em € 168.640,00 e na perícia realizada nos autos a casa foi avaliada em € 167.658,50, pelo que a casa tem seguramente mais valor de mercado do que aquele que a R. lhe atribuiu, e é preciso ponderar ainda que na avaliação pericial da casa se tomou em consideração o facto do mercado imobiliário se encontrar em baixa presentemente. Ou seja, não pode efectivamente afirmar-se que a desvalorização da casa é consequência apenas da falta de obras”.

Quanto ao facto provado nº 20, a sentença fundamentou nos seguintes termos e que, do mesmo modo, obtém a nossa concordância.
“O ponto 21 (actual 20) da matéria de facto constitui uma decorrência lógica do anterior, sendo certo que se os RR tivessem efectiva vontade de fazer o negócio teriam formalizado um pedido de empréstimo e requerido uma avaliação ao Banco, para saberem exactamente quanto é que o Banco emprestaria e estudarem opções concretas de viabilização do negócio, designadamente apurando quais as eventuais reparações que devessem ser feitas para permitir melhores condições em termos de empréstimo.
Ou seja, o que se verifica é que os RR nem sequer tentaram criar as condições mínimas para celebrar o negócio, o que não só é contraditório com o tempo que esperaram pela legalização do imóvel, como é também contraditório com a ideia que transmitiram em audiência, particularmente a R., sobre a ligação que possuem a esta casa e o quanto lamentam ter de a deixar.
Em face do exposto só conseguimos, pois, concluir que os RR entenderam não possuir condições financeiras para concretizar o negócio prometido, tendo avançado para a resolução do contrato por este motivo”.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões das alegações relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

 A QUESTÃO DE DIREITO

Autora e réus celebraram, em 15.02.2007, um contrato promessa de compra e venda, no âmbito do qual os réus prometeram comprar à autora e esta prometeu vender-lhes o imóvel sito na Rua AA, Foros de Amora, freguesia da Amora, Concelho do Seixal.
Os réus entregaram nessa data à autora, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 30.000,00 (cláusula 7ª alínea a).
Simultaneamente com a celebração do contrato promessa de compra e venda foram entregues aos réus as chaves do supra identificado imóvel, passando os mesmos a utilizá-lo como residência própria e permanente (cláusula 9ª).
O imóvel em apreço foi exclusivamente habitado pelos RR., tendo sido entregue novo/a estrear, encontrando-se o imóvel e todos os seus componentes novos aquando da entrega das chaves aos ora réus – (16º).
Foi consignado no contrato promessa que o seu não cumprimento importa o direito à execução específica, nos termos do artigo 830º do Código Civil (cláusula 15ª) – (21º).

Nos termos do artigo 410º nº 1 do Código Civil, contrato promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato.
Do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre autora e réus nasceu uma relação obrigacional múltipla e complexa, resultando para ambos deveres jurídicos que devem ser cumpridos.
Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou de outro direito, mediante um preço (artº 874º do Código Civil).
Preceitua o nº 1 do artigo 830º do Código Civil que, se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida.
E o nº 3 prescreve que o direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes nas promessas a que se refere o nº 3 do artigo 410º; a requerimento do faltoso, porém, a sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial pode ordenar a modificação do contrato nos termos do artigo 437º, ainda que a alteração das circunstâncias seja posterior à mora.
A execução específica consubstancia a realização da prestação pelo devedor, obtida de forma coerciva, pressupondo, por isso, o incumprimento da promessa pelo obrigado. É suficiente, para o efeito, a simples mora (artigo 804º nº 2 do Código Civil), na medida em que é relevante para a execução específica que o credor mantenha interesse na prestação[2].

