Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
866/15.0PELSB.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: SUBTRACÇÃO DE MENOR
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÂO PROVIDO
Sumário: I-Ainda que a razão da protecção concedida pela incriminação constante do crime de subtracção de menor previsto pelo art. 249.º do Cód. Penal estivesse pensada para o bem estar daquele (“que, de resto, é a justificação para a existência daqueles poderes-deveres”), e não para a protecção dos titulares de tais poderes, entendia-se na Doutrina, que o bem jurídico acautelado por tal normal era “a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor – sejam os titulares do poder paternal (cf. arts. 1901º, 1906º e 1907º do CC) ou de tutela (cf. Art. 1927º e ss. do CC) ou mesmo pessoas colectivas ou individuais a quem a criança tenha sido confiada (art. 1907º do CC.
II-De uma forma mais actual, considera-se hoje em dia, que protege “o direito ao exercício sem entraves ilícitos dos conteúdos ínsitos às responsabilidades parentais e, de modo reflexo, o interesse do próprio menor no adimplemento de uma decisão que, nos termos da lei, surge - ou deve surgir - como aquela que melhor acautela esses interesses.
III-Para que se verifique o crime previsto na al. c) do respectivo n.º 1, não basta que o incumprimento que aí se menciona corresponda a uma simples auto-regulamentação ou seja o resultado de mera decorrência legal, supletiva ou não, antes pressupõe a fixação do exercício das responsabilidades parentais através de uma decisão judicial ou acordo homologado.
IV-Já para a modalidade tipificada na sua al. a), subtrair, consiste em “retirar o menor do lugar, do espaço e do círculo da pessoa (ou da instituição) a quem está confiado. Donde, a consumação do delito pressupor que o menor fique submetido ou à disposição da pessoa que o retirou ou reteve, ou seja, que permaneça fora do controle da pessoa a cuja guarda ou direcção se encontrava legitimamente.
V-O progenitor com quem o menor reside habitualmente não pode incorrer na prática do crime consagrado em tal preceito.
VI-A interpretação do n.º 1 do art. 249.º do Cód. Penal, ao advogar a sua não aplicabilidade ao progenitor do menor subtraído “quando não haja regulação de responsabilidades parentais”, por violação do art. 36.º, n.ºs 5 e 6 da CRP, não se nos afigura inconstitucional, ainda que importe distinguir, para este efeito, a situação prevista na al. a) da prevista na al. c) do respectivo n.º 1.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


I-1.)Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 245 a 250, em que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa, na sequência da abertura da fase processual referida, requerida pelo assistente J. (com o que este reagia ao despacho de arquivamento determinado a fls. 37/8 pelo Ministério Público, por os factos denunciados não integrarem o crime de subtracção de menor p. e p. pelo art. 249.º, n.º1, al. a), do Cód. Penal), não pronunciou a arguida O. pela prática deste crime, recorreu aquele primeiro para a presente Relação, sustentando as seguintes conclusões:

1.ª-A ratio legis contida no artigo 249.º do CP é, em primeiro lugar, a proteção dos interesses do menor, os quais integram o convívio com ambos os progenitores e a proteção ativa, por ambos, dos interesses deste. Em segundo lugar, o dispositivo protege o exercício do poder-dever de parentalidade.

2.ª-Não protege em particular - nem sequer na letra e muito menos na ratio - o poder-dever de parentalidade dissidente, regulada através do tribunal.

3.ª-O artigo 36.º, n.º 3, da CRP prevê que os cônjuges têm iguais
direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à
manutenção e educação dos filhos e o n.º 5 do citado preceito
reforça a ideia de que a paternidade é um poder-dever, esclarecendo que os pais têm o direito e o dever de educar e
manter os seus filhos.


4.ª-E sublinha o artigo 36.º, n.º 6, da CRP que “os filhos não podem
ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus
deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial”

5.ª-O exercício das responsabilidades parentais, a constância do matrimónio, cabe a ambos os progenitores, conforme dispõe o
artigo 1901.º do Código Civil, que nomeadamente regulamenta
o constante da lei fundamental, a esse propósito.


6.ª-No âmbito da regulação legal geral do exercício das responsabilidades parentais, os menores não podem ser retirados
da casa de morada de família apenas por decisão de um dos
progenitores, nos termos do 1887.º,  n.° 1, do CC.


7.ª-E o Regulamento CE 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, art. 2.º, n.°s 9 e 11, classifica a deslocação e retenção unilateral do menor, para local diverso do que lhe fora destinado pelos seus progenitores, como ilícita.

8.ª-O facto do menor ser retirado do local onde reside, por um dos progenitores e sem autorização do outro, afastando-o, assim, do contacto e controlo de educação, saúde e afetos, do outro progenitor, de forma radical e tendencialmente definitiva, ocultando os contactos, terá que ser necessariamente protegida ao menos pelo elemento teleológico do preceito penal em causa e a sua ratio.

9.ª-Além disso, também da literalidade do mesmo preceito não se retira que são excluídos da previsão legal os comportamentos de um progenitor que retire o menor da esfera de exercício do poder paternal do outro progenitor, de forma prolongada e injustificada, com intenção, pelo menos presumida - o que releva para a presente fase processual - de provocar o afastamento definitivo do menor do outro progenitor, mantendo-o incontactável.

10.ª-Nem se retira que são excluídos da previsão legal os comportamentos dos cônjuges que não tenham o poder paternal judicialmente regulado, posto que o têm constitucional e legalmente regulado, bem como regulado em convenções internacionais,

11.ª-Nomeadamente na Convenção Sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada em Haia em 25 de Outubro de 1980, ratificada por Portugal e que prevê que o “direito de custódia” abrange o direito de decidir sobre o lugar da residência do menor, nos seus artigos 4.º e 5.º alínea a).

12.ª-Viola, portanto, com essa atuação, o superior interesse do menor e o seu bem-estar, o comportamento comprovado nos autos, dado que este se vê impossibilitado de manter qualquer relação com o progenitor afastado,

13.ª-Por não se tratar, o presente caso, de mero afastamento controlado e consabido, de um menor, para longe do seu
progenitor, mas sim de uma retirada de um menor em
circunstâncias não controladas, para parte incerta, sem qualquer possibilidade efetiva e prática, por parte do progenitor afastado,
de aproximação do menor seu filho.


14.ª-Tal comportamento da Recorrida, que retirou o menor da casa de família que lhe fora destinada pelos pais, levou o filho de ambos para o estrangeiro, de forma não conhecida nem autorizada pelo outro progenitor, estando atualmente em parte incerta e com contactos desconhecidos e assim inviabilizando totalmente o contacto entre pai e filho, não constitui, na realidade, uma vulgar não entrega de menor para cumprimento de um regime de visitas, ainda que reiterada, mas sempre minimamente controlada,

15.ª-É, sim, uma subtração de criança, retirada totalmente da sua vida normal, para destino desconhecido, mantendo-se incontactável, em violação grave, altamente lesiva, perentória e definitiva do exercício das responsabilidades parentais constitucional e legalmente reguladas, entre cônjuges estavelmente casados.

16.ª-Tal comportamento, colocando em risco o desenvolvimento do menor, sendo comprovada ou razoavelmente presumido como premeditado, perpetrado com dolo, de forma consciente quanto à respetiva ilicitude, contém indícios passíveis de enquadramento no crime do subtração de menor, previsto e punido pelas alíneas a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 259.º do CP,

17.ª-O que não pode deixar de ser reconhecido por via da anulação do despacho de não pronúncia de que ora se recorre e determinação de pronúncia com base na acusação formulada nos autos pelo assistente.

18.ª-O despacho que não pronunciou a Recorrida é ilegal por violação do disposto no artigo 249.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código Penal e fere os dispositivos constitucionais contidos no artigo 36.º, n.°s 3, 5 e 6 da CRP.

19.ª-Negar este desfecho é beneficiar, por via de interpretação do citado preceito penal fora da sua literalidade, do seu elemento teleológico e da sua ratio, os progenitores “oficialmente” em guerra pela custódia dos filhos, em detrimento dos que não se socorreram do tribunal para regular tal custódia, mas a têm regulada por lei, enquanto cônjuges em casamento estável, sendo pais bem identificados de um menor retirado do seu domicílio conjugal ilegalmente e com consequências imprevisíveis, sempre lesivas dos seus interesses mais óbvios

20.ª-E é acolher pacificamente como aceite no nosso ordenamento jurídico o estatuto de M.W. como órfão de pai vivo.

Pelo exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie a Arguida pelo crime de subtração de menor, p. e p. pelo art. 249.º n.° 1, alíneas a) ou c) do Código Penal.

I-2.)Respondendo ao recurso interposto, a Digna magistrada do Ministério Público junto da Secção de Instrução Criminal de Lisboa, concluiu pela forma seguinte:

-A decisão instrutória não padece de qualquer vício.

-Aderimos totalmente à respectiva fundamentação, de facto e de direito, salientando-se que a douta decisão ora colocada em crise pela recorrente vale por si só, mostrando-se acertada no elenco factual, na sua fundamentação e na correcta aplicação do Direito aos factos.

Termos em que, deve o recurso a que ora se responde ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida.

I-3.)Fazendo-o também a arguida O., concluiu por seu turno:

1.º-O Recorrente apresentou participação contra a Recorrida, mãe do seu filho menor, M.W., a quem imputa a prática de 1 (um) crime de subtracção de menor, p. e p. pelo artigo 249.°, n.° 1, alíneas a) e c), do Código Penal.

2.º-Realizadas as diligências que considerou adequadas e encerrado o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por ter concluído que os factos não integram o crime de subtracção de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

3.º-Não aceitando a decisão de arquivamento, o Recorrente requereu a abertura de instrução, pretendendo que a Recorrida seja pronunciada pelo crime de subtracção de menor, p. e p. no artigo 249.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal.

4.º-Finda a instrução, foi preferido despacho de não pronúncia.

5.º-Não se conformando, o Recorrente recorreu do despacho de não pronúncia.

6.º-Encontram indiciados os factos descritos no artigo 7.° da resposta.

7.º-Na alínea a) do artigo 249.° do Código Penal, a “subtracção de menor” pressupõe necessariamente um agente que não detenha poderes (e deveres) relativos à guarda do menor e o retira de quem legitimamente o tenha a cargo.

8.º-Como muito bem refere o Tribunal a quo no despacho recorrido, é entendimento unânime que, “(…) no caso do exercício do poder paternal pelos dois progenitores, a retirada por parte de um deles do local onde habitualmente o menor resida e o afastamento em relação ao outro, não preenche o conceito de “subtracção” a que se refere a alínea a) do número 1 do artigo 249" do Código Penal (...)”.

9.º-Nesta perspectiva de leitura e interpretação dos elementos do tipo do artigo 249.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, os factos indiciados nos autos não integram a previsão desta norma penal.

10.º-A “subtracção de menor” da alínea c) do n.º 1 do artigo 249.° do Código Penal assenta no incumprimento das obrigações decorrentes do regime fixado ou acordado de regulação das responsabilidades parentais de menores.

11.º-No caso concreto, por ausência de qualquer regime estabelecido pelo Tribunal para a convivência do menor, os factos indiciados não integram a previsão da alínea c) do referido artigo 249.°, n.º 1, do Código Penal.

Assim e concluindo, entende-se ser de negar provimento total ao recurso interposto pelo Assistente, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

II-Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer por via do qual propugnou a procedência do recurso, enquadrando a situação dos autos na al. a) do n.º1, do art. 249.º do Cód. Penal, mais propugnando que caso assim não se entenda, dever-se-á considerar inconstitucional a interpretação daquela norma, segundo a qual, a mesma não será aplicável ao progenitor do menor subtraído quando não haja regulação de responsabilidades parentais, por violação do art. 36.º, n.ºs 5 e 6 da CRP.
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No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Tendo os autos sido submetidos à apreciação da conferência.

III-1.)De harmonia com as conclusões apresentadas, consabidamente definidoras do respectivo objecto, a questão essencial colocada pelo recurso interposto pelo Assistente J., converge na indagação, colocada essencialmente no plano jurídico, de se a Arguida deve ser pronunciada pela prática do referido crime de subtracção de menor que se lhe pretende imputar com a instrução, sendo que na sua negativa, haverá que apreciar também a incidência de inconstitucionalidade agora suscitada pelo Exm.º Procurador na presente Instância.

III-3.2.)Como temos por habitual, vamos conferir primeiro o teor do despacho de que ora se discorda:

“Investigou-se em sede de inquérito a prática, pela arguida O., melhor identificada a fls. 6, de um crime subtracção de menor, havendo sido proferido no fim daquela fase processual o despacho de arquivamento de fls. 37 a 38.
Inconformado o assistente requereu a abertura de instrução nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 166 a 177.
Procedeu-se à instrução com a inquirição de testemunha, declarações do assistente, junção de documentos e realizou-se o debate instrutório.
***

O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade.
Não há nulidades, excepções ou questões prévias que cumpra conhecer.
***

Na sequência do despacho de arquivamento de fls. 37 a 38, requereu o assistente a abertura de instrução nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 166 a 177, pedindo a pronúncia da arguida pela prática de um crime subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249.° do CP.
No despacho de arquivamento já referido escreveu o Ministério Público que, estando queixoso e denunciada casados, e estando o queixoso a trabalhar na Arábia Saudita, em Março de 2015 a denunciada começou a impedir aquele de ter acesso ao filho, via internet, a ocultar-lhe o paradeiro do mesmo, a impedi-lo de ter acesso à residência do casal em Portugal, acabando o denunciante por saber, via internet, em 1 de Março de 2015 que a sua mulher e o seu filho já não residiam no mesmo domicílio e que esta teria partido com a criança para a Alemanha. O Ministério Público entendeu determinar o arquivamento do inquérito por os factos não integrarem um crime de subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, al. a), do CP.
Em sede de instrução foi ouvido o ofendido e a testemunha M.G..
Das declarações produzidas pelos dois decorre, sem dúvida, encontrarem-se fortemente indiciados os factos descritos nas alíneas a), b), c), d), e) e f) do requerimento de abertura de instrução, a fls. 168 e 169.
Por outras palavras, encontra-se demonstrado nos autos que o ofendido e a denunciada estão casados entre si tendo um filho comum. O casal tinha residência habitual em Lisboa, num quarto arrendado à testemunha M.G., estando a criança e a mãe em Portugal e o pai fora do país a trabalhar. Dúvidas não há também que o ofendido mantinha, quer com a mulher quer com o filho, contacto regular, pela internet, deslocando-se a Portugal com alguma frequência e permanecendo na residência da Rua do Salitre. Resultou ainda demonstrado que era o denunciante quem suportava os custos com o arrendamento do quarto e entregava à mulher a quantia necessária ao sustento desta e do filho comum do casal. Dúvidas não há também, que foi através da testemunha que o queixoso acabou por ter conhecimento da ausência do território nacional da sua mulher e do seu filho e que perdeu completamente o contacto com este, sendo que a mãe saiu do território nacional acompanhada da criança sem o conhecimento do ofendido e sem que este tivesse, como é óbvio, prestado o seu consentimento para tal. Não há notícia nos autos que os cônjuges se encontrassem de alguma forma desavindos ou que se justificasse a conduta da mãe do menor.
Como se disse no despacho de arquivamento, a redacção do artigo 249.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal assenta na “subtracção”, consistindo esta em retirar o menor de quem legitimamente o tenha a cargo. No caso dos autos, pese embora a guarda do menor estivesse de facto cometida à mãe - uma vez que o pai se encontrava ausente do território nacional - o exercício do poder paternal cabia aos dois cônjuges. Tem sido entendimento unânime que, no caso do exercício do poder paternal pelos dois progenitores, a retirada por parte de um deles do local onde habitualmente o menor resida e o afastamento em relação ao outro, não preenche o conceito de “subtracção” a que se refere a alínea a) do número 1 do artigo 249.° do Código Penal (por todos veja-se o “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, Tomo II, edição de Dezembro de 1999, página 613 e seguintes).
De acordo com a mesma obra, aquele artigo visa a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado do menor - no caso os dois progenitores, estando a protecção pensada para o bem estar do menor.
No requerimento de abertura de instrução, defende o assistente que a conduta descrita preenche a previsão actual da alínea c) do numero 1 do artigo 249.° do Código Penal que determina que: “Quem, de um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação de exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou recolhimento, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Defende o assistente que a previsão daquela alínea não pode só reportar-se ao incumprimento do regime estabelecido pelo tribunal no caso de desavença dos titulares do poder paternal, mas deve também reportar-se ao incumprimento do regime estabelecido pelo Código Civil, regime este do qual decorre a paridade no exercício dos poderes e deveres que caracterizam o poder paternal.
Tendo em consideração aquele que é entendido como o bem jurídico protegido pela referida disposição legal, tudo parece apontar no sentido de assistir razão ao assistente. Na verdade, não se nos afigura sensato que dois progenitores já desavindos, com desavenças que justificaram a intervenção do Tribunal, vejam, no caso de incumprimento por parte de um deles, esse incumprimento merecer tutela penal e que, de forma completamente distinta, dois progenitores, casados entre si, sem notícia de desavença relativamente ao exercício do poder paternal, não vejam um deles responsabilizado o outro, quando este retire ao primeiro, de forma súbita e injustificada, o exercício desse poder, desaparecendo sem deixar qualquer hipótese de contacto entre o menor e um dos seus progenitores. Entendemos que, ao não ser susceptível de responsabilização criminal esta segunda conduta, não está a ser devidamente acautelado o bem jurídico visado por aquele preceito, entendendo-se ser este bem jurídico a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor, protecção esta pensada para o bem-estar do menor e não para a protecção dos titulares dos poderes.
No entanto, e apesar disso, entendemos que essa interpretação não cabe na letra da lei. Na verdade, a alínea c), para além de se referir ao incumprimento de um “regime estabelecido” - tudo parecendo apontar que se está a reportar a um regime estabelecido por um terceiro, no caso, o Tribunal -, acrescenta “ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento”. Ou seja, decorre da letra da lei que os dois progenitores não tenham uma guarda do menor conjunta, ou o exercício conjunto do poder paternal; antes decorre da lei, ao reportar-se à “entrega” ou “acolhimento” do menor, haver transição do menor entre os dois progenitores, já previamente estabelecida e que um dos dois incumpre. Fora deste âmbito cai, no nosso entendimento, o exercício conjunto das responsabilidades e deveres parentais, ainda mais tratando-se de cônjuges casados entre si e com um único domicilio, em que não se verifica esta pressuposição de entrega do menor de um para o outro progenitor.
Por todo o exposto, entende-se que a conduta da denunciada não integra nem a previsão a alínea a) do n.° 1 do artigo 249° do Código Penal nem para já, e por ausência de qualquer regime estabelecido pelo Tribunal para a convivência do menor, a previsão da alínea c) do mesmo preceito.
Face ao exposto decido não pronunciar a arguida.
(…)”


III–3.1.)-Tal como já se mostra referido nas peças processuais atrás deixadas em evidência, preceitua o art. 249.º, do Código Penal, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que:

1.-Quem:
a)Subtrair menor;
b)Por meio de violência ou de ameaça com mal importante determinar menor a fugir; ou
c)De um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação de exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou recolhimento, é
punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

No caso ora em discussão, são aquelas primeira e terceiras alíneas as que o Assistente coloca em alternativa para o preenchimento do crime de subtracção de menor que pretende ver imputado à Arguida O. por via da abertura da instrução por si requerida.

Sendo que ao nível indiciário, nada parece objectar-se ao alinhamento factual que se mostra efectuado no despacho recorrido, ou seja, que:

a.-O Participante J., cidadão dos Estados Unidos da América e a Participada O., cidadã da República do Quénia, são casados um com o outro e pais de uma criança do sexo masculino, de seu nome M.W., cidadão dos Estados Unidos da América, nascido na Coreia do Sul em 26 de Março de 2011, contando actualmente quatro anos de idade.
b.-Em Agosto de 2015 a Participada e o filho do casal viviam habitualmente em Lisboa, o que acontecia desde o ano de 2013, tendo, então, residência habitual na Rua do Salitre, , numa casa que fora arrendada ao casal, em 2014, por M.G..
c.-Nesse mesmo mês de Agosto de 2015 o Participante trabalhava na Arábia Saudita, ali residindo temporariamente na M. Street, Bulding 37, Jeddah, Al-Ruwais District.
d.-No dia 29 de Agosto de 2015, cerca das 17 horas, a Participada abandonou o domicílio conjugal instalado na Rua do Salitre, em Lisboa, levando consigo o filho do casal, sem o conhecimento ou autorização do Participante.
e.-No dia 30 de Agosto de 2015, a Participada contactou com a sua senhoria, M.G., informando que se encontrava em Espanha e que pretendia deslocar-se para a Alemanha, tendo, a partir daí, apagado a sua conta do facebook e deixado de responder às mensagens ou contactos da referida M.G. ou, que se saiba, qualquer outra pessoa.
f.-A partir dessa data e até hoje o Participante deixou de ter qualquer contacto com seu filho, de conhecer o seu estado e de saber o seu paradeiro, consequências estas decorrentes dos actos descritos em d) e e) supra.

III-3.2.)-Haverá que conceder que a hermenêutica das disposições acima referidas, para além de não se asseverar das mais simples, pode também suscitar menor adesão sobre certas soluções preconizadas pela Doutrina ou pela Jurisprudência, sobretudo se com elas se tiver em vista uma perspectiva amplificativa do seu âmbito de protecção, ainda que justificada pelo propósito elevado de conferir guarida a certas situações concretas em que a afectação dos direitos da criança pode sobressair em primeiro plano, mas que aparentemente não foram acauteladas pelo Legislador.

Com efeito, se se concede na validade ou premência de tais interesses, importa ainda assim não perder de vista um elemento sempre essencial para a interpretação e compreensão deste ramo específico do Direito.

Tal como logo ao início do seu artigo “O Crime de Subtracção de Menor – Uma leitura do reformado art. 249.º do Código Penal” (Revista Julgar, n.º7, pág.ª 100), o sublinha André Lamas Leite, “(…) o Direito Penal deve ser a ultima ratio da intervenção estadual nas relações sociais e (…), em desenvolvimento desta ideia, que essa mesma intervenção deve ser fragmentária”.

Ora, “esta é das áreas em que mais se verifica uma décalage entre o ser e o dever-ser, porquanto o legislador continua, de modo crescente, a lançar mão das sanções criminais como forma de assegurar o cumprimento de normas jurídicas que pouco ou nada contendem com valores fundamentais comunitários e em que o arsenal punitivo do Direito Criminal, mais do que solucionar alguma coisa, em regra acicata o problema”.

É certo que a realidade que subjaz a esta área de regulamentação não tem deixado de assumir uma complexidade crescente.

Esta é uma “época marcada por profundas mutações a nível relacional entre os seres humanos,” são novos “os desafios e os perigos que se colocam à família que alguns apelidam de «pós-moderna»”; As hipóteses de crise familiar multiplicaram-se:divórcio, ruptura da vida em comum de quem viva em condições análogas às dos cônjuges ou simplesmente em relação de proximidade existencial sem carácter de permanência; disputa pelo exercício do poder paternal, rectius, das responsabilidades parentais, sejam as pessoas em conflito progenitores, parentes ou afins dos menores ou meros «guardiães de facto»…
 
A própria definição de bem jurídico protegido não deixou de ficar incólume a esta dinâmica evolutiva.

Na esteira do pensamento vertido por Damião da Cunha no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, p. 614 e 615, tinha em vista assegurar, até de uma forma reputada de “evidente”, “a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor – sejam os titulares do poder paternal (cf. arts. 1901º, 1906º e 1907º do CC) ou de tutela (cf. Art. 1927º e ss. do CC) ou mesmo pessoas colectivas ou individuais a quem a criança tenha sido confiada (art. 1907º do CC);”.

É claro que já nessa altura não deixava de consignar, que “a razão dessa protecção esteja pensada para o bem estar do menor (que, de resto, é a justificação para a existência daqueles poderes-deveres) e não para a protecção dos titulares dos poderes. Parece, pois, claro que as condutas de subtracção de menor, para serem puníveis, têm de consistir numa ofensa (ou num perigo de ofensa) àqueles poderes, estando este elemento implícito mesmo naquelas modalidades de conduta que o não referem (cf. as als. a) e b) do n.º1 do presente artigo).”

Só que este interesse mediato ou indirecto, não deixou de se agigantar, não faltando hoje quem defenda que o bem jurídico protegido pela norma é o interesse da criança (neste sentido, Maria Clara Sottomayor - Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 5ª Edição, Almedina, 2011).


E no fundo, é essa a perspectiva que basicamente se quer veicular no recurso interposto ou mesmo no Parecer do Ministério Público nesta Instância: “A ratio legis contida no artigo 249.º do CP é, em primeiro lugar, a proteção dos interesses do menor”.

Ainda assim, continuaremos a preferir a formulação defendida a este título por André Lamas Leite, na obra já acima indicada:

“De facto, (…) o bem jurídico protegido com a incriminação é, fundamentalmente, o direito ao exercício sem entraves ilícitos dos conteúdos ínsitos às responsabilidades parentais e, de modo reflexo, o interesse do próprio menor no adimplemento de uma decisão que, nos termos da lei, surge - ou deve surgir - como aquela que melhor acautela esses interesses (…)”.

Ou mais abaixo, na contemplação mais directa da incriminação constante da al. c) do n.º 1:

“ (…) o bem jurídico a surpreender na redacção ora introduzida ao art. 249.º, n.º 1, al. c), continua a ser a garantia da integridade do exercício dos poderes-deveres inerentes às responsabilidades parentais, devendo este comando ser sempre lido em conjugação com os arts. 1906.º a 1908.º do CC, cujo respeito a norma penal visa garantir. Reconhecemos que a figura-de-delito protege, também, o próprio interesse do menor na manutenção de laços de grande proximidade com cada um dos seus progenitores, o que não significa, em nosso juízo, estarmos perante um crime pluriofensivo.

Na verdade, para se usar com propriedade este conceito técnico-jurídico, essencial seria que se pudessem divisar dois autónomos interesses penalmente tutelados, como sucede, p. ex., com o roubo. No delito de subtracção de menor, uma vez que as responsabilidades parentais se concretizam em um feixe de poderes-deveres ou direitos-função, há uma inequívoca relação umbilical entre o interesse dos progenitores e o do respectivo menor cujo interesse serve de pólo aglutinador de todas as acções e de critério-guia nas concretas decisões de exercício. O que vale por dizer não serem eles estanques, no específico sentido de que cada um obedece a um programa de tutela criminal, o que sempre impediria que apodássemos o delito de pluriofensivo. Por outras palavras: sendo as responsabilidades parentais direitos funcionalmente orientados e pré-determinados, afigura-se exacto defender que o essencial do programa protector da norma é o interesse do menor. Contudo, tal não significa que sejam as crianças, elas próprias, as portadoras do bem jurídico, na medida em que são os titulares das responsabilidades parentais que organizam o exercício do feixe dos direitos-função com o objectivo de satisfazer aquilo que for em melhor interesse do menor. Por outras palavras, cabe aos progenitores «o primado na determinação do interesse dos filhos».”

III-3.3.)-A este ponto chegados, consideramos ser mais simples começar por verificar se os factos indiciados preenchem a mencionada alínea c) do n.º 1, do art. 249.º, do Cód. Penal, sendo que a respectiva resposta, na nossa perspectiva, terá de ser negativa.

Porquê?

Porque entendemos que a referência feita a um “regime estabelecido” no respectivo tipo objectivo, até pela sua literalidade, comporta a ideia de que o incumprimento de que aí se fala, não corresponde a uma simples auto-regulamentação ou decorrência legal, supletiva ou não, antes pressupõe a fixação do exercício das responsabilidades parentais através de uma decisão judicial ou acordo homologado.

Neste sentido confira-se uma vez mais a opinião de André Lamas Leite vertida no estudo indicado:

“Não existindo ainda a fixação do modo de exercício das responsabilidades parentais por qualquer das modalidades admitidas por lei, não há preenchimento do tipo. Se o recurso de eventuais decisões tiver efeito meramente devolutivo, a execução do que fica determinado já abre espaço aplicativo ao crime em estudo. Ao invés, o efeito suspensivo do recurso, impedindo essa mesma execução, faz com que as condutas posteriores à decisão não pertençam ao domínio típico do art. 249.º, n.º 1, al. c).
Havendo, v. g., separação de facto entre os pais da criança, e um dos progenitores levando consigo o filho de ambos, recusando-se a que o outro o veja, a inexistência de uma solução do conflito por uma autoridade pública afasta o crime do art. 249.º, n.º 1, al. c), não sendo também, na generalidade dos casos, equacionável o crime de sequestro por inexistência da direcção da vontade do agente no sentido da privação da liberdade de movimentos do menor, restando pois, aqui, como regra, um espaço livre da intervenção penal.
O tipo não abrange também o exercício das responsabilidades parentais na constância do matrimónio, exercido em conjunto por ambos os pais (art. 1901.º, n.º 1, do CC), tanto mais que, mesmo quanto aos actos praticados apenas por um deles, a lei estabelece, como princípio, uma presunção iuris tantum de comum acordo (art. 1902.º, n.º 1, do CC). Pela própria natureza das coisas - dado existir o impedimento ou a morte de um dos pais -, fora do âmbito típico do crime de subtracção de menor quedarão ainda as factualidades abrangidas pelos arts. 1903.º e 1904.º do CC.

O mesmo entendimento mostra-se perfilhado no estudo da Exm.ª Procuradora da República Ana Teresa Leal, “A tutela penal nas responsabilidades parentais – O Crime de Subtração de Menor” - “Data Venia, Revista Jurídica Digital,  largamente convocado no douto Parecer do Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto.

Com efeito:

“Um dos elementos típicos do crime previsto na al. c) é, pois, a violação do regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais.
É pressuposto da verificação do crime a fixação do exercício das responsabilidades parentais em qualquer das modalidades previstas na lei. Tal pode ter lugar em ação própria de regulação das responsabilidades parentais, que corre termos no tribunal, ou no âmbito de uma ação de divórcio que, consoante as situações, será intentada no tribunal ou na Conservatória do Registo Civil.
Claro está que este elemento do tipo do ilícito poderá igualmente estar preenchido se o regime tiver sido fixado antes da entrada em vigor das alterações da Lei 61/2008, no âmbito de uma ação de regulação do exercício do poder paternal, pois em causa está, apenas, uma diferente terminologia para uma mesma realidade.  
De notar que a decisão a fixar o regime de regulação das responsabilidades parentais não tem que ser, obrigatoriamente, uma decisão definitiva e transitada em julgado.”

Tem, em todo o caso, que ser uma decisão emanada por quem esteja dotado de autoridade para a produzir ou a homologar, e poder desencadear tais efeitos.

Por exemplo, a eventual violação, mesmo que reiterada e injustificada, do regime de convívio dos progenitores com o seu filho, fixado num processo de promoção, segundo esta Autora, não preenche a alínea c) do normativo em causa.

Ora em função dos elementos indiciários disponibilizados, no caso em apreciação, decisão com tais características inexiste em absoluto.

Pelo que faltando tal pressuposto, nesta parte, motivos não existem para se alterar a decisão de não pronúncia que foi proferida.

III-3.4)-Vejamos agora a mesma questão na perspectiva da respectiva al. a):

Haverá que começar por fazer anotar, que neste segmento, a Lei mantém a sua redacção anterior, ou seja, a modalidade de acção que se tem em vista incriminar era, como hoje em dia continua a ser, a “subtracção” do menor.

O que deve ser entendido por este conceito?

Para Leal-Henriques Simas Santos, no seu Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, 3.ª Ed., 2.º Vol., pág.ª 1063, “subtrair significa apropriar-se, o que leva a concluir que a consumação do delito pressupõe que o menor fique submetido ou à disposição da pessoa que o retirou ou reteve, ou seja, que permaneça fora do controle da pessoa a cuja guarda ou direcção se encontrava legitimamente.

Dito por outras palavras: «na subtracção, o menor é tirado do poder de quem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial» (Cortês de Lacerda, Comentário ao Código Penal Brasileiro, VIII, 482)”.

Daí que, o acórdão da Relação de Coimbra de 18/05/2010, no processo n.º 35/09.8TACTB.C1 (disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrc), tenha entendido que:

“Reportando-nos à alínea a), a «subtracção de menor» pressupõe necessariamente um agente que não detenha poderes (e deveres) relativos à custódia do menor, «subtrair» significa, no contexto típico da norma, retirar o menor do lugar, do espaço e do círculo da pessoa (ou da instituição) a quem está confiado, seja no âmbito do regime das responsabilidades parentais, da tutela ou da guarda por decisão de uma autoridade competente; deste modo, quem detiver a guarda do menor não poderá, por exclusão típica, ser agente do crime, precisamente porque a incriminação se destina a proteger e a garantir os direitos e os poderes que cabem a quem aquele seja confiado.

«A subtracção consiste em retirar um menor do domínio de quem legitimamente o tenha a cargo. Isto significa que deve, pela subtracção, ser eliminado, ou pelo menos gravemente afectado, o exercício da relação de poder entre o titular do mesmo e o menor»”.

No fundo, o tal entendimento tido por maioritário, Doutrinal e Jurisprudencialmente, em como não preenchiam qualquer das situações previstas no art. 249.º, os casos em que um dos inadimplentes era progenitor.

Como é que a situação deve ser perspectivada nos termos actuais?

Nesta parte, a exposição que conhecemos mais detalhada (a generalidade dos acórdãos produzidos sobre este crime reportam-se à hipótese da al. c), é a que se mostra expendida pela Dr.ª Ana Leal no estudo supra-referido:

“Atualmente e por força das novas regras introduzidas pela Lei 61/2008 de 31 de outubro, as responsabilidades parentais são sempre exercidas em conjunto por ambos os progenitores no que respeita às questões de particular importância, só assim não o sendo quando, sempre por decisão judicial devidamente fundamentada, tal exercício for considerado contrário aos interesses do filho.[1]    
Temos, pois, que na lei atualmente em vigor o exercício das responsabilidades parentais em exclusivo apenas por um dos progenitores, só pode ter lugar quando exista uma decisão judicial que institua tal regime ou quando a filiação se encontra estabelecida apenas relativamente a um dos progenitores.
Para além destas situações há ainda que ter em conta todos os casos em que a respetiva fixação do regime tenha tido lugar no âmbito do normativo em vigor antes das alterações introduzidas pela Lei 61/2008, e em que a regra era, então, a atribuição do exercício do poder paternal a apenas um dos progenitores, o que alarga em muito o universo das situações em que o exercício das responsabilidades parentais cabe em exclusivo a apenas um dos progenitores.
Estando em causa o exercício unilateral das responsabilidades parentais se o menor for retirado da esfera de poder do progenitor que tem a sua guarda, pelo outro progenitor ou por terceiro, a conduta pode integrar a prática do crime de subtração de menor previsto na al. a) do artigo 249º do Código Penal.
O agente no tipo legal consagrado na alínea a) tem necessariamente que ser alguém que não exerce legalmente a guarda sobre o menor. O progenitor com quem o menor reside habitualmente não pode incorrer na prática do crime consagrado na al. a) do preceito. 
 
3.8.-Nas situações em que o exercício das responsabilidades não se encontra fixado por qualquer decisão e apenas decorre nas normas legais consagradas na lei civil, porque a regra é o seu exercício por ambos os pais, nenhum deles pode incorrer na prática do ilícito em causa uma vez que a guarda, como uma das vertentes das responsabilidades parentais, não se encontra atribuída, por lei, a um deles em especial e não existe qualquer decisão legal definidora da situação.” (sublinhados nossos).

Julgamos ser esta, exactamente, a situação que temos presente.

A fixação das responsabilidades parentais que no caso vigora, é a que resulta apenas da lei civil, sendo que era a arguida quem, de facto, tinha a guarda do menor, pois que o outro cônjuge, por razões laborais, encontrava-se a viver em país diverso - Arábia Saudita.

Em Agosto de 2015, verifica-se uma mudança da Recorrida e do menor da respectiva residência, em Lisboa, para local desconhecido.

Em si mesmo, tal facto, na sua objectividade, não quer significar forçosamente que tenha existido, enquanto tal, subtracção daquele último.

Aceitamos todavia, plenamente, que a situação ora criada é susceptível de afectar o exercício das faculdades parentais do Assistente, mormente inabilitando-o de poder assumir os poderes-deveres decorrentes dessa situação e impedindo-o de poder beneficiar do contacto directo com o menor nas suas valências afectivas ou de proximidade, da mesma forma que pode contender com o direito da criança a esse acesso ou um desenvolvimento pessoal mais equilibrado, frutuoso e integrado, já que são essas as vantagens que a tal interacção é suposto proporcionar.

Da mesma forma que não deixamos de emprestar um cunho ilícito ao comportamento registado.

Só que, em consonância com os Autores supra-indicados, não encontramos aí uma ilicitude penal.
Para usar uma expressão emblemática do primeiro (Lamas Leite, obra citada, pág.ª 118), estaremos perante “um espaço livre” dessa intervenção.

III-3.5.)-Se de forma tão extensiva fazemos apelo à Doutrina acima transcrita, é sobretudo para deixar evidenciado que nenhum deles questiona o conjunto de axiomas jurídicos essenciais que também se mostram encarecidos no recurso ou no parecer apresentados.

Desde logo, a afirmação de que “do art. 36.º, n.º 6, da Lei Fundamental, se retira ser a proximidade física entre os progenitores e os seus filhos um direito, liberdade e garantia pessoal nuclear nas responsabilidades parentais - verdadeiro «princípio constitucional do Direito da Família» -, a qual só será eficazmente assegurada quando se não passar para a comunidade a ideia de que a sua violação não encontra resposta do prisma criminal. Estamos, no art. 36.º, n.º 6, da Constituição, perante um «bem constitucionalmente protegido na sua dupla dimensão objectiva-subjectiva, uma vez que o princípio da não separação entre pais e filhos é, simultaneamente, uma garantia da unidade familiar e, no plano subjectivo, não apenas um direito subjectivo dos pais (…), mas também um direito subjectivo dos filhos (…)». Mesmo no Direito Internacional Público, este princípio é sucessivamente afirmado”.

Depois, a sustentação em como com o assegurar do cumprimento de uma decisão judicial ou acordo homologado [está-se a pensar especificamente na incriminação constante da al. c)] “defende-se também o interesse do menor nesse relacionamento de proximidade. Aliás, a partir do momento em que se protege essa interacção, não poderíamos deixar de garantir a sua bilateralidade, sob pena de, pura e simplesmente, existir um monólogo relacional (contradição nos termos) e não um diálogo relacional.”

Em seguida, que a “«realização pessoal» dos membros da família (seja a do progenitor não guardião, p. ex., e a do próprio menor), proclamada no art. 67.º, n.º 1, da Constituição, só se consegue quando estiver assegurado o adimplemento da decisão que espelha uma ponderação dos órgãos competentes quanto ao exercício das responsabilidades parentais, tratadas como «valores sociais eminentes» (art. 68.º, n.º 2, da Constituição) e cujo exercício pleno (por pais e mães) se considera «insubstituível» (n.º 1 do mesmo comando)”.

Da mesma forma que “o «desenvolvimento integral» dos menores, ínsito no art. 69.º, n.º 1, da Lei Fundamental, passa ainda pela inexistência de estorvo à convivência com aqueles que, nos termos da lei, não detendo o munus das responsabilidades parentais, gozam de direitos de visita, acompanhamento e informação sobre o crescimento da criança enquanto pessoa. Tanto mais que esse direito de visita assume a natureza jurídica de um verdadeiro «direito natural nascido do amor paterno e materno, que resulta da natureza (…) e é reconhecido pela lei» como um «direito-função»”.

Por fim, que “a jurisprudência do TEDH tem defendido, de modo constante, que o art. 8.º da CEDH consagra não apenas uma exigência de abstenção dos Estados face às relações jurídico-familiares, mas também direitos de conteúdo positivo, concretizando-se na garantia de qualquer dos progenitores manter contactos regulares com os seus filhos, fazendo impender sobre os Estados o dever de criarem mecanismos legais expeditos para o cumprimento, p. ex., do direito de visitas e do retorno do menor ilicitamente saído do País onde tem domicílio” (cfr. André Lamas Leite, Obra citada, pág.ªs 121/122).

Também para a Dr.ª Ana Leal não haverá dúvidas de que “o interesse da criança tem de ser erigido como o núcleo central dos interesses que a norma visa tutelar pois a criança é o centro e a destinatária primordial do regime legal em vigor. A salvaguarda do seu superior interesse é a trave mestra de qualquer decisão que a afete e aquele interesse é obrigatoriamente tido em conta e devidamente ponderado aquando da fixação do respetivo regime de exercício das responsabilidades parentais ou da instituição da tutela”. 

Ou mais abaixo “para que o superior interesse da criança esteja devidamente garantido é imprescindível que o exercício das responsabilidades parentais possa ser levado a cabo de forma plena e sem obstáculos ou atropelos. Certo é, no entanto, que tal desiderato só é alcançado se os poderes conferidos aos progenitores se mostrarem devidamente defendidos”, sendo que para o efeito dessa protecção, não se poderá “nunca dissociar a criança dos seus progenitores ou de quem a tem a seu cargo e a responsabilidade de dela cuidar. 

A proteção da norma envolve agora, de forma clara e inequívoca, estas duas vertentes pois com a nova redação introduzida pela Lei 61/2008 deixou tal proteção de se centrar na vertente da guarda e passou também a abranger as relações da criança com o progenitor com quem não reside habitualmente, as quais se pretendem regulares e gratificantes, o mais próximo possível daquelas que existiam quando a família vivia em comunhão”.

Mais dirá expressamente, que “o direito do menor a conviver com ambos os progenitores em plenitude e sem constrangimentos é agora, de forma clara e inequívoca, protegido com a norma incriminadora mesmo que apenas mediatamente, conforme defende o mesmo autor que afirma”.

Ainda assim, a solução que ambos propugnam para a questão que ora nos ocupa é aquela que acima se apontou, o que no caso reverte para um juízo de não pronúncia por a situação deixada acima traçada não se subsumir a nenhuma das alíneas do n.º1, do referido art. 249.º.

III-3.6.)-Em relação à al. a), essencialmente porquê?

-Por o carácter de ultima ratio da intervenção estadual e do Direito Penal nas relações sociais assim o apontar.

-Porque para dar resposta a situações como as presentes, existe solução legal adequada no ordenamento Convencional em vigor:
“Se a deslocação ocorrer para um país que não integre a U.E., aplicar-se-ão as regras da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980. Caso a deslocação ocorra para um país da U.E., regerá em primeira linha o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro que, por seu turno, no seu Considerando 17, manda aplicar aquela Convenção.”
 
-Por ser essa a solução que se tem por mais consentânea com os princípios de interpretação e hermenêutica penal.

Ainda que o interesse da criança esteja sob o alcance de defesa da norma, é em primeira linha a integridade do exercício dos poderes-deveres inerentes à parentalidade ou à sua tutela, o que o preceito visa sobretudo proteger. 

Subtrair é substancialmente diferente de recusar a entregar, tanto assim que, o legislador teve necessidade de diferenciar os dois comportamentos e colocá-los em alíneas distintas do preceito legal. 
Subtrair menor, por contraposição à recusa de entrega, significa retirá-lo da esfera de actuação de quem o tem a seu cargo naquele momento, sendo que a interpretação histórica não consente numa leitura mais amplificativa.
Com efeito, à luz da redacção do anterior art. 196.º, n.º1, considerava-se que a punição envolvia qualquer dos progenitores, sendo que, com a Reforma de 1995, passou a assumir a formulação actual desta alínea.
*

Seguramente que algumas das soluções legais agora introduzidas “não podem deixar de causar estranheza e perplexidade” em face dos interesses tutelados.
Em todo o caso, tal não legitima que se faça uma interpretação da norma que lhe conferira uma latitude que não tem correspondência com a sua letra, por a tal se opor o princípio da tipicidade, desdobramento daquele outro, da legalidade.

III-3.6.)-Também no plano indiciário, por referência à integração do conceito aqui central de subtracção assaltam-nos algumas inquietações.

Como já acima deixamos exarado, não se põe em causa que na objectividade da situação reportada, resulta uma situação limitadora dos poderes parentais do Assistente, mais não seja pela razão simples de ter ficado impossibilitado de os exercer em concreto, para além do que, acabou por perder o “rasto” do seu filho.

Ora, ainda que não sejam conhecidas desavenças ou conflitos entre o casal, seguramente que algo de menos explicado terá sucedido, pois que de doutra forma será difícil compreender esta não comunicação antecipada da mudança de residência ou a não informação do paradeiro actual de ambos.
Aliás, do que se lê no processo, existirá mesmo até a intenção de o ocultar.

Em todo o caso, será o menor que foi “subtraído” ou será que é o casamento que não se quer manter, e a situação que temos presente não é o objectivo fulcral da actuação da arguida, mas antes uma sua consequência necessária ou eventual, … ou nem sequer isso?
Para todos os efeitos, desconhece-se em absoluto a versão da “outra parte”.

Pelo que, para além das questões de tipicidade acima já referidas, que quanto a nós se bastam a si próprias, acresce-se um desconhecimento relativo sobre o que realmente se passou, mormente para conformar juridicamente a respectiva acção no tipo da al. a).

III-3.6.)-Vejamos por fim a questão suscitada pelo Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, ou seja, a conformidade constitucional da interpretação do  n.º 1 do art. 249.º do Cód. Penal, ao advogar a sua não aplicabilidade ao progenitor do menor subtraído “quando não haja regulação de responsabilidades parentais”, por violação do art. 36.º, n.ºs 5 e 6 da CRP.

O preceito em causa, como é sabido, contempla na nossa Lei Fundamental a área da família, casamento e filiação, sendo que as disposições normativas referidas estatuem em concreto:

5.-Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
6.-Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
 
Ora por aqui logo se vê, que as mesmas não interceptam directamente com a solução interpretativa a que acima se faz referência.
A regulação não tem em vista anular o direito, antes harmonizar o seu exercício nas situações em que sejam concorrentes.
Na hipótese do n.º 6, ainda que não assemelhável à que temos presente, o que a Constituição exige é precisamente a existência não só de uma decisão, mas mais do que isso, que seja judicial.

Como é óbvio, não existe um direito dos pais fazerem o que quiserem dos filhos, ou que por ser progenitor pode “dispor do filho como muito bem entender”.
Mesmo em função da Doutrina invocada, que como vimos, em nada difere da que aqui se expôs, a questão é mais complexa.

Desde logo, haverá que distinguir a situação da al. a) em relação à da al. c).
Nesta última, a existência de regulação prévia por decisão de autoridade com poderes para a proferir é não só uma exigência típica e literal inderrogável, como uma exigência postulada pelo bem jurídico protegido e da própria legitimidade justificativa da incriminação.

E nesta conformidade, não se poderá conceder numa interpretação extensiva da mesma, ainda que fundada em motivos valiosos como os indicados.

Em relação à al. a), por parte do Doutor Lamas Leite, tal dependência fica mais pressuposta do que afirmada expressamente.

Já para a Dr. Ana Leal a tal exigência de regulação/decisão não é de afirmar em todas as situações:

“No que tange à necessidade de, em processo próprio, ter havido uma decisão sobre a quem e de que modo cabe a guarda do menor, temos que, no que concerne às responsabilidades parentais, para o preenchimento do ilícito previsto na al. a), não se torna necessário ter sido regulado o seu exercício, desde que o autor do crime não seja um dos progenitores.
Sempre que a conduta tenha lugar por parte de um terceiro e ofenda os poderes deveres decorrentes da parentalidade, é indiferente que o exercício das responsabilidades parentais tenha sido objeto de decisão ou resulte diretamente da lei civil.”

Ou seja, o elemento decisivo para excluir a tipicidade não é apenas a preexistência de uma decisão regulamentadora das obrigações parentais, tal como pressuposto no juízo de inconstitucionalidade que é defendido pelo Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, mas também, o ser-se progenitor, funcionado tal binómio como um substrato necessário ao conceito de subtracção.

Aqui, para que a conduta possa enquadrar-se penalmente no conceito de subtração e integrar a previsão do artigo 249.º, al. a), necessário se torna que situação tenha sido definida por decisão judicial, pois só deste modo encontra proteção jurídica na norma, já que se tratam de vínculos jurídicos que, ao contrário das responsabilidades parentais, não decorrem diretamente da lei, pelo que para a sua constituição é necessária uma decisão judicial” (Data Vénia, pág.ª 26)

A este propósito, confira-se a nota n.º 32, a fls. 110, do Estudo “o Crime de Subtracção de Menor (…)”, acima largamente referenciado, mormente a inflexão da orientação no Direito italiano, decorrente de decisão da Corte Costituzionale no sentido de excluir os respectivos progenitores precisamente dos sujeitos activos do ilícito previsto no respectivo art. 573.º.

Nesta conformidade, não se convindo no referido juízo de inconstitucionalidade, manteremos o despacho recorrido.


IV–Decisão:

Nos termos e com os fundamentos indicados, decide-se pois negar provimento ao recurso interposto pelo assistente J..
Pelo seu decaimento, ficará aquele condenado no pagamento da menor taxa de justiça ex vi do art. 515.º, n.ºs 1, al. b), do CPP, e respectivo Regulamento das Custas Processuais.



Lisboa, 07.02.2017



Luís Gominho - Elaborado em computador. Revisto pelo relator, o 1,º signatário
José Adriano



[1]Artigo 1906º nº2, do C.Civil.