Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7383/15.6TDLSB.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDENAÇÃO EM PENA SUSPENSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: Tendo sido imposta ao arguido/recorrente uma pena de prisão, suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, dos valores indicados no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, de acordo com o Acórdão de fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12/9/2012, a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».

Decisão Texto Parcial:ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 9ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.


RELATÓRIO:


Os recorrentes foram condenados no processo 7383/15.6TDLSB.L1 do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, juízo local criminal de Lisboa-Juiz 1, pelas práticas dos seguintes crimes e nas seguintes penas:

A)– Condenar o arguido A...,pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pela interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 2 do Cód. Penal e 107.º, ns.º 1 e 2 e 105.º, ns.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
B)– Suspender a execução da pena de prisão cominada ao arguido A…, a que é feita referência em A), pelo período de 4 (quatro) anos, sob condição de o arguido, nesse lapso de tempo, proceder ao pagamento ao “Instituto da Segurança Social, I.P.” do montante das contribuições em dívida (no montante global de € 94.996,94 (noventa e quatro mil novecentos e noventa e seis euros e noventa e quatro cêntimos) e acréscimos legais, e comprovar esse pagamento nos autos;
C)– Condenar a arguida B...,pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pela interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 2 do Cód. Penal e 107.º, ns.º 1 e 2 e 105.º, ns.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), o que perfaz o montante global de € 6750,00 (seis mil setecentos e cinquenta euros);
(…)

Não se conformando com a sentença proferida, vieram os arguidos, devidamente identificados nos autos interpor recurso daquela a folhas 1095 e seguintes, apresentando entre o mais as seguintes conclusões:
1.–         
Para além de impugnarem a aplicação do Direito a que o Tribunal a quo procedeu, os Recorrentes recorrem também da matéria de facto fixada pelo Tribunal.
2.–         
Com relevância para a apreciação jurídica da causa, o Tribunal a quo julgou erradamente provados os factos vertidos nos números 3 a 6, 10 e 18 dos factos julgados provados e julgou incorretamente não provados os factos vertidos nas als. c) a f), i) a l), m) e n), o) e p), q) e r) dos factos não provados, sendo que a prova testemunhal e documental carreada para os autos impunha decisão diversa.
3.–         
O Tribunal recorrido julgou erradamente que cabia ao Recorrente A..., proceder ao preenchimento mensal das folhas de remuneração e correspondente entrega das mesmas junto da Segurança Social (V. facto julgado provado vertido sob o n.º 3), impondo decisão diversa da recorrida as declarações do próprio arguido (prestadas em 20.04.2017, as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 15 horas 18 minutos e 15 segundos e as 16 horas, 29 minutos e 15 segundos), mais nenhuma prova tendo sido produzida.
4.–         
O Tribunal a quo julgou erradamente não provado que uma parte significativa dos clientes da B…, tenha enfrentado processos de insolvência e tenha deixado de pagar os serviços prestados, o que levou ao agravamento das condições de tesouraria da B…, bem como que no período entre 2011 e 2014, o grupo societário no qual a B…, se integra, deixou de receber o montante de cerca de € 250.000,00 do cliente C…, e ainda que, entre os anos de 2011 e de 2014, diversos clientes da B…, não regularizaram os seus saldos vencidos, no montante de € 136.995,43 - V. factos julgados não provados, vertidos sob as als. c), m) e n).
5.–         
O Tribunal a quo julgou igualmente não provado erradamente que entre os anos de 2008 e 2011, D..., tenha desviado do grupo societário no qual a B…, se integra cerca de € 700.000,00 e que tendo acesso aos cheques das sociedades, D…, adulterava o saque de tais cheques, fazendo constar dos mesmos, ao invés de IGCP (Instituto de Gestão do Crédito Público), entidade a favor de quem os mesmos se encontravam passados, a entidade fictícia E…, fazendo movimentar os cheques destinados ao pagamento dos impostos das sociedades do grupo societário na qual a B…, para essa pretensa sociedade que nunca existiu, bem como que o mesmo D…, criou um carimbo com o nome de tal fictícia entidade, que apunha no verso desses cheques, como se de um verdadeiro endosso se tratasse, depositando esses cheques em contas bancárias de que detinha a posse útil, apoderando-se do valor respectivo e ainda que este fez saques sobre contas bancárias das sociedades do grupo societário no qual a B…, se integra, fazendo tais valores coisa sua - V. factos julgados não provados, vertidos sob as als. i), j), k) e l).
6.–         
Ora, quanto a estas matérias, impunham decisão diversa as declarações do arguido (prestadas em 20.04.2017, as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 15 horas 18 minutos e 15 segundos e as 16 horas, 29 minutos e 15 segundos) e o depoimento das testemunhas F…, (prestado em 20.04.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 16 horas 46 minutos e 51 segundos e as 16 horas, 59 minutos e 31 segundos), o depoimento da testemunha G…, (prestado em 5.05.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 10 horas 25 minutos e 26 segundos e as 11 horas, 28 minutos e 17 segundos), o depoimento da testemunha H…, (prestado em 5.05.2017, o qual foi gravado no sistema integral de gravação digital entre as 12 horas 05 minutos e 31 segundos) e as 12 horas, 41 minutos e 09 segundos, o depoimento da testemunha I…, (prestado em 5.05.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 12 horas 41 minutos e 59 segundos e as 12 horas, 52 minutos e 05 segundos) e o depoimento da testemunha J…, (prestado em 1.06.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 16 horas 10 minutos e 47 segundos e as 16 horas, 40 minutos e 15 segundos), tudo como melhor acima demonstrado.
7.–         
As mesmas testemunhas referiram que, além do mais, a B…, havia sido vitima de um desfalque, perpetrado pelo antigo sócios, D…, que adulterou os cheques que se destinavam ao pagamento das obrigações fiscais e para-fiscais da B…, desviando do grupo societário entre € 500.000,00 a € 700.000,00.
8.–         
Quanto aos valores devidos pelos Clientes, o Tribunal desconsiderou igualmente a prova documental junta aos autos, designadamente o Doc. n.º 1 junto com a contestação, no qual se refletiam os valores em dívida por parte daqueles.
9.–         
Assim, da concatenação da prova documental com as declarações do arguido e com a prova testemunhal, impunha-se que o Tribunal a quo julgasse provado que:
- uma parte significativa dos clientes da B…, enfrentou processos de insolvência e deixou de pagar os serviços prestados, o que levou ao agravamento das condições de tesouraria da B…,;
- no período entre 2011 e 2014, o grupo societário no qual a B…, se integra, deixou de receber um montante de cerca de € 250.000,00 do cliente C...;
- entre os anos de 2011 e de 2014, diversos clientes da B…, não regularizaram os seus saldos vencidos, no montante de € 136.995,43;
- entre os anos de 2008 e 2011, ocorreu um desvio de centenas de milhares de euros do grupo societário no qual a B…, se integra;
- foi adulterado o saque de cheques, fazendo constar dos mesmos, ao invés de IGCP (Instituto de Gestão do Crédito Público), entidade a favor de quem os mesmos se encontravam passados, a entidade fictícia E…, fazendo movimentar os cheques destinados ao pagamento dos impostos das sociedades do grupo societário na qual a B…, se integra, para essa sociedade, com a aposição de um carimbo com o nome de tal fictícia entidade.
10.–       
A douta sentença recorrida julgou ainda não provado que para fazer face às dificuldades de tesouraria da B…, é A…, tenha solicitado um financiamento bancário, o qual não foi concedido - V. factos julgados não provados, vertidos sob as als. o) e p).
11.–       
Quanto a esta matéria, impunham decisão diversa as declarações do próprio arguido (prestadas em 20.04.2017, as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 15 horas 18 minutos e 15 segundos e as 16 horas, 29 minutos e 15 segundos), e o depoimento da testemunha Senhor G…, (prestado em 5.05.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 10 horas 25 minutos e 26 segundos e as 11 horas, 28 minutos e 17 segundos), tudo como melhor acima demonstrado.
12.–       
Pelo exposto, devia o Tribunal recorrido ter julgado provado que para fazer face às dificuldades de tesouraria da B…, o arguido solicitou um financiamento bancário e que esse financiamento bancário solicitado pelo arguido não foi concedido.
13.–       
O Tribunal recorrido julgou – mal – que nos meses de Setembro de 2011 a Dezembro de 2014, os arguidos procederam ao desconto (quando não procederam ao desconto) das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efectivamente pagas, mas não procederam à sua entrega junto da Segurança Social, nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem decorridos os 90 dias posteriores.
14.–       
E também julgou – mal – que as referidas cotizações foram retidas (quando não foram retidas) nas remunerações efectivamente pagas totalizavam o montante de € 95.014,78, discriminado de acordo com o quadro constante da acusação e que ao não entregarem à Segurança Social o montante mencionado, os arguidos integraram-no na esfera patrimonial da sociedade arguida - V. factos provados vertidos sob os n.ºs 4, 5, 6 e 10.
15.–       
O Tribunal recorrido julgou, erradamente, não provado que a liquidez financeira da B…, apenas permitia o pagamento do valor correspondente aos salários líquidos, pelo que as retenções não foram na realidade feitas, correspondendo tais supostas retenções a meros lançamentos contabilísticos, feitos com base nas declarações em que se reconhece que se ficou a dever ao Estado a diferença entre o valor dos salários brutos e o valor dos salários líquidos, mas não com base na materialidade da existência desse dinheiro na empresa, além do valor dos salários líquidos, fosse em tesouraria fosse em contas bancárias, porquanto o seu valor nunca existiu materialmente, por nunca ter sobrado nada para além dos valores líquidos, que pudesse ter sido retido - V. factos não provados vertidos sob as als. d) e e).
16.–       
O Tribunal a quo julgou, também erradamente, não provado que o arguido nunca pretendeu apropriar-se dos montantes supra referidos, tendo sempre procurado fazer o pagamento dos mesmos, de acordo com as possibilidades da B…, que a B…, não dispunha de liquidez financeira que lhe permitisse efectuar, ainda que parcialmente, as retenções e respectivos pagamentos, quer de IRS, quer de contribuições para a Segurança Social que eram devidas e que toda a liquidez financeira de que a B…, dispunha era integralmente esgotada no pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores e dos fornecedores essenciais - V. factos não provados vertidos sob as als. f), q) e r).
17.–       
O Tribunal a quo julgou ainda provado, mal, que do montante de € 95.014,78, a que é feita referência em 6., a arguida B…, procedeu ao pagamento ao competente Serviço de Finanças do montante de € 17,84, no âmbito da execução fiscal e não provado que o arguido nunca pretendeu apropriar-se dos montantes supra referidos, tendo sempre procurado fazer o pagamento dos mesmos, de acordo com as possibilidades da B…,- V. facto provado vertido sob o n.º 18 e facto não provado vertido sob a al. f).
18.–       
De facto, no que respeita à prova documental, o Ministério Público limitou-se a juntar aos autos as folhas de remunerações entregues pela B…, nos serviços da Segurança Social.
19.–       
Quanto à fundamental questão da inexistência do dinheiro a reter e a entregar ao Estado, não só não foi produzida qualquer prova pelo Ministério Público quanto à existência desse dinheiro, como a defesa produziu abundante, uniforme e credível prova quanto à inexistência de tal dinheiro - V. declarações do arguido prestadas em 20.04.2017 (as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 15 horas 18 minutos e 15 segundos e as 16 horas, 29 minutos e 15 segundos), depoimento do G…, (prestado em 5.05.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 10 horas 25 minutos e 26 segundos e as 11 horas, 28 minutos e 17 segundos), depoimento da testemunha H…, (prestado em 5.05.2017, as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 12 horas 05 minutos e 31 segundos e as 12 horas, 41 minutos e 09 segundos), depoimento da testemunha J…, prestado em 1.06.2017 (gravado no sistema integral de gravação digital entre as 16 horas 10 minutos e 47 segundos e as 16 horas, 40 minutos e 15 segundos), tudo como melhor acima demonstrado.
20.–       
Quanto aos valores já pagos à Segurança Social, devia o Tribunal recorrido ter julgado provado que todo o ano de 2014 já se encontrava pago, como impunha o depoimento da testemunha G…, (prestado em 5.05.2017, gravado no sistema integral de gravação digital entre as 10 horas 25 minutos e 26 segundos e as 11 horas, 28 minutos e 17 segundos) e o depoimento da testemunha H…, (prestado em 5.05.2017, as quais foram gravadas no sistema integral de gravação digital entre as 12 horas 05 minutos e 31 segundos e as 12 horas, 41 minutos e 09 segundos), tudo como melhor acima demonstrado.
21.–       
Ainda quanto ao montante dos valores já pagos à Segurança Social, o Tribunal recorrido desconsiderou toda a prova documental junta aos autos pelos arguidos, designadamente a prova documental junta em 4.05.2017, bem como a prova que foi junta pela própria Segurança Social de Setúbal.
22.–       
Nos termos da prova documental junta aos autos, a dívida em causa nos presentes autos tem, desde 14.03.2017, um plano de pagamentos prestacional autorizado ao arguido em sede de reversão, sendo que já foram pagas quatro prestações - V. informação da Segurança Social de Setúbal de 29.05.2017, documentos juntos as autos pelo arguido em 30.05.2017 e Docs. n.ºs 5, 6, 7 e 8 juntos pelo arguido com o seu requerimento de 22.06.2017.
23.–       
Impunha-se, assim, ao Tribunal recorrido ter julgado provado que:
- nos meses de Setembro de 2011 a Dezembro de 2014, os arguidos não procederam ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efetivamente pagas, pois a liquidez financeira da B…, apenas permitia o pagamento do valor correspondente aos salários líquidos, pelo que as retenções não foram na realidade feitas, correspondendo tais supostas retenções a meros lançamentos contabilísticos, feitos com base nas declarações em que se reconhece que se ficou a dever ao Estado a diferença entre o valor dos salários brutos e o valor dos salários líquidos, mas não com base na materialidade da existência desse dinheiro na empresa, além do montante dos salários líquidos, fosse em tesouraria fosse em contas bancárias;
- o valor das retenções declarado nas folhas de remunerações entregues à Segurança Social nunca existiu materialmente, por nunca ter sobrado nada para além dos valores líquidos dos salários que eram pagos;
- o arguido nunca pretendeu apropriar-se dos montantes supra referidos;
- o arguido tentou sempre fazer o pagamento dos mesmos, de acordo com as possibilidades da B…,;
- a B…, não dispunha de liquidez financeira que lhe permitisse efetuar, ainda que parcialmente, as retenções e respetivos pagamentos, quer de IRS, quer de contribuições para a Segurança Social que eram devidas;
- toda a liquidez financeira de que a B…, dispunha era integralmente esgotada no pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores e dos fornecedores essenciais;
- os valores que eram devidos à Segurança Social relativos ao ano de 2014 que constam da acusação encontram-se integralmente pagos.
24.–       
Também pelo exposto, impunha-se que o Tribunal recorrido tivesse julgado não provado que ao não entregarem à Segurança Social o montante mencionado, os arguidos o tenham integrado na esfera patrimonial da sociedade arguida, porquanto esse dinheiro não existia.
25.–       
Dando-se como provado que a liquidez financeira da B…, apenas permitia o pagamento do valor correspondente aos salários líquidos dos trabalhadores (alínea d) da matéria de facto não provada) e que o arguido não fez seus ou da B…, quaisquer montantes correspondentes a retenções para a Segurança Social, porque os mesmos nunca existiram materialmente por nunca ter sobrado nada para além dos valores líquidos (alínea e) da matéria de facto não provada) – como se impunha em face da prova produzida em audiência de julgamento –, é forçoso concluir que não existia o objeto da alegada retenção, não entrega e apropriação, pelo que não há tipicidade objetiva, devendo a conduta dos recorrentes ficar excluída do âmbito de incriminação da norma em causa.
26.–       
Por outro lado, constatando-se que toda a liquidez da sociedade foi canalizada para o pagamento de salários e fornecedores, tendo o arguido procurado assegurar a subsistência dos trabalhadores, e constatando-se também que o arguido procurou regularizar as dívidas da B…, para com a Segurança Social, impunha-se reconhecer a falta de dolo de apropriação.
27.–       
Não existindo dolo de apropriação (ou de não entrega do valor retido), fica afastada a tipicidade (subjetiva) da conduta dos arguidos, por falta de um elemento essencial do tipo subjetivo do crime em causa, o que impõe a absolvição do arguido e recorrente A…,.
28.–       
Os recorrentes B…, e A..., atuaram em conflito de deveres, previsto no artigo 36º n.º 1 do Código Penal: ou destinavam certas quantias pseudo-retidas para as entregar à Segurança Social e então a atividade tinha necessariamente que cessar, conduzindo à inevitável insolvência e extinção de todos os postos de trabalho; ou tais quantias não podiam ser atempadamente entregues à Segurança Social para então ser possível pagar aos trabalhadores e aos fornecedores essenciais, o que era indispensável para a continuação da laboração.
29.–       
O Tribunal recorrido entendeu que os arguidos não agiram em conflito de deveres, dado que não existe qualquer superioridade ou paridade entre os deveres de pagar salários e o dever de pagar impostos e que o primeiro não tem natureza superior ou igual ao dever de cumprimento das obrigações para-fiscais, assim violando o disposto no artigo 36º n.º 1 do Código Penal.
30.–       
O Tribunal recorrido devia ter decidido que o pagamento dos salários aos trabalhadores constitui um interesse superior, ou pelo menos igual, relativamente ao dever de reter quantias relativas a quotizações da Segurança Social e ao dever de entregar à Segurança Social tais quantias, e que o arguido A...,ao agir como agiu atuou em conflito de deveres, devendo como tal ser absolvido.
31.–       
Ao optar por pagar os salários líquidos aos trabalhadores para que a B…, continuasse em laboração, em vez de entregar à Segurança Social montantes iguais aos que teriam sido retidos se houvesse dinheiro para tanto, o recorrente A...,agiu em estado de necessidade desculpante, sendo como tal aplicável a parte final do art. 35º nº 2 do Código Penal (se o facto fosse típico e ilícito – e não o é), não se devendo, consequentemente, considerar culposos os factos praticados e impondo-se pois a absolvição dos arguidos A...,e B…,.
32.–       
O Tribunal a quo entendeu que o arguido A...,não agiu em estado de necessidade desculpante, não sendo como tal aplicável o artigo 35º do Código Penal, uma vez que as quantias declaradas e retidas pertenciam ao Estado, não competindo aos arguidos decidirem do destino de um dinheiro que já não lhes pertence e que reafetaram à satisfação de outras necessidades.
33.–       
O Tribunal recorrido devia ter decidido que, perante o concreto quadro factual em causa, não era exigível a A...,deixar ruir a empresa e deixar os trabalhadores da sociedade irem para uma situação de grave desemprego, com as inerentes consequências económicas e sociais para as suas famílias, pelo que ao optar por pagar os salários líquidos aos trabalhadores para que a B…, continuasse em laboração, em vez de entregar à Segurança Social montantes iguais aos que teriam sido retidos se houvesse dinheiro para tanto, agiu o recorrente A...,em estado de necessidade desculpante, sendo como tal aplicável a parte final do art. 35º nº 2 do Código Penal.
34.–       
Os factos objeto dos presentes autos encontram-se numa relação de continuação com os factos que foram objeto dos anteriores processos em que o arguido (com referência ao mesmo período da acima delimitado, entre 2011 e 2014) foi condenado, por sentença já transitada em julgado, sendo a forma de execução essencialmente homogénea – suposta retenção e não entrega ao Estado dos valores de IVA e contribuições para a Segurança Social devidos – e sendo sempre motivada pela mesma situação exterior: as dificuldades económicas de que o Grupo societário (nomeadamente a B…,) passou a padecer por ter sido vítima de uma fraude de um enorme valor para os seus negócios e por ter sido vítima de incumprimentos de Clientes em valores também muito significativos e que já acima se referiram em detalhe.
35.–       
Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico, nos termos e para os efeitos do art. 30º n.º 2 do Código Penal.
36.–       
Perante um só crime continuado, como sucede in casu, determina o art. 79º n.º 2, do Código Penal que, se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior, pelo que, nos termos citado preceito legal, deve manter-se apenas a mais grave dessas penas, sem mais qualquer aplicação de pena no presente processo.
37.–       
O Tribunal recorrido considerou que os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social não protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico, nos termos e para os efeitos do artigo 30º n.º 2 do Código Penal, quando manifestamente não é assim.
TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO E ABSOLVENDO-SE OS ARGUIDOS DA PRÁTICA DO CRIME POR QUE FORAM CONDENADOS OU, SUBSIDIARIAMENTE, NÃO SE APLICANDO MAIS QUALQUER PENA, NOS TERMOS DO ART. 79º N.º 2 DO CÓDIGO PENAL,ASSIM SE FAZENDO  JUSTIÇA!

O recurso foi admitido a folhas 1225, tendo sido fixado o seu efeito e regime de subida.

O MºPº junto da 1ª instância apresentou a sua resposta, a qual se encontra junto a folhas 1229 e seguintes.

Remetidos os autos para o Tribunal da Relação de Lisboa, a Digna Procuradora Geral Adjunta, em 12 de Dezembro de 2017, em douto parecer, louva-se em que seja julgado improcedente o recurso apresentado, estribando-se na resposta apresentada pelo MºPº, junto da 1ª instância.

Foi cumprido o artº 417º nº 2 do C.P.P.

Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma, cumprindo agora apreciar e decidir.

Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso.

FUNDAMENTAÇÃO.

De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal.

Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).

O recurso interposto de uma sentença abrange, em princípio, toda a decisão, vide artigo 402º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Admite, porém, a lei que o recorrente limite o recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas – artigo 403.º, n.º 1, do mesmo diploma.

O objecto do recurso interposto pelos arguidos, o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questões e relativamente aos dois arguidos:

1.– Impugnação da matéria de facto;
2.– Inexistência de dolo por parte do arguido e exclusão da ilicitude por conflito de deveres;
3.– Ter o arguido agido em estado de necessidade desculpante;
4.– O Tribunal “ a quo” considerou que os crimes de abuso de confiança contra a segurança social e os crimes de confiança não protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico nos termos e para os efeitos do artº 30º nº 2 do CP, quando manifestamente não é assim, pelo que os arguidos devem ser absolvidos da pratica do crime pelo qual foram condenados, ou subsidiariamente não se aplicando mais qualquer pena nos termos do artº 79º nº 2 do Código Penal.

Vejamos então:
A sentença sob censura tem o seguinte teor de acordo com suporte informático fornecido pelo Tribunal “ a quo” e junto aos autos, nos segmentos que ora nos interessam:
(…)

II–FUNDAMENTAÇÃO.

A)– Matéria de Facto Provada
Da discussão da causa com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:
1.– A sociedade B…, é uma sociedade por quotas, portadora do NIPC…, com sede na Rua…, em Lisboa e que tem por objecto social a prestação de serviços e comércio de produtos de higiene.
2.– O arguido A...,exerceu as funções de gerente de facto e de direito da sociedade arguida desde a sua constituição, no ano de 2003, até à presente data.
3.– Como gerente competia ao arguido, em exclusivo, a direcção da actividade da B…, actuando sempre em nome e no interesse desta designadamente, cabia aquele proceder ao preenchimento mensal das folhas de remuneração e correspondente entrega das mesmas junto da Segurança Social.
4.– Competia-lhe, de igual forma, proceder à entrega dos montantes deduzidos das remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida, a título de contribuições para a Segurança Social.
5.– Porém, nos meses de Setembro de 2011 a Dezembro de 2014, os arguidos procederam ao desconto das contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores, nas remunerações efectivamente pagas, mas não procedeu à sua entrega junto da Segurança Social, nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem decorridos os 90 dias posteriores.

6.– As referidas cotizações retidas nas remunerações efectivamente pagas totalizavam o montante de € 95.014,78, assim discriminado:
Ano de 2011
Mês     Quotizações (34,75%)
Setembro       € 3.722,92
Outubro         € 4.249,43
Novembro      € 4.586,40
Dezembro       € 0,00
Ano de 2012
Mês     Quotizações (34,75%)
Janeiro            € 0,00
Fevereiro        € 4.459,93
Março € 5.966,40
Abril    € 0,00
Maio   € 3,00
Junho  € 7.210,11
Julho   € 9,19
Agosto            € 6.867,72
Setembro       € 5.078,22
Outubro         € 5.332,49
Novembro      € 5.796,79
Dezembro       € 7.861,73
Ano de 2013
Mês     Quotizações (34,75%)
Janeiro               € 4.970,82
Fevereiro        € 5.461,05
Março € 4.762,38
Abril    € 4.844,33
Maio   € 4.988,76
Junho  € 0,00
Julho   € 0,00
Agosto            € 1.619,39
Setembro       € 1.454,82
Outubro         € 1.604,74
Novembro      € 1.358,83
Dezembro       € 1.166,78
Ano de 2014
Mês     Quotizações (34,75%)
Janeiro              € 100,09
Fevereiro        € 0,00
Março € 0,00
Abril    € 0,00
Maio   € 0,00
Junho  € 1.141,75
Julho   € 0,00
Agosto            € 0,00
Setembro       € 100,10
Outubro         € 92,91
Novembro      € 92,91
Dezembro       € 110,75

7.– Notificados para proceder ao pagamento das quotizações retidas e respectivos juros de mora, no prazo de 30 dias, nos termos do disposto no n.º 4 do art. 105.º, ex vi art. 107.º, n.º 2 do RGIT, constatou-se que não existiu entrega de qualquer prova de pagamento.
8.– A...,actuou em nome e no interesse da arguida B…, bem como no seu próprio interesse.
9.– Os arguidos actuaram de forma homogénea e no contexto de uma mesma solicitação exterior, aproveitando a circunstância de não terem sido alvo de uma acção inspectiva por parte da Segurança Social anteriormente.
10.– Ao não entregarem à Segurança Social o montante mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiram os arguidos de forma livre e com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar a Segurança Social e de assim obter uma vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram.
11.– Os arguidos agiram sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:
12.– A sociedade B…, é uma sociedade que se dedica às limpezas industriais.
13.– A sociedade B…, integra um grupo de empresas de que fazem parte as sociedades L…, e M…, e de que também faziam parte as sociedades N…., e O…, estas duas já dissolvidas.
14.– Para além da sociedade arguida, o arguido A...,é, ainda, gerente da sociedade M.., e, antes da respectiva dissolução, foi gerente das sociedades N…, e O…, a que é feita menção em 13..
15.– A sociedade O…, a que é feita menção em 13., teve também como sócio e gerente D…, que assumiu a respectiva gerência desde 27 de Junho de 2001 até 19 de Maio de 2009.
16.– Desde a sua constituição, no ano de 2003, a sociedade B…, nunca distribuiu lucros pelos seus sócios.
17.– O arguido formou a vontade de a sociedade B…, aderir ao Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), que correu termos sob o n.º …, que não obteve aprovação, por existirem contribuições em dívida para com a Segurança Social, tendo a sociedade arguida aderido a um Processo Especial de Revitalização (PER), o qual corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Central, Juízo de Comércio, J2, sob o n.º 32169/16.7 T8LSB.
18.– Do montante de € 95.014,78, a que é feita referência em 6., a arguida B…, procedeu ao pagamento ao competente Serviço de Finanças do montante de € 17,84, no âmbito da execução fiscal.

19.– A arguida B…, tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- pela prática, em 01/01/2012, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no total de € 1.200,00, por sentença transitada em julgado em 28/10/2013, já declarada extinta pelo cumprimento;
e
- pela prática, no decurso do ano de 2007, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 950 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, no total de € 9.500,00, por sentença transitada em julgado em 16/12/2015.
*

20.– O arguido A...,possui, como habilitações literárias, o 7.º ano de escolaridade.
21.– Tem o estado civil de divorciado.
22.– Vive sozinho, numa casa propriedade de uma irmã.
23.– Encontra-se reformado, há cerca de 9 anos, auferindo uma pensão de reforma no valor mensal de € 1.000,00.
24.– Não aufere qualquer tipo de vencimento pela sua actividade de gerência na sociedade B…, tendo direito unicamente à utilização de um veículo automóvel da empresa e ao pagamento de ajudas de custo.
25.– O arguido A...,é sócio minoritário com 5% da B…, sendo titular de uma quota no valor nominal de € 7.500,00, relativamente a um capital social de € 150.000,00.
26.– Tem um filho, com a idade de 33 anos, que já se encontra autonomizado.

27.– O arguido A...,tem as seguintes condenações averbadas no respectivo registo criminal:
- pela prática, em 01/01/1997, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfez o total de € 900,00, por sentença transitada em julgado em 20/12/2010, já declarada extinta pelo pagamento;
- pela prática, no decurso do ano de 1999, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfez o total de € 2.400,00, por sentença transitada em julgado em 24/09/2010;
- pela prática, no decurso do ano de 2010, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na pena de admoestação, por sentença transitada em julgado em 03/10/2012;
- pela prática, no decurso do ano de 2010, e no decurso do ano de 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal em cada um dos períodos, na pena parcelar de 1 ano de prisão para cada um dos crimes cometidos. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano de prisão, substituída pela pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfez o total de € 1.800,00, por sentença transitada em julgado em 21/05/2014, já declarada extinta pelo pagamento;
- pela prática, no decurso do ano de 2009 e no decurso do ano de 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal em cada um dos períodos, nas penas parcelares de 200 dias de multa e de 300 dias de multa para cada um dos crimes cometidos. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 360 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfez o total de € 3.600,00, por acórdão transitado em julgado em 22/05/2014, já declarada extinta pelo pagamento;
- pela prática, no decurso do ano de 2006, de um crime de fraude fiscal, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfez o total de € 1.840,00, por sentença transitada em julgado em 03/12/2014, já declarada extinta pelo pagamento;
- pela prática, no decurso dos anos de 2011 e 2012, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na pena parcelar de 3 anos de prisão, e, no decurso do ano de 2012, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, na pena parcelar de 3 anos e 8 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita à condição de fazer cumprir pontualmente o acordo SIREVE celebrado entre a sociedade M…., e o IGFSS, e ao cumprimento pontual do acordo SIREVE em vias de concretização a celebrar entre a sociedade B…, a AT e o IGFSS-IP, por sentença transitada em julgado em 16/12/2015;
- pela prática, no decurso do ano de 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, por sentença transitada em julgado em 07/05/2015, já declarada extinta;
e
- pela prática, no decurso do ano de 2012, de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfez o total de € 1.540,00, por sentença transitada em julgado em 28/10/2013, já declarada extinta pelo cumprimento.
*

B)– Matéria de Facto Não Provada
(…)
C)– Motivação da Matéria de Facto
(…)
III– ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA
A)– Enquadramento Jurídico - Penal
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos agora o seu enquadramento jurídico – penal.
O Ministério Público imputa ao arguido A…, a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelo disposto no art. 107.º, ns.º 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), por referência ao art. 105.º, ns.º 1 e 4 do mesmo diploma, e à sociedade arguida, idêntica infracção, atento o disposto no art. 7.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
A todo o crime corresponde uma reacção penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada por quem viola os comandos legais do ordenamento penal, estando a mesma definida no respectivo tipo legal.

Estatui, o art. 107.º do RGIT, com a epígrafe de “Abuso de confiança contra a segurança social”, que:
“1– As entidades empregadoras que, tendo deduzido das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não os entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art. 105.º.
2– É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º”.
Dispõe, por seu turno, o art. 105.º do RGIT, para onde o art. 107.º remete, no respectivo n.º 4, que os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
Esta disposição legal define integralmente o tipo de abuso de confiança contra a segurança social e apenas remete para as penas previstas no art. 105.º, n.ºs 1 e 5 e não para os elementos do tipo ou condições de procedibilidade do art. 105.º, n.ºs 1 e 5.
O tipo legal de crime de abuso de confiança contra a segurança social encontra no n.º 1 do art. 107.º do RGIT a completa descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que depende em concreto a punição que torna objectivamente determinável o comportamento proibido e objectivamente dirigível a conduta do cidadão, sem necessidade de recurso ao art. 105.º do RGIT para tal efeito.
A alteração do art. 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT, introduzida pelo art. 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12 (Lei do Orçamento de 2009) limita-se a introduzir um novo elemento objectivo do tipo – limitando-o à não entrega de prestações tributárias “de valor superior a € 7500”.

Conclui-se, assim, que essa alteração não abrange o crime de abuso de confiança contra a segurança social, que mantém a sua tipificação autónoma e integral na previsão do art. 107.º do RGIT.
O art. 59.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, diploma que aprovou as Bases gerais do sistema de segurança social, veio estabelecer, sob a epígrafe “Responsabilidade pelo pagamento das contribuições”:
“1– As entidades empregadoras são responsáveis pelo pagamento das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, devendo para o efeito proceder, no momento do pagamento das remunerações, à retenção na fonte dos valores correspondentes.
2– São nulas as cláusulas do contrato, individual ou colectivo, pelo qual o trabalhador assuma a obrigação de pagar, total ou parcialmente, as contribuições devidas pela entidade empregadora”.

O tipo objectivo deste ilícito criminal ocorre quando a entidade empregadora deduz das remunerações pagas aos trabalhadores as contribuições por estes devidas à Segurança Social, decorrente de uma relação jurídica tributária, fazendo as mesmas suas, daí advindo um prejuízo para o património tributário.
Nesta tríplice relação jurídica tributária, a segurança social surge como o credor tributário, o trabalhador como o verdadeiro devedor tributário, enquanto o substituto deste, passa a ser simultaneamente o devedor indirecto e o fiel depositário da contribuição devida por aquele, atribuindo-lhe a segurança social o dever de liquidar e entregar-lhe a respectiva contribuição.
Nesta conformidade, mediante a quebra dessa relação de confiança, seguida da não entrega pelo devedor substituto da contribuição liquidada ou retida, inverte-se o correspondente título de posse, passando este a agir com animus domini em relação a essas contribuições tributárias.
O desvalor da acção neste tipo de crime passa por isso pela defraudação da confiança que foi atribuída ao devedor substituto, consubstanciado numa acção omissiva que consiste na apropriação dos valores deduzidos a título de contribuição social.
Tratando-se de uma sociedade, naturalmente que esse dever de entrega das contribuições cobradas, recai inicial e necessariamente nos seus gerentes ou administradores.
E isto porque, de acordo com o art. 252.º do Cód. Sociedades Comerciais, a direcção de uma sociedade por quotas, que é o que aqui interessa, cabe aos seus gerentes.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social é, assim, um crime omissivo próprio, em que o evento típico consiste na violação do dever de agir imposto por lei.
A omissão dolosa reside na vontade consciente de abstenção da actividade devida, integrando o elemento subjectivo deste tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social todas as modalidades de dolo, previstas no artigo 14.º, do Código Penal. O agente tem que ter consciência que o seu comportamento é proibido por lei, que causará ou poderá causar prejuízo patrimonial a terceiro e mesmo assim actuar com intenção de realizar o facto típico, ou simplesmente aceitando o resultado como consequência necessária do seu comportamento, ou conformando-se com a eventualidade desse resultado.
O preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal prescinde do elemento apropriação e basta-se com a não entrega à administração tributária de prestação tributária deduzida, nos termos da lei, ou de prestação tributária que tenha sido recebida e que haja a obrigação legal de liquidar.
Basta-se com a mera não entrega dos montantes deduzidos. Não requer que se verifique a apropriação desses montantes, bastando, para o preenchimento do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a simples conduta omissiva do agente da não entrega, total ou parcial, das contribuições devidas à Segurança Social, a esta pertencentes, a deduzir no valor das respectivas remunerações.
Esta conduta omissiva tem em si subjacente a obrigação do agente entregar tais prestações que não lhe pertencem – pertencem à Segurança Social. Trata-se de uma quantia que não lhe pertence e que o mesmo estava obrigado a entregar e não entregou, integrando-a no seu património. Essa não entrega das contribuições devidas, deduzidas no valor das remunerações dos trabalhadores, consubstancia uma apropriação, um fazer seu coisa alheia.
A ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado. Por outro lado, a motivação ou finalidade do agente e a consequente afectação que fez das quantias de que se apropriou, são irrelevantes para este efeito.
No caso dos autos, e como decorre da leitura da contestação, os arguidos pretendem colocar em causa a verificação dos elementos típicos do crime, com o fundamento de a liquidez financeira de que a sociedade arguida dispunha ser integralmente esgotada no pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores e nos pagamentos aos fornecedores essenciais, concluindo que as retenções não foram na realidade feitas, correspondendo tais (supostas) retenções a meras ficções contabilísticas, não tendo o arguido, nem a sociedade, feito coisa sua quaisquer montantes correspondentes a retenções de contribuições para a Segurança Social, por os mesmos nunca terem existido materialmente.
Neste particular, é patente a sem razão dos arguidos.
Na realidade, resultou provado que as contribuições descontadas e retidas dos salários dos trabalhadores, foram pelo ora arguido A…, integradas no património da sua representada, ou seja, a sociedade arguida B…, sendo afectas ao pagamento das necessidades correntes desta, designadamente, ao pagamento dos salários dos trabalhadores e ao pagamento de fornecedores.
Por outro lado, neste tipo de crime o acto de apropriação tanto pode ser própria, como em benefício da sociedade de que o agente é representante. Assim, dúvidas não restam de que, se o gerente ou administrador, como fez o aqui arguido, utiliza voluntária e indevidamente na sua empresa, os valores apurados ou liquidados e retidos a título de contribuição que descontou dos salários dos seus trabalhadores, mais não faz do que apropriar-se de tais valores, ainda que não retire benefício pessoal de tal actuação e preenche na íntegra os elementos constitutivos do crime em apreço.
A apropriação de que se vem aludindo não tem de ser material, no sentido de separar física ou materialmente as prestações tributárias do património líquido do devedor tributário no momento em que terminar o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários, podendo ser, como quase sempre é, apenas contabilística, e verifica-se com a não entrega das contribuições à segurança social e respectiva afectação a finalidades diferentes por parte da entidade empregadora – neste sentido, cfr., por todos, o recente Ac. RG, de 10/10/2016, relatado por Fernando Chaves, disponível em INTERNET, www.dgsi.pt/jtrg, e jurisprudência aí indicada.
Perante os factos dados como provados, o arguido, na qualidade de gerente da sociedade arguida, pagou os salários de trabalhadores, relativos aos meses de Setembro a Novembro de 2011, Fevereiro, Março e Maio a Dezembro de 2012, Janeiro a Maio e Agosto a Dezembro de 2013, Janeiro, Junho e Setembro a Dezembro de 2014, e fez as deduções dos montantes por aqueles devidos à segurança social, no montante global de € 95.014,78, valor que não entregou nem no prazo assinalado na lei (não obstante a notificação efectuada para efeitos do art. 105.º, n.º 4 do RGIT), nem, com excepção do montante de € 17,84, a que é feita menção no ponto 18. da Matéria de Facto, depois.

Verifica-se que o arguido A…, enquanto gerente efectivo da sociedade arguida, começou a apropriar-se das contribuições por esta devidas à Segurança Social animado pelo êxito alcançado com a primeira conduta de apropriação e aproveitando-se da circunstância de não ter sido alvo de uma acção inspectiva por parte da Segurança Social anteriormente, podendo-se aceitar que foi por não ter sido detectado logo na primeira conduta de apropriação e nas subsequentes e por se ter aproveitado da fiscalização tardia dos serviços de inspecção que resolveu renovar a sua actuação criminosa, podendo concluir-se do circunstancialismo fáctico apurado que existiu uma relação que de fora e de maneira considerável facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao arguido que se comportasse de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito, dessa forma sendo arrastado para a prática dos diferentes crimes que foi cometendo, de forma homogénea, realizando repetidamente o mesmo tipo de crime, que protege o mesmo bem jurídico, existindo conexão temporal entre os diferentes actos de apropriação em análise.

Está, pois, preenchido o tipo objectivo do crime em questão.

Por outro lado, estando provado que o arguido agiu voluntariamente, optando por integrar os valores deduzidos na esfera patrimonial da sociedade arguida, com o propósito concretizado, único e reiterado, de prejudicar a Segurança Social e de assim obter uma vantagem patrimonial a que sabiam não ter direito, resultado que representaram, e sabendo também que a sua conduta era proibida por lei, dúvidas não restam do preenchimento do tipo subjectivo do mesmo crime – o dolo, uma vez que o arguido sabia que a importância acima referida devia ser entregue à Segurança Social, por ter sido descontada para tal efeito, e, não obstante, não o fez, dando-lhe outro destino, assim se apropriando dos mesmos.

Na contestação apresentada, os arguidos aduzem, ainda, que a decisão de canalizar os recursos financeiros disponíveis para pagar os vencimentos dos trabalhadores, na medida em que esses recursos não chegavam para cumprir essa obrigação e a de pagar as contribuições à segurança social, foi, atento o circunstancialismo verificado no caso, necessário para manter os postos de trabalho e evitar todas as consequências nefastas que adviriam da paralisação da actividade da empresa, devendo a primeira obrigação prevalecer sobre a segunda e não sendo exigível que os arguidos agissem de outro modo, pelo que este comportamento se enquadra, no seu entender, no conflito de deveres previsto no art. 36.º do Cód. Penal, que exclui a ilicitude, com a consequente absolvição em termos criminais, ou, assim não se entendendo, no estado de necessidade desculpante previsto no n.º 2 do art. 35.º do mesmo diploma, não se devendo considerar culposos os factos praticados.

Dispõe o art. 36.º, n.º 1 do Cód. Penal que “não é ilícito o facto de quem, no caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”.

Esta norma consagra uma causa de exclusão da ilicitude de uma conduta que sendo anti-jurídica, ainda assim ela é conforme à Ordem Jurídica, fazendo prevalecer um bem jurídico superior (bem hierarquicamente superior) em detrimento de outro bem jurídico inferior, ou na impossibilidade de satisfazer dois bens jurídicos de igual valor, teve de optar por satisfazer um deles (colisão de deveres de igual valor), sendo que para que exista a causa de justificação excluidora da ilicitude por conflito de deveres é necessário que ocorra: i) a impossibilidade de cumprir os dois (ou mais) deveres; ii) o cumprimento do dever jurídico superior (quando os deveres em conflito forem de hierarquia diferente), ou o cumprimento de qualquer um dos deveres (quando forem da mesma hierarquia).

Não se afigura acertado falar de conflito, em casos como o agora em apreciação.

Os trabalhadores gozam de inúmeros direitos, nomeadamente, na parte que agora interessa, do direito ao trabalho e retribuição – cfr. art. 58.º e ss. da Constituição da República Portuguesa.

O Estado, por sua vez, encontra-se constitucionalmente incumbido de realizar democraticamente vários objectivos visando a salvaguarda do sistema de protecção social segundo um modelo de solidariedade que o Estado de Direito Social estabelece, acolhe e confere aos seus cidadãos. Tais finalidades são possibilitadas pelas receitas cobradas pelo sistema de segurança social.

As empresas e os cidadãos estão obrigados a pagar os seus impostos. Não se devem preocupar com o problema do Estado. Não é, por isso, legítimo que uma empresa erija e aplique os seus critérios, fazendo tábua rasa dos comandos legais.

As hierarquias apresentam-se claras e inequívocas, sendo que o dever dos arguidos entregarem à Segurança Social as quantias descontadas nos salários dos trabalhadores suplanta o dever de manter a sociedade arguida em actividade, pagando as suas despesas correntes de funcionamento, mormente aqueles salários, sendo a superioridade do primeiro daqueles deveres evidente, como vem sendo reiteradamente afirmado, de forma que julgamos uniforme, pela jurisprudência dos tribunais superiores, aos quais, de forma recorrente, a questão tem vindo a ser colocada.

No confronto com vista a apurar qual é o dever superior e preponderante e por isso, que deve ser cumprido, tem de ser ponderado que:
- as obrigações de entregar os impostos e deduções salariais ao Estado têm natureza legal, enquanto que a obrigação de pagamento da retribuição aos trabalhadores ou pagamento aos demais credores de uma empresa têm natureza meramente contratual;
- o incumprimento das primeiras pode gerar responsabilidade contra-ordenacional e/ou criminal, enquanto que o mero incumprimento das segundas pode gerar apenas responsabilidade civil;
- no primeiro caso estão em causa interesses de natureza pública, enquanto que no segundo interesses essencialmente de natureza privada;
- ao satisfazer as necessidades da empresa, os arguidos satisfizeram interesses próprios (que emergem da necessidade de manutenção do negócio) e não interesses alheios (a obrigação de entregar à Segurança Social as quantias que lhe pertencem), o que coloca a opção num plano de manifesta desigualdade, pelo que também por essa perspectiva resultaria diminuído no confronto com o dever preterido, sendo que o conflito de deveres relevante é um conflito entre deveres para com os outros.

No confronto com o bem jurídico protegido com a incriminação de tais condutas, traduzido essencialmente no interesse do Estado no bom funcionamento do sistema de segurança social, necessário e fundamental ao Estado Social e por essa via, visa prosseguir o dever constitucional de repartir equitativamente através das políticas sociais os bens públicos e de garantir a todos os cidadão a protecção social/estadual em situações de diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, como doença, velhice, invalidez, orfandade, desemprego, tudo em obediência ao disposto no art. 63.º da Constituição da República Portuguesa, que se verifica com particular acuidade que a obrigação de entrega dos descontos à Segurança Social por parte da entidade patronal visa a satisfação de necessidades colectivas, que necessariamente se têm de sobrepor às necessidades individuais (que em caso de necessidade terão de ser satisfeitas por aquelas contribuições em conformidade com o comando constitucional), e daí o cumprimento deste dever se encontrar hierarquicamente em plano superior.

Dentro destes parâmetros, não se vislumbra qual a norma ou princípio da ordem jurídica que exclui a ilicitude do comportamento de quem dispõe de bens que não lhe pertencem. Além de que, levando às últimas consequências, a pretendida equiparação entre a obrigação de pagar salários e/ou de pagar aos fornecedores, e a obrigação de entregar as contribuições devidas à Segurança Social, estar-se-ia a distorcer gravemente as regras do mercado, estando encontrada a “fórmula” que permitiria a algumas empresas, além de evitarem a perseguição criminal pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, usufruíssem de inadmissíveis vantagens de concorrência relativamente àquelas que cumprem as suas obrigações.

Do exposto resulta que a obrigação de uma empresa de pagar os salários dos trabalhadores e despesas correntes do seu funcionamento não suplanta, nem sequer iguala, na hierarquia legal, o dever de pagar as contribuições devidas à Segurança Social, pelo que se impõe concluir que a ilicitude da conduta dos arguidos não é afastada pelo n.º 1 do art. 36.º do Cód. Penal, não se verificando qualquer conflito de deveres juridicamente relevante, nem se enquadrando tal comportamento na previsão deste normativo.

O art. 35.º do Cód. Penal, também invocado pelos arguidos, estatui, no seu n.º 1, que “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”, acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que “Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena”.

O estado de necessidade, que genericamente se pode definir como situação de perigo actual para interesses legítimos, apenas evitável mediante a lesão de interesses legítimos de terceiros, quer se consubstancie num verdadeiro direito de necessidade, excludente da ilicitude (art. 34.º Cód. Penal), quer funcione simplesmente ao nível da exclusão da culpa, ou da sua atenuação, com a consequente atenuação especial ou mesmo isenção de pena (art. 35.º), pressupõe sempre a existência de um “perigo actual” de lesão de interesses juridicamente protegidos, a cuja remoção a atitude do agente visa prover.

No caso vertente, a não entrega pelos arguidos, junto da Segurança Social, das contribuições deduzidas não integra um estado de necessidade desculpante, uma vez que não compete aos arguidos decidirem do destino de um dinheiro que já não lhes pertence, e de que assim se apropriam, pois que inverteram o título da posse, tendo-o reafectado à satisfação de outras necessidades. Ora, as quantias declaradas e retidas pertenciam à segurança social, razão pela qual aos arguidos apenas era consentido que actuassem como detentores, encontrando-se-lhes vedado que das mesmas dispusessem como sendo bens próprios, e, ao omitirem a entrega do valor deduzido e retido, assenhoraram-se das prestações que lhes estavam confiadas, integrando-as no seu património e revelando através de concludente conduta a apropriação das mesmas.

Deste modo, à luz dos comandos normativos acima transcritos, não existindo causas de justificação da ilicitude, designadamente uma situação de conflito de deveres, nos termos do art. 36.º, n.º 1 do Cód. Penal, nem causas de exclusão ou de atenuação da culpa, designadamente uma situação de estado de necessidade desculpante, nos termos do art. 35.º, n.º 2 do Cód. Penal, concluímos que os arguidos A...,e B...,são jurídico-penalmente responsáveis pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelos arts. 6.º, 7.º, n.º 1 e 107.º, ns.º 1 e 2, por referência ao 105.º, n.ºs 1 e 4, todos do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), que lhes vem imputado na peça acusatória.
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B)–DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos A...,e B…, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar, sendo a primeira operação a efectuar, naturalmente, a determinação da respectiva moldura penal ou pena aplicável.
Pela omissão de pagamento, à Segurança Social, das contribuições descontadas nos salários dos trabalhadores que tinham ao seu serviço, os arguidos incorreram na prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p.p. pelos arts. 105.º, n.ºs 1 e 4 e 107.º, ns.º 1 e 2 do RGIT, e arts. 30.º e 77.º do Cód. Penal, devendo, nos termos do art. 79.º, n.º 1 do Cód. Penal, ser punidos com a pena aplicável à conduta mais grave integrante da continuação, ou seja, prisão até 3 anos ou multa de 10 até 360 dias, no caso do arguido A…, ou pena de multa de 20 até 720 dias, no caso da sociedade arguida (art. 12.º, n.ºs 1 e 3 do R.G.I.T., in fine), sendo que, nos termos do art. 15.º, n.º 1 do RGIT, a cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 1,00 e € 500,00, tratando-se de pessoas singulares, e entre € 5,00 e € 5.000,00, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas.
Na situação sub judice, e atento o alegado pelos arguidos nos artigos 185.º a 187.º da contestação, há que ponderar a aplicação ao arguido A...,da atenuação especial da pena, prevista no art. 72.º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal.

O art. 72.º do Cód. Penal refere-se às circunstâncias comuns de especial valor atenuativo (que modificam a moldura penal abstracta), não expressamente previstas na lei, dispondo:
“1.– O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

2.– Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a)- Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b)- Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c)- Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d)- Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
(…)”.

Este preceito tem um carácter excepcional, não tendo as situações a que se referem as diversas alíneas do n.º 2, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente (n.º 1).

Só haverá lugar à atenuação extraordinária da pena se as circunstâncias descritas nas várias alíneas do n.º 2 diminuírem efectivamente, de forma acentuada, a ilicitude do facto ou a culpa do agente.

Ora, no caso vertente, apesar de não ter sido produzida prova de o arguido ter agido na satisfação de interesses pessoais e egoístas, ou seja, com o propósito de enriquecimento do seu património pessoal e familiar, não se alcança de que forma, ao ter integrado no património da sociedade arguida as retenções de contribuições para a Segurança Social, que descontou dos salários dos seus trabalhadores, que não lhe pertenciam, mas sim à Segurança Social, que utilizou para satisfazer interesses próprios, emergentes da necessidade de manutenção do negócio, se pode sustentar que tal conduta foi “determinada por motivo honroso”.

Por tudo o exposto, entende-se que não se verificam os pressupostos de aplicação do art. 72.º, n.º 2, al. b) do Cód. Penal, convocado pelos arguidos na contestação, não se encontrando o arguido A...,em condições de beneficiar da atenuação especial da pena prevista nesta disposição legal.
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Nos termos do disposto no art. 70.º do Cód. Penal, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
No caso vertente, importa ponderar que o arguido A...,denota propensão criminosa, como, de forma exuberante, se intui dos respectivos antecedentes criminais, a que é feita menção no ponto 27. da Matéria de Facto Provada, de onde resulta que, desde o ano de 1997, o arguido, de forma recalcitrante, vem incorrendo na prática de crimes de natureza tributária, já tendo sido condenado por doze crimes diferentes, a saber, dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social, três crimes de abuso de confiança fiscal qualificado, um deles na forma continuada, seis crimes de abuso de confiança fiscal, dois deles na forma continuada, e um crime de fraude fiscal, pelo que as exigências de prevenção geral, a saber, a necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, quanto ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, imporiam a opção pela pena privativa da liberdade.

Com igual sentido, valeriam as exigências de prevenção especial na consideração do apontado sentido de inocuização, ou dizer de que por pura exigência de defesa social se privilegie e procure a neutralização da perigosidade social do delinquente.

Em suma, são prementes as necessidades de prevenção, geral e especial, assumindo a escolha da pena um momento de particular relevo para evitar situações de reiteração da conduta.

Está assim justificada, no caso, a opção pela pena privativa da liberdade no caso da penalidade a aplicar quanto ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, em cuja prática o arguido incorreu, por só esta assegurar as finalidades e a necessidade de pena.

Na determinação da medida concreta da pena, manda o art. 71.º do Cód. Penal que se tomem em consideração todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, punindo-se em função da culpa e levando-se em conta as exigências de prevenção de futuros crimes. Acrescenta o art. 13.º do R.G.I.T. que, para além disso, se considerará, sempre que possível, o prejuízo causado pela prática do crime.

Nesta perspectiva, no caso vertente, valorando a matéria fáctica provada, importa atender, designadamente, às seguintes circunstâncias:
- o dolo, o qual se mostra na modalidade de dolo directo;
- a ilicitude dos factos, a qual se mostra de grau elevado dentro do quadro do ilícito em apreço, tendo em conta o modo de actuação (que se insere dentro do que é habitual neste tipo de crime), período de tempo durante o qual actuaram (superior a três anos), valor da contribuição mais elevada não liquidada (€ 7.861,73), revelando, em termos da significativa gravidade das suas consequências, os valores totais elevados de que a sociedade arguida ilegitimamente se apropriou e que se traduziram correspectivamente em prejuízo para a Segurança Social, no montante global de € 95.014,78, não tendo, deste montante, os arguidos procedido ao pagamento voluntário de qualquer quantia (deste montante, a sociedade arguida procedeu ao pagamento ao competente Serviço de Finanças do montante de € 17,84, no âmbito da execução fiscal), o que é demonstrativo de os arguidos não pretenderem repor a regularidade da situação tributária e reparar as consequências nefastas que advierem da sua conduta, e/ou de terem interiorizado a censurabilidade e o desvalor da sua conduta, sendo por demais evidente a falta de consciência social que estes factos corporizam e o elevado dano social decorrente dos factos praticados, o que deve ser valorado na determinação da medida da pena, em desfavor dos arguidos;
- são muito fortes as necessidades de prevenção geral, dada a frequência com que crimes desta natureza são praticados, quase sempre com elevados prejuízos para a comunidade e sempre acentuando a desigualdade dos cidadãos no cumprimento de obrigações tributárias e na distribuição de responsabilidades sociais, com violação de um dever sem o qual não é possível justiça tributária e solidariedade social justa e equitativa;
- de outro passo, há que ponderar, em desfavor dos arguidos A...,e B…, a circunstância de ambos evidenciaram condenações em Juízo em matéria fiscal, tendo o arguido condenações pela prática de doze crimes diferentes, a saber, dois crimes de abuso de confiança contra a segurança social, três crimes de abuso de confiança fiscal qualificado, um deles na forma continuada, seis crimes de abuso de confiança fiscal, dois deles na forma continuada, e um crime de fraude fiscal, por factos cuja prática remonta ao período compreendido entre os anos de 1997 e de 2013, tendo sido condenado, numa ocasião, em pena de admoestação, em quatro ocasiões, em pena de multa, em duas ocasiões, em pena de prisão substituída por multa, e, em outras duas ocasiões, em pena de prisão declarada suspensa na sua execução, pelo que as necessidades de prevenção especial, em relação ao arguido, se afiguram particularmente significativas, e tendo a sociedade arguida condenações pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, por factos cuja prática remonta ao ano de 2007 e ao ano de 2012, respectivamente;
- as condições pessoais do arguido, descritas na matéria de facto, de onde resulta tratar-se de uma pessoa com hábitos de trabalho e que se encontra socialmente inserida.
A pena a aplicar terá de reflectir a gravidade da conduta dos arguidos e constituir factor eficaz de prevenção geral e especial.
Tudo analisado, considerando por um lado os factos apurados ora em apreço e as exigências de prevenção geral positiva (tutela do bem jurídico protegido e reforço da confiança da comunidade na validade da norma violada), embora limitada pela culpa pessoal do arguido e, por outro lado, pela sua carência de socialização, tem-se por justo, adequado e proporcionado, condenar o arguido A…, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, previsto e punido pelos arts. 105.º e 107.º, ns.º 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência aos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, situada acima do ponto intermédio da diferença entre o mínimo e máximo aplicáveis.
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A sociedade arguida B...,é responsável criminalmente nos termos do art. 7.º, já que a infracção em análise foi cometida pelos seus órgãos de gestão e no seu interesse social e colectivo, em razão da afectação dada ao valor das contribuições deduzidas.

O regime legal previsto no R.G.I.T., no que concerne à punição das pessoas colectivas, prevê uma moldura abstracta de 20 a 720 dias de multa (arts. 12.º, n.ºs 1 e 3, in fine, e 105.º, n.º 1, por remissão do art. 107.º, n.º 1, todos do R.G.I.T.).

O critério de determinação do quantitativo diário da pena de multa aplicável aos crimes fiscais encontra-se previsto no art. 15.º, n.º 1 do R.G.I.T. e corresponde ao critério previsto no art. 47.º, n.º 2 do Cód. Penal.

Assim, o quantitativo diário da pena de multa, independentemente de o arguido ser pessoa singular ou pessoa colectiva, é fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.

No caso vertente, a sociedade arguida, pelas razões supra enunciadas, deve ser condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 105.º, ns.º 1 e 4 e 107.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, por referência aos artigos 30.º, n.º 2 e 79.º, n.º 1 do Cód. Penal na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, situada acima do ponto intermédio da moldura abstractamente aplicável, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), o que perfaz o montante global de € 6750,00 (seis mil setecentos e cinquenta euros).
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Na contestação apresentada, maxime nos arts. 127.º a 168.º, os arguidos, embora sem os identificar na sua totalidade, vieram invocar que os factos objecto dos presentes autos se encontram numa relação de continuação com os factos que foram objecto dos anteriores processos em que o arguido, com referência ao mesmo período de crise económica, foi condenado, por sentença já transitada em julgado, sendo a forma de execução essencialmente homogénea (suposta retenção e não entrega ao Estado dos valores do IVA e contribuições para a Segurança Social devidos) e sempre motivada pela mesma situação exterior: as dificuldades económicas de que a sociedade B..., passou a padecer por ter sido vítima de uma fraude de um enorme valor para os seus negócios e por ter sido vítima de incumprimentos de clientes em valores também muito significativos, concluindo não existir fundamento material para a cisão em processos distintos, nem para se considerar ter havido um concurso de crimes, e, tratando-se os factos objecto dos presentes autos os mesmos factos que integraram o crime continuado pelo qual este já foi acusado, julgado e condenado, pugnam pela absolvição do arguido da instância, ou, a assim não se entender, pela não aplicação ao arguido de mais nenhuma pena, por a pena agora aplicável não ser mais grave do que aquelas que já lhe foram aplicadas em processos que trataram de factos integrados no mesmo crime continuado, designadamente nos autos n.º 269/14.3 IDLSB, que correram termos pelo Juízo Local Criminal do Seixal, Juiz 3, em que o arguido foi condenado na pena de 5 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de um ano, ou nos autos n.º 654/12.5 IDLSB, que correram termos na Secção Criminal da Instância Local de Lisboa, Juiz 10, em que o arguido foi condenado na pena de 5 anos de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período.

Em obediência ao despacho proferido no dia 21/03/2017, que integra o terceiro segmento de fls. 704, por requerimento que integra fls. 722, vieram os arguidos identificar os sete processos cujos factos entendem integrar o mesmo crime continuado, sendo certo que a decisão proferida num dos processos por si indicados (autos de processo comum (Tribunal Singular) n.º 269/14.3 IDSTB, a correr termos no Juiz 3 do Juízo Local Criminal do Seixal) não transitou sequer em julgado, como resulta da informação remetida aos autos, que integra fls. 910.

Como decorre do art. 3.º do R.G.I.T., aos crimes fiscais são aplicáveis, subsidiariamente, o Cód. Penal e a legislação complementar.

Daí que há que ter presente o disposto no art. 30.º do Cód. Penal, cujo n.º 1 preceitua que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”, dispondo o n.º 2 que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

Resulta, assim, do citado normativo que, em matéria de unidade e pluralidade de infracções, a lei admite três modalidades:
- um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial, ou seja, se tiver havido um só desígnio criminoso;
- um só crime continuado, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas estiver interligada por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas, ou seja, persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente;
- um concurso de infracções, se não se verificar qualquer um dos casos anteriores.
O critério de distinção entre unidade e pluralidade de infracções não é um critério naturalístico mas, antes, um critério normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais negados, expressos nos tipos legais de crimes, correspondendo à unidade ou pluralidade de juízos de censura tendo na base a unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.

Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários.

A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior, que o arrastam para o crime e não em razões de carácter endógeno.

De acordo com o disposto no citado art. 30.º, n.º 2 do Cód. Penal haverá, assim, crime continuado quando se verificar:
- a homogeneidade da forma de execução de diversos ilícitos;
- a lesão do mesmo bem jurídico;
- que as acções sejam executadas através de diversas resoluções, numa linha psicológica continuada (unidade do dolo);
- a persistência de uma situação exterior que facilite a execução;
- que a persistência da referida situação exterior diminua consideravelmente a culpa do agente.

Já o art. 79.º do Cód. Penal, que trata da punição do crime continuado, prescreve:
“1.– O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integre a continuação.
2.– Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior”.

Na aplicação da norma ínsita no n.º 2 desta disposição legal:
- independentemente do trânsito em julgado, atender-se-á à conduta que integre a continuação desde que se trate de uma conduta mais grave do que as condutas que já tinham sido conhecidas;
- as condutas mais graves serão aquelas que integrem um tipo próximo do da condenação já transitada, mas com uma moldura penal mais severa;
- a gravidade da conduta afere-se pela pena aplicável, dizer pela moldura abstracta do crime;
- verificada uma conduta mais grave do que as que já tinham sido conhecidas, a pena que lhe for aplicada, substitui a anterior.

Transpondo tais considerações para o caso em apreço, e tendo presente os factos acima descritos como provados, a que é feita menção no ponto 27. da Matéria de Facto, importa salientar que o arguido A...,já foi condenado, por decisões transitadas em julgado, e para o que agora interessa, designadamente:
i.)– no processo comum (Tribunal Singular) n.º 1171/11.6 IDLSB, cuja certidão integra fls. 803 a 815, por sentença proferida em 03/10/2012, relativamente a factos praticados no quarto trimestre do ano de 2010, consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, p.p. pelo art. 105.º, ns.º 1, 4, 5 e 7 do RGIT, na pena de admoestação;
ii.)– no processo comum (Tribunal Singular) n.º 1640/11.8 IDLSB, cuja certidão integra fls. 758 a 767, por sentença proferida em 29/04/2013, relativamente a factos praticados no decurso do ano de 2010 e no decurso do ano de 2011, respectivamente, consubstanciadores da prática, em cada um dos períodos, de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art. 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, na pena de 1 ano de prisão para cada um dos crimes. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano de prisão, substituída pela pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, perfazendo a multa global de € 1.800,00;
iii.)– no processo comum (Tribunal Colectivo) n.º 165/12.9 IDLSB, cuja certidão integra fls. 868 a 900, por acórdão proferido em 20/06/2013, relativamente a factos praticados no decurso dos 1.º, 2.º e 3.º trimestres de 2009, e nos meses de Março a Julho de 2011, respectivamente, consubstanciadores da prática, em cada um dos períodos, de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelo art. 105.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, nas penas de 200 dias de multa e de 300 dias de multa para cada um dos crimes. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 360 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo a multa global de € 3.600,00;
iiii.)– no processo comum (Tribunal Singular) n.º 654/12.5 IDLSB, cuja certidão integra fls. 770 a 801, por sentença proferida em 18/03/2015, relativamente a factos praticados no decurso do 4.º trimestre de 2011 e no decurso do 2.º trimestre de 2012, respectivamente, consubstanciadores da prática, em cada um dos períodos, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificada, p.p. pelo art. 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, na pena de 3 anos de prisão, e de um crime de abuso de confiança fiscal qualificada, na forma continuada, p.p. pelo art. 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5 do RGIT, em conjugação com os arts. 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Cód. Penal, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período, sujeita à condição de fazer cumprir pontualmente o acordo SIREVE celebrado entre a sociedade M…, a AT e o IGFSS, e ao cumprimento pontual do acordo SIREVE em vias de concretização a celebrar entre a sociedade B…, a AT e o IGFSS-IP;
iiiii.)– no processo comum (Tribunal Singular) n.º 176/11.1 IDSTB, cuja certidão integra fls. 832 a 847 e fls. 1059 e 1060, por sentença proferida em 07/04/2015, relativamente a factos praticados no decurso do ano de 2011, consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelo art. 105.º, n.º 1 do RGIT e pelo art. 30.º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 18 meses de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período;
iiiiii.)– no processo comum (Tribunal Singular) n.º 1303/12.7 IDLSB, cuja certidão integra fls. 817 a 831, por sentença proferida em 26/09/2013, relativamente a factos praticados no decurso do 1.º trimestre de 2012, consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelo art. 105.º, ns.º 1, 2 e 4 do RGIT e pelo art. 30.º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
Resulta, assim, da exposição que antecede, que as condenações cominadas ao arguido A...,nos seis processos a que é feita menção no requerimento de fls. 722, respeitam a um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, a dois crimes de abuso de confiança fiscal, a dois crimes de abuso de confiança fiscal, a um crime de abuso de confiança fiscal qualificado e a um crime de abuso de confiança fiscal qualificado na forma continuada, a um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada e a um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, respectivamente.
Como acima se sublinhou, um dos requisitos da existência da continuação criminosa é a lesão do mesmo bem jurídico.
Ora, apesar da semelhança dos tipos de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social, ambos crimes omissivos puros, cuja consumação ocorre com a não entrega total ou parcial de prestações ou contribuições deduzidas, e apesar da identidade de regimes punitivos, aqueles tipos legais encontram-se previstos em dois capítulos diferentes do RGIT: inseridos um e outro na Parte III – Das Infracções Tributárias em Especial e no Título I – Crimes Tributários, integra-se o abuso de confiança fiscal no Capítulo III – Crimes Fiscais, enquanto que o abuso de confiança contra a Segurança Social se integra no Capítulo IV – Crimes contra a Segurança Social.

Nos crimes contra a administração fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado. O sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos.

Diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património da Segurança Social, ou seja, a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular.

Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins. Não são receitas do Estado, mas da Segurança Social, destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam todos os cidadãos.

Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social são, pelo exposto, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes e, como tal, não podem integrar uma continuação criminosa.

Pelo que, sem necessidades de outras considerações, se conclui não assistir, também nesta parte, razão aos arguidos.
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A pena em que o arguido A...,fica, agora, condenado, implica que se aborde a questão da suspensão da execução da pena.
Para as penas de prisão não superiores a 5 anos, dispõe o n.º 1 do art. 50.º do Cód. Penal: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, acrescentando-se no n.º 5 que “O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”.

Por sua vez, o art. 14.º do RGIT (“Suspensão da execução da pena de prisão”) preceitua no seu n.º 1 que “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento da quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.

Há, assim, uma incompatibilidade entre as disposições do n.º 5 do art. 50.º do Cód. Penal e do art. 14.º, n.º 1 do RGIT, no que respeita ao prazo de duração da suspensão da execução da pena. Porém, este último normativo não se pode considerar revogado por aquele preceito do Cód. Penal, pois, por um lado, a Lei n.º 59/2007 não o revogou expressamente e, por outro, o art. 14.º, n.º 1 do RGIT não foi tacitamente revogado na parte em que prevê que o pagamento da dívida fiscal possa ocorrer até ao limite de 5 anos e, consequentemente, que o prazo de suspensão da pena seja fixado até ao máximo de 5 anos, dado tratar-se de uma norma especial.

Por isso, nos casos abrangidos pelo art. 14.º, n.º 1 do RGIT é esta a norma que estabelece o limite máximo aplicável ao período de suspensão da pena, assim como impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos.

No caso presente, considerando que, à data do início da prática dos factos objecto dos presentes autos, o arguido A...,tinha unicamente duas condenações averbadas no respectivo registo criminal, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, em pena de multa, e, igualmente pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, em pena de prisão substituída por multa, afigura-se ser possível fazer um juízo de prognose social favorável no sentido de que o arguido não incorrerá na prática de novos crimes, sendo a ameaça da pena suficiente para o desencorajar da prática de novos ilícitos.

No que respeita às infracções tributárias, no que concerne à suspensão da execução da pena, tem aplicação o regime do citado art. 14.º, n.º 1 do RGIT, de acordo com o qual a pena de prisão pode ser suspensa em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, sendo tal suspensão, porém, sempre condicionada ao pagamento ao Estado, em prazo a fixar até ao aludido limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

Na falta de pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode: a) Exigir garantias de cumprimento; b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível; c) revogar a suspensão da pena de prisão (art. 14.º, n.º 2).

Esta formulação legal tem como pressuposto um prazo de suspensão que não seja inferior ao prazo dado para pagamento.

Assim, atento o disposto no art. 14.º, n.º 1 do R.G.I.T., e face ao elevado montante das quantias em dívida e à situação económico-financeira do arguido A…, entende este Tribunal determinar que a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão seja condicionada ao pagamento da prestação tributária em falta e acréscimos legais, no prazo de 4 (quatro) anos, a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença.
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IV.–DECISÃO
Assim, pelo exposto, e tendo em conta as disposições legais consideradas, o Tribunal julga a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente, por provada, e, consequentemente, decide:
A)– Condenar o arguido A...,pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pela interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 2 do Cód. Penal e 107.º, ns.º 1 e 2 e 105.º, ns.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
B)– Suspender a execução da pena de prisão cominada ao arguido A…, a que é feita referência em A), pelo período de 4 (quatro) anos, sob condição de o arguido, nesse lapso de tempo, proceder ao pagamento ao “Instituto da Segurança Social, I.P.” do montante das contribuições em dívida (no montante global de € 94.996,94 (noventa e quatro mil novecentos e noventa e seis euros e noventa e quatro cêntimos)) e acréscimos legais, e comprovar esse pagamento nos autos;
C)– Condenar a arguida B...,pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pela interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 2 do Cód. Penal e 107.º, ns.º 1 e 2 e 105.º, ns.º 1 e 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), o que perfaz o montante global de € 6750,00 (seis mil setecentos e cinquenta euros);

Conhecendo, dir-se-á.

Considerando-se obviamente, o recurso interposto pelos arguidos, aduziremos o seguinte.

Cumpre assim apreciar e decidir:
Artigo 50.ºCP
Pressupostos e duração
1– O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2– O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3– Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4– A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5– O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.

Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 59/2007, de 04/09
- Lei n.º 94/2017, de 23/08

Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: DL n.º 48/95, de 15/03
-2ª versão: Lei n.º 59/2007, de 04/09

Artigo 51.ºCP
Deveres
1– A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a)- Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
b)- Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c)- Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.
2– Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
3– Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.
4– O tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos.

Contém as alterações dos seguintes diplomas:
- Lei n.º 59/2007, de 04/09
Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: DL n.º 48/95, de 15/03
Estabelece então o artº 14º do RGIT:
Artigo 14.º
Suspensão da execução da pena de prisão
1– A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2– Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a)- Exigir garantias de cumprimento;
b)- Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c)- Revogar a suspensão da pena de prisão.

Ora, quanto à suspensão da pena de prisão propriamente dita (…)O Código Penal, na redacção vigente na data da entrada em vigor do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, admitia que a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos fosse suspensa por um período de 1 a 5 anos a contar da data do trânsito em julgado da decisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, fosse de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do Código Penal.

Essa suspensão podia ficar subordinada ao cumprimento de deveres, à observância de regras de conduta ou a regime de prova – n.º 2 do mesmo preceito legal.

Entre os deveres que podiam ser impostos contava-se o de pagar dentro de certo prazo, no todo ou em parte, a indemnização devida ao lesado – alínea a) do n.º 1 do artigo 51.º do Código Penal, não podendo os deveres impostos representar, em caso algum, obrigações cujo cumprimento não fosse razoável exigir ao condenado.

O RGIT, ao qual era aplicável subsidiariamente o Código Penal – alínea a) do artigo 3.º , continha, no seu artigo 14.º, disposições especiais quanto à suspensão da execução da pena de prisão.

Aí se previa que essa suspensão fosse sempre condicionada, sendo esse o caso, ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária em dívida e dos acréscimos legais. Também previa as consequências do não pagamento dessas quantias, entre as quais se contava a revogação da suspensão da pena de prisão.
Acontece que, posteriormente à entrada em vigor do RGIT, a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, introduziu significativas alterações nas disposições legais que regulavam o instituto da suspensão da pena de prisão sem que tenha alterado simultaneamente as disposições que se encontravam previstas naquele outro diploma.
O tribunal passou a poder suspender a execução de penas de prisão até 5 anos e o concreto período de suspensão passou a ter uma duração pré-estabelecida legalmente, artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, da nova redacção do Código Penal, sendo esta igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano.
Ora e “brevitatis causa” diremos que, inspeccionando o Acórdão de fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12/9/2012, publicado no DR I.ª Série, n.º 206, de 24/10/2012, disponívelin,http://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20600/0598506019.pdfhttp://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20600/0598506019.pdf., este fixou a seguinte jurisprudência com a qual se concorda na integra:
- «no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».

É isto que o extenso acórdão fixa, e dele não se retira de todo, ao contrário do que por vezes é afirmado, que uma pena de prisão efectiva pela prática de crimes fiscais, mormente de abuso de confiança (quadro da sentença), pode ser suspensa na sua execução desde que se “prove” que o arguido não tenha possibilidade de pagar o montante não pago á entidade tributária.

Ao invés, este na sua extensa fundamentação, de forma hábil, prática, inteligente, eficaz e justa, aponta para outra solução, que é a de se aplicar, ao invés uma pena de multa, quando se apure que o arguido não tem possibilidade de pagar a sua divida fiscal, tanto assim que a necessidade do juízo de prognose a que se reporta o acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade.

Desta afirmação não temos qualquer dúvida, bastando para tal proceder a uma leitura atenta do mesmo.

Abordando o caso concreto diremos:
Lida e relida a sentença proferida pelo Tribunal “ a quo “, concluímos que existe de facto uma omissão de pronúncia na sentença sobre se o arguido A...,terá, ou não, condições de efectuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão da execução da prisão, uma vez que foi condenado pela pratica de crime de natureza fiscal, só podendo beneficiar daquela pena substitutiva, nos exactos termos do que dispõe o n.º 1 do Art.º 14.º do RGIT.

Nesta instância de recurso surge assim, a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia (alínea c) do n.º 1 do art.º 379.º do Código de Processo Penal).

Não terá sido cumprido pelo tribunal “a quo”, o dever de investigação e (ou) pronúncia e dilucidação, sobre se o arguido terá, ou não, condições de efectuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão, uma vez que foi condenado por crime de natureza fiscal, só podendo beneficiar daquela pena substitutiva, nos exactos termos do que dispõe o n.º 1 do Art.º 14.º do RGIT.

E, na verdade, analisando esta sentença, verifica-se desde logo que a mesma se encontra omissa no que respeita sobre estes pressupostos da suspensão da execução da prisão no que respeita ao crime pelo qual foi condenado e na forma continuada, que foi entendido como praticado.

Desiderato que deveria ter realizado em obediência à doutrina agora fixada pelo já atrás mencionado Acórdão para fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012 de 12/9/2012, publicado no DR I.ª Série, n.º 206, de 24/10/2012, disponível em http://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20600/0598506019.pdfhttp://dre.pt/pdf1sdip/2012/10/20600/0598506019.pdf.

Diz-nos o mesmo acórdão que “no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”

Entende-se, diga-se, que esta interpretação uniforme é extensível, e aplicável ao crime pelo qual o arguido foi condenado e  que o tribunal “a quo” condicionou o arguido, na suspensão da sua punição, ao pagamento ao Estado da mencionada quantia tributária no valor de €94 996,94 e legais acréscimos.

Na sentença proferida pelo Tribunal “ a quo” não encontramos devidamente cumpridas estas exigências adicionais na aplicação da suspensão da execução da prisão mediante a obrigatória condição de pagamento das prestações tributárias em falta, atrás mencionadas.

Assim, no momento da determinação da pena, constata-se por um lado, que o tribunal “a quo” invocou já sumariamente, para o aqui arguido e recorrente, os pressupostos tipo do art.º 50.º do Código Penal, e depois determinou para ele a suspensão da execução da pena de prisão mediante as contrapartidas tributárias devidas, resultantes da condenação deste pela prática de um crime p.p. pelo artº 107º nº 1 e 2 e 105º nº 1 e 4 do RGIT aprovado pela Lei 15/2001 de 5/06, na pena de  dois anos e seis meses de prisão, e  por outro lado,  muito sumariamente, e forma deficiente, temos que dizê-lo, não procedeu à dita prognose/juízo, ou antecipação do impacto financeiro para o arguido da sujeição do mesmo a essa prisão suspensa condicionada, o que deveria ter acontecido à luz deste entendimento jurisprudencial uniformizado, não sendo de todo suficiente o que ali se exarou, nem sendo capaz de alcançar tal desiderato, conforme se pode ler no penúltimo parágrafo de folhas 1180 daquela sentença e vide “ipsis verbis”:- Assim, atento o disposto no art. 14.º, n.º 1 do R.G.I.T., e face ao elevado montante das quantias em dívida e à situação económico-financeira do arguido A…, entende este Tribunal determinar que a suspensão da execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão seja condicionada ao pagamento da prestação tributária em falta e acréscimos legais, no prazo de 4 (quatro) anos, a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença.

Tanto mais que factos resultaram provados nesta sede. Ou seja, lidas e relidas tais asserções, esta mais não constituem do que um “ produto branco” expoliado que está de qualquer juízo conclusivo, se assim se pode dizer. O Tribunal afirma: ao elevado montante das quantias em dívida e à situação económico-financeira, mas delas nada retira de concreto, ou melhor, não se pronuncia claramente nem emite um juízo sobre a razoabilidade da condição imposta ao recorrente, pois dizer, por exemplo, situação económica financeira ficamos sem saber efectivamente se o Tribunal quanto a ele emitiu uma opinião favorável ou desfavorável.

De facto, as disposições dos Art.ºs 11.º, n.º 7, do antigo RJIFNA e 14.º, n.º 1, do actual RGIT divergem substancialmente do regime do Código Penal, no respeitante aos deveres que podem condicionar a suspensão da execução da pena.

Em primeiro lugar, nem na redacção originária do Código Penal (Art.º 49.º) nem na emergente da revisão de 1995 (Art.º 51.º) se sujeita obrigatoriamente a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de quantia devida à vítima ou ao lesado.

Em segundo lugar, porque o Art.º 51.º, n.º 2, dispõe expressamente que os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir (princípio da razoabilidade).

No regime do RJIFNA, a partir de 1993, como agora no RGIT, a lei impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida; o n.º 7 do Art.º 11.º daquele condicionava e o Art.º 14.º, n.º 1, deste continua a condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das prestações em falta e legais acréscimos.

Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do art.º 51.º, n.º 2, do Código Penal.

A norma estabelece uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, tendo de ser a totalidade do devido sem possibilidade de uma qualquer redução.

É evidente a particularidade, a especial configuração que o regime tributário assume em relação ao conteúdo do art.º 51.º do Código Penal, divergindo em relação a vários pontos.

O Tribunal Constitucional tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por na matéria reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.

A conformidade constitucional da norma do Art.º 14.º, n.º 1, do RGIT sempre foi apreciada na óptica dos interesses do arguido, na perspectiva da violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade, e nunca analisada na perspectiva de limitação da liberdade de julgar.

As três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa, são: o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; sempre pode haver regresso de melhor fortuna; e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição; a revogação é sempre uma possibilidade e não dispensa a culpa do condenado; o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena (dos Acórdãos n.ºs 256/03 e 427/08).

O Supremo Tribunal de Justiça também afastou a arguição de inconstitucionalidade da citada norma do RGIT.

A análise da sentença impugnada deixa claro que não foi este o entendimento seguido pelo tribunal a quo, o qual não procedeu à análise ponderada da razoabilidade económica e financeira da condição prescrita ao recorrente. Isto é, a formulação de um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte deste, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.

Como se pode constatar, esta doutrina agora fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça é directamente transponível também para outros crimes fiscais, como o crime de fraude fiscal, que consagra uma idêntica estrutura penal (pena de multa ou prisão) e que se encontra também sujeito aos critérios gerais do mencionado Art.º 14.º, n.º 1, do RGIT.

De acordo com o Art.º 13.º do RGIT, na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.

Com a aposição da condição a que fica subordinada a suspensão pretende-se a reparação integral do prejuízo causado, mas não só.
A razoabilidade da condição tem, a nosso ver, de ser necessariamente avaliada e ponderada a montante, isto é, antes da declaração de imposição.

De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo prazo assinado para o cumprimento.

Ao decretar-se a imposição da condição deve ter-se uma imagem global do condicionamento, da real dimensão económica do dever imposto, que a opaca fórmula legal de jeito algum deixa transparecer, em que se incluem juros compensatórios e moratórios, com vista à reparação integral, plena, a que pode ser acoplada, caso o juiz o entenda, o montante previsto na segunda parte do n.º 1 do Art.º 14.º do RGIT, ou seja, uma «quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa».

Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.

Apenas como adjuvante de compreensão não será despiciendo como já se disse deitar um olhar sobre a situação pessoal e económica concreta do arguido.

Com a aplicação da condição não se trata de pagar determinada quantia à entidade credora para a compensar do prejuízo por ela sofrido. Mais do que isso, trata-se de um crédito garantido pelo jus puniendi com que o Estado está investido.

No caso, a arrecadação de receitas, complementos e seus derivados é assegurada através da imposição de uma sanção penal; a subordinação obrigatória da suspensão da execução da pena de prisão à exigência do pagamento do montante da dívida volve o instituto em instrumento de recuperação de dívidas fiscais, tornando -se numa medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente.

Ora, o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exactamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exactamente por isso a merecer maiores cuidados.

A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente.

Como afirmar a presença do pressuposto material de suspensão sem atender à carga imposta? Aliás, na lei de autorização de 1993 referia -se a possibilidade de suspensão com imposição de pagamento; não é a suspensão que é imposta; uma vez eleita a solução de suspensão, sabido é que terá necessariamente aqueles contornos, aquela forma de reparação e não outra, a reposição na íntegra do devido, mas não só, pois acresce o demais, ultrapassando a condenação e reportando-se aos legais acréscimos devidos, ou seja os juros.

Para que sobrevenha a aplicação da pena fixa em que consiste a «condição», necessário é que se opte pela suspensão; de contrário, que sentido teria falar em medida de sentido pedagógico e reeducativo?

O Art.º 14.º, n.º 1, alberga duas hipóteses. Uma primeira em que impõe o condicionamento e uma segunda, prevista na última parte do mesmo n.º 1, em que sem qualquer dúvida se abre a janela da liberdade de escolha e ponderação, pois caso o juiz o entenda, fica a suspensão condicionada ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12 de Maio de 2009, processo n.º 250/09, da 2.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 75.º vol., p. 209, onde se afirma: «a norma do artigo 14.º do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo».

A escolha da pena de substituição é um “prius” em relação à imposição da condição. Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa.

Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.

Nessa acepção, torna-se evidente que se terá de realizar essa tarefa adicional de previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução das prisões a que foi condenado o arguido A...,.

Tendo em conta o atrás exarado entende-se que face a tal dicotomia se deverá interpretar conjugadamente o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, pelo que resulta que nos crimes tributários ( a todos referidos no RGIT ), tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida (da formulação de um tal juízo de prognose pode resultar a conclusão de que o arguido não tem qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido legalmente, cumprir o dever que lhe é imposto por não ter, nem ter expectativas de vir a ter, meios financeiros que o permitam e nessa situação, a imposição de um tal dever representaria para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contrariaria o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal) vide aqui, e seguindo de perto o  teor do AC TRL de 26.02.2014 acessível in www.dgsi.pt/ , o qual sufragamos e dizendo nós, sejam eles punidos com pena de prisão ou multa ou só com pena de prisão.

A segunda questão que importa apreciar e resolver é a de saber se essa suspensão tem de ser condicionada ao pagamento nesse prazo da mencionada quantia ao Estado Português, como à primeira vista parece resultar do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT.

A este propósito é bom lembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão n.º 8/2012, fixou jurisprudência no sentido de que «[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia».

Ora, da formulação de um tal juízo de prognose pode eventualmente resultar a conclusão de que o arguido não tem qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido legalmente, cumprir o dever que lhe é imposto por não ter, nem ter expectativas de vir a ter, meios financeiros que o permitam, face aos factos apurados ou a apurar.

Nessa situação, a imposição de um tal dever representaria para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contrariaria o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal.

Daí que, a nosso ver, se deva interpretar conjugadamente o mencionado artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.

Sabemos que o tribunal “a quo” não se pronunciou concretamente sobre esta matéria, podendo dizer-se que se limitou a tomar como pressuposto que não devia ou não necessitava conhecer de tal matéria, fazendo-o por simples remissão para os pressupostos do Art.º 50.º do Código Penal e depois sumariamente com meras afirmações, sem que delas fizesse qualquer juízo sobre a razoabilidade da condição imposta aplicando o artº 14º nº 1 do RGIT.
(vide neste sentido os Ac  do TRE de 19.02.2013, AC TRL de 26.04.2014 e AC TRG de11.05.2015, todos disponíveis in www.dgsi.pt)

Mas a verdade é que se impunha fazer esse conhecimento.

Não o fazendo incorreu o mesmo tribunal numa omissão de pronúncia que consubstancia uma (invalidade) nulidade de sentença, pois deixou de pronunciar-se sobre uma questão que devia apreciar – cfr. Art.º 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

Constatando-se a imposição ao arguido/recorrente de uma pena de prisão declarada suspensa na sua execução, condicionada ao pagamento, no decurso do prazo da suspensão, dos valores indicados no artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, à luz da jurisprudência recentemente fixada no Ac. do STJ de 8/2002, de 12-09, a sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por omissão do «juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica».

Não obstante, não será necessário sair do quadro decorrente do referido vício, recorrendo ao reenvio do processo, uma vez que a sentença não é omissa quanto às condições sócio económicas do arguido/recorrente e, de todo o modo, tratando-se de matéria recondutível à pena, com vista à sanação da nulidade, não está o tribunal inibido de produzir prova suplementar, através da reabertura da audiência/artigos 369.º e 371.º, do Código de Processo Penal ( VIDE nesta sede os Acórdãos dos seguintes Tribunais:  TRC de 27.02.2013, AC TRE de 18.06.2013, AC TRL de 10.04.2013 e AC 27.10.16, todos disponíveis in,  www.dgsi.pt)

Esta omissão de pronúncia não pode ser suprida por esta via de recurso (mesmo por via do disposto no n.º 4 do Art.º 379.º do C.P.P.), pois esse exercício corresponderia à supressão de um grau de jurisdição no que respeita a esta precisa questão omitida.

A sentença deve ser anulada e os autos devem baixar ao tribunal de primeira instância para que nele se proceda à elaboração de nova sentença, conhecendo-se nela da questão mencionada que o mesmo tribunal deveria ter apreciado, e se necessário através da abertura do julgamento para realizar a prova adicional que habilite o tribunal com a recolha dos elementos probatórios de cariz sócio-económico do arguido A…, que sejam necessários e suficientes para a tarefa cognitiva tomada como omitida.

Nos termos expostos, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia quanto à não apreciação da questão mencionada (previsão e prognose do impacto actual e futuro do condicionamento financeiro a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado o arguido), devendo o tribunal “a quo”, pelo mesmo juiz, produzir uma nova sentença que dela conheça efectivamente, se necessário com a reabertura do julgamento para a produção dos meios de prova considerados suficientes e necessários para a consideração da situação sócio-económica actual e futura do arguido, como já se enfatizou.

Assim, torna-se por ora despiciendo o conhecimento dos demais temas que foram exarados pelos arguidos no presente recurso, o que se declara.

III–DISPOSITIVO

Em face do exposto acordam as juízas que compõem a 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
1.– Em julgar nula por omissão de pronúncia ( artº 379º nº  1 al.c) do C.P.P.) a nos sobreditos termos a sentença recorrida, nulidade que deve ser sanada com a prolação de nova sentença por parte do Tribunal recorrido se necessário com reabertura da audiência para produção de prova suplementar nos termos dos artigos 369º e 371º do C.P.P.;
2.– Não é devida tributação.
Notifique e D.N.



Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018



Filipa Costa Lourenço – (Processado integralmente em computador e revisto pela relatora, artigo 94º nº 2 do Código de Processo Penal/ versos em branco;)

Margarida V. Almeida
                                                                                       
Decisão Texto Integral: