Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9036/11.5T2SNT.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
DIRECÇÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem natureza pessoal (e não real), significando que a obrigação de segurar se liga à pessoa que possa ser civilmente responsável e não ao próprio veículo, apesar de o seguro se reportar a determinado veículo de circulação terrestre a motor.
- Por direcção efectiva do veículo (art.º 503.º, n.º 1, do CCiv.) entende-se o poder real/fáctico sobre o mesmo, que cabe à pessoa que o utiliza, de facto, em certo momento temporal, gozando as vantagens que ele permite, e a quem, por isso, cabe controlar o seu funcionamento, relação essa de proximidade com a coisa que permite a responsabilização objectiva desse detentor na respectiva circulação rodoviária.
- A “sub-rogação” do FGA a que alude o art.º 25.º do DL n.º 522/85, de 31-12, é admitida contra os sujeitos de quem o lesado/vítima era credor indemnizatório, os responsáveis pelo facto danoso/acidente - aqueles a quem possa ser imputada responsabilidade culposa ou pelo risco nos termos dos art.ºs 500.º e 503.º, ambos do CCiv..
- O direito ao reembolso do FGA contra o proprietário do veículo ou outrem a quem este tenha conferido a direcção efectiva temporária do mesmo - como o garagista ou equiparado - ambos sujeitos à obrigação de segurar (art.ºs 1, n.º 1, e 3.º, n.ºs 1 e 3, ambos do DL n.º 522/85), não se consubstancia se estes não puderem ser responsabilizados civilmente pelos prejuízos causados pelo veículo.
- E estes não poderão ser responsabilizados se, embora sem seguro obrigatório automóvel, não tinham, aquando do acidente, a direcção efectiva do veículo, por colocado em circulação mediante acto abusivo de outrem e assim abusivamente utilizado pelo condutor causador culposo do acidente.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

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I – Relatório:

O “Fundo de Garantia Automóvel” (doravante, FGA), integrado no ISP, com sede na Av.ª da República, n.º 59, 4.º andar, Lisboa,
intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra
1.ª - Herança de N..., representada por seus herdeiros, A... e M..., residentes na ...,
2.º – M..., residente na ..,
e, subsidiariamente,
3.º – A..., com domicílio profissional no ..,
pedindo a condenação solidária dos 1.º e 2.º RR. e, subsidiariamente do 3.º R. - no caso de o motociclo estar entregue para reparação na oficina do 3.º R. - no pagamento da quantia de € 61.305,05, acrescida de juros moratórios vencidos, no montante de € 6.966,94, e vincendos, à taxa legal.
Alegou, em síntese, que:
- N... conduzia um motociclo pertença do 2.º R., veículo esse que se encontrava entregue para reparação na oficina do 3.º R. e que, por o seu condutor circular em excesso de velocidade e desatento em relação ao trânsito que o precedia, veio a embater, no dia 17/06/2005, num veículo automóvel que seguia à sua frente;
- causando a morte do passageiro do motociclo, R..., e estragos naquele veículo automóvel;
- tendo o A. indemnizado os lesados pelos danos sofridos, visto o dono do motociclo não dispor de seguro válido e eficaz;
- assistindo, por isso, ao A. o direito ao reembolso do prestado em indemnizações e despesas, acrescidas de juros moratórios, à taxa legal (art.º 25.º do DLei n.º 522/85, de 31-12, na redacção dada pelo DLei n.º 122-A/86, de 30-05).
O 2.º R., M..., contestou, impugnado diversa factualidade e alegando, em resumo, que:
- o motociclo foi entregue na oficina/stand do 3.º R., A..., para ser vendido;
- e dali foi retirado, abusivamente, sem a autorização do proprietário, pelo falecido N...;
- tal proprietário não era obrigado a ter seguro válido, pois que o veículo não foi por si, directamente ou por sua direcção efectiva, posto em circulação, mas sim colocado na dita oficina/stand.
Assim, concluindo que não detinha a direcção efectiva do veículo sinistrante, concluiu pela improcedência da acção quanto a si.
Após determinação do Tribunal, o 3.º R., A..., alegou, em suma, que não era o seu filho, N..., o condutor do motociclo em causa, mas antes o também falecido R..., enquanto interessado na sua aquisição, sendo que o proprietário desse motociclo encarregara aquele N... da respectiva venda.
O A. veio desistir da instância quanto à 1.ª R., Herança de N..., o que foi homologado.
Dispensada a audiência preliminar, saneado e condensado o processo – com factos assentes e base instrutória –, sem reclamações, procedeu-se à audiência de julgamento.
Após, foi proferida sentença – datada de 12/05/2014 –, contendo decisão de facto e de direito, pela qual a acção foi julgada totalmente improcedente.
Inconformado, veio o A. interpor o presente recurso, apresentando as seguintes
Conclusões
«A) O Mm.º Juiz “a quo” entendeu, em suma, que pelo facto de não ter ficado demonstrado que o motociclo, no dia e hora do acidente em causa, fosse tripulado no âmbito da actividade comercial, o Réu A... não estava adstrito à obrigação de segurar.
B) Ora, cumpre esclarecer que, tendo o motociclo sido entregue pelo seu proprietário no stand propriedade do Réu A... para venda, este, automaticamente, como resultado da sua actividade profissional, estava obrigado a efectuar seguro de responsabilidade civil, o que incumpriu.
C) Sendo certo que, o motociclo em causa, assim como todo e qualquer veículo que esteja na posse do Réu para venda, apenas pode ser utilizado no exercício da sua profissão.
D) Logo, não é pelo facto de o Réu ou o seu filho, ou qualquer outro funcionário o utilizar no seu interesse pessoal, e note-se com o conhecimento do Réu A..., que este deixa de estar adstrito á obrigação de segurar.
E) Pois, os veículos que o Réu A... recebe no seu stand, a partir dessa data passam a ser da sua inteira responsabilidade.
F) Pelo que, deverá ser a presente ação julgada procedente, condenando-se o Réu A..., no valor peticionado.
G) Ou, em alternativa, a entender-se que o Réu A... não estaria obrigado a efectuar seguro de responsabilidade civil, sempre teria que responder o seu proprietário, Réu M..., por incumprir a obrigação de segurar prevista no n.º 1 do art.º 2º do DL 522/85 de 31.12.
H) A douta sentença recorrida violou assim, o disposto nos n.ºs 1 e 3 do art.º 2º e art.º 25º, ambos do Decreto-Lei 522/85 de 31 de Dezembro».
Pugna, assim, pela revogação da sentença recorrida.
Não foi junta qualquer contra-alegação recursória.
Por subsequente despacho – datado de 14/07/2014 – na sequência de invocação, pelo Recorrente (em sede de alegação recursória, sem transposição para as respectivas conclusões), de contradição entre factos provados e não provados e inerente fundamentação da decisão de facto, contradição essa que tal Recorrente atribuiu a mero lapso, foi considerada “a existência de lapsos manifestos de escrita na sentença (…) determinando-se, consequentemente”, as correspondentes correcções em sede de decisão de facto da sentença (cfr. despacho de fls. 298 dos autos em suporte de papel).
Notificado deste despacho, o Apelante nada veio dizer.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 303), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados ao recurso.
Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil actualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([1]) –, constata-se que o thema decidendum, incidindo sobre a decisão da matéria de direito, consiste em saber se existia obrigação de segurar quanto ao veículo sinistrante e, em caso afirmativo, a quem cabia tal obrigação (ao R. proprietário do stand ou ao R. proprietário do veículo?).
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III – Fundamentação:

A) Matéria de facto:
Na 1.ª instância foi considerada – após a correcção operada através do dito despacho de fls. 298 – a seguinte factualidade como provada:
«1. O motociclo com a matrícula 56-71-PC era propriedade do Réu M... (alínea b) dos factos assentes);
2. Na data referida em 8. o motociclo com a matrícula 56-71-PC encontrava-se para venda no stand/oficina do Réu A... (artigo 13º da base instrutória);
3. O motociclo com a matrícula 56-71-PC foi retirado do stand/oficina do Réu A... por N... (artigo 14º da base instrutória);
4. N... nas circunstâncias descritas em 3. actuou sem o conhecimento e/ou consentimento quer do Réu A... quer do Réu M... (artigo 15º da base instrutória);
5. Na data referida em 8. o motociclo com a matrícula 56-71-PC era conduzido por N... (artigo 1º da base instrutória);
6. Na data referida em 8. o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 28-15-ZJ era conduzido por A... e era propriedade de F... (alínea c) dos factos assentes);
7. A estrada referida em 8. apresenta uma recta com visibilidade, sendo constituída por três vias de trânsito, todas no mesmo sentido de trânsito (artigo 3º da base instrutória);
8. No dia 17 de Junho de 2005, cerca das 4h00, no IC 19, ao km 2, Alfragide, na Amadora, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o motociclo com a matrícula 56-71-PC e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 28-15-ZJ (alínea a) dos factos assentes);
9. Na data referida em 8., o tempo estava bom e ambos os veículos circulavam, na via central, no sentido Sul/Norte (artigos 4º e 5º da base instrutória);
10. Nas circunstâncias referidas em 8. o motociclo de matrícula PC circulava imediatamente na retaguarda do veículo automóvel de matrícula ZJ (artigo 6º da base instrutória);
11. Na sequência do referido em 10. o motociclo de matrícula PC embateu com a sua frente na traseira no veículo automóvel de matrícula ZJ (artigo 7º da base instrutória);
12. Na sequência do referido em 8. faleceram os dois ocupantes do motociclo com a matrícula 56-71-PC - N... e J... (alínea d) dos factos assentes);
13. Como consequência directa e necessária do embate, a traseira do veículo automóvel de matrícula ZJ apresentava estragos (artigo 8º da base instrutória);
14. À data do acidente o motociclo com a matrícula 56-71-PC não dispunha de seguro válido e eficaz, porquanto não tinha transferida a responsabilidade civil de circulação automóvel para nenhuma empresa seguradora (alínea e) dos factos assentes);
15. Na sequência do referido em 8. o Autor pagou:
a. aos herdeiros de R... a quantia de 60.000 €;
b. a F... a quantia de 996,50 € relativa à reparação dos estragos do veículo automóvel de matrícula ZJ;
c. à D... a quantia de 308,55 € (artigos 10º a 12º da base instrutória).».
E foi julgado não provado que:
- Na data referida em 8. o motociclo com a matrícula 56-71-PC encontrava-se para reparação na oficina do Réu A...;
- Na ocasião referida em 10., o motociclo com a matrícula 56-71-PC circulava a cerca de 150km/hora;
- Como consequência directa e necessária do embate, o condutor do veículo automóvel de matrícula ZJ ficou com ferimentos tendo tido necessidade de receber tratamento hospitalar no Hospital de S. Francisco Xavier;
- Na sequência do referido em 8. o Autor pagou à D... a quantia referida em 15. pela avaliação dos danos do veículo automóvel de matrícula ZJ.

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B) O Direito
1. - Antes de entrar na questão jurídica nuclear do recurso, cabe referir que o Apelante, se invocou contradição no âmago da sentença, entre factos provados e não provados e respectiva fundamentação da convicção – o que fez na alegação recursória –, nada transpôs, porém, nessa matéria para as respectivas conclusões.
O que, consabido – repete-se – serem as conclusões do recorrente que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, logo determinaria o não conhecimento dessa matéria/questão de contradição.
Ainda assim, sempre se acrescentará que a contradição invocada se encontra sanada pelo subsequente despacho corrector de fls. 298, o qual, considerando ocorrer lapso manifesto, expurgou a sentença em crise dos elementos fácticos e de fundamentação dissonantes.
Com o que se conformou o Recorrente, pois que, notificado, nada veio dizer.
Donde, pois, a sanação do invocado vício.
2. - Passando à questão da obrigação de segurar – em sede de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – quanto ao veículo sinistrante.
O que entendeu o Tribunal recorrido?
Considerando que o condutor do motociclo, N..., actuou de forma negligente, como tal culposa, causando danos às vítimas/lesados, consta ainda da sentença o seguinte:
«Estão assim perfectibilizados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, impendendo assim sobre o condutor do motociclo a obrigação de indemnizar (n.º 1 do artigo 483º do Código Civil) os danos a que deu causa pelo facto (artigos 562º e 566º, ambos do mesmo diploma).
Não estando o motociclo de matrícula 56-71-PC abrangido por seguro que garantisse a responsabilidade emergente da circulação rodoviária (ponto n.º 14 do elenco factual), o Autor, em cumprimento da sobredita obrigação legal, procedeu ao pagamento de indemnizações a pessoas que identificou como lesados e suportou despesas (cfr. ponto n.º 15 do elenco dos factos provados).
Tendo o Autor assegurado o pagamento das indemnizações devidas às pessoas que identificou como lesados, assiste-lhe, nos termos conjugados dos n.ºs 1 e n.º 3 do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro (a que actualmente correspondem os n.ºs 1 e 3 do artigo 54º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto), o direito a sub-rogar-se nas respectivas posições creditícias e, consequentemente, a serem-lhe pagos os montantes despendidos (…)».
E logo acrescentou, quanto ao R. M... (proprietário do motociclo), o Tribunal a quo:
«É certo que não se apurou que o Réu seguia aos comandos desse motociclo.
Porém, na qualidade de proprietário daquele veículo (…) e de eventual responsável pelos danos por ele ocasionados, cabia ao Réu a obrigação de efectuar um seguro de responsabilidade civil automóvel (n.º 1 do artigo 1º e n.º 1 do artigo 2º, ambos do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro e n.º 1 do artigo 150º do Código da Estrada na redacção à data vigente).
Contudo, à data dos factos e como vimos, o citado motociclo não se encontrava abrangido por qualquer contrato de seguro dessa natureza.
É, pois, evidente que o Réu M... incumpriu essa obrigação.
Impõe-se, contudo, ter em conta que o motociclo de matrícula 56-71-PC estava para venda no stand/oficina do Réu A... e que daí foi retirado por N... sem o consentimento ou conhecimento do Réu M... (pontos n.ºs 2, 3 e 4 do elenco factual).
Ora, como bem se percebe, a referida actuação de N... – que corresponde a uma utilização abusiva daquele motociclo – significou, no prisma do Réu M..., a perda da direcção efectiva do citado veículo (…), já que esta passou a ser exercida por aquele.
Por outro lado, a circunstância de nos depararmos com um uso abusivo protagonizado por N... impede que possamos considerar que a condução do motociclo de matrícula 56-71-PC por este foi efectuada no interesse do Réu M... (…).
Assim, cabe concluir que o Réu M... não pode ser tido como civilmente responsável pelo sinistro em discussão, tanto mais que, por outro lado, não se alegou que N... actuava como comissário daquele Réu – cfr. n.º 1 do artigo 500º do mesmo diploma).
Consequentemente, não impende sobre o mesmo Réu o dever de ressarcir ao Autor os montantes por ele despendidos (…).».
Após o que o mesmo Tribunal afastou a responsabilidade também do co-R. A... (titular do stand).
Fê-lo com recurso à seguinte argumentação:
«… não se apurou que o motociclo de matrícula 56-71-PC lhe foi entregue para reparação mas antes para que se procedesse à sua venda (cfr. ponto n.º 2 do elenco factual), o que, desde logo e de acordo com o pedido formulado, permitiria afastar a responsabilidade deste Réu.
Em todo o caso, refira-se que a factualidade apurada aponta no sentido de que o mesmo seria um mero representante do Réu M... perante potenciais compradores do motociclo de matrícula 56-71-PC que se dirigissem ao stand que explora, devendo, pois, qualificar-se como mero detentor deste veículo (cfr. alínea c) do artigo 1253º do Código Civil).
Antevendo-se que o Réu A... se dedicava, além do mais, ao comércio de motociclos (note-se que tinha um stand/oficina – cfr. ponto n.º 2 do elenco factual), há que notar que só se lhe impunha que segurasse a responsabilidade civil em que incorresse quando utilizasse, por virtude das suas funções, o veículo que se dispôs a vender no âmbito da sua actividade profissional (cfr. n.º 3 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro), i.e. quando detivesse a sua direcção efectiva (…).
Não se alegou nem apurou que, na ocasião, o dito motociclo fosse conduzido pelo Réu A... ou que N... o tripulasse no interesse daquele e, menos ainda, que qualquer um deles estivesse aos seus comandos no âmbito daquela actividade comercial.
Nestes termos, não se pode considerar que, em face da referida previsão normativa, Réu A... estivesse legalmente adstrito à obrigação de segurar os riscos emergentes da circulação rodoviária daquele veículo.
Por isso, em face do disposto no n.º 3 do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro, não assiste ao Autor o direito a reclamar, perante este Réu, a satisfação do crédito (…).».
Contrapõe, desde logo, o A./Apelante que, por o motociclo ter sido entregue para venda, pelo dono, no stand propriedade do R. A..., este, por força da sua actividade profissional, estava obrigado a efectuar seguro de responsabilidade civil, o que incumpriu, tornando-se por isso responsável para com o FGA em sede de reembolso.
Ora, atendendo ao quadro legal aqui aplicável, o em vigor ao tempo do acidente ([2]), dispõe o art.º 25.º do DLei n.º 522/85, de 31-12 (na redacção dada pelo DLei n.º 122-A/86, de 30-05), que:
- o FGA, uma vez satisfeita a indemnização ao lesado, fica rub-rogado nos direitos deste (n.º 1);
- as pessoas que, estando sujeitas à obrigação de segurar, não tenham efectuado seguro poderão ser demandadas pelo FGA, nos termos do n.º 1, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago (n.º 3).
Assim, o FGA, após ter indemnizado o lesado, pode procurar o seu ressarcimento – pelo que haja prestado – perante os responsáveis civis pelo acidente, incluindo os sujeitos incumpridores da obrigação de segurar (no âmbito do dever de celebração do seguro obrigatório automóvel), demandando-os na acção judicial adequada.
Foi o que o aqui A./Apelante, FGA, procurou fazer nestes autos.
Porém, é certo que, tendo o condutor responsável pelo acidente (N...) falecido, tal A. accionou a respectiva herança, vindo, todavia, no decurso do processo a desistir da instância quanto àquela herança.
Ficaram, por isso, no lado passivo da lide apenas os restantes RR., o proprietário do veículo sinistrante e o titular da oficina/stand de onde o mesmo foi retirado e posto a circular na data do acidente.
RR. estes que, assim, não foram causadores culposos do embate/acidente, no qual não tiveram nenhuma intervenção directa.
Donde que só pudessem ser demandados aqui por força de obrigação de segurar ou por responsabilidade objectiva nos termos do disposto no art.º 503.º, n.º 1, do CCiv., já que não se apuraram factos que permitam concluir pela existência de relação de comissão (cfr. art.ºs 500.º e 503.º, n.º 3, ambos do CCiv.).
Vejamos, então.
É pacífico que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem como uma das suas características específicas – para além da sua obrigatoriedade – ser um contrato de natureza pessoal.
Esta característica significa que a obrigação de segurar se liga à pessoa que possa ser civilmente responsável e não ao próprio veículo, apesar de o seguro se reportar a veículo(s) de circulação terrestre a motor. Donde que seja um seguro de natureza pessoal e não real.
É, assim, na sua configuração legal, um seguro de responsabilidade civil fundada em acidentes de viação e, como tal, um seguro de carácter pessoal, e não seguro de coisas, obrigando-se o segurador a cobrir o risco de tal responsabilidade civil (pessoal), suportando as suas eventuais consequências danosas (em caso de sinistro por que seja responsável o segurado ou condutor), mediante a reparação dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) decorrentes de lesões causadas a terceiros por determinado veículo terrestre a motor e seus reboques ([3]).
Quanto aos sujeitos da relação contratual de seguro obrigatório automóvel, temos as seguintes partes contratantes: o segurador, por um lado, e o tomador do seguro, por outro lado ([4]).
No âmbito desde seguro obrigatório a “obrigação de seguro” impende sobre toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos, corporais ou materiais, causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal – tais pessoas devem, para que esses veículos possam circular, encontrar-se cobertas por um seguro que garanta aquela responsabilidade civil.
A obrigação impende, assim, sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se as situações de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, o adquirente ou o locatário (cfr. art.º 2.º, n.º 1, do DLei n.º 522/85). Estes serão, pois, por regra, e conforme os casos, os tomadores do seguro obrigatório automóvel. Porém, se qualquer outra pessoa celebrar – assumindo-se, pois, como o tomador do seguro – relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça as exigências legais em sede de seguro obrigatório automóvel, ficará suprido, por essa forma, o dever legal de contratar daqueles sujeitos da obrigação de segurar (n.º 2 do mesmo art.º 2.º).
É seguro que o 2.º R., enquanto proprietário do veículo, tinha o dever de segurar. Porém, como salientado na sentença recorrida, ele não se encontrava a circular com o veículo, pois que o havia entregue no stand/oficina da titularidade do 3.º R. com vista à sua venda.
Quer dizer, o que se pode depreender dos exíguos factos alegados e provados, é que o 2.º R. (proprietário) entregou o veículo ao 3.º R. (titular do stand) para que o mesmo fosse vendido nesse estabelecimento.
Daí que, como deve concluir-se, o 3.º R. ficou depositário do veículo no seu estabelecimento, com vista a diligenciar no sentido da sua pretendida venda.
Assim, ao lado de elementos de um eventual contrato de prestação de serviço – ou mesmo de mediação atípica para a venda do veículo, a que também seriam aplicáveis as regras do mandato, com uma posição de independência, pois, do prestador/mediador ([5]) –, temos uma relação jurídica que também aponta para um depósito, em que uma das partes (2.º R., proprietário) entrega à outra (3.º R., titular do stand) uma coisa móvel, para que a guarde e restitua quando lhe for exigido (cfr. art.º 1185.º do CCiv.).
Constituída, pois, essa relação jurídica, indiciadora de um contrato misto ([6]), com a entrega da coisa e sua guarda pelo 3.º R. (cfr. art.ºs 1187.º, al.ª a), e 1190.º, ambos do CCiv.), passou este a detê-la, guardando-a no seu estabelecimento/stand.
Por isso, o proprietário, afastado da coisa/motociclo, deixou de ter a sua direcção efectiva, que passou para o 3.º R. ([7]).
Como vem entendendo a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, a “direcção efectiva de um veículo não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção, intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva, se identifica com o poder real (de facto) sobre o veículo em causa” ([8]).
É que, como ensina Antunes Varela ([9]), a “direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo, mas não equivale à ideia grosseira de ter o volante nas mãos na altura em que o acidente ocorre. (…) Tem a direcção efectiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (vigiar a direcção e as luzes do carro, afinar os travões, verificar os pneus, control.ar a sua pressão, etc.). Dá-se, brevitatis causa, o nome de detentor a quem tem a direcção efectiva sobre o veículo – elemento fundamental que serve de suporte legal à responsabilidade objectiva na circulação terrestre”.
Dúvidas não restam, pois, in casu, de ter-se o 2.º R., uma vez entregue o motociclo ao 3.º R., afastado da direcção efectiva do mesmo, a qual passou para este último, o novo detentor, por força do acordo/contrato entre ambos celebrado, que lhe conferiu a guarda, como depositário, do veículo.
A situação é, por isso, semelhante, neste aspecto, à que se estabelece entre o dono do veículo e o garagista que vai repará-lo, para o efeito recebendo este último a viatura e a guardando no seu estabelecimento, hipótese em que a jurisprudência vem entendendo que, “confiado o veículo, para reparação ou revisão, pelo seu proprietário, a uma garagem, é a entidade proprietária desta que fica com a direcção efectiva do veículo” ([10]).
Só pode concordar-se, nesta perspectiva, com a conclusão da sentença recorrida no sentido de que, se o proprietário tinha a obrigação de seguro, o motociclo não se encontrava a ser por si utilizado, antes estava para venda no stand/oficina do 3.º R., de onde foi retirado pelo malogrado condutor, Nuno Tavares de Matos, o que ocorreu sem o conhecimento e consentimento dos 2.º e 3.º RR., em actuação abusiva daquele condutor.
Donde que fique afastada a direcção efectiva do proprietário ao tempo do sinistro, seja por o veículo se encontrar confiado à guarda do detentor (3.º R.) seja por utilização abusiva por parte do condutor responsável pelo acidente.
Ao que acresce que tal utilização abusiva também deixaria afastada a utilização no interesse do proprietário ([11]).
Já quanto ao 3.º R., se era ele o então detentor, pelo que tinha a inerente direcção efectiva do motociclo, também é certo que o veículo foi retirado do seu stand/oficina pelo malogrado condutor, o que ocorreu de forma abusiva, já que sem o seu conhecimento e sem o seu consentimento.
Assim, a responsabilidade objectiva do depositário não se justifica, por o veículo ter sido abusivamente utilizado pelo malogrado condutor responsável culposo pelo acidente, afigurando-se que, “com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva a quem usa o veículo ou dele dispõe” ([12]).
O 3.º R. tinha o dever de segurar (seguro de garagista ou equiparado), enquanto profissional que se dedicava a actividade de comercialização de motociclos, no concernente à responsabilidade civil em que incorresse quando utilizasse, por virtude das suas funções, o dito motociclo no âmbito daquela sua actividade profissional (art.º 2.º, n.º 3, do DLei n.º 522/85) ([13]).
A verdade é, porém, que, ante os parcos factos alegados e apurados e vista a dita utilização abusiva pelo condutor, cessou a direcção efectiva pelo 3.º R., encontrando-se o motociclo a ser conduzido, aquando do acidente, sem o seu conhecimento e consentimento, não se mostrando, pois, que essa abusiva utilização ocorresse no âmbito da actividade profissional desse R..
Aqui chegados, devemos atentar na posição expendida pelo STJ no seu Ac. de 02/03/2004, Proc. 03A3499, relatado pelo Cons. Nuno Cameira (disponível em www.dgsi.pt), que apresenta a seguinte fundamentação quanto ao sentido do preceituado no art.º 25.º do DLei n.º 522/85:
«Ora, é certo que o réu, enquanto proprietário da viatura causadora do acidente ajuizado, é sujeito da obrigação de segurar fixada no artº 1º, nº 1 (cfr. artº 2º, nº 1).
Mas esta obrigação, como decorre do texto legal, é imposta para que a viatura possa circular e na justa medida em que o seu dono possa ser civilmente responsável pela reparação de danos por ela causados. O direito que o artº 25º confere ao FGA contra o dono da viatura não existe se esta não é para circular, nem se aquele, por qualquer motivo, não puder ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos que o veículo cause a terceiros.
Esta conclusão é retirável do próprio texto do artº 25º, nº 3. Este preceito diz que as pessoas sujeitas à obrigação de segurar que não tenham efectuado o seguro poderão ser demandadas pelo FGA, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente, se os houver, relativamente às quantias que tiverem pago. Também o artº 21º, nº 2, a), aponta exactamente no mesmo sentido, ao dizer que o FGA garante, por acidente originado por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, as indemnizações devidas quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz.
Ao falar em responsável a lei está a referir-se, obviamente, a responsável civil, ou seja, à situação em que se encontra aquele que está obrigado a indemnizar o lesado dos prejuízos que lhe causou. No que toca, porém, ao dono do veículo causador do acidente esta obrigação não se filia na simples circunstância de não ter cumprido a obrigação de o segurar. Se, designadamente, a viatura tiver sido posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, provocando nessa situação um acidente que causa danos a terceiros, a lei não consente, em tal caso, a sua responsabilização. Na verdade, o regime imposto pela lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não afasta a aplicação do artº 503º, nº 1, do Código Civil, que não foi revogado. Segundo esta norma, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. (…)
Ora, não sendo o réu responsável, o FGA, embora sub-rogado no direito dos lesados a partir do momento em que lhes satisfez a indemnização, não poderá exercer contra ele o direito de crédito de que em razão de tal facto se tornou titular; nessa hipótese, com efeito, o devedor da obrigação há-de ser o autor do furto, aquele que, na ocasião do acidente, tinha o poder real sobre o veículo. Como consequência disto, o pedido formulado nesta acção terá então de improceder.
Analisando agora as coisas numa perspectiva complementar da já exposta, pode dizer-se que se retira claramente dos textos citados (art.ºs 21º e 25º do DL 522/85) a ideia de que o FGA é um responsável meramente subsidiário, ao contrário da seguradora, que responde directamente perante o lesado por força das obrigações decorrentes do contrato de seguro. Por isso é que a seguradora, paga a indemnização, passa a ter um direito de regresso contra os responsáveis, mas apenas nos casos especiais previstos no art.º 19º; o FGA, diversamente, fica sub-rogado nos direitos do lesado, podendo exigir o reembolso da indemnização cuja satisfação garantiu contra qualquer das pessoas a quem possa ser imputada responsabilidade pelo risco ou culposa, nos termos dos art.ºs 500º e 503º do CC. Ao cabo e ao resto, o significado prático da norma do art.º 25º, nº 3, é o seguinte: o FGA escolhe, selecciona quem demanda para exercer os direitos em que ficou sub-rogado; não está obrigado a accionar todos os responsáveis simultaneamente, em litisconsórcio; o seu direito, no entanto, dirige-se tão somente contra quem seja responsável pelo facto danoso; e o responsável demandado, por seu turno, exercerá depois o direito de regresso contra outros responsáveis que o FGA não tenha accionado. Quer dizer: tendo em atenção a posição de mero responsável subsidiário do Fundo, o legislador pretendeu tornar mais fácil e expedita a concretização do seu direito ao reembolso; mas não foi ao ponto de lho conceder contra o dono da viatura que, embora não segura, foi posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, e que, por essa razão, não pode ser considerado, face à lei, responsável pelo acidente entretanto ocorrido.
Salvo o devido respeito, o argumento de que no caso em apreço o réu só poderia eximir-se à responsabilidade se alegasse e provasse que a sua viatura não se destinava a circular em nenhuma circunstância não invalida a conclusão a que se chegou. Trata-se de argumento que prova demais e é falacioso: demonstrado que o carro recolhido numa garagem foi furtado e que o autor do furto teve um acidente com ele antes de a viatura ser recuperada, fica preenchido o condicionalismo para isentar o dono de responsabilidade, apesar do veículo não se encontrar seguro; é que naquela concreta circunstância - e só essa importa à definição do responsável civil - ele não a pôs a circular, não quis que tal acontecesse, nem fez nada que tivesse contribuído para tal.».
Com efeito, o sentido útil do preceituado daquele art.º 25.º, na conjugação dos seus n.ºs 1 e 3, parece apontar para a sua necessária compatibilização com o disposto no art.º 503.º, n.º 1, do CCiv..
Assim, ao aludir aos “direitos do lesado” (para efeitos de “sub-rogação”), reporta-se o n.º 1 do art.º 25.º ao direito indemnizatório da vítima contra o responsável civil pelo acidente, o responsável pelo facto danoso, matéria regulada no CCiv., em sede de responsabilidade extracontratual (culposa ou pelo risco), fazendo apelo, pois, àquele art.º 503.º do CCiv..
Já o n.º 3 do mesmo art.º 25.º, por sua vez, dispõe que pode ser demandado pelo FGA, nos termos do n.º 1, quem, sujeito à obrigação de segurar, não tenha efectuado seguro, beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente.
Ora, a remissão para os termos do n.º 1 – reforçada pela alusão a outros responsáveis pelo acidente – logo mostra, se bem se vê, que só podem ser demandados aqueles que forem responsáveis civis pelo acidente (os responsáveis, por culpa ou pelo risco, pelo facto danoso).
O que foi referido quanto ao proprietário que não tem a direcção efectiva vale, mutatis mutandis, para um detentor que a tenha perdido, designadamente por furto ou utilização abusiva.
Donde que, se um detentor como o aqui 3.º R., ser vir privado dessa detenção por conduta abusiva do condutor causador culposo do acidente, ficando afastada a sua direcção efectiva e a utilização no seu próprio interesse, afastada fica também a aplicação do dito art.º 503.º, n.º 1, do CCiv., impedindo, por isso, qualquer direito indemnizatório dos lesados sobre tal detentor, o que impossibilita a “sub-rogação do Fundo”, a que alude a epígrafe do mesmo art.º 25.º.
Em suma, não se demonstra a responsabilidade dos aqui demandados, não bastando a inobservância da obrigação de segurar para conferir ao FGA o direito contra eles peticionado.
Por isso, não procedem as críticas dirigidas à sentença recorrida.
É certo, como conclui o Apelante, que o motociclo em causa, assim como todo e qualquer veículo na posse do 3.º R. para venda, apenas deveria ser utilizado – por ele ou por algum seu funcionário – no exercício da sua profissão.
Todavia, era possível o furto ou roubo desse motociclo ou a sua utilização abusiva por outrem, com consequente condução, em qualquer dessas hipóteses, fora do âmbito da direcção efectiva do veículo por esse R..
E a factualidade que vem provada – com que se conformou o Recorrente –, a única de que nos podemos socorrer, reconduz-nos para um quadro de utilização abusiva pelo condutor causador culposo do acidente.
A apelação tem, pois, de improceder.

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IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem natureza pessoal (e não real), significando que a obrigação de segurar se liga à pessoa que possa ser civilmente responsável e não ao próprio veículo, apesar de o seguro se reportar a determinado veículo de circulação terrestre a motor.
2. - Por direcção efectiva do veículo (art.º 503.º, n.º 1, do CCiv.) entende-se o poder real/fáctico sobre o mesmo, que cabe à pessoa que o utiliza, de facto, em certo momento temporal, gozando as vantagens que ele permite, e a quem, por isso, cabe controlar o seu funcionamento, relação essa de proximidade com a coisa que permite a responsabilização objectiva desse detentor na respectiva circulação rodoviária.
3. - A “sub-rogação” do FGA a que alude o art.º 25.º do DL n.º 522/85, de 31-12, é admitida contra os sujeitos de quem o lesado/vítima era credor indemnizatório, os responsáveis pelo facto danoso/acidente – aqueles a quem possa ser imputada responsabilidade culposa ou pelo risco nos termos dos art.ºs 500.º e 503.º, ambos do CCiv..
4. - O direito ao reembolso do FGA contra o proprietário do veículo ou outrem a quem este tenha conferido a direcção efectiva temporária do mesmo – como o garagista ou equiparado –, ambos sujeitos à obrigação de segurar (art.ºs 1, n.º 1, e 3.º, n.ºs 1 e 3, ambos do DL n.º 522/85), não se consubstancia se estes não puderem ser responsabilizados civilmente pelos prejuízos causados pelo veículo.
5. - E estes não poderão ser responsabilizados se, embora sem seguro obrigatório automóvel, não tinham, aquando do acidente, a direcção efectiva do veículo, por colocado em circulação mediante acto abusivo de outrem e assim abusivamente utilizado pelo condutor causador culposo do acidente.

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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Sem custas da apelação, atenta a isenção de que beneficia o Apelante.

Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.


Lisboa, 19/03/2015

José Vítor dos Santos Amaral (Relator)
Regina Almeida (1.ª Adjunta)                                             
Maria Manuela Gomes (2.ª Adjunta)


([1]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença de fls. 274 e segs. dos autos, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([2]) Este teve lugar em 17/06/2005, sendo que o Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, aprovado pelo DLei n.º 291/2007, de 21-08, actualmente em vigor, só teve início de vigência em 21 de Outubro de 2007.
([3]) Ver Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007, p. 827.
([4]) Se as partes no contrato são o segurador e o tomador do seguro, na relação de seguro há ainda de contar com o segurado, que pode, ou não, ser o tomador do seguro – o segurado é a pessoa em cujo interesse o contrato é celebrado (ou a pessoa segura) –, e com o beneficiário, a pessoa a favor de quem reverterá a prestação do segurador tal como prevista no contrato.
([5]) Cfr. Menezes Cordeiro, op. cit., ps. 613 e s..
([6]) Cfr. Ac. Rel. Coimbra, de 29/11/2005, Proc. 3359/05 (Rel. Hélder Roque), em www.dgsi.pt, onde se alude a um possível “contrato misto de depósito, de prestação de serviços e de mandato, em que a parte do depósito corresponde à entrega ou transmissão da posse do carro ao garagista, a parte da prestação de serviços corresponde à reparação, propriamente dita, e o mandato corresponde á autorização para a condução do automóvel, em ordem à certificação da bondade da reparação com a posterior deslocação à inspecção obrigatória, ou antes de um contrato misto de empreitada e depósito”.
([7]) Como dito naquele Ac. Rel. Coimbra de 29/11/2005, “… o proprietário de uma viatura automóvel que a entrega a uma oficina para reparação perde a direcção efectiva do veículo, a favor desta, durante o período da recolha e do conserto e, enquanto a viatura se encontrar em poder do garagista, o que, desde logo, é indiciado, quer em virtude da aplicação das regras gerais, quer das regras específicas dos mencionados contratos, que conferem, nessas situações, ao garagista o direito de retenção sobre a coisa, face ao proprietário, na hipótese de não pagamento das despesas efectuadas por aquele, em conformidade com o estipulado pelos artigos 754º e 755º, nº 1, c), d) e e), do Código Civil (CC) STJ, de 21-10-92, BMJ nº 420, 531 e CJ, Ano XVII, T4, 25, citado; RL, de 14-7-99, CJ, Ano XXIV, T4, 143.”. 
([8]) Vide Ac. STJ, de 28/09/2004, Proc. 04A2445 (Cons. Silva Salazar), em www.dgsi.pt.
([9]) Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 657 e s..
([10]) Cfr. o citado Ac. STJ de 28/09/2004, relatado pelo Cons. Silva Salazar. Assim também, entre outros, o Ac. STJ, de 28/06/2007, Proc. 07B1707 (Cons. Gil Roque), em www.dgsi.pt, onde pode ler-se: “O proprietário dum veículo automóvel interveniente em acidente de viação que entregou o seu veículo na oficina para reparação, deixa de ter a direcção efectiva e o proveito da circulação da viatura durante o período da reparação da mesma, uma vez que a circulação durante o período necessário para verificar a irregularidades a reparar, ocorre no interesse da reparadora”.
([11]) Requisito este – da utilização no próprio interesse a que também alude o art.º 503.º, n.º 1, do CCiv. – que “visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente) – assim, Antunes Varela, op. cit., p. 658.
([12]) Continua a citar-se Antunes Varela, op. cit., p. 657, Autor que refere ainda: “Trata-se das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências adequadas para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros”.
([13]) Como sustentado no Ac. Rel. Porto, de 17/04/1991 – citado por Adriano Garção Soares e outros, em Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil automóvel, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 32, com indicação de publicação desse aresto em Col. Jur., 1991, 2, 297 –, o “contrato de seguro de garagista é obrigatório, circunscrevendo a garantia de responsabilidade civil aos casos em que o segurado utiliza o veículo por virtude das suas funções, no âmbito da sua actividade profissional” (itálico aditado). No mesmo sentido, cfr., entre outros, o Ac. STJ, de 05/07/2007, Proc. 07A1991 (Cons. João Camilo), e o Ac. STJ, de 11/03/2010, Proc. 697/1999.S1 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza), ambos em www.dgsi.pt, podendo ler-se no sumário do último destes: “Em princípio, o seguro de garagista, nos termos em que foi criado e imposto pelo Decreto-Lei nº 522/85, apenas cobre os sinistros ocorridos no âmbito da actividade profissional do segurado”.