Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
255/14.3T8SCR.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO:

I. O prazo do exercício do direito de regresso, nomeadamente pela seguradora que pagou a indemnização ao lesado, é de três anos, nos termos do art. 498.º, n.º 2, do Código Civil.
II. A falta de citação na ação impede o efeito interruptivo da prescrição previsto no art. 323.º, n.º 3, do Código Civil.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO

… Companhia de Seguros, S.A., instaurou, em 20 de setembro de 2002, no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Cruz (Santa Cruz – Instância Local – Secção de Competência Genérica da Comarca da Madeira), contra José..., ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que o Réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 39 903,83, acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 7 %, desde a citação.
Para tanto, alegou em síntese, que, no dia 24 de fevereiro de 1998, na ER n.º 101, no Lugar..., freguesia do..., ocorreu um acidente de viação, no qual intervieram o veículo ligeiro de passageiros, matrícula QH, conduzido pelo seu proprietário, ora R., e o motociclo, matrícula IT, conduzido pelo seu proprietário, Luís Miguel; em consequência do acidente, Luís Ferreira viria a falecer; o R. foi condenado por sentença, transitada em julgado, pela prática de um crime de homicídio negligente e de um crime de condução em estado de embriaguez; a A. pagou aos pais do falecido, seus herdeiros, a indemnização de € 39 903,83.
Contestou o R., por exceção, alegando a prescrição, e concluindo pela sua absolvição do pedido.
Replicou ainda a A., concluindo pela improcedência da prescrição.

Findos os articulados e depois de várias vicissitudes, foi proferida, em 9 de abril de 2014, despacho saneador-sentença que, julgando a ação procedente, condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de € 39 903,83, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

Inconformado com essa decisão, recorreu o Réu e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) O art. 498.º, n.º 2, do Código Civil, estabelece o prazo de três anos, para o exercício do direito de regresso entre os responsáveis.
b) Significa isto que o R. devia ter sido citado até 20 de setembro de 2005, o que não aconteceu, sendo a A. responsável pelas consequências da sua atuação processual, mais concretamente, por não ter requerido a citação prévia do R., sendo certo que o processo esteve parado mais de seis anos, sem que ela tenha dado o devido impulso processual.
c) A A. sabia que o R. não residia no local identificado na p. i. e, ainda assim, insistiu em que a citação fosse efetuada em tal local.
d) A A. foi diretamente responsável pelo arrastar do processo e pelo facto do R. só ter sido citado quando foi.
e) É, pois, manifesto que o direito de regresso prescreveu há mais de três anos e sete meses face à data da citação.
f) A prescrição acarreta a absolvição do R. do pedido, conforme o disposto nos artigos 493.º, n.º s 1 e 3, e 496.º do CPC., que a sentença recorrida violou.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que reconheça a prescrição do direito de regresso.

Contra-alegou a Autora, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em discussão a prescrição do direito de regresso invocado na ação.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 24 de fevereiro de 1998, pelas 21.30 horas, na ER n.º 101, no Lugar..., freguesia do..., verificou-se um acidente de viação, no qual foram intervenientes, por um lado, o veículo ligeiro de passageiros de serviço particular, matrícula QH, conduzido pelo seu proprietário, o ora R., e por outro lado, o motociclo, de serviço particular, matrícula IT, conduzido pelo seu proprietário, Luís Miguel.
2. No local do acidente, atento o sentido de marcha poente-nascente, a estrada desenvolve-se em curva acentuada para o lado esquerdo.
3. A faixa de rodagem dispunha de uma largura não inferior a doze metros.
4. Encontrando-se dividida em três sub-faixas de rodagem: duas, servindo o trânsito no sentido de marcha nascente-poente, e a outra destinada ao trânsito que se processava no sentido contrário.
5. As sub-faixas de rodagem de sentidos contrários de marcha apresentavam-se divididas entre si por duas paralelas longitudinais contínuas demarcadas a branco no pavimento.
6. As duas faixas de rodagem de sentido de marcha nascente-poente encontram-se delimitadas entre si por traços longitudinais descontínuos também eles demarcados a branco no pavimento.
7. O R. conduzia o veículo, no sentido de marcha nascente-poente.
8. Tendo empreendido a ultrapassagem a uma camioneta de turismo, que transitava pela sub-faixa de rodagem do lado direito, atentas as ditas que serviam o trânsito nesse sentido de marcha.
9. Passando a transitar pela sub-faixa de rodagem central.
10. Imprimindo ao veículo uma velocidade nunca inferior a 70 km/h, em local de curva acentuada e visibilidade reduzida (inferior a 50 metros).
11. O mesmo condutor seguia com uma taxa de alcoolémia no sangue de 1,61 gramas por litro.
12. O R. tinha estado, antes de iniciar a condução, a ingerir bebidas alcoólicas, facto que não o coibiu de conduzir o veículo, apesar de saber que tal comportamento lhe estava legalmente vedado.
13. O R. conduziu de forma desatenta e descuidada.
14. Quando ultrapassava pela esquerda a camioneta de turismo, perdeu o domínio do veículo e invadiu a sub-faixa de rodagem de sentido contrário de marcha.
15. Vindo a embater frontalmente, nessa sub-faixa, no motociclo IT.
16. O qual transitava por essa sub-faixa de rodagem.
17. O R. tinha transferido para a A. a responsabilidade civil perante terceiros inerente à circulação do veículo de matrícula QH, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 6000367.
18. Em resultado do acidente viria a falecer no dia 3 de março de 1998, pelas 19.15 horas, o condutor do motociclo.
19. Luís Miguel nascera em 7 de julho de 1977.
20. Trabalhava como efetivo no Madeira … Hotel, com a categoria profissional de barman de 2.ª, auferindo um vencimento ilíquido de 89 300$00 e líquido de 74 398$00.
21. Era solteiro, vivia com os pais e o irmão Roberto, em economia comum.
22. Os pais sofreram um profundo desgosto.
23. O Luís Ferreira adquiria o motociclo em estado novo cerca de cinco meses antes do acidente, tendo sido registada a propriedade a seu favor em 19 de novembro de 1997.
24. O motociclo era da marca e modelo Honda NSR 50 RR.
25. Em consequência do sinistro, o motociclo ficou danificado na parte dianteira.
26. A reparação orçava em 457 144$00.
27. O Luís Ferreira faleceu no estado de solteiro, sem deixar descendentes, nem testamento ou outra disposição de última vontade.
28. Sucedendo-lhe, como seus únicos e universais herdeiros, seus pais, José … Ferreira e Maria Cláudia ….
29. Por virtude dos factos referidos correu termos, no 2.º Juízo do Tribunal de Santa Cruz, o processo comum singular n.º 68/98.7PBSCR.
30. No âmbito desses autos, por sentença transitada em julgado, foi o R. condenado pela prática de um crime de homicídio negligente e um crime de condução em estado de embriaguez.
31. Pelos factos referidos, vieram os pais do falecido deduzir contra a A. pedido de indemnização cível, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de 12 457 144$00.
32. As partes foram remetidas, quanto a este pedido, para os tribunais cíveis.
33. A A. chegou a acordo extrajudicial com os pais do falecido, quanto a tal pedido, indemnizando-os com o pagamento da quantia única de € 39 903,83.
34. A A. pagou a indemnização em 4 de março de 2002.
35. A presente ação deu entrada, em tribunal, no dia 20 de setembro de 2002.
36. O R. foi citado, na morada urb. Lt. B-7b 6.º Dto., em 15 de novembro de 2002.
37. Por despacho de fls. 139, de 18 de abril de 2008, foi considerado ser exclusivamente imputável à A. a não citação do R. na morada correta, por indicação de uma morada desatualizada, e, em consequência, foi declarado nulo todo o processado após a petição inicial e determinado que, após o trânsito em julgado do despacho, fosse o R. citado na pessoa do seu mandatário, por ter poderes para o efeito, conforme procuração de fls. 123.
38. O mandatário do R. foi citado a 23 de abril de 2009.

***

2.2. Delimitada a matéria de facto provada, expurgada de redundâncias e juízos conclusivos, a qual não vem impugnada, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas respetivas conclusões, e cuja questão jurídica emergente foi antes especificada.
Ao recurso, atendendo à data da prolação da decisão recorrida, é aplicável o regime do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (art. 7.º, n.º 1).
A questão que se discute é a da prescrição, com a decisão recorrida a concluir que a prescrição se interrompeu em 15 de novembro de 2002.
O Apelante, discordando, alega que o direito de regresso já prescreveu, atendendo à data em que foi citado (23 de abril de 2009).
A Apelada, para além de defender um prazo de cinco anos, entende que a prescrição foi interrompida, quer em 15 de novembro de 2002, quer em 2 de junho de 2005.

Identificadas as posições, interessa então decidir.

Na ação, proposta a 20 de setembro de 2002, a Apelada, alegando ter pago a indemnização a 4 de março de 2002, veio exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo, nomeadamente ao abrigo do disposto na alínea c) do art. 19.º do DL n.º 522/85, de 31 de dezembro.
O Apelante começou por ser citado em 15 de novembro de 2002. Entretanto, a seu requerimento, apresentado em 30 de maio de 2005, e por despacho de 18 de abril de 2008, foi declarada a nulidade de todo o processo, por falta de citação do Apelante, nos termos do art. 194.º, alínea a), do CPC/1961. Nessa sequência, foi, depois, citado a 23 de abril de 2009.
De harmonia com o disposto no art. 498.º, n.º 2, do Código Civil (CC), prescreve no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre responsáveis.
Conforme alguma doutrina, trata-se de uma prescrição especial de curto prazo, baseada em razões de interesse social, visando sobretudo despertar a diligência e o zelo dos interessados (DARIO M. DE ALMEIDA, Manual de Acidentes de Viação, 1980, pág. 277).
Tem-se questionado, por outro lado, se o alargamento do prazo da prescrição, previsto no art. 498.º, n.º 3, do CC, também se estende ao exercício do referido direito de regresso.
A jurisprudência dividiu-se sobre essa questão. No entanto, tem vindo a sedimentar-se, nomeadamente no Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que o prazo para o exercício do direito de regresso é de três anos, sem o alargamento do prazo previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2012 (Processo n.º 32/09.3TBSRQ.L1.S1), de 29 de novembro de 2011 (Processo n.º 1507/10.7TBPNF.P1.S1), 17 de novembro de 2011 (1372/10.4T2AVR.C1.S1), de 4 de novembro de 2010 (Processo n.º 2564/08.1TBCB.A.C1.S1) e de 27 de outubro de 2009 (Processo n.º 844/07.2TBOER.L1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt).
A inserção sistemática da norma contida no n.º 3 do art. 498.º do CC poderia levar a pensar que, também, se estenderia ao prazo da prescrição previsto no n.º 2 do art. 498.º do CC.
Aquela norma, com efeito, visou alargar o prazo da prescrição do direito do lesado, quando o evento também constituísse crime e o prazo da prescrição fosse superior a três anos, de forma a estabelecer uma concordância prática, nomeadamente na formulação do pedido cível, que por efeito do princípio da adesão, geralmente, é exercido no âmbito do processo penal.
Por outro lado, o direito de regresso tem uma natureza diversa, sendo um direito autónomo em relação ao direito do lesado, nascido ex novo, nomeadamente com o pagamento da indemnização ao lesado. Acresce que o modo de contagem do prazo de prescrição também difere, porquanto, para o lesado, começa a partir do “conhecimento do direito que lhe compete” (art. 498.º, n.º 1, do CC), ao passo que, para o titular do direito de regresso, o prazo conta a partir do “cumprimento”, nomeadamente do pagamento da indemnização ao lesado (art. 498.º, n.º 2, do CC).
Nestas circunstâncias, no exercício do direito de regresso, não se justifica o alargamento do prazo da prescrição previsto no art. 498.º, n.º 3, do CC, na medida em que apenas está em causa o simples reembolso da indemnização paga ao lesado, muito diferente da questão, muito mais complexa, da definição da responsabilidade civil extracontratual.
Por isso, o prazo do exercício do direito de regresso, nomeadamente pela seguradora que pagou a indemnização ao lesado, é de três anos, nos termos do art. 498.º, n.º 2, do CC.
 
Assente que o prazo de prescrição para o exercício do direito de regresso é de três anos, interessa verificar se a Apelada exerceu então, tempestivamente, o direito de regresso na ação, partindo do facto de ter pago a indemnização em 4 de março de 2002 e o Apelante ter sido citado em 23 de abril de 2009.
A prescrição interrompe-se pela citação – art. 323.º, n.º 1, do CC.
Todavia, se a citação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias – art. 323.º, n.º 2, do CC.
No caso, a ação foi proposta em 20 de setembro de 2002, tendo o Apelante sido citado, na morada indicada pela Apelada, em 15 de novembro de 2002.
No entanto, por despacho de 18 de abril de 2008, transitado em julgado, foi declarado que a citação do Apelante foi omitida, com as consequências previstas no art. 194.º, alínea a), do CPC/1961, omissão imputada, exclusivamente, à Apelada, por indicação da morada desatualizada.
Nessa sequência, e anulado o processado depois da petição inicial, o Apelante veio a ser citado em 23 de abril de 2009.
Nesta data, porém, já tinha decorrido o prazo da prescrição de três anos, previsto no art. 498.º, n.º 2, do CC.
A isso não obsta o disposto no n.º 3 do art. 323.º do CC, segundo o qual a anulação da citação não impede o efeito interruptivo.
Na verdade, como realça certa doutrina, importa distinguir entre falta e nulidade da citação, de modo que, havendo falta de citação, a prescrição não se interrompe, diferente do que sucede com a nulidade da citação (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª edição, 1979, págs. 269/270).
No caso, não se tratou de uma situação de nulidade da citação (art. 198.º do CPC/1961), mas antes de falta de citação.
Perante a omissão da citação, evidencia-se que o Apelante não pôde tomar conhecimento de que a Apelada pretendia exercer contra si o direito de regresso pela indemnização paga ao lesado, não podendo a citação, realizada em 15 de novembro de 2002, ter o efeito interruptivo, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 323.º, n.º 3, do CC.
Por outro lado, estando imputada à Apelada a falta de citação dentro de cinco dias depois de ter sido instaurada a ação, não tem lugar a interrupção da prescrição prevista no art. 323.º, n.º 2, do CC.

Ainda que se considere que o Apelante tomou conhecimento da intenção do exercício do direito de regresso, ao ter suscitado, na ação, a falta da sua citação, em 30 de maio de 2005 (fls. 114), já o prazo da prescrição de três anos, contado a partir de 4 de março de 2002, data do pagamento da indemnização ao lesado, tinha transcorrido.

Nestes termos, conclui-se que o direito de regresso exercido na ação prescreveu, o que implica a absolvição do pedido, não podendo subsistir a decisão recorrida.
 
2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. O prazo do exercício do direito de regresso, nomeadamente pela seguradora que pagou a indemnização ao lesado, é de três anos, nos termos do art. 498.º, n.º 2, do Código Civil.
II. A falta de citação na ação impede o efeito interruptivo da prescrição previsto no art. 323.º, n.º 3, do Código Civil.

2.4. A Apelada, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em ambas as instâncias, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e absolvendo o Réu do pedido.

2) Condenar a Apelada (Autora) no pagamento das custas, em ambas as instâncias.


Lisboa, 5 de março de 2015

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)