Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17663/20.3T8LSB.L1-4
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: SINDICATO
LEGITIMIDADE
CONCURSO DE INGRESSO
PROCESSO DE BOLONHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1 – A legitimidade processual apura-se com abstração da efetiva titularidade do direito.
2 – Comportando a ordem jurídica nacional licenciaturas obtidas antes e depois do Processo de Bolonha, e tendo sido feita uma clara opção política pela reorganização dos cursos superiores, não é válido ou plausível distinguir categorias de licenciados pelo simples facto de uns terem obtido o respetivo grau antes ou depois daquele Processo.
3 – Essa revela-se uma distinção desprovida de justificação razoável e aceitável que, por isso mesmo, não encontra cabimento legal ou constitucional.
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

BBB R. nos autos supra referenciados, com sede na (…) Lisboa em que é A. AAA não se conformando com a sentença de 6 de Janeiro de 2021, vem dela interpor recurso que é de Apelação.
Pede a revogação da sentença com consequente absolvição do pedido.
Formulou as seguintes conclusões:
A) O A. é parte ilegítima porque aqueles que representa na presente ação não podem ser seus filiados, por violação do respetivo âmbito associativo.
B) A exigência aos candidatos ao concurso interno para recrutamento de Técnicos Licenciados, das licenciaturas de que deviam ser titulares, obtidas anteriormente ao processo de Bolonha ou posteriores mas com mestrado, não viola o princípio constitucional da igualdade, nem constitui uma prática discriminatória inaceitável;
C) O próprio Quadro Nacional de Qualificações consagra a existência de vários níveis de qualificação, e permite, desde logo, diferenciar a complexidade de conhecimentos académicos entre níveis de ensino e pessoas com níveis diferentes de conhecimentos, como são os que decorrem de uma licenciatura pré-Bolonha ou pós Bolonha que têm também incidência no prosseguimento de estudos de mestrado;
D) Desde que haja, como é o caso, uma justificação objetiva e geral, não está proibida a definição de requisitos/condições obrigatórios que os candidatos devem preencher/cumprir, para cada uma das vagas a concurso e fazê-lo de forma diferente consoante os casos;
E) No caso em apreço não há qualquer diferença de tratamento que não esteja devidamente sustentada e, ainda que houvesse, não vem alegado que ela se baseou em qualquer dos fatores de discriminação previstos na lei.
F) Os requisitos impostos pela R. no processo de recrutamento interno destinado ao provimento de seis vagas de técnico licenciado, dada a sua objetividade, respeitam integralmente a lei e o princípio da igualdade.
G) Os representados do Apelado não foram objeto de tratamento discriminatório face a qualquer outro colega.
H) A sentença recorrida é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade, ao considerar que os candidatos habilitados com a licenciatura posterior ao processo de Bolonha estão no mesmo plano que os habilitados com aquela licenciatura e ainda com mestrado;
I) Decidindo em contrário, a sentença recorrida fê-lo em violação dos artigos 5º do CPT, 24º, 25º, 444, nº 1 e 450º, nº 1 a) do Código do Trabalho e 13º e 59º da Constituição da República.
AAA, nos autos supra identificados, com sede na (…) Lisboa notificado da interposição de recurso de apelação pela mesma R. e das respetivas alegações, vem apresentar a sua resposta concluindo que o recurso deve ser recusado por extemporâneo e, mesmo que assim não se entendesse, deve ser dado por improcedente, mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
O MINISTÉRIO PÚBLICO emitiu parecer no qual conclui pela manutenção da sentença recorrida.
 Segue-se um breve resumo dos autos para cabal compreensão da discussão.
AAA vem, em representação e substituição dos trabalhadores seus associados:
- (…), residente na  (…);
-  (…), casado, residente na  (…) e
-  (…), residente  (…) interpor contra BBB a presente ação, sob a forma de processo comum, pedindo ao tribunal que, julgando pela sua procedência, decida declarar a ilegalidade das regras do processo de recrutamento que determinam a obrigatoriedade das licenciaturas de que os candidatos são titulares terem sido obtidas anteriormente ao processo de Bolonha e, consequentemente, a R. condenada a admitir no processo de recrutamento os trabalhadores que o A. aqui representa, designadamente:
(…)
(…);
(…)
Alega, para tanto, que os seus representados são licenciados, tendo obtidos os respetivos graus académicos em licenciatura pós-Bolonha; a R. abriu concurso interno para determinadas categorias de técnicos; porém, apenas admitiu à sua candidatura os trabalhadores titulares de licenciatura pré-Bolonha ou de licenciatura e mestrado pós- Bolonha; os representados do A., apesar e trabalhadores da R., viram-se, assim, de forma injustificada impossibilitados de concorrerem àqueles lugares, apesar de possuírem o grau de licenciados; a decisão da R. é discriminatória, violando o princípio da igualdade.
A R. deduziu contestação, excecionando a falta de legitimidade processual do A. e impugnado a sua versão dos factos. Entende, assim, que está coberta pela liberdade de iniciativa privada a faculdade de definição dos critérios a que sujeita os seus concursos internos; a exigência preconizada visa assegurar que para aqueles lugares vão os trabalhadores mais capazes; há, pois, uma razão objetiva para o tratamento diferenciado em apreço.
Conclui pedindo ao tribunal que, julgando pela improcedência da ação, absolva a R. do pedido.
Foi proferido despacho saneador que julgou a exceção e ilegitimidade improcedente e conheceu do mérito julgando a ação procedente e, em consequência, declarou a ilegalidade das regras do processo de recrutamento interno para Técnico Licenciado que determinam a obrigatoriedade das licenciaturas de que os candidatos são titulares terem sido obtidas anteriormente ao processo de Bolonha e, consequentemente, condenou a R. a admitir no processo de recrutamento os trabalhadores que o A. aqui representa, designadamente:
-  (…)(…) (…) (…) Já nesta Relação foi proferido, pela Relatora, despacho que considerou o recurso tempestivo.
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As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as questões a decidir, extraídas das conclusões:
1ª – O A. é parte ilegítima?
2ª - A exigência aos candidatos ao concurso interno para recrutamento de Técnicos Licenciados, das licenciaturas de que deviam ser titulares, obtidas anteriormente ao processo de Bolonha ou posteriores mas com mestrado, não viola o princípio constitucional da igualdade, nem constitui uma prática discriminatória inaceitável?
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FUNDAMENTAÇÃO:
Factos Provados:
Estão assentes os seguintes factos:
A. A R. determinou o lançamento de um processo de recrutamento interno destinado ao provimento de seis vagas de técnico licenciado, fazendo constar que o presente processo de recrutamento interno é realizado “de acordo com o n.º 10 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 110/2019, de 27 de junho e deliberação do C.A. – ponto 23 da Ata n.º 2219, de 22 de agosto de 2019, nas condições que a seguir se apresentam”.
B. Processo de recrutamento esse destinado ao provimento das seguintes vagas:
a) Uma de técnico licenciado na Direção Jurídica (DJR);
b) Uma de técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Compras;
c) Uma de técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Controlo e Apoio à Gestão;
d) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Projeto CRM);
e) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Bilhética e Canais Digitais);
f) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Gestão de Infra-estruturas e Administração de Base de Dados.
C. Assim, em 04/12/2019, foi publicitada pela Direção de Recursos Humanos da R. a informação-circular n.º …, através da qual foi dado a conhecer aos trabalhadores o lançamento do processo de recrutamento e das condições e requisitos que os candidatos deveriam preencher.
D. Entre essas condições, estabeleceu a R. as habilitações académicas de que os candidatos deveriam obrigatoriamente serem titulares para que as respetivas candidaturas fossem admitidas.
E. Determinou a R. que os candidatos às diferentes vagas deveriam ser titulares das seguintes habilitações académicas em função das vagas a que se candidatassem:
a) Técnico licenciado na Direção Jurídica (DJR) - Licenciatura pré-Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente em Direito;
b) Técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) – Área de Compras - Licenciatura pré-Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente nas áreas de Economia/Gestão/Auditoria/Informática;
c) Técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) – Área de Controlo e Apoio à Gestão - Licenciatura pré-Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente em Engenharia Informática ou na área académica de Sistemas e Tecnologias de Informação;
d) Técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Projeto CRM) - Licenciatura pré-Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente em Engenharia Informática ou na área académica de Sistemas e Tecnologias de Informação;
e) Técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Bilhética e Canais Digitais) - Licenciatura pré- Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente em Engenharia Informática ou na área académica de Sistemas e Tecnologias de Informação;
f) Técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Gestão de Infraestruturas e Administração de Base de Dados - Licenciatura pré- Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente em Engenharia Informática ou na área académica de Sistemas e Tecnologias de Informação.
F. Em função dos indicados critérios e, mais especificamente, em virtude de alguns dos candidatos serem possuidores de licenciaturas obtidas após a adesão de Portugal e implementação ao processo de Bolonha, esses mesmos candidatos foram excluídos do processo de seleção e recrutamento.
G. O que aconteceu concretamente com os trabalhadores que o aqui A. representa que haviam apresentado candidaturas às vagas para técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Compras e de técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Controlo e Apoio à Gestão.
H. Estes trabalhadores foram excluídos do processo de recrutamento em virtude das licenciaturas de que são titulares terem sido obtidas pós-Bolonha.
I. Em reunião de 28/10/2010 – Ata 1734 – o Conselho de Administração da CP deliberou:
“18. Carreira de Quadros Técnicos (DMS 387514 e 375844) O Conselho de
Administração tomou conhecimento da informação apresentada pelos Recursos Humanos e Relações Laborais (RHC) sobre os possíveis cenários de uma carreira única de Quadros Técnicos na BBB.. O Conselho, a propósito da questão suscitada pelos Serviços no DMS 375844 - Exigências de habilitações académicas nos processos de recrutamento externo e interno de Quadros Técnicos na BBB – deliberou que deverá ser entendido que, qualquer candidato com grau de Licenciatura, fica habilitado a aceder à Carreira de Técnico Licenciado, de acordo com as regras em vigor na Empresa.”
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O DIREITO:
A 1ª questão a dilucidar prende-se com a ilegitimidade do A. para a presente ação.
Alega a Apelante que na contestação sustentou que o A. carecia de legitimidade ativa para propor a presente ação, uma vez que no respetivo âmbito subjetivo, “associa e representa os técnicos diplomados por escolas superiores, portuguesas ou estrangeiras”, pelo que ali não se incluem os trabalhadores cuja representação assumiu, sendo certo como é que não são trabalhadores com funções próprias de técnico licenciado, bacharel ou até mesmo técnico superior. O A. é um sindicato que reconhecidamente atua no âmbito da BBB, pelo que nenhum dos representados do A. conhece a fundo determinada área da empresa ou da profissão ferroviária, nem esse conhecimento foi obtido por via da licenciatura com que estão habilitados. A obtenção de uma licenciatura, ou de outro grau superior, não confere a uma pessoa, só por si, a qualidade de técnico diplomado, por isso mesmo o Mmo. Juiz terá começado por reconhecer que assistia razão à R., para depois concluir em sentido contrário, por entender, sem razão, que se torna técnico alguém que obtém uma licenciatura. Como decorre do disposto no artigo 5º do CPT, as associações sindicais têm legitimidade para representar os seus associados, ou intervir como assistentes dos seus associados, mas não o poderão fazer se essas pessoas não puderem ser filiadas, por violação do respetivo âmbito associativo. E, assim, o A. é parte ilegítima e como tal deve ser declarado.
O Apelado nada contrapõe.
Ponderou-se na decisão recorrida:
Afigura-se-nos que assiste razão à R.
De facto, um técnico é uma pessoa que conhece a fundo determinada área do saber (arte, ciência, profissão, etc.). Quando esse conhecimento é obtido através de um curso e reconhecido por entidade para tanto habilitada através de um diploma, o técnico é diplomado.
No caso em análise, aqueles trabalhadores adquiriam uma licenciatura (nas respetivas áreas do saber) em escolas superiores, portuguesas ou estrangeiras. São, pois, técnicos diplomados, para efeitos do universo de pessoas com legitimidade para se filiarem no aqui A.
Note-se que a R. apenas assenta a sua posição naquele argumento e não, também, na não verificação dos pressupostos consagrados no art. 5º, n.º 2, c), do CPT, invocado pelo A. como esteio da sua intervenção processual nesta ação.
E, na sequência do assim consignado passou a conhecer da exceção de ilegitimidade tendo por base o disposto no Artº 5º do CPT e as normas sobre legitimidade processual constantes do CPC, vindo a concluir que “no caso em análise, o A. alegou que a conduta da R. viola, com carácter de generalidade, os direitos individuais de idêntica natureza dos trabalhadores por si representados.
A R. não põe em causa que assim seja (a ter-se por boa a versão do A., com a qual, porém, não concorda – mas isso é questão de mérito e não de forma).
Tudo visto, só nos resta concluir pela legitimidade ativa do A.”.
Como vemos a base de sustentação da ilegitimidade do A. reside na circunstância de a R. entender que entre os associados deste se não incluem os trabalhadores cuja representação assumiu por não serem trabalhadores com funções próprias de técnico licenciado, bacharel ou até mesmo técnico superior.
Alegou-se na petição inicial:
1º - O A., AAA, é uma associação sindical que, nos termos dos seus estatutos, nomeadamente dos respetivos art.ºs 1.º e 6.º, alíneas a) e f), associa e representa os técnicos diplomados por escolas superiores, portuguesas ou estrangeiras, competindo-lhe, mais especificamente e para além do mais, representar e defender os interesses sócios - profissionais dos seus associados, defendendo a justiça e a legalidade das nomeações e das promoções dos trabalhadores seus associados - cf. estatutos publicados em BTE, 3.ª serie, n.º 9, de 15/05/1986; BTE, 3.ª serie, n.º10, de 30/05/1993, e BTE, 1.ª serie, n.º 37, de 08/10/1999.
2.º - Os trabalhadores que o A. aqui representa e aos quais se substitui são seus associados, tendo os mesmos solicitado, através de declarações remetidas ao A. via correio eletrónico, essa representação, - cf. docs. 4, 5 e 6, que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
3.º - A presente ação decorre e tem como fundamento a violação por parte da R. do direito de todos os trabalhadores aqui representados do direito a serem admitidos a concurso de recrutamento interno, nomeadamente, responsabilidade limitada em virtude das suas habilitações académicas não terem sido considerado admissíveis.
4.º - Verifica-se, pois, uma violação, com carácter de generalidade, de direitos individuais de idêntica natureza dos trabalhadores em causa, associados do A..
Perante a factualidade assim enunciada e, terminada, há muito, a polémica que envolveu ilustres processualistas acerca do apuramento da legitimidade, mais concretamente se o mesmo deve fazer-se em termos subjetivos, ou seja, com abstração da efetiva titularidade do direito ou em termos objetivos, isto é abstraindo apenas da efetiva existência do direito, vindo a lei processual a optar claramente pela primeira conforme decorre de quanto se dispõe no Artº 30º/3 do CPC, afigura-se-nos que a discussão trazida a juízo pela Apelante falece.
E não se tendo a mesma insurgido contra as demais conclusões enunciadas na sentença que deram o A. como parte legítima face ao disposto no Artº 5º do CPT – o que aqui verdadeiramente releva -, nada mais há a dizer, improcedendo a questão em apreciação.
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Deter-nos-emos, pois, de seguida, sobre a 2ª questão enunciada - A exigência aos candidatos ao concurso interno para recrutamento de Técnicos Licenciados, das licenciaturas de que deviam ser titulares, obtidas anteriormente ao processo de Bolonha ou posteriores mas com mestrado, não viola o princípio constitucional da igualdade, nem constitui uma prática discriminatória inaceitável?
Na sua alegação começa a Apelante por concordar com o apelo que a decisão recorrida faz ao disposto nos artigos 24º e 25º do Código do Trabalho, e a um vasto conjunto de citações doutrinais e jurisprudenciais. Salienta, contudo, que todas, sem exceção, reconhecem que desde que exista uma justificação objetiva e geral, não está proibida a definição de requisitos/condições obrigatórios que os candidatos devem preencher/cumprir, para cada uma das vagas a concurso e fazê-lo de forma diferente consoante os casos, pelo que, existindo, no caso, essa justificação, a sua conduta é legítima.
Ou seja, desde que exista uma justificação objetiva e geral, a CP ou qualquer outro empregador que recruta para os seus quadros, não está proibido de definir quais são os requisitos/condições obrigatórios que os candidatos devem preencher/cumprir, para cada uma das vagas a concurso e fazê-lo de forma diferente consoante os casos. Nada obsta, por exemplo, que se exija um determinado número de anos de experiência, uma nota mínima de “x” ou “y”, a inscrição numa ordem profissional, o domínio de uma ou mais línguas estrangeiras, ou sistema informático, determinada credenciação, ou até que a licenciatura tenha sido obtida em determinada faculdade ou faculdades pois, todos eles, são requisitos objetivos e de carácter geral.
O Apelado não contra argumenta nesta matéria.
Ponderou-se na sentença:
Salvo o devido respeito, aquilo que para a R. é uma razão, para nós é um sofisma.
E é um sofisma que assenta num preconceito da R. Para si, um licenciado pré-Bolonha tem um perfil de competências mais elevado e que podem garantir uma melhor adequação técnica às exigências dos postos de trabalho a prover, numa empresa ou organização.
Em que cartilha consta escrita essa lição? Perguntamos nós.
Há alguma evidência de que um licenciado pré-Bolonha tem um perfil mais elevado do que o licenciado pós-Bolonha para satisfazer as necessidades e exigências daquele concreto posto de trabalho? Julgamos que não.
Pelo contrário, entendemos que é o próprio processo de recrutamento (em que se avalia a existência dessa primazia de um trabalhador-candidato face ao outro) o meio adequado a, de forma não arbitrária, aferir aquela excelência, permitindo, após uma avaliação assente nos conhecimentos que se efetivamente tem – que, daquele modo, se adquire, sem se idealizar -, efetuar a escolha pelo melhor (na perspetiva da entidade empregadora).
Ora, ao limitar o acesso daqueles trabalhadores representados pelo aqui A. com base na circunstância de os mesmos serem titulares de uma licenciatura pós-Bolonha, e apenas por esse facto (quando, do outro lado, estão os licenciados pré-Bolonha, e apenas por esse facto), a R. não o faz com base numa justificação racional (inteligente), fá-lo com base numa justificação emocional (imotivada, pois é preconceito que não pode ser confirmado ou infirmado na prática, na medida em que a R., com base nele, se privou de ter aqueles candidatos lado a lado com o demais, por forma a permitir a sua avaliação pelo que real e efetivamente sabem e são capazes e, depois de os avaliar, poder concluir que o licenciado pré-Bolonha é o mais apto e capaz do que o licenciado pós-Bolonha para ocupar aquele determinado posto, ou vice-versa).
Com a sua atuação, a R. lança uma capitis diminutio que o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de rejeitar quando em 2009 se introduziu fator de discriminação semelhante no Regulamento Nacional de Estágios da Ordem dos Advogados).
Vejamos!
Conforme o enunciado fático a R. determinou o lançamento de um processo de recrutamento interno destinado ao provimento de seis vagas de técnico licenciado.
Entre as condições de recrutamento estabeleceu as habilitações académicas de que os candidatos deveriam obrigatoriamente ser titulares para que as respetivas candidaturas fossem admitidas, a saber, Licenciatura pré-Bolonha ou Licenciatura e Mestrado pós-Bolonha ou habilitação equivalente.
De onde resulta que trata de modo distinto as licenciaturas obtidas, desvalorizando as licenciaturas pós Bolonha.
No cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado Português no denominado Processo de Bolonha foi publicado, em 2006, o novo modelo de organização do ensino superior no que respeita aos ciclos de estudos.
Consignou-se no preâmbulo do DL 74/2006 de 24/03 que a reorganização dos cursos em funcionamento pressupõe a adequação das formações ao novo modelo de organização do ensino superior, que vem sendo concretizada através de um trabalho em profundidade desenvolvido pelas instituições, que deve ser participado por estudantes e professores, e que visa, designadamente:
 - A passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências;
 - A orientação da formação ministrada para os objetivos específicos que devem ser assegurados pelos ciclos de estudos do subsistema, universitário ou politécnico, em que se insere;
 - Assegurar aos estudantes portugueses condições de formação e de integração profissional similares, em duração e conteúdo, às dos restantes Estados que integram o espaço europeu;
- A determinação do trabalho que o estudante deve desenvolver em cada unidade curricular;
 - A fixação do número total de créditos, e consequente duração do ciclo de estudos, dentro dos valores e de acordo com os critérios estabelecidos pelo presente decreto-lei.
Ali se ponderou que, “questão central no Processo de Bolonha, é o da mudança do paradigma de ensino de um modelo passivo, baseado na aquisição de conhecimentos, para um modelo baseado no desenvolvimento de competências, onde se incluem quer as de natureza genérica - instrumentais, interpessoais e sistémicas - quer as de natureza específica associadas à área de formação, e onde a componente experimental e de projeto desempenham um papel importante.”
Quer a Constituição da República Portuguesa, quer mais especialmente na matéria que ora nos ocupa o Código do Trabalho, protegem a igualdade de oportunidades no acesso ao emprego.
Ali na estatuição ínsita no Artº 13º, aqui no âmbito das disposições gerais sobre igualdade e não discriminação.
Tal proteção resulta especialmente protegida através do disposto no Artº 24º/1 do CT que dispõe que o trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
Este direito respeita, designadamente, a critérios de seleção, a acesso a todos os tipos de formação e reconversão profissionais (nº 2).
O TC vem decidindo que “a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
'A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, "reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade" - acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação, ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.” (Ac. 318/2021).
Na Doutrina, Maria do Rosário Palma Ramalho, salienta que o dever de não discriminação que impende sobre o empregador limita a sua liberdade negocial, decorrendo quer da própria CRP, quer dos princípios comunitários em matéria de igualdade, princípios esses desenvolvidos pela jurisprudência e múltiplas diretivas europeias e, internamente, por um conjunto de diplomas legais publicados desde há largos anos, encontrando expressão no Código do Trabalho. E, se por um lado, a lei delimita o conceito de discriminação através da enunciação de um conjunto de fatores discriminatórios (Artº 24º/1), também procede a uma delimitação negativa do conceito de discriminação (Artº 25º/2).Adverte que “deverá ter-se sempre em conta que o princípio da igualdade corresponde a um direito fundamental, pelo que as restrições que lhe sejam impostas devem ser reduzidas ao mínimo”, justificando-se “uma interpretação restritiva desta norma e dos critérios que estabelece para a delimitação negativa do conceito de discriminação” (Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 7ª Ed., Almedina, 176 e ss.).
Decorre de quanto se dispõe no Artº 25º/1 que o empregador não pode praticar qualquer discriminação, direta ou indireta, em razão nomeadamente dos fatores referidos no nº 1 do Artº 24º.
Perante este conjunto normativo e os princípios supra referenciados não vemos como reconhecer validamente o preconceito manifestado pela Apelante no concernente às licenciaturas obtidas pós Processo de Bolonha.
Não só o legislador nacional implementou uma mudança de paradigma, como não resulta demonstrada uma menor capacidade para o exercício de algum cargo ou posto de trabalho pela circunstância de se ter obtido uma licenciatura ao abrigo de um ou outro regime.
É certo que as formações são diferentes. Mas tal diferença não nos permite dar como seguro que a licenciatura pós Bolonha contém formação académica de menos valor do que a anterior.
Conforme enunciado no parecer emitido pelo Ministério Público “tal constatação não se alicerça em elementos suficientemente seguros, atendendo sobretudo à duração da formação e não ao seu conteúdo”. “Em lugar algum a lei ou outro instrumento de regulação com carater imperativo, geral e abstrato, distingue entre licenciaturas, atribuindo graus maiores ou menores de formação quer às pré ou pós Bolonha, quer às obtidas nestes ou noutro estabelecimento de ensino, com diferentes conteúdos curriculares”.
E nem isso faria sentido quando, como no caso, o Estado Português fez uma clara opção no sentido da alteração do paradigma vigente.
Como justificar, face a essa opção, uma desvalorização das licenciaturas introduzidas no sistema e admitir que os cidadãos que às mesmas estão obrigados possam ver o seu currículo desvalorizado?
Dando de novo a palavra ao Ministério Público, “uma licenciatura é, legalmente, uma licenciatura, sem qualificativos”.
Defende a R. que recorreu a um requisito objetivo e que, por isso, a discriminação na candidatura é admissível.
Dispõe o Artº 25º/2 do CT que não constitui discriminação o comportamento baseado em fator de discriminação que constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional, em virtude da natureza da atividade em causa ou do contexto da sua execução, devendo o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.
Incumbe ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer fator de discriminação (Artº 25º/5) e, bem assim, provar a justificação do requisito em causa - requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional (Artº 342º/1 do CC).
Tal prova não se mostra efetuada.
Na verdade, trata-se de um processo de recrutamento interno destinado ao provimento das seguintes vagas:
a) Uma de técnico licenciado na Direção Jurídica (DJR);
b) Uma de técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Compras;
c) Uma de técnico licenciado na Direção de Logística e Compras (DLC) - Área de Controlo e Apoio à Gestão;
d) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Projeto CRM);
e) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Desenvolvimento de Aplicações (Bilhética e Canais Digitais);
f) Uma de técnico licenciado na Direção de Tecnologias e Sistemas de Informação (DTI) - Área de Gestão de Infra-estruturas e Administração de Base de Dados.
O recrutamento é, pois, para técnicos licenciados.
Comportando a ordem jurídica nacional licenciaturas obtidas antes e depois do referido Processo de Bolonha, e tendo sido feita uma clara opção política pela reorganização dos cursos superiores, não se nos afigura válido ou plausível distinguir categorias de licenciados pelo simples facto de uns terem obtido o respetivo grau antes ou depois daquele Processo.
Essa revela-se uma distinção desprovida de uma justificação razoável e aceitável, absolutamente incongruente, que, por isso mesmo, não encontra cabimento legal ou constitucional. E não é compaginável com a graduação qualificativa emergente da obtenção de grau de doutor como parece defender a Apelante.
Do mesmo passo, admitindo-se a liberdade, no regime laboral, de fixação do conteúdo funcional de determinado cargo ou nível de qualificação e da complexidade e responsabilidades inerentes ao seu exercício, também tais pressupostos não estão intimamente conexionados com o modo de aquisição do estado de licenciado.
Por último, não deixa de ser surpreendente que a política interna da Apelante não esteja em sintonia com a deliberação do seu próprio Conselho de Administração que, em 2010, deliberara que qualquer candidato com grau de Licenciatura, fica habilitado a aceder à Carreira de Técnico Licenciado.
Termos em que improcede a apelação.
As custas serão ser suportadas pela Apelante, visto ter ficado vencida nas questões suscitadas (Artº 527º/1 do CPC).
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Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Custas pela Apelante.
Notifique.
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Lisboa, 24/11/2021
MANUELA BENTO FIALHO
SÉRGIO ALMEIDA
FRANCISCA MENDES
Decisão Texto Integral: