Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11259/18.7T8SNT.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CREDOR HIPOTECÁRIO
RECONVENÇÃO
PRESTAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 O credor hipotecário relativo ao mútuo para a aquisição do imóvel objecto de processo especial de divisão de coisa comum não tem legitimidade para intervir na fase declarativa desta acção, só sendo obrigatória a sua intervenção no eventual caso de venda do bem na fase executiva, por serem aplicáveis as normas estabelecidas para o processo de execução na venda de bens nos processos especiais.

2 Na acção de divisão de coisa comum é admissível o pedido reconvencional para serem tidos em conta os pagamentos das prestações do empréstimo bancário para aquisição do prédio objecto de divisão efectuados pelo réu, com vista à sua adjudicação, tendo em atenção que, apesar de os pedidos da acção e da reconvenção seguirem formas de processo diferente, há interesse relevante para a apreciação conjunta das pretensões, que se afigura indispensável para a composição justa do litígio, devendo ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37º nºs 2 e 3 e 926º nº3 do CPC.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO.


S… intentou contra A… acção especial de divisão de coisa comum, alegando, em síntese, que autora e réu são os únicos comproprietários de uma fracção onde reside o réu, adquirida por ambos em 1996, quando ainda eram solteiros, tendo sido casados um com o outro de 23/09/1997 a 22/03/2009, não pretendendo a autora permanecer na indivisão e sendo a fracção insusceptível de divisão e com valor de cerca de 150 000,00 euros.

Concluiu pedindo a indivisão e a citação do réu para os termos da acção.

O réu contestou arguindo a excepção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário em virtude de não estar na acção o Banco…, entidade bancária titular do crédito hipotecário sobre o imóvel, devido pelo empréstimo para a respectiva aquisição e alegou que também não pretende permanecer em situação de compropriedade, reconhecendo igualmente que não é possível dividir a fracção em causa, não aceitando, porém, o valor do imóvel proposto pela autora, devendo este corresponder ao valor matricial de 68 220,00 euros até à necessária avaliação.

Em reconvenção, alegou que, apesar de a autora ser responsável pelo pagamento de 50% das prestações bancárias, tem sido sempre o contestante a proceder à sua amortização, encontrando-se todas pagas até à entrada em juízo da presente acção, em valor superior a 150 000,00 euros, faltando ainda amortizar 14 744,81 euros, pelo que lhe deve ser adjudicada a fracção.

Concluiu pedindo a procedência da excepção de ilegitimidade passiva com a absolvição da instância ou com a notificação da autora para fazer intervir o banco e, em reconvenção, pedindo a adjudicação do bem, por total pagamento pelo réu das prestações bancárias ao longo de 21 anos.

A autora replicou opondo-se à excepção de ilegitimidade e à admissibilidade da reconvenção, alegando ainda que pagou 50% das prestações durante cerca de 12 anos, até à separação, passando então o réu a pagar o empréstimo, mas usando a casa em seu exclusivo proveito e sendo o valor que vem sendo pago pelo réu inferior ao valor locativo da fracção, pelo que autora receberia mais pela sua quota parte num arrendamento a terceiros do que o valor que o réu tem vindo a suportar por ela.    
  
Concluiu pedindo o indeferimento da intervenção do credor hipotecário e a não admissão da reconvenção e que seja ordenada a avaliação da fracção para determinação dos seus valores de venda neste momento e o locatício desde 2009 até ao presente.

Oportunamente foi proferido despacho que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva e não admitiu o pedido de reconvencional, após o que declarou a indivisibilidade do prédio e fixou a contitularidade das partes no respectivo direito de propriedade em partes iguais.

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Inconformado, o réu interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com as seguintes questões:
- A sentença recorrida violou a lei e o direito, concretamente a disposição do artigo 8º nº3 do CC, ao qual está obrigada, ao ignorar o acórdão da Relação de Lisboa, que determina que a entidade bancária mutuante deve estar na acção, rejeitando o seu chamamento à demanda.
- O pedido reconvencional deve ser admitido, pois os depósitos bancários que o recorrente vinha efectuando sozinho até à instauração da acção e juntos aos autos, devem ser levados em conta, sendo até que a recorrida não comprovou o pagamento de qualquer prestação.
- Deve ser proferido acórdão que substitua a decisão recorrida e determine a citação da entidade bancária mutuante e a admissão do pedido reconvencional, por os depósitos bancários efectuados pelo recorrente serem relevantes para o objecto da acção de divisão de coisa comum.

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A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido com subida imediata nos autos e efeito suspensivo.

As questões a decidir são:
I)-Ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário. 
II)-Admissão do pedido reconvencional.

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FACTOS.

Os factos a atender são os que constam no relatório do presente acórdão e ainda o seguinte:
O imóvel objecto do pedido de divisão tem registada uma hipoteca para garantia de empréstimo bancário contraído para aquisição do imóvel (documento nº1 da petição inicial e acordo das partes).

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

IPreterição do litisconsórcio necessário passivo.
Pretende o apelante que seja revogada a decisão recorrida na parte em que julgou improcedente a excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo, por não ter sido demandado credor hipotecário do empréstimo bancário contraído para a aquisição do imóvel comum.  

A presente acção segue os termos do processo especial previsto nos artigos 925º e seguintes do CPC, que visa pôr termo à indivisão de coisa comum, por exercício do direito previsto no artigo 1412º do CC, de que o comproprietário não é obrigado a permanecer na indivisão.

A acção comporta duas fases, a primeira declarativa destinada a apurar a natureza comum da coisa, a sua natureza divisível ou indivisível em substância, bem como a fixação das quotas (artigos 925º e seguintes) e, após a definição dos direitos daí resultantes, tem lugar a segunda fase, que os executa, com o preenchimento dos quinhões por acordo ou por sorteio ou, se a coisa for indivisível em substância, com a adjudicação ou venda (artigo 929º).

Assim, apenas os comproprietários extraem utilidade da procedência ou improcedência do pedido na fase declarativa da acção, só eles tendo legitimidade para demandar ou ser demandadas à luz do artigo 30º do CC.

Havendo credor hipotecário, titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio como é o caso, o mesmo não tem interesse em intervir como parte, pois o seu direito não será afectado com a definição dos direitos a efectuar na fase declarativa do processo.

A intervenção do credor hipotecário só será legalmente obrigatória no eventual caso de venda do bem na fase executiva, face ao artigo 549º nº2 do CPC, que, regulando as disposições dos processos especiais, manda aplicar as formas estabelecidas para o processo de execução sempre que haja lugar a venda de bens, o que determina a aplicação dos artigos 788º e seguintes do mesmo código, com a citação dos credores com garantia real sobre o prédio a vender.

Improcede, portanto, a excepção de ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário e as alegações de recurso nesta parte.
  
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II)Admissão do pedido reconvencional.
Não se conforma também o apelante com a não admissão do pedido reconvencional que deduziu na contestação, no sentido de lhe ser adjudicado o bem por total pagamento das prestações bancárias ao longo de 21 anos.

O artigo 266º nº2 do CPC prevê que o réu possa deduzir reconvenção nas situações contempladas nas suas alíneas, nomeadamente na alínea a), por o pedido emergir do facto jurídico que serve de fundamento ao pedido ou à defesa.

Na reconvenção em apreço, está implícito o pedido de serem tidos oportunamente em conta os pagamentos que o réu alega ter efectuado por conta do empréstimo bancário para aquisição do imóvel comum, sendo este o pedido fundamental da reconvenção, com vista a obter a adjudicação do imóvel.

Neste sentido, o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento quer à acção como à defesa, o que é fundamento para a sua admissão, conforme previsto na alínea a) do nº2 do artigo 266º do CC: existência de um bem comum que ambas as partes pretendem dividir e que, por ser indivisível em substância, poderá ter de ser adjudicado, face ao que se pretende demonstrar o pagamento das prestações relativas ao empréstimo que possibilitaram a aquisição do bem.

Estabelece porém o nº3 do artigo 266º que não é admissível a reconvenção quando ao pedido do ré corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos dos nº2 e 3 do artigo 37º, com