Importa, pois, saber se os réus se encontram em mora ou, pelo contrário, se ocorreu incumprimento definitivo por parte da autora, pela sua recusa reiterada em reparar os defeitos ou anomalias do imóvel.
Apesar das anomalias existentes no imóvel, ficou provado que os réus habitam o mesmo desde a data da celebração do contrato promessa (15.02.2007),
Apesar dos réus habitarem a moradia desde aquela data, compete-lhes proceder à manutenção da casa, uma vez que, à data da perícia (04.07.2016), já lá residiam ininterruptamente havia 9 anos e faziam-no tendo em vista a futura aquisição da moradia.
O imóvel em apreço foi exclusivamente habitado pelos réus, tendo sido entregue novo/a estrear, encontrando-se o imóvel e todos os seus componentes novos aquando da entrega das chaves aos ora réus – (16º).
A autora nunca foi notificada por escrito para proceder a quaisquer reparações no supra identificado imóvel até à carta dos réus de 20.06.2014 - (17º).
A invocação escrita dos defeitos de construção pelos réus data de Junho desse ano, surgindo em resposta a duas cartas da autora, de Março e Maio de 2014, precisamente destinadas a comunicar aos réus que já podia ser marcada a escritura.
A conclusão de que houve incumprimento definitivo por parte da autora, em virtude de esta não ter procedido à reparação dos defeitos, é excessiva.
Efectivamente, como bem se anota na douta sentença, “os réus nunca apresentaram à autora um orçamento escrito, um parecer técnico, nem lhe enviaram qualquer missiva a exigir obras e a fixar prazos para a sua realização, apesar das humidades da casa serem prejudiciais para a sua família, só o tendo feito por causa da interpelação da autora, e mesmo a presente acção foi intentada pela autora, pelo que os réus essencialmente têm convivido com o prolongamento desta situação indefinida, que na realidade se afigura não lhes ser desconfortável, sob a perspectiva de que estão há 10 anos a habitar uma moradia sem pagar qualquer renda, tendo suportado apenas cerca de um nono do preço do contrato de compra e venda”.
Por outro lado, não está provada a matéria de facto alegada no artigo 73º da contestação, ou seja, que, face ao estado de degradação em que se encontra o imóvel, nenhum Banco aceitaria efectuar o empréstimo” – Cfr Facto não provado nº 60.
Concluímos, tal como na sentença, que não pode afirmar-se que a culpa pela dificuldade na obtenção de um empréstimo é exclusivamente da autora, até porque o estado do imóvel é também consequência da falta de manutenção do mesmo pelos réus.
Ficou provado que o intuito dos réus é o não cumprimento do contrato por não terem tentado obter acesso ao crédito para pagamento do preço remanescente – (20º).
Diríamos mesmo que, face à bolha imobiliária que presentemente se vive no país, os réus até teriam vantagem em cumprir o contrato promessa, ficando o imóvel valorizado em montante superior àquele que consta do contrato promessa.
No caso dos autos, a responsabilidade da prestação é imputável aos réus, respondendo estes como se faltassem culposamente ao cumprimento da obrigação (artº 801º nº 1 do Código Civil).
Concordamos, pois, com a douta sentença quanto à improcedência do pedido relativo à execução específica do contrato.
Afinal, quem é o responsável pelo incumprimento do contrato? A autora pela recusa na realização de obras, ou a falta de meios financeiros por parte dos réus para suportarem o pagamento do remanescente do preço?
Entendemos, tal como a douta sentença, que a condição determinante radica naquela falta de meios por parte dos réus.
Assim, a douta sentença decidiu com acerto quando afirmou que “deve declarar-se o sinal perdido a favor da autora, conforme peticionado, a título subsidiário, pela autora, e nesta parte improcede o pedido reconvencional de restituição do sinal em dobro”.

No tocante ao direito de retenção sobre o edifício invocado pelos réus na sua contestação e reforçado nas conclusões das alegações de recurso, com fundamento no crédito detido sobre a autora correspondente ao dobro do sinal prestado, mais uma vez a douta sentença decidiu com elevado acerto, pois “já se concluiu, porém, que tal crédito não existe, pelo que inexiste o referido direito de retenção. Consequentemente, devem os réus restituir o imóvel à autora, livre e devoluto de pessoas e bens”.

Improcedem na totalidade as conclusões das alegações dos réus.

CONCLUSÕES
- Nos termos do artigo 410º nº 1 do Código Civil, contrato promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato.
- Do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre autora e réus nasceu uma relação obrigacional múltipla e complexa, resultando para ambos deveres jurídicos que devem ser cumpridos.

III - DECISÃO

Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 21 de Junho de 2018

Ilídio Sacarrão Martins

Teresa Prazeres Pais 

Isoleta de Almeida Costa

[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 235.
[2] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 2ª ed., pág. 215