Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6387/14.0T8LRS-C.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: INSTÂNCIA
DESERÇÃO
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A declaração judicial de que a instância se encontra deserta, nos termos do artigo 281º, nº 1 e 5, do Código de Processo Civil, tem, em qualquer circunstância, como pressuposto essencial a verificação de uma situação de negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende o respectivo ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho, não sendo, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto.
II -  É, neste sentido, absolutamente fundamental que sejam criadas as condições objectivas e razoáveis para que a parte possa ficar efectivamente ciente de que o processo só pode prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizer, a instância caminha inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
III - Apenas deverá o tribunal concluir pela extinção da instância por deserção quando conclua, com o mínimo de segurança, pela referenciada situação de negligência em promover o impulso dos autos, imputável, em termos decisivos, à parte interessada.
IV – A inércia dos serviços do Tribunal não pode, por si, prejudicar os interesses do exequente, transferindo para ele os efeitos penalizadores associados a tal passividade prolongada (que não é sua), sendo que tal situação anómala – ausência de tramitação do processo, durante anos, por parte dos serviços do Tribunal – retira quaisquer condições objectivas para que se possa afirmar que a culpa da paragem dos autos deve ser assacada ao exequente, que logrou penhorar  bens do executado, respondeu atempadamente aos meios de impugnação desses actos de afectação de bens, e ficou a aguardar que o órgão jurisdicional lhes desse a sequência esperada.
V - Ou seja, neste circunstancialismo, a paragem do processo não é causalmente imputável a qualquer tipo de acto impulsionador dos autos que competisse ao exequente praticar e que este tenha culposamente omitido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção).
I – RELATÓRIO.
Na presente execução, por despacho proferido em 25 de Junho de 2012, foi ordenado ao executado J. que indicasse os pagamentos efectuados, de forma discriminada, e ao exequente que indicasse os pagamentos recebidos e a forma de imputação dos mesmos, se no capital, se nos juros, com vista a confirmar a quantia exequenda.
Veio a exequente, então a A. S.A., através de requerimento entrado em juízo em 6 de Julho de 2012, indicar os cálculos efectuados para determinar que a quantia exequenda em dívida em 24 de Maio de 2012 corresponde ao valor de € 73.428,61 (cfr. fls. 409 a 410 do processo executivo principal).
Veio o executado, através do requerimento entrado em juízo em 30 de Agosto de 2012, apresentar nota discriminativa dos pagamentos por si efectuados à exequente (cfr. fls. 414 a 424 do processo executivo principal).
Veio a exequente A. S.A., através de requerimento entrado em juízo em 15 de Outubro de 2012, requerer que se oficiasse às entidades bancárias com vista à penhora dos saldos bancários de que o executado é titular nessas instituições (cfr. fls. 429 do processo executivo principal).
A fls. 432 do processo executivo principal foi realizada a “liquidação de julgado”, datada de 9 de Janeiro de 2013.
Foi proferido, então, o seguinte despacho, datado de 16 de Janeiro de 2013:
“Requerimento que antecede:
Nos termos do artigo 861º-A, nºs 1 e 3, do CPC, ordeno a penhora da parte pertencente ao executado nos saldos de todos os depósitos bancários de que o mesmo seja titular em quaisquer instituições de crédito autorizadas a recebê-los, bem como a penhora de valores mobiliários, escriturais ou titulados, integrados em sistema centralizado, registados ou depositados em intermediário financeiro ou registado junto do respectivo emitente”.(cfr. fls. 433 do processo executivo principal).
Tal despacho foi notiticado à exequente e ao executado.
Foram oficiadas as entidades bancárias em causa, que responderam conforme fls. 437 a 441, 444 a 466, 477 a 479, 480, 491 a 498, 500 a 507, 521 a 523, do processo executivo principal.
Relativamente a tais respostas, apenas foram positivas as dadas pelo Montepio Geral, que penhorou o montante de € 56,95 (cfr. fls. 450), e pelo Millenium BCP que procedeu à penhora do saldo no valor de € 5,66 (cfr. fls. 466).
Entretanto, veio o executado J., através do seu requerimento de fls. 468 a 469, entrado em juízo em 5 de Fevereiro de 2013, interpor recurso do despacho que ordenou a penhora dos saldos bancários.
Foi a mandatária da exequente notificada dos ofícios bancários recebido em Tribunal (cfr. fls. 509).
Através da petição junta a fls. 481 a 486, entrada em juízo em 6 de Fevereiro de 2013, veio o executado apresentar oposição à penhora, peticionando o levantamento da penhora do depósito bancário de € 56,00, de que é titular no banco Montepio Geral, uma vez que tal quantia advém do subsídio de desemprego de que beneficia o executado.
Foi a exequente notificada para se pronunciar, no prazo de dez dias, sobre o requerimento de oposição à penhora apresentado pelo executado (cfr. fls. 510).
Veio a exequente apresentar requerimento, datado de 12 de Março de 2013, solicitando que o executado juntasse aos autos comprovativo do montante auferido a título de subsídio de desemprego; a título de abono de família; e da situação profissional da sua mulher, também aqui executada (cfr. fls. 512 a 514).
Por requerimento entrado em juízo em 28 de Novembro de 2016, veio AG, uma das advogada que patrocina o exequente, renunciar ao mandato que lhe havia sido conferido por este (cfr. fls. 524 do processo executivo principal).
Por requerimento entrado em juízo em 28 de Dezembro de 2016, veio VP, advogada que patrocinava o exequente, renunciar ao mandato que lhe havia sido conferido (cfr. fls. 526 do processo executivo principal.
Tais renúncias foram notificadas ao exequente em 10 de Fevereiro de 2018 (cfr. fls. 538 do processo executivo principal).
Através de requerimento junto em 12 de Janeiro de 2018, veio o executado J. requerer a extinção da instância por deserção face à inércia do exequente em promover o respectivo andamento por mais de seis meses.
Novamente, através de requerimento junto em 15 de Março de 2018, veio o executado requerer a extinção da instância por deserção face à inércia do exequente em promover o respectivo andamento.  
Mais uma vez, agora através de requerimento junto em 7 de Maio de 2018, veio o executado requerer a extinção da instância por deserção face à inércia do exequente em promover o respectivo andamento, mais acrescentando que o exequente notificado para constituir mandatário nos autos não a acatou.
O executado voltou a insistir pela prolação de despacho judicial relativamente ao seu pedido através de requerimento entrado em juízo em 3 de Setembro de 2018.
Pedido que reiterou através de e-mails enviados para o tribunal a quo em 16 de Outubro de 2018, 24 de Outubro de 2018, 30 de Outubro de 2018.
Nenhum destes requerimentos mereceu qualquer tipo de apreciação judicial.
Finalmente, na sequência da conclusão que foi aberta nos autos, foi proferido pelo juiz a quo o despacho de fls. 19, datado de 7 de Dezembro de 2018, nos seguintes termos:
“ Requer o executado que o Tribunal declare a deserção da instância por falta de impulso processual do exequente.
Analisada a execução verifica-se que a mesma, de facto, não apresenta movimento processual desde 2013 – mas tal não é por causa imputável ao exequente.
Com efeito, há muito que o processo devia ter sido concluído ao juiz para apreciação de requerimento de interposição de recurso e de oposição à penhora deduzida nos autos.
Consequentemente, não declaro a instância deserta.
Notifique”.
Veio o executado interpor recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 20).
Juntas as competentes alegações, a fls. 2 a 3, formulou o apelante as seguintes conclusões:
1. É ao exequente que cabe o impulso processual da execução.
2. O mesmo desinteressou-se da mesma, por isso esta esteve parada desde 2013.
3. O tribunal fê-lo notificar para regularizar o mandato judicial, em face da renúncia das ilustres mandatárias, no prazo legal.
4. O mesmo, notificado, nada disse ou praticou.
5. Pelo que a instância extinguiu-se por deserção, ao não a ter promovido, bem como pela ausência de regularização do mandato.
6.  Assim a juiz a quo, ao decidir que não era imputável ao exequente a inércia do mesmo em promover o andamento do processado, ofendeu o disposto no artigo 281º, nºs 1 e 5, e o disposto no artigo 763º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Não houve resposta.

II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.
 e ainda que:
Apenas em 29 de Janeiro de 2019 foi proferido despacho através do qual foi recebida a oposição à penhora deduzida pelo executado, nos termos dos artigos 863º-B-A e 863º-B do Código de Processo Civil; ordenando-se a notificação do exequente para contestar e esclarecendo-se que os presentes autos de oposição não suspendem a execução, em conformidade com o disposto no artigo 863º-B, nº 3, do Código de Processo Civil (cfr. fls. 476).
Veio o exequente – que entretanto constituiu novo mandatário judicial - deduzir contestação, entrada em juízo em 8 de Fevereiro de 2019, conforme fls. 480 a 481.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
Deserção da instância executiva. Requisitos (artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil). Inércia culposa do exequente. Deficiente funcionamento dos serviços judiciais.
 Dispõe o artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil:
“Sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Acrescenta o nº 5 da mesma disposição legal:
“No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Conforme se pode ler in “Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração – artigos 1º a 702º”, de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, a página 331: “O regime de deserção na instância executiva encontrará fortes motivos nos casos em que o exequente negligencie a prática dos actos necessários ao seu prosseguimento, com a única especialidade de que a contagem do prazo não depende de qualquer decisão judicial alusiva ao impulso processual”.
 A declaração judicial de que a instância se encontra deserta, nos termos do artigo 281º, nºs 1 e 5, do Código de Processo Civil, tem, em qualquer circunstância, como pressuposto essencial a verificação de uma situação de negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende o respectivo ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.
Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto.
Exige-se que a mesma seja devida à injustificada inércia da parte onerada com o ónus de promover o prosseguimento dos autos.
Neste sentido, é absolutamente fundamental que sejam criadas as condições objectivas e razoáveis para que a parte possa ficar efectivamente ciente de que o processo só pode prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizer, a instância caminha inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
Em consonância com o referido, apenas deverá o tribunal concluir pela extinção da instância por deserção quando conclua, com o mínimo de segurança e certeza, pela referenciada situação de negligência em promover o impulso dos autos, decisivamente imputável à parte interessada.
Conforme se sublinha no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2019 (relator Pedro Lima Gonçalves), publicado in www.dgsi.pt: “A deserção da instância radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, encontrando a sua razão de ser no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteresse da lide ou negligencie a sua actuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo. (...) A deserção assenta na omissão negligente da parte em promover o andamento do processo (quando apenas a ela lhe incumba fazê-lo) e na paragem da sua marcha (globalmente considerada), constituindo-se esta como um resultado causalmente adequado daquela atitude omissiva”.
Sobre este ponto, e entre muitos outros, vide igualmente acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de Março de 2017 (relator Jorge Teixeira), publicado in www.dgsi.pt.
Na situação sub judice, os elementos reunidos não habilitam a concluir, com a necessária e imprescindível segurança, pela existência de uma situação de inércia culposa do exequente em promover o impulso processual decisiva para a prolongada paragem do processado, contrariamente ao entendimento assumido pelo executado, ora apelante.
O que se verificou, sim, foi uma estranha letargia, verdadeiramente inaceitável, por parte dos serviços dos Tribunal que, a partir de determinado momento, esqueceram-se de tramitar o presente processo, como se ele não existisse.
O último acto praticado nos autos pelo exequente no processo e que se revelou impulsionador deste, ou seja, praticado com vista ao seu prosseguimento, foi o seu requerimento de fls. 429 do executivo principal, entrado em juízo em 15 de Outubro de 2012, através do qual pediu que se oficiasse às entidades bancárias com vista à averiguação e subsquente penhora dos saldos bancários titulados pelo executado.
Tal requerimento foi deferido pelo despacho de fls. 433, datado de 16 de Janeiro de 2013.
Nesta sequência foi penhorado o saldo das contas bancárias tituladas pelo executado no Montepio Geral, no montante de € 56,95 e no Millenium BCP no valor de € 5,66, sendo os ofícios respectivos notificados ao exequente, conforme fls. 509.
O executado impugnou então o despacho que deferiu o requerimento do exequente de 15 de Outubro de 2012, através de recurso, e a penhora dos saldos bancários por via da oposição que apresentou e da qual foi notificado o exequente/embargado, o qual veio apresentar o respectivo articulado de resposta (cfr. fls. 512 e 514), envolvendo-se, desse modo e activamente, na discussão da questão jurídica suscitada.
A partir daqui, os serviços do Tribunal descuraram absolutamente a existência do processo, não o concluindo ao juiz para despacho.
Ora, esta inércia dos serviços do Tribunal (plenamente lamentável e censurável) não pode, por si, prejudicar os interesses do exequente, transferindo para ele os efeitos penalizadores associados a tal passividade prolongada (que não é sua).
Esta situação anómala – ausência de tramitação do processo, durante anos, por parte dos serviços do Tribunal – retira quaisquer condições objectivas para que se possa afirmar que a culpa da paragem dos autos deve ser assacada ao exequente, que logrou penhorar  bens do executado, respondeu atempadamente aos meios de impugnação desses actos de afectação de bens, e ficou a aguardar que o órgão jurisdicional lhes desse a sequência esperada.
Ou seja, a paragem do processo não é causalmente imputável a qualquer tipo de acto impulsionador dos autos que competisse ao exequente praticar e que este tenha culposamente omitido.
Sendo certo que o executado terá todas as razões para se lamentar da falta de apreciação dos sucessivos requerimentos que fez chegar ao processo (e que não foram conclusos ao juiz para despacho), não lhe assiste, não obstante, razão quando pretende responsabilizar a exequente pela paragem dos autos que lhe é objectivamente alheia.
Outrossim, a renúncia de alguns advogados que integravam a procuração forense conjunta passada pela exequente, não conduz a qualquer tipo de situação qualificável como inércia negligente justificativa da deserção da instância, nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, tanto mais que em momento algum foi cumprida a tramitação prevista no artigo 47º do Código de Processo Civil.
Cumpre apenas esperar que daqui em diante este processo mereça a atenção, o zelo, o rigor e o cuidado exigíveis, de molde a evitar-se a repetição de situações de facto tão confrangedoras como a presente.
A apelação improcede.
O que se decide, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos.

IV - DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante/executado.

Lisboa, 11 de Julho de 2019
Luís Espírito Santo
Conceição Saavedra
Cristina Coelho