Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1451/2007-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - Há insuficiência da causa de pedir quando os factos, não obstante terem sido alegados, são insuficientes para determinar a procedência da acção.
II - Não se pode, porém, considerar a petição inepta quando, embora clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omita factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do Autor.
III - Em tais circunstâncias, deve o Juiz, oficiosamente, determinar que o A. aperfeiçoe a petição inicial, suprindo as omissões detectadas, no prazo que fixar, e só posteriormente é que poderá extrair as consequências de tal omissão caso as referidas insuficiências não sejam supridas convenientemente pelo A.
IV - A omissão do despacho ao convite ao aperfeiçoamento é uma irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa e, por isso, constitui uma nulidade nos termos do art. 201º nº 1 do CPC, que acarreta a nulidade do despacho exarado pelo Tribunal “a quo”.
(ALG)
Decisão Texto Integral: I – Relatório:
1. M e F, na qualidade de representante dos seus filhos menores, vieram, ao abrigo do disposto nos arts 138º, n.º 1, 141º, n. ° 1, do Código Civil e 944° e seguintes do Código de Processo Civil, intentar a presente acção de interdição, por anomalia psíquica, com processo especial, relativamente a A.
Alegaram, para o efeito, e em síntese, que já há algum tempo que a Requerida tem apresentado graves sinais de anomalia psíquica, com deterioração das suas capacidades mentais, encontrando-se visivelmente afectada em termos psíquicos e psicológicos e demonstrando claros sinais de instabilidade emocional, afectiva e psicossocial, colocando irremediavelmente em risco a sua vivência normal.
Por tais factos, carece de tratamentos do foro neuropsicológicos, que recusa efectuar, piorando o seu estado psíquico mental com o tempo, sem sinais de reversibilidade ou superação deste quadro, levando-a a perder por completo a noção dos valores familiares e sociais, sendo notório um estado de perturbação de afectos constante que originam comportamentos explícitos e sistemáticos de rejeição para com os filhos, família e amigos.
E ao longo dos articulados citam diversos exemplos comprovativos, em seu entender, do comportamento da Requerida quer relativamente às pessoas, quer quanto aos seus próprios bens que, segundo referem os AA., coloca à venda.
Concluem, assim, pedindo, que seja decretada a interdição da Requerida por se mostrar incapaz de governar a sua pessoa e bens.

2. Com o requerimento inicial os Requerentes juntaram diversos documentos, incluindo exposições realizadas pela própria Requerida.

3. O Tribunal “a quo”, sem mais, “indeferiu liminarmente o requerido” por entender que os AA. se “limitaram a alegar meros conceitos jurídicos sem a mínima concretização fáctica” – cf. fls. 71.

4. Inconformados, os AA. Agravaram tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
a) A sentença recorrida ao entender que não se encontram preenchidos, através da concretização fáctica, os fundamentos para o Tribunal enquadrar a situação num quadro jurídico de interdição ou inabilitação deveria, nos termos do disposto no art. 265º, nº 2, do CPC, ter antes de mais convidado os AA. a aperfeiçoarem o seu articulado.
b) Não o tendo feito, a decisão de indeferimento liminar, por manifesta improcedência do pedido, é nula, por falta de fundamentação bastante, nos termos do disposto no art. 668º do CPC.
c) Pelo que, deve ser revogada e alterada, determinando-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.

5. Tudo Visto.
Cumpre Apreciar e Decidir.

II – Enquadramento Jurídico:

1. Não serão necessárias vastas considerações para se concluir no sentido de que assiste plena razão aos Recorrentes, sendo desacertada, no contexto dos autos, a decisão recorrida.
Com efeito, não se vislumbra a existência de razões jurídicas válidas que determinem a opção pela prolação, in casu, e sem mais, de um despacho de indeferimento liminar pelo Tribunal “a quo”, sem que antes tivesse sido determinado, à respectiva parte, que procedesse à sanação das irregularidades detectadas, bem como o aperfeiçoamento do respectivo articulado inicial.
Uma decisão de tal natureza viola o preceituado nos arts. 508º, nº 1, 265º, 265º-A, 266º, nº 2, e 668º, nº 1, todos do CPC.
Vejamos porquê.

2. O convite ao aperfeiçoamento dos articulados previsto no art. 508º, nº 1, al. b) do CPC, destina-se a:
a) suprir as suas irregularidades, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa (nº 2);
b) suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização
da matéria de facto alegada (nº 3).

Esta segunda situação configura a insuficiência da causa de pedir.
E há insuficiência da causa de pedir quando os factos, não obstante terem sido alegados, são insuficientes para determinar a procedência da acção.

A este propósito ensina Alberto dos Reis que “quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; …”. Cf. “Comentário ao Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 372.
E, como tal, uma situação desta natureza, quando constatada, a irregularidade daí derivada é suprível, carecendo, nesta circunstância, a petição inicial tão só de ser aperfeiçoada.
Conforme refere Lebre de Freitas, reportando-se ao artº 508º do CPC, fora da previsão do preceito apenas estão os casos em que a causa de pedir ou a excepção não se apresentem identificadas, mediante a alegação de elementos de facto suficientes para o efeito, casos esses que são de ineptidão da petição inicial (…) ou de nulidade da excepção, nomeadamente por exclusiva utilização de expressões de conteúdo técnico/jurídico. Vide “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 354 e 355. Casos em que tem de ser proferido imediatamente despacho saneador que absolva o réu da instância pela verificação da excepção dilatória de nulidade de todo o processado.
Mas já assim não será se o autor indica os factos constitutivos do seu direito, embora o faça de forma evasiva, incompleta ou suficiente para assegurar a procedência da acção, porquanto, nesta circunstância, deve o juiz convidá-lo a completar a causa de pedir, ao abrigo do disposto no artº 508º, nº 1, al. b) e nº 3 do CPC.
E só se o Autor não corresponder satisfatoriamente ao convite efectuado pelo juiz, é que este poderá, aquando da decisão a proferir sobre o mérito da causa, julgar a acção improcedente por falta de elementos fácticos suficientemente alegados e provados tendentes a obter a procedência da acção.

3. Atente-se que já no regime anterior à reforma introduzida pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, se defendia o entendimento que, só a ineptidão da petição inicial é que não podia ser suprida, dando lugar ao imediato indeferimento liminar, ao passo que a petição irregular ou deficiente podia ser aperfeiçoada (artºs 481º e 482º na redacção então vigente).
No regime actual, com as alterações introduzidas pelo legislador e que ressaltam claramente dos próprios princípios inseridos no âmbito do processo civil e enformadores de todo o processo, em que foram ampliados os poderes/deveres do Juiz de molde a privilegiar a verdade material em detrimento da verdade formal ou do empolamento das questões de ordem processual, a ponto de se conceder ao Juiz o poder oficioso de determinar a prática de actos que melhor se ajustem ao fim do processo, com vista a adequá-lo ao apuramento da verdade e ao acerto da decisão, não se pode subscrever o entendimento que, uma vez notada a insuficiência na alegação dos factos articulados pelo Autor, o Juiz parta para o indeferimento liminar em vez de optar pelo aperfeiçoamento da petição inicial.
Razão pela qual também não se pode aceitar a decisão recorrida no contexto em que foi proferida.

Com efeito, no caso em apreço constata-se que, o Tribunal “a quo” acentua na decisão proferida a existência da “insuficiência de factos”, alude a “conceitos jurídicos, sem concretização fáctica” e à “falta” de alicerçamento “em factos inequívocos” por parte dos AA., para fundamentar a pretensão deduzida, culminando, por isso, no indeferimento liminar.
Quando, em tal circunstância, deveria ter determinado aos AA. que aperfeiçoassem a petição inicial, indicando de forma concisa as circunstâncias omissas, para que aqueles pudessem efectuar o suprimento das mesmas, concedendo-lhes o prazo respectivo, e só posteriormente é que deveria extrair consequências de tal omissão caso as insuficiências detectadas e por si indicadas não fossem supridas convenientemente.
Só é admissível o indeferimento liminar da petição perante a falta absoluta de causa de pedir, não assim quando se esteja perante uma situação de insuficiência da causa de pedir, porquanto para esta há lugar, primeiro, à prolação do despacho de aperfeiçoamento da petição inicial e só eventual e posteriormente à improcedência da acção.

4. Por outro lado, a jurisprudência tem vindo a entender que a omissão do despacho ao convite ao aperfeiçoamento é uma irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa e por isso constitui uma nulidade, nos termos do art. 201º, nº 1 do CPC, que acarreta a nulidade do despacho exarado pelo Tribunal.
E tal sucede nitidamente nos casos em que o juiz se apercebe de insuficiências ou imprecisões do articulado susceptíveis de conduzir a uma decisão prejudicial à parte que o apresentou e não formula o convite ao aperfeiçoamento, proferindo desde logo decisão desfavorável ao Autor com fundamento em tais insuficiências, em vez de convidar o Autor a suprir as deficiências e imprecisões da petição inicial.
Como aconteceu manifestamente no caso concreto.
Razão pela qual não se pode manter o despacho recorrido e se impõe a sua revogação.

III – Decisão:
- Termos em que se decide conceder provimento ao presente Agravo e, consequentemente, revoga-se a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, determinando-se a sua substituição por despacho que convide os AA. a aperfeiçoar o seu articulado inicial, prosseguindo posteriormente os autos a sua tramitação processual subsequente e legal.

- Sem Custas.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2007.
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
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1 Cf. “Comentário ao Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 372.
2 Vide “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 354 e 355.