Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9316/2003-1
Relator: ANDRÉ DOS SANTOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTO MÉDICO
DANO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE.
Sumário:
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

(A), intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra “SAMS – Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas”, com sede na Rua Marquês da Fronteira, nº 16, em Lisboa, pedindo a condenação deste no pagamento de indemnização no valor de Esc:5.000.000$00.
Para tanto, alega essencialmente que, em 02.11.95, o A. fez um exame médico denominado clister opaco nas instalações da R., que a introdução do contraste foi efectuada de um modo forçado e grosseiro, provocando violentas dores nos quadrantes interiores do abdómen e períneo do A.; que, nos três dias subsequentes ao exame médico, o A. foi acometido por fortíssimas dores abdominais e febres altas que o impediram de trabalhar durante a tarde de segunda-feira, dia 06.11.95, tendo-se então dirigido à sede da R. onde foi atendido pela sua médica assistente, que lhe afirmou serem tais sintomas consequências do exame que realizara, prescrevendo-lhe um medicamento para as salmonelas.
Perante o agravamento dos sintomas referidos, paralelamente com a circunstância de paragem de emissão de fezes e gases desde a data da realização do exame, há já cerca de 5 dias, no dia 07.11.95, dirigiu-se o A. ao Serviço de Urgências do Hospital de Santa Maria, onde, após a realização de análises clínicas e radiografias, lhe foram prescritos clisteres e supositórios de glicerina, tendo nesse serviço sido advertido que, em caso de agudização dos sintomas que apresentava, se dirigisse de novo e de imediato àquelas urgências, o que veio a acontecer no dia seguinte perante a agravamento do seu estado de saúde.
Prosseguindo, refere que, em consequência dos exames realizados, o A. foi operado em 09.11.95 com diagnóstico de abcesso peritoneal em virtude de perfuração traumática do recto após clister opaco, cirurgia em que o A. foi sujeito a drenagem abdominal e colostomia ilíaca esquerda, para desvio do trânsito intestinal.
Dizendo que, anteriormente à realização do clister opaco, nunca tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica, nem estado hospitalizado, sustenta o A. que, em Fevereiro de 1996, foi sujeito a uma segunda intervenção cirúrgica que confirma a irreversibilidade da perfuração do recto e a necessidade de manter o trânsito intestinal desviado, após o que foi submetido a três tratamentos de quimioterapia com internamento, o que agudizou ainda mais o sofrimento físico, acompanhado de emagrecimento, cansaço e depressão nervosa, bem como o sofrimento psíquico e desgaste mental resultantes do seu péssimo estado de saúde e deterioração da qualidade de vida.
A alteração dos seus hábitos de vida decorrente da necessidade de usar sacos de colostomia e toda a dor e sofrimento sentidos são consequência directa da conduta negligente do técnico e da médica que efectuaram a endoscopia rectal, devendo, por isso, o A. ser indemnizado por todos os danos sofridos.
Notificado, contestou o R., dizendo essencialmente que a cânula utilizada na realização do exame não causou qualquer traumatismo e que os sintomas apresentados pelo A. eram próprios da doença grave de que já sofria e que foi verificada de neoplasia da transição recto-sigmoide, inessecável, sendo que a doença grave do foro oncológico de que o A. já padecia é que provocou as lesões patológicas, próprias da sua evolução.
Foi proferido despacho saneador e fixados os factos assentes e os controvertidos, sem reclamação.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo o tribunal respondido aos quesitos nos termos de fls 187.
Proferida sentença, nela se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, condenar-se o R. a pagar ao A. a importância de € 19.951,92 (Esc.4.000.000$00).
Desta decisão a Ré interpôs recurso.
*
Admitido o recurso como apelação, a Apelante juntou alegações nas quais concluiu:
1.a No caso em apreço, não se verifica qualquer dos requisitos da responsabilidade civil
2.a Não foi fixada factualidade idónea e suficiente, que possa fundamentar a existência de causalidade adequada entre a realização do clister opaco nas instalações do Réu, a ocorrência do abcesso, mais tarde verificado e a dor e sofrimento do Autor;
3.a Também não se verificou que o Réu tivesse produzido a causa donde adequadamente tivesse surgido aquele resultado e muito menos com culpa;
4.a Não pode concluir-se que, sem a realização do clister opaco, não se teria verificado aquele resultado;
5.a Não houve, por parte do Réu, prática de qualquer acto ilícito, não se verifica o nexo de causalidade adequada entre qualquer conduta do mesmo e o dano e inexiste possibilidade de imputação ao Réu de qualquer facto em termos de culpa;
6. a Deste modo, a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483.° e 487.°, n.o 2 do Código Civil.
Termos em que, solicita-se o provimento da apelação, com a consequente absolvição do Réu do pedido.
O Apelado contra-alegou formulando as seguintes conclusões:
A - Os factos provados demonstram inequivocamente a negligência grave, passível de censura e reprovação, dos médicos dos SAMS que assistiram o Autor na realização do clister opaco, e posteriormente;
B - Verifica-se nexo de causalidade entre a realização do clister opaco e a perfuração traumática do recto;
C - A conduta dos SAMS, violando os deveres que sobre estes impendem, constitui facto ilícito e deu origem a um conjunto de graves danos na saúde e condições de vida do Autor, que merecem ressarcimento
D - Deste modo, a sentença recorrida não viola qualquer preceito legal, inclusive o disposto nos artigos 483° e 4870, nº 2 do C. Civil, pelo que deve ser confirmada.

Matéria de facto
Na sentença foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
1 - Em 02.11.95, o A. fez um exame médico denominado clister opaco nas instalações da R. – (alínea A) dos Factos Assentes);
2 - Após o exame médico, o A. não se sentiu em condições físicas de se apresentar no seu local de trabalho – (alínea B) dos Factos Assentes);
3 - Em 08.11.95, o A. deu entrada no Hospital de Santa Maria onde realizou TAC abdomino-perineal, no qual lhe foi diagnosticado colecção perianal na face anterior da transição recto-sigmodeia, revelando a endoscopia baixa que lhe foi feita, estenose completa ao nível da transição recto-sigmoideia – (alínea C) dos Factos Assentes);
4 - Em 20.11.95, realizou o A. colonoscopia na qual se confirmou a existência de uma lesão no recto a cerca de 15 cm do ânus, confirmada de novo em 24.01.96, quando realizou nova endoscopia digestiva baixa – (alínea D) dos Factos Assentes);
5 - Em Fevereiro de 1996, o A. foi sujeito a uma segunda intervenção cirúrgica que confirma a irreversibilidade da perfuração do recto e a necessidade de manter o trânsito desviado – (alínea E) dos Factos Assentes);
6 - Após o que foi submetido a três tratamentos de quimioterapia com internamento, o que agudizou ainda mais o sofrimento físico, acompanhado de emagrecimento, cansaço e depressão nervosa, bem como o sofrimento psíquico e desgaste mental resultantes do seu péssimo estado de saúde e deterioração da qualidade de vida – (alínea F) dos Factos Assentes);
7 - Durante a realização do referido clister opaco, foi introduzido no recto do A. uma cânula para introdução de contraste – (resposta aos nºs 1 e 26 da Base Instrutória);
8 – Durante a realização do exame o A. sentiu dores fortes – (resposta ao nº 2 da Base Instrutória);
9 - Nos três dias subsequentes ao exame médico, o A. foi acometido por fortíssimas dores abdominais e febres altas, que o impediram de trabalhar durante a tarde de segunda-feira, dia 06.11.95 – (resposta ao nº 3 da Base Instrutória);
10 – O A. dirigiu-se à sede da R. onde foi atendido pela sua médica assistente que lhe prescreveu um medicamento para as salmonelas – (resposta ao nº 4 da Base Instrutória);
11 - Perante o agravamento dos sintomas referidos, paralelamente com a circunstância de paragem de emissão de fezes e gases desde a data da realização do exame, há já cerca de 5 dias, dirigiu-se o A. no dia 07.11.95 ao Serviço de Urgências do Hospital de Santa Maria, onde, após a realização de análises clínicas e radiografias, lhe foram prescritos clisteres e supositórios de glicerina – (resposta ao nº 5 da Base Instrutória);
12 - Tendo nesse serviço sido advertido que, em caso de agudização dos sintomas que apresentava, se dirigisse, de novo e de imediato, àquelas urgências – (resposta ao nº 6 da Base Instrutória);
13 - O que veio a acontecer no dia seguinte perante a agravamento do seu estado de saúde – (resposta ao nº 7 da Base Instrutória);
14 - Em consequência dos exames realizados, o A. foi operado em 09.11.95 com diagnóstico de abcesso peritoneal em virtude de perfuração traumática do recto após clister opaco – (resposta ao nº 8 da Base Instrutória);
15 - Nessa cirurgia o A. foi sujeito a drenagem abdominal e colostomia ilíaca esquerda, para desvio do trânsito intestinal – (resposta ao nº 9 da Base Instrutória);
16 - Anteriormente à realização do clister opaco, o A. nunca tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica, nem estado hospitalizado – (resposta ao nº 10 da Base Instrutória);
17 - Desde a realização do último tratamento quimioterápico prolongado, em Maio/96 que os sintomas clínicos se têm agravado, tendo o A. fortes dores abdominais e dificuldade em urinar – (resposta ao nº 11 da Base Instrutória);
18 - Tendo-lhe sido diagnosticado necessidade de realizar novos tratamentos quimioterápicos sem internamento – (resposta ao nº 12 da Base Instrutória);
19 - Encontrando-se na presente data (16.10.97) o A. a efectuar tratamentos de quimioterapia em regime ambulatório – (resposta ao nº 13 da Base Instrutória);
20 - O A. esteve hospitalizado de 08.11.95 a 17.11.95, de 19.02.96 a 29.02.96, de 10.03.96 a 15.03.96, de 29.03.96 a 05.04.96 e de 23.04.96 a 03.05.96, no total de 41 dias de internamento – (resposta ao nº 14 da Base Instrutória);
21 - O A., desde o ocorrido, que evita determinantemente o contacto social, inibindo-se de cultivar amizades e de frequentar lugares públicos de recreio e diversão, uma vez que não pode controlar quer a emissão de gases quer a de fezes – (resposta ao nº 15, da Base Instrutória);
22 - Tal é factor bastante para constrangimento mesmo perante familiares próximos – (resposta ao nº 16 da Base Instrutória);
23 - E perante desconhecidos, amigos ou meros conhecidos o afastamento é total ou levado ao seu expoente máximo – (resposta ao nº 17 da Base Instrutória);
24 - O A. tem necessidade de se sustentar a si próprio e à sua família, tendo para tanto de desenvolver a sua actividade profissional, onde durante 7 horas partilha a mesma sala com três colegas – (resposta ao nº 18 da Base Instrutória);
25 - Para aliviar a sua ansiedade constante, ostracizou-se o A. do meio laboral em que está inserido, tendo colocado a mesa em que trabalha a um canto recôndito da dita sala, de modo a evitar incomodar os colegas com a emissão de cheiros e ruídos e evitando a si próprio o embaraço de tais ocorrências – (resposta ao nº 19 da Base Instrutória);
26 - Não frequentando o bar do seu local de trabalho, evitando com isso situações de embaraço e constrangimento que necessariamente ocorreriam – (resposta ao nº 20 da Base Instrutória);
27 - A nível familiar houve igualmente uma nítida deterioração da sua qualidade de vida, evitando o A. contactos físicos mais próximos com o seu filho de 6 anos – (resposta ao nº 21 da Base Instrutória);
28 - Causando tal um profundo sofrimento no A., na sua mulher e mãe do seu filho e neste, que como qualquer criança saudável se vê obrigado a prescindir das habituais brincadeiras, passeios e frequência de locais próprios para a sua idade, devido à incapacidade física e psicológica do progenitor em o acompanhar – (resposta ao nº 22 da Base Instrutória);
29 - O A. viu seriamente afectado na sua vida sexual em virtude da necessidade de suportar o uso de sacos de colostomia – (resposta ao nº 23 da Base Instrutória);
30 - A quebra da auto-estima como reflexo directo de todas as alterações que sofreu a nível físico e nos seus hábitos de vida provocaram ao A. a vivência de experiências traumáticas, cujo agravamento e reiteração o levou, para bem da sua sanidade mental e familiar, a procurar a ajuda de uma psiquiatra – (resposta ao nº 24 da Base Instrutória);
31 - Dado o sofrimento por que se tem pautado a sua vida, necessita o A. de tomar medicação, nomeadamente ansiolíticos e indutores de sono – (resposta ao nº 25 da Base Instrutória);
32 – O A. sofria de neoplasia de transição recto-sigmoide, inessecável, doença do foro oncológico – (resposta aos nºs 32º a 34º da Base Instrutória).

O DIREITO
Face ás conclusões da alegação do Apelante cujo teor, nos termos do disposto nos artigos 684º nº 3 e 690º nº 1 do C. P. Civil delimitam o âmbito do recurso, importa decidir se no caso em apreço se verificam os pressupostos da responsabilidade civil pelo acto médico realizado, nomeadamente se existe causalidade adequada entre a realização do clister opaco e a perfuração do intestino, o aparecimento do abcesso peritoneal e a operação para drenagem abdominal e colostomia ilíaca esquerda.
Defende o A. que a conduta negligente do técnico e médica que realizaram o clister opaco lhe provocou a ruptura do intestino, situação que, para além de toda a dor e sofrimento causados, é ainda responsável pela alteração dos seus hábitos de vida, decorrente nomeadamente da necessidade de usar sacos de colostomia.
As relações entre médico e doente assumem, a maior parte das vezes, natureza contratual.
A assistência médica surge, em regra, como um contrato de prestação de serviços, oneroso, sinalagmático com caracter pessoal de execução continuada, com vista ao tratamento do doente – Cfr Ac. do S.T.J. de 05.07.01, in CJ STJ 2001, II, 166.
O Médico assume a obrigação de prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance com o objectivo de lhe restituir a saúde, suavizar os sofrimentos salvar ou prolongar a vida. Deve, por isso, elaborar com a maior atenção o diagnóstico, actuar com o maior cuidado, da forma mais diligente e empregando todos os conhecimentos da ciência médica.
O Médico não assegura nem pode assegurar a cura. A sua obrigação é uma obrigação de meios e não de resultado, uma vez que apenas se obriga a desenvolver certa diligência, uma certa conduta, a prestar-lhe os tratamentos mais adequados e aptos a curar o doente.
“A obrigação do médico, em termos gerais, consiste em prestar ao doente os melhores cuidados ao seu alcance, no intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida. Nesta fórmula ampla se compreende toda a actividade profissional, intelectual ou técnica que tipicamente se pode designar por “acto médico” – cfr. A. Silva Henriques Gaspar in “Estudo sobre a responsabilidade civil do médico”, in CJ Ano III, 1978, Tomo I, pág.335 e segs.».
O Médico deve, por isso ser responsabilizado quando não tenha procedido de modo correcto, não tenha actuado com o zelo, cuidado e a cautela e as exigências da legis artis e por causa disso cause danos a alguém.
A actuação do médico causadora de danos pode dar origem a responsabilidade por violação contratual e a responsabilidade extracontratual nos casos em que exista violação dos direitos do doente á saúde e à vida ou, em certos casos de omissão, do dever de assistência imposto por lei.
Quando o médico por causa que lhe seja imputável, não efectue ou efectue defeituosamente a prestação de cuidados a que se obrigou, causando danos ao doente credor dessa prestação constitui-se no dever de reparar o prejuízo causado.
A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que se o médico se equívoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada ao doente, age com culpa e, consequentemente torna-se responsável pelas lesões causadas ao doente – cfr Ac STJ acima citado.
Nos termos do disposto no art. 798º do C. Civil o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor.
Nos termos do disposto no artigo 483º do C. Civil, quem, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrém ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Quer a responsabilidade tenha origem contratual, quer extracontratual age com culpa o médico que viole os deveres objectivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada, culpa a ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – Cfr art. 482º nº 2 e 799º do C. Civil.
Mostram os autos que o SAMS – Serviços de Assistência Médico-Social do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, mediante inscrição e o pagamento das respectivas contribuições (do funcionário bancário e entidade patronal), têm os beneficiários direito a assistência médica a prestar por aqueles serviços.
Trata-se da prestação de serviços de assistência médica e medicamentosa efectuada pelo SAMS, a quem cabe o recrutamento e contratação dos médicos e técnicos que, em cada caso concreto, prestarão a assistência por si assumida.
A relação contratual forma-se pois, nestas situações, entre o paciente e o próprio SAMS, entidade que se compromete a prestar aos seus beneficiários assistência médico-social.
A natureza contratual da assistência médica levaria à aplicação da presunção legal de culpa, estabelecida no art.º 799º do C. Civil, que determina que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, por ser, normalmente, o devedor quem se encontra em melhor posição para fazer prova das razões que o motivaram a não efectuar ou a efectuar de forma defeituosa a prestação a que se vinculou.
No caso em apreço, a obrigação do médico que efectuou o exame ou prestou a assistência, é uma obrigação de meios.
Tratando-se de uma obrigação de meios cabe ao paciente demonstrar que o médico, na sua actuação, atentas as exigências da legis artis e os conhecimentos científicos então existentes, violou esses deveres objectivos de cuidado ou então qualquer dever específico – Cfr. Ac S. T. J., acima citado, cuja doutrina se vem seguindo.
Nos termos do disposto no art. 798º do C. Civil são pressupostos da responsabilidade civil contratual o incumprimento, a ilicitude, a culpa, o prejuízo sofrido pelo credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
O não cumprimento na responsabilidade contratual tanto pode consistir numa acção como numa omissão. É necessário, porém que seja ilícito, isto é desconforme entre o comportamento devido esperado e necessário para a realização da prestação e o comportamento efectivamente tido.
Por outro lado exige-se que o médico tenha agido culposamente, sob a forma de dolo ou negligência, quer na acção quer na omissão ou no cumprimento defeituoso, isto é, que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada porque o médico podia e devia ter actuado de outra forma ou, atentas as circunstâncias, não podia deixar de ter actuado.
A censura ao médico que actua com negligência funda-se na violação do dever de actuar com o cuidado, o zelo e a diligência exigíveis para evitar o resultado danoso resultante da sua actuação defeituosa.
É necessário ainda, a existência de dano e o nexo de causalidade entre o comportamento do médico e o dano.
Quanto a este aspecto, há também que ter em conta que a actividade do médico implica uma série de riscos que podem não ser previstos, uma vez que o médico se serve de conhecimentos que a ciência vai colocando ao seu dispor e até o estado físico do doente que o médico pode desconhecer e cujo desconhecimento não lhe é imputável. O doente pode sofrer danos da própria natureza da actividade médica, não imputáveis ao médico.
Constituem pressupostos da responsabilidade extracontratual, nos termos do art. 483º do C. Civil.
O facto do agente (facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - A ilicitude - ou anti-juridicidade - podendo esta revestir a modalidade de violação de direito de outrem (direito subjectivo) ou a de violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios; O vínculo de imputação do facto ao agente ou culpa do lesante em sentido amplo, o que significa que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito e podendo revestir a forma de dolo ou negligência; O dano ou prejuízo ; e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, o nexo imputação objectiva do dano ao facto que o produz. - Cfr Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", I, 447);
Quer o médico deva ser responsabilizado contratualmente ou extracontratualmente os dois tipos de responsabilidade têm de comum a conduta violadora de direitos resultantes ou do incumprimento de um contrato ou de leis ou regulamentos, a ilicitude de tal violação, a culpa sob a forma de dolo ou negligência, o dano e o nexo de causalidade entre o comportamento e o dano
Expostos os princípios jurídicos que norteiam a responsabilidade médica, que, ao fim e ao cabo, não divergem da responsabilidade que cabe á generalidade dos prestadores de serviços, em que deve enquadrar-se a sua actuação, e o regime de prova da ilicitude e da culpa, vejamos se, no caso em apreço, se verificam os pressupostos da responsabilidade do médico que efectuou o exame pelos danos reclamados na acção
O Autor alegou que, em 2.11.95, fez nas instalações da Ré um exame médico denominado clister opaco; que durante a realização do exame foi-lhe introduzido, no recto, um objecto de contornos semelhantes a uma esferográfica e que a introdução do contraste foi introduzida de um modo grosseiro e forçado, provocando violentas dores nos quadrantes interiores do abdómen
Ficou provado que, durante a realização do clister opaco feito em 02.11.95 nas instalações do R., em que foi introduzido no recto do A. uma cânula para introdução de contraste, o A. sentiu dores fortes, tendo nos três dias subsequentes sido acometido por fortíssimas dores abdominais e febres altas, que o impediram de trabalhar durante a tarde de segunda-feira, dia 06.11.95.
Provou-se ainda que, em face disso, o A. se dirigiu à sede da R. onde foi atendido pela sua médica assistente, que lhe prescreveu um medicamento para as salmonelas.
Perante o agravamento dos sintomas referidos, paralelamente com a circunstância de paragem de emissão de fezes e gases desde a data da realização do exame, há já cerca de 5 dias, no dia 07.11.95 dirigiu-se o A. ao Serviço de Urgências do Hospital de Santa Maria, onde, após a realização de análises clínicas e radiografias, lhe foram prescritos clisteres e supositórios de glicerina, tendo nesse serviço sido advertido que, em caso de agudização dos sintomas que apresentava, se dirigisse de novo e de imediato àquelas urgências, o que veio a acontecer no dia seguinte perante a agravamento do seu estado de saúde.
Em 08.11.95, o A. deu entrada no Hospital de Santa Maria onde realizou TAC abdomino-perineal, no qual lhe foi diagnosticado colecção perianal na face anterior da transição recto-sigmodeia, revelando a endoscopia baixa que lhe foi feita, estenose completa ao nível da transição recto-sigmoideia.
Em consequência dos exames realizados, o A. foi operado em 09.11.95 com diagnóstico de abcesso peritoneal em virtude de perfuração traumática do recto após clister opaco, tendo sido sujeito a drenagem abdominal e colostomia ilíaca esquerda, para desvio do trânsito intestinal.
Realizada uma colonoscopia em 20.11.95 veio a confirmar-se a existência de uma lesão no recto a cerca de 15 cm do ânus, confirmada de novo em 24.01.96 através de endoscopia digestiva baixa.
Por último, em Fevereiro de 1996, o A. foi sujeito a uma segunda intervenção cirúrgica que confirma a irreversibilidade da perfuração do recto e a necessidade de manter o trânsito intestinal desviado.
Refere-se no relatório do exame do clister junto a fls 105 dos autos que “não há imagens evidentes de lesão orgânica, não sendo possível a sua completa exclusão em virtude da deficiência limpeza intestinal com muitas imagens de fezes no lumen cólico”
Porém é de salientar que o médico que procedeu ao exame já relata no exame “espasticidade do segmento distal cólons radiografados a merecer estudo endoscópio se houver interesse clínico,
Face aos documentos juntos aos autos o exame (clister opaco) era um exame auxiliar de diagnóstico para detectar a razão das perturbações intestinais de que o Autor sofria desde Agosto
Apesar das dores que surgiram durante o exame não há prova que o Autor se tenha queixado e o exame realizou-se.
Perante o agravamento dos sintomas referidos, em 08.11.95, o A. deu entrada no Hospital de Santa Maria onde realizou TAC abdomino-perineal, no qual lhe foi diagnosticado colecção perianal na face anterior da transição recto-sigmodeia, revelando a endoscopia baixa que lhe foi feita estenose completa ao nível da transição recto-sigmoideia, tendo sido operado em 09.11.95 com diagnóstico de abcesso peritoneal em virtude de perfuração traumática do recto após clister opaco, tendo sido sujeito a drenagem abdominal e colostomia ilíaca esquerda, para desvio do trânsito intestinal.
Assim, sete dias depois da realização do clister opaco, foi diagnosticado ao A. no Hospital de Santa Maria um abcesso decorrente de perfuração traumática do recto após clister opaco.
Chegados a este ponto é de perguntar será que a perfuração tem a ver com o clister opaco?
No Relatório do clister opaco nenhuma alusão é feita à existência de qualquer lesão ou da perfuração do recto ao ânus, embora nela se suspeite já da existência de espaticidade do segmento distal dos cólons, o que é confirmado no relatório de fls115 realizado a 9/11/95 onde se relata no TAC realizado a existência de colecção perianal na face anterior perianal da transição recto sigmoideia e na endoscopia estenose completa ao nível recto sigmoidal. Quer isto dizer que desde a sigmoidal ao anus do autor havia acumulação de matéria fisiológica ou patológica (colecção) e que ao nível da transição recto-sigmoidal havia estenose ou aperto completo diminuição patológica e permanente desse canal – Cfr Dicionário Médico de L. Manuila, A. Manuila, P. Lewale e M. Nicoulin, Climepsi Editores, 199, pags 249 e 146.
Que relação de causa e efeito existirá entre a defeituosa realização do clister e o aparecimento da colecção e da estenose?
A prova produzida não é concludente, como não se pode concluir se a realização do colostomia foi realizada devido à existência da perfuração do intestino ou da estenose.
A perfuração do intestino surge mais tarde depois se haverem sido efectuados outros clisteres e uma endoscopia e não está provado que a realização do clister opaco ou a introdução do contraste tenha sido efectuado com falta de cuidado ou zelo ou no dizer do autor “ de um modo forçado e grosseiro” ou dele tenha resultado a perfuração do intestino.
Face ao exposto, não está provado que o médico ou técnico que efectuou o exame tenha actuado com negligência ou falta de cuidado e mais não está indubitavelmente provado o nexo de causalidade entre a realização do exame , os males que o autor veio a sofrer e os danos advenientes.
Face ao exposto, a acção é de improceder.

DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, em absolver a Ré do pedido.
Custas pelos Apelados

Lisboa, 20/01/04

(André dos Santos)
(Santana Guapo)
(Folque de Magalhães)