Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
340/12.6TBMTJ.L1-6
Relator: NUNO SAMPAIO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: - Enquanto o nascimento duma servidão de vista por usucapião é consequência do decurso do tempo, a servidão por destinação de pai de família nasce no próprio momento da formalização dum acto voluntário de separação de prédios, pertencentes a um mesmo dono.
- A abertura de janelas ou portas deitando directamente sobre prédio vizinho, sem respeito pelo intervalo de metro e meio imposto pelo n.º 1 do art.º 1360º do Código Civil, é susceptível de conduzir à constituição de servidão de vistas por usucapião.
- A servidão não se constitui se, não obstante a existência de sinais visíveis e permanentes, os prédios confinantes pertencem a um mesmo dono.
- A aquisição por terceiro de um desses edifícios pode originar a constituição de servidão por destinação de pai de família, servindo esses mesmos sinais de prova da serventia.
- Não se verifica o requisito da permanência se, após o falecimento do dono de ambos os prédios, os herdeiros colocam barras nas janelas que deitam sobre o outro imóvel, deixando entre elas intervalos não superiores a quinze centímetros.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I - RELATÓRIO:



Autores/recorridos:
J... e M..., residentes na Rua ...

Réus/recorrentes:
J... e A..., residentes na Av ...

Pedidos:

a) a condenação dos RR. no encerramento das três janelas e da porta que deitam para o prédio dos AA. e à eliminação do candeeiro que sobre ele incide;
b) a condenação numa sanção pecuniária não inferior a 100 € por cada dia de incumprimento, contados desde o trânsito em julgado e até efectivo cumprimento.

Fundamentos:

Em 2011 os RR. procederam a obras no seu prédio, confinante com o dos AA., eliminando quatro frestas e abrindo uma porta e três janelas, sem respeitarem a distância de metro e meio.
Os RR. contestaram dizendo que se limitaram a realizar obras de conservação e embelezamento, já existindo a porta e janelas quando adquiriram o edifício em 2010; excepcionaram a usucapião para manutenção da porta (que dá acesso a um terraço ao serviço dos RR.) e das janelas; e alegaram a constituição de servidão por destinação de pai de família, porquanto antes de partilha os dois prédios pertenceram ao mesmo dono.
Os AA. replicaram esclarecendo que os herdeiros, antes da partilha em 2006, haviam acordado em acabar com a porta e janelas, o que ocorreu em 2005.

Sentença recorrida:

A acção foi julgada procedente e os RR. condenados a procederem ao encerramento das três janelas e da porta que deitam para o prédio dos AA. e a eliminar o candeeiro que incide sobre o mesmo prédio; foram ainda condenados numa sanção pecuniária compulsória de 100,00 € por dia, desde o trânsito em julgado da sentença até efectivo cumprimento.

Conclusões da apelação:

1. A matéria de facto impugnada, constante dos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 1º e 15º da Base Instrutória deverá ser considerada provada, como das alegações consta.
2. Os AA. não caracterizam as frestas, designadamente identificando as suas medidas e os materiais utilizados.
3. Pretendendo aos AA. fazer crer que os RR. de cada fresta teriam rasgado uma janela, o que não aconteceu, dada a sua existência ser anterior à colocação das frestas.
4.  De modo que, a causa de pedir não foi devidamente explicitada na p.i., como deveria.
5. Não sendo inepta a petição, dado a existência de causa de pedir, está é contudo insuficiente para servir de base jurídica à procedência da acção.
6. O art.º 1º da B.I., onde se incorpora a causa de pedir, isto é, se os RR. substituíram as frestas, por janelas e porta, apenas foi dado como provado (ponto 16) que os RR. retiraram as barras de ferro (frestas).
7. Contudo, não se encontra provado que os RR. abrissem as janelas, rasgando as frestas.
8. Sendo que, as janelas e porta, muito antigas, já existiam há dezenas de anos.
9. Os RR. não abriram “ex-novo” as janelas e porta, mantiveram, sim, as que já existiam, tal como decorre do relatório pericial de fls. 197/198.
10. Se não abriram as janelas e porta, os RR. Não poderiam ter sido condenados a encerrá-las, quanto muito condenados a repor as frestas e nada mais.
11. De modo que, a condenação no encerramento das janelas e porta, não se enquadra na causa de pedir provada.
12. A hipótese de condenação dos RR. em repor as frestas também não seria possível, dado não ter havido alteração do pedido na réplica.
13. Não houve, por parte dos AA, licenciamento da alteração das janelas e porta por frestas, nos termos do disposto no art.º 4º, nº 2 do D.L. 551/99 de 16/12.
14. Por outro lado, as frestas colocadas no vão das janelas e distando estas de 0,90cm do solo, houve violação do disposto no art.º 1362, nº 2 do C. Civil que obriga a colocação a mais de 1,80m.
15. Mesmo aceitando a anterior existência de frestas e a remoção pelos RR., a acção teria de improceder,
tendo havido incumprimento do disposto no art.º 1549º do C. Civil.
16. A servidão de vistas por destinação do pai de família, consignada no art.º 1549, não foi devidamente considerada pelo tribunal.
17. Os pressupostos da sua admissibilidade estão provados. Desde logo, na alínea D) dos factos assentes consta que os prédios foram pertença do mesmo dono.
18. Quanto aos sinais visíveis e permanentes, a existência das janelas e porta, há dezenas de anos, é concludente, como se justificou.
19. O tribunal, embora admitindo a existência de alguns sinais, não os considera relevantes.
20. Afirmar que em 2005 apenas existiam frestas não é justificativo da perda da servidão de vistas por transmissão do pai de família.
21. Antes de afirmar a existência de frestas, o tribunal deveria ter ponderado na legalidade das mesmas.
22. Nem sequer teve em conta o facto provado na alínea E) de que por morte deste (os anteriores donos) em
sede de partilha de bens pelos herdeiros, nada se declarou quanto à eventual serventia de um prédio em relação ao outro.
23. Os AA. alegaram na réplica que em 2005, os herdeiros acordaram verbalmente em pôr termo às janelas e porta e que a escritura de partilha teve lugar em 2006.
24. Não juntaram aos autos a escritura de partilha e tão pouco alegaram que da mesma constasse o afastamento da servidão de vistas, advinda da existência de janelas e porta, há dezenas de anos.
25. A colocação de frestas em 2005 não afastou, desde logo, a servidão de vistas, como decorre da sentença, pela simples razão de que as frestas eram ilegais
26. Dado que, a escritura de separação dos prédios, em 2006, é que poderia legitimar a alteração das janelas e porta em frestas.
27. Tão pouco, da escritura de compra e venda a fls. 63 consta a cláusula de afastamento da servidão de vistas.
28. Houve por parte do douto tribunal errada interpretação do art.º 1549 do C. Civil, que, na parte final refere “salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”, não tendo em conta, como já se disse, a alínea E dos factos assentes
29. Quanto ao ónus da prova do afastamento da servidão de vistas, uma vez que se trata de facto extintivo, caberia aos AA., conforme decorre do art.º 342, nº 3 do Código Civil. Neste sentido, Tavarela Lobo, Pires de Lima e Ac. STJ de 3-7-2008 (Santos Bernardino) que estabelece a presunção “iuris et iure”.
30. Assim sendo, os AA. não provaram legalmente a inexistência de servidão de vistas, daí deveria o tribunal ter considerado existente o direito dos RR. à servidão de vistas.
31. De qualquer modo, a actuação dos AA. além de ilegal e abusiva é imoral, transformando a casa de habitação dos RR., despojada de janelas e porta, num armazém.
32. Quanto à constituição da servidão de vistas por usucapião, recorremos à impugnação da matéria de facto, dando como reproduzidas as razões invocadas.
33. Ao contrário do que o douto tribunal afirma, os RR. e os anteriores possuidores têm utilizado as janelas e porta de modo contínuo, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, para vistas, ar e luz, há mais de cinquenta anos e daí gozar da aragem, do sol e de outras utilidades.
34. Da existência do prédio há dezenas de anos com janelas e portas antigas é de presumir que as mesmas hajam sido utilizadas pelos seus anteriores possuidores. É a presunção que decorre do art.349 do Código Civil, baseadas nas regras de experiência.
35. A constituição da servidão por usucapião não depende do efectivo gozo de vistas pelo proprietário do prédio. Neste sentido, o Ac. STJ de 31-01-95, proc. 087693 (Carlos Costa).
36. Com o devido respeito, a afirmação do Sr. Dr. Juiz, negando que a porta e janelas hajam sido apenas objecto de remodelação da caixilharia e pintura, está em contradição com o que anteriormente se alegara designadamente a referência ao relatório pericial de fls. 197/198.
37. Uma vez que, a remodelação das janelas e porta foi legal, não seria necessário o consentimento do anterior proprietário nem dos AA.
38. A afirmação de que a colocação das frestas e a propositura da acção em 2012 não havia decorrido qualquer prazo para a aquisição da servidão por usucapião é errónea porque não teve em conta a posse dos anteriores proprietários, durante mais de cinquenta anos.
39. De modo que, a posse dos RR. é revalidada pelo acrescendo da posse anterior, havendo deste modo, acessão da posse a que se refere o art.º do C. Civil 2056, nº 1 conjugado com os art.ºs 1287, 1296 e 1362, nº 1 do mesmo código.

Conclusões das contra-alegações:

Primeira: Tendo sido proferida sentença que respeite na íntegra o disposto no art.º 607.º do CPC não há fundamento legal para a revogar (art.º 615.º do CPC);
Segunda: Deve por isso ser mantida.

Questões a decidir na apelação:

a) Reapreciação da matéria de facto;
b) se a causa de pedir é insuficiente;
c) se as obras efectuadas pelos AA. em 2005 foram ilegais;
d) se a favor dos recorrentes foi constituída servidão de vistas por usucapião ou destinação de pai de família;
e) se deve ser mantida a decisão de encerramento da porta e das janelas.

II - Apreciação do recurso:

Factos provados na sentença recorrida:

1. Os autores são donos do prédio urbano sito na Rua Serpa Pinto com os n.ºs 11 a 15, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 11942.º da freguesia do Montijo e descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob o n.º 4766 da referida freguesia.
2. Os réus são donos do prédio urbano sito no Montijo, com os n.ºs 13 e 14 da Praça 5 de Outubro e n.º 9 da Rua Serpa Pinto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 992.º da freguesia do Montijo e descrito na Conservatória do Registo Predial do Montijo sob o n.º 4767 da referida freguesia.
3. O prédio dos autores confina a sul com o prédio dos réus.
4. O prédio dos autores e o prédio dos réus foram pertença dos falecidos J... e mulher M...
5. Por morte destes, em sede de partilha de bens pelos herdeiros ocorrida em 2007, nada se declarou quanto a eventual serventia de um prédio em relação ao outro.
6. No ano de 2011, os réus procederam a trabalhos de construção, designadamente na parte Norte do seu prédio confinante com o prédio dos autores, na qual existem aberturas.
7. Os réus colocaram um candeeiro sobre uma porta que dá acesso ao terraço.
8. No 2.º andar do prédio dos réus, na parte confiante com o dos autores, existem 4 aberturas:

a. Uma fresta com menos de 15 cm de largura.
b. Uma porta para o terraço do prédio dos autores, com mais de 15 cm de largura;
c. Uma janela da cozinha de 0,67 m de altura, 0,58 m de largura, com 3 varões de aço de 35 mm ao alto, resultando 4 divisões verticais do vão com cerca de 0,11 m de largura cada.
d. Uma janela do quarto sem varões, de 0,90m de largura e 1,20 m de altura, com parapeito de madeira antiga, colocada a 90 cm do soalho.

9. Ao nível do sótão do prédio dos réus (3.º andar), na parte em que confina com o dos autores, existe uma única janela sem varões, com 0,88m de largura e 1,20 m de altura, colocada a 90 cm do soalho. É servida por portada antiga, de madeira, que abre para o interior.
10. A limitar o vão da porta referida em 8. b. existem ombreiras de pedra com muito uso e com a largura de 25 cm.
11. Esta porta é servida por portadas antigas, de madeira, que abrem para o interior.
12. A porta dá acesso a um terraço que se situa ao nível do telhado do prédio dos autores, que mede 6,40 m de comprimento e de largura de 2,11 m a 2,22 m.
13. As janelas referidas em 8. c., d., são servidas por portadas antigas, de madeira, que abrem para o interior.
14. A limitar a janela referida em 8. c. existem ombreiras de pedra, com a largura de 25cm, e muito uso.
15. Anteriormente aos trabalhos de construção acima referidos e desde 2005, a porta referida em 8. b., as janelas referidas em 8. c. e d. e a janela do sótão tinham barras de ferro na vertical, fixadas na ombreira da porta, deixando as aberturas/frestas com menos de 15 cm de largura.
16. Em 2011, no decurso dos trabalhos de construção acima referidos, os réus retiraram as barras de ferro, sem autorização dos autores ou da anterior proprietária.
17. As janelas, porta e candeeiro existentes na parte Norte do prédio dos réus, confinante com o dos autores, distam menos de metro e meio do prédio destes.

Factos não provados:

18. As janelas e porta acima referidos, com a mesma localização e dimensões mas objecto de remodelação ao nível de caixilharia e pintura no ano 2011, são utilizadas pelos réus e anteriores possuidores do prédio, para vistas, ar e luz, há mais de cinquenta anos, de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição.
19. O terraço do prédio dos autores tem estado ao serviço do prédio dos réus, permitindo a estes e aos anteriores possuidores gozar da aragem, do sol e de outras utilidades, como secar roupa, há mais de cinquenta anos, de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição.
20. No local do candeeiro novo, colocado em 2011, sempre existiu um outro candeeiro.
21. Os réus procederam a obras uma vez que a anterior proprietária se recusara a dar cumprimento ao prescrito no auto de vistoria camarária de 21 de Fevereiro de 2007.
22. Isto é, proceder à “reparação de carpintarias das janelas e portas de varanda com substituição de material deteriorado e pintura”.
23. A porta aludida em 1. da base instrutória sempre existiu no mesmo local, com as mesmas dimensões, seguramente, há mais de 30 anos.
24. Como protecção ao uso do terraço, existia um gradeamento em ferro que os AA. retiraram.

Enquadramento jurídico:

A) Impugnação da matéria de facto.

No início das conclusões das suas alegações os apelantes defendem que deve ser considerada provada a matéria de facto impugnada e constante dos art.ºs 2º a 7º, 11º (e não 1º, como certamente por lapso referem) e 15º da base instrutória, conforme explanação devidamente concretizada, em parte, no corpo da sua peça processual.

Esta ressalva reporta-se aos art.ºs 4º e 7º (este, aliás, foi considerado provado juntamente com a primeira parte do 8º), rejeitando-se a sua impugnação porque os recorrentes, ao não tecerem quaisquer considerações a seu respeito, não observaram nesta parte o disposto no n.º 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil.

Assim, os artigos da base instrutório cujas respostas importa reanalisar são os seguintes:  
 
As janelas e porta acima referidos, com a mesma localização e dimensões mas objecto de remodelação ao nível de caixilharia e pintura no ano 2011, são utilizadas pelos RR. e anteriores possuidores do prédio, para vistas, ar e luz, há mais de cinquenta anos, de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição?
O terraço do prédio dos AA. tem estado ao serviço do prédio dos RR., permitindo a estes e aos anteriores possuidores gozar da aragem, do sol e de outras utilidades, como secar roupa, há mais de cinquenta anos, de modo contínuo, à vista de todos e sem oposição?
5º Os réus procederam a obras uma vez que a anterior proprietária se recusara a dar cumprimento ao prescrito no auto de vistoria camarária de 21 de Fevereiro de 2007?
6º “Isto é, proceder à “reparação de carpintarias das janelas e portas de varanda com substituição de material deteriorado e pintura”?
11º A porta aludida em 1. da base instrutória sempre existiu no mesmo local, com as mesmas dimensões, seguramente, há mais de 30 anos?
15º Como protecção ao uso do terraço, existia um gradeamento em ferro que os AA. Retiraram?

Em todas estas questões, de forma mais ou menos marcada, há um fio condutor que é a continuidade na utilização sem restrições da porta e das janelas, essencial do ponto de vista fáctico à pretensão dos RR.

Os meios de prova disponíveis para esclarecerem se essa continuidade existiu são a testemunhal, a pericial e a documental, não isoladamente mas devidamente integradas e correlacionadas, pois é nisso que consiste a análise crítica da prova em sede de motivação da decisão de facto.

Os depoimentos das cinco testemunhas arroladas pelos RR., parcialmente transcritos no corpo das alegações, no seu conjunto não deixam dúvidas de que a porta e as janelas existem há décadas, tanto assim que foram dados como provados os factos 10, 11, 13 e 14, retratando a sua antiguidade e visível degradação pelo decurso do tempo.

No entanto as transcrições têm a desvantagem de descontextualizar ou omitir passagens relevantes, mesmo se não é essa a intenção, como sejam as alterações que o uso de porta e janelas sofreram com as obras de 2005 e 2011, tema que se retomará mais adiante com apoio na escuta das gravações dos depoimentos.

O relatório pericial retracta e esteve na origem da prova duma realidade bem visível: existência de porta e janelas com portadas e ferragens antigas, com parapeitos de madeira antiga, tendo as pedras que orlam os vãos das janelas e da porta dezenas de anos, podendo datar da construção do edifício.

Porém, o relatório não se ficou por aí. Nos quesitos perguntava-se em m) “se da observação do local bem como das fotografias juntas aos autos é possível concluir se as obras feitas em 2011 no prédio dos Réus mantiveram as janelas e as portas já existentes, apenas as modernizando, ou se as abriram ex novo, substituindo três frestas então existentes”.

Depois de reafirmar a existência de vãos com dezenas de anos, o sr. perito referenciou a fotografia que se encontra a fls. 157 dos autos (também a fls. 201 e 304), datada Abril de 2009, para salientar que três dos vãos “apresentam o que parece ser barras ao alto. Não é possível confirmar se o que aparenta ser barras fazia parte da porta e janela (elementos móveis) ou se eram elementos fixos”.

Esta fotografia, sujeita à livre apreciação da prova por parte do tribunal, é do nosso ponto de vista elucidativa e determinante para a compreensão do que efectivamente se passou, sobretudo se comparada com uma outra, que se encontra junta à petição inicial como documento n.º 5, a fls. 25.

Durante a audiência de julgamento o ilustre mandatário dos AA. teve o cuidado de confrontar as testemunhas arroladas pelos RR. com as fotografias.

Foi o que fez com as cinco testemunhas cujos depoimentos foram transcritos na alegação de recurso, algumas com ambas, outras apenas com a de fls. 157, permitindo a escuta das gravações constatar resultados díspares: F..., claramente a contragosto, admitiu as diferenças entre ambas; J... insistiu em que são iguais, afirmando que “é o que está”; A... apenas viu a de fls. 157 e disse não ter ideia das barras mas, perante a evidência fotográfica, aceitou que estiveram colocadas; J... admitiu que antes de colocar a porta de alumínio estavam lá as barras; e V..., que só foi confrontado com a fotografia de fls. 157, afirmou, com insistência, que “o que está aqui é o que está lá”.

Não obstante a maior ou menor resistência de cada testemunha, e se dúvidas houvesse, é também a partir de alguns desses depoimentos que se dissipam quaisquer reticências acerca da idoneidade da fotografia de fls. 157, que manifestamente apresenta diferenças significativas para a de fls. 25 (e para todas as demais que retractam o estado actual da porta e das janelas, cfr. fls. 148 e seguintes).

Perante a prova produzida, reforçada pelo contributo de testemunhas arroladas pelos próprios RR., resulta evidente que houve uma descontinuidade da configuração de porta e janelas ao longo do tempo: existem efectivamente há várias décadas, em 2005 foram parcialmente tapadas mediante a colocação de barras que, em 2009, eram perfeitamente visíveis do exterior (e também chapa, de acordo com o depoimento da testemunha J..., a propósito da necessidade de retirar um piano), barras essas que posteriormente foram retiradas.

Esta leitura dos acontecimentos é ainda reforçada pelos depoimentos de J..., que em 2005 colocou as barras, e de V..., relatando também ele o episódio de retirada do piano.

Cumpre ainda acrescentar que o facto n.º 15, no qual consta que “a porta… e as janelas… tinham barras de ferro na vertical… deixando as aberturas/frestas com menos de 15 cm de largura”, pode ser facilmente comprovado pela contabilização das barras da porta e da janela do sótão, dos espaços deixados livres entre elas, confrontando-se com as medições especificadas nos factos n.ºs 8 e 9 para facilmente se concluir que os espaçamentos entre as barras não atingiam os 15 cm; relativamente às duas janelas que não são visíveis na fotografia entram em jogo as regras da experiência, validando duas presunções: de que o mesmo sucedia nas restantes janelas, como consequência da intenção que presidiu à colocação das barras em todas as quatro aberturas; e de que as barras foram retiradas pelos RR. por ocasião das obras (facto n.º 16).

Relativamente aos art.ºs 5º e 6º da base instrutória, não se fez prova da recusa da anterior proprietária em realizar obras e que tivesse sido essa a razão que levou os RR. a realizá-las.

É certo que o auto de vistoria, datado de 21 de Fevereiro de 2007 e junto a fls. 60, revela a existência duma porta e janelas antigas, todas em mau estado de conservação; mas trata-se dum documento no qual se procurou retractar o mau estado de conservação do edifício, não se podendo daí concluir pela inexistência das barras metálicas porque a sua existência era irrelevante para o objectivo da vistoria e, acrescente-se, porque já vimos que é contrariada pela fotografia de fls. 157.

Finalmente, quanto ao art.º 15º da base instrutória, o sentido útil da pergunta é a retirada do gradeamento por parte dos AA. – e não a sua existência, comprovada pela perícia, pela fotografia de fls. 156 e pelo depoimento das duas testemunhas referenciadas pelos recorrentes – mas é manifesto que não há prova de que tenham sido eles, não sendo suficiente para a concretizar o mero “penso que…” expresso no depoimento de V...

Perante o exposto, provando-se apenas a existência do gradeamento de protecção ao terraço e nada mais, não pode funcionar a favor dos recorrentes qualquer presunção extraída do art.º 349º do Código Civil.

Com esta ressalva não merece censura a decisão do tribunal recorrido em não considerar provada a restante factualidade impugnada, por não ficar demonstrada a referida continuidade na utilização da porta e das janelas e pela desconformidade com os factos que se provaram, inexistindo assim violação das disposições legais invocadas pelos recorrentes (art.ºs 607º, n.º 4 do CPC e 349º, 371º e 376º do Código Civil).
           
B) Aplicação do direito aos factos.

A segunda questão que os recorrentes colocam, nas conclusões das suas alegações, é a da insuficiência da causa de pedir para servir de base jurídica à procedência da acção, uma vez que os AA. não caracterizaram as frestas, designadamente identificando as suas medidas e os materiais utilizados.

Não obstante na petição inicial terem referido a eliminação de frestas, na réplica procuraram precisar melhor os termos do diferendo, reconhecendo que a porta e as janelas sempre existiram, mas explicando que antes da partilha dos dois prédios foi acordado acabar com elas, inexistindo à data da aquisição pelos recorrentes.

Se é verdade que houve pouco rigor na forma como os AA. delinearam a causa de pedir, inclusivamente na alteração a que procederam na réplica ao falarem indevidamente na inexistência pura e simples daquelas aberturas, ficou claro com o decorrer do processo que não estão em causa frestas tal como as caracteriza o art.º 1363º do Código Civil (daí também a irrelevância do argumento de que distavam apenas 0,90 cm do solo, aquém dos 1,80 m exigidos pelo n.º 2 desta disposição legal), mas sim as restrições colocados ao uso da porta e das janelas mediante a colocação de barras, impeditivas do uso da porta e limitando a funcionalidade e a visibilidade a partir das janelas.

Está assim claro o que se discute, os recorrentes entenderam perfeitamente que não estão em causa frestas no sentido legal mas o facto terem desobstruído a porta e as janelas, retirando as barras que lá encontraram, pelo que não tem cabimento exigir dos AA. a indicação de medidas e materiais das frestas como condição necessária à apreciação do fundo da causa.
                                                                      
Os recorrentes também questionaram a legalidade da colocação das frestas invocando o art.º 4º, n.º 2, do DL 555/99, de 16/12 (e não 551/99, como por lapso identificam quer das conclusões quer do corpo das alegações), que obriga ao licenciamento das obras de reconstrução sem preservação das fachadas, não constando que os AA. o tivessem requerido.

Sucede que o teor deste preceito legal já sofreu várias alterações, mas os recorrentes não indicaram nem a redacção vigente à data, nem a alínea que especificamente exige o licenciamento.

Tendo-se apurado que os AA. realizaram as obras em 2005 (facto n.º 15), a redacção aplicável era a do DL n.º 177/2001, de 4 de Julho; e de nenhuma das alíneas, de qualquer dos três números, consta qualquer referência a obras na fachada dos edifícios.

Esta menção só viria a surgir com a redacção da Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, que apenas produziu efeitos a partir de 2 de Março de 2008, inexistindo a invocada ilegalidade.
                                                                                  
Abordando agora a questão da constituição de servidão de vistas, decorre das alegações de recurso que os recorrentes a defendem por duas diferentes formas: por destinação do pai de família e por usucapião.

Iniciando a análise por esta última, verifica-se que os AA. fundamentaram juridicamente a sua pretensão, não no art.º 1366º do Código Civil como por lapso indicaram na petição inicial, mas antes no n.º 1 do art.º 1360º, que proíbe a abertura de “janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”.

A sua abertura em contravenção deste intervalo pode efectivamente levar à constituição de servidão de vistas por usucapião, “nos termos gerais”, conforme dispõe o n.º 1 do art.º 1362º do mesmo código.

Os “termos gerais” encontram-se previstos designadamente no art.º 1543º, dispositivo legal que define a servidão predial como “…o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” (sublinhado nosso).

A imposição dum “encargo” justifica-se quando os edifícios têm diferentes proprietários, mas a expressão perde completamente o significado quando é o mesmo, situação em que não há hipótese de devassa ou de quaisquer outros incómodos.

Daí a exigência legal de que para a constituição duma servidão de vista os donos dos prédios sejam diferentes, pois não faz qualquer sentido conceber um tal encargo quando os edifícios pertencem a um mesmo dono, mesmo que a situação concreta seja coincidente com aquela que permitiria a usucapião com distintos proprietários.

Para maior elucidação transcrevemos uma passagem particularmente elucidativa do acórdão do STJ de 31-01-2012, revista n.º 277/05.5TBBCL.G1.S1 da 7.ª Secção, publicado em texto integral em www.dgsi.pt: “Enquanto aqueles prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máxima nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário. Existe, quando muito, uma servidão em estado latente, uma servidão meramente causal. E esta situação perdurará, enquanto os prédios ou fracções forem do mesmo dono ou se ambos passarem para o domínio de outro único proprietário.

Do exposto decorre que do ponto de vista jurídico, com o devido respeito, é um equívoco encarar a possibilidade de constituição da servidão por usucapião até ao momento em que o dono dos prédios deixou de ser o mesmo por efeito da partilha.

De qualquer forma, mesmo que assim se não entendesse, o insucesso na impugnação da matéria de facto conduzir-nos-ia à mesma conclusão a que chegara o tribunal recorrido: os recorrentes não lograram provar a continuidade da utilização da porta, janela, terraço e candeeiro de forma ininterrupta, à vista de todos e sem oposição, na medida em que, em 2005 e ainda antes da partilha formalizada em 2007, os herdeiros optaram por condicionar a utilização da porta e das janelas mediante a colocação das barras.

Conclui-se, do exposto, que à data da aquisição pelos recorrentes o prédio não beneficiava duma servidão de vistas, constituída por usucapião.

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Relativamente à hipótese de constituição da servidão por destinação do pai de família, dispõe o art.º 1549º do Código Civil: “Se em dois prédios do mesmo dono… houver sinal ou sinais visíveis e permanentes… que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios… vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.

Deste normativo extrai-se que o enquadramento jurídico é substancialmente diferente daquele com que nos confrontamos para a constituição por usucapião, uma vez que o seu nascimento não é uma consequência do decurso do tempo (não é uma servidão legal), é antes fruto do acto voluntário de separação, daí que se entenda que se constitua “… no preciso momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª edição, vol. III, página 635, em anotação ao art.º 1549º).

A ênfase dos recorrentes recai sobre a parte final do art.º 1549º, insistindo na ausência de declaração impeditiva da serventia na formalização da partilha, conforme aliás se confirma pela leitura do facto n.º 5.

Porém, para além da separação dos prédios, este preceito legal exige sinal ou sinais visíveis e permanentes que revelem serventia de um para com o outro.

Os sinais existem, conforme inequivocamente decorre da matéria de facto e da sua anterior reapreciação, e se não eram relevantes para a constituição da servidão de vistas por usucapião, pelo facto do dono dos prédios ser o mesmo, são agora essenciais à hipótese de constituição por destinação do pai de família. Tanto assim é que o texto do acórdão do STJ acima citado prossegue nos seguintes termos: “Surgirá, porém, automaticamente, a figura jurídica da servidão, se os dois prédios ou as duas fracções se separarem, radicando-se no domínio de proprietários diferentes. O estado de simples serventia entre prédios do mesmo dono transmuda-se numa verdadeira servidão formal. A utilidade que um prédio prestava ao outro ou que uma fracção prestava a outra passa a ser prestada a título de servidão (donos diferentes). Constitui-se assim a servidão por destinação do pai de família”.

Porém o funcionamento não é exactamente “automático”, como parece resultar desta transcrição, dado que os sinais só por si não chegam visto que o art.º 1549º exige expressamente que sejam “permanentes” – o que nos reconduz, novamente, às decisões que presidiram à partilha e à subsequente venda do prédio aos recorrentes.

É determinante para a solução do caso concreto avaliar e ponderar a permanência dos sinais e a voluntariedade do acto, isto é, se à data da venda e da eventual constituição da servidão, havia ou não sinais que revelassem o propósito de constituição da servidão ou se, pelo contrário, apontavam em sentido oposto, de que ao dividir a propriedade a intenção dos herdeiros foi no sentido de a excluir.

Perante a factualidade provada não podem subsistir dúvidas: ao limitarem as vistas e o acesso do prédio que é agora dos recorrentes para o dos AA., com a colocação das barras em 2005, a intenção foi claramente no sentido da exclusão duma eventual servidão de vistas e de acesso ao terraço através da porta quando o edifício fosse alienado a terceiros.

Ficou assim bem claro que, não obstante a omissão de qualquer declaração na escritura, na partilha efectuada em 2007 os herdeiros, longe de pretenderem constituir uma servidão, colocaram as barras na porta e nas janelas precisamente com o propósito de a evitarem.

Nesta conformidade não se fez a prova da constituição da servidão exigida pelo art.º 1549º do Código Civil pelo que, também nesta parte, improcede o recurso.

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Sustentaram ainda os recorrentes que não se encontra provado que tivessem rasgado as janelas ampliando as frestas pelo que, quando muito, poderiam ser condenados a repor as frestas; e nem isso, por não ter havido alteração do pedido na réplica.

Colocando de parte a questão das frestas e das consequências que os recorrentes quiseram retirar das imprecisões da petição e da réplica, remetendo-se para as razões já explanadas, importa reconhecer que o pedido de encerramento é susceptível de gerar equívocos, com repercussões numa eventual execução de sentença.

Encerrar significa fechar, tapar, o que no caso concreto implicaria para os RR. a obrigação de fecharem totalmente as janelas e a porta.

O pedido, tal como foi formulado, seria legítimo se os anteriores proprietários, co-herdeiros com os AA., tivessem optado por tapar pura e simplesmente as quatro aberturas, vendendo o edifício nessas condições.

Como a opção não foi essa, mas antes a colocação das barras para impedirem o acesso e a devassa do prédio vizinho, venderam aos RR. com condições de luminosidade e arejamento que não podem alterar por via da presente acção. Se é certo que estes não tinham direito a alterar os limites impostos pela colocação das barras, têm o direito de manter as precisas condições em que compraram, assim se respeitando os princípios da equidade e da proporcionalidade.

Pelo exposto, nesta parte a apelação merece provimento.

III – Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente, alterando a decisão da primeira instância na parte respeitante ao encerramento das três janelas e da porta que deitam para o prédio dos AA., condenando os recorrentes na reposição do estado em que essas aberturas se encontravam à data da aquisição do prédio, mantendo-se o demais decidido.
Custas na proporção de 7/8 pelos recorrentes e 1/8 pelos recorridos.


Lisboa, 12 de Novembro de 2015
   
                                                                               
Nuno Sampaio (relator)                 
Maria Teresa Pardal                         
Carlos Marinho
Decisão Texto Integral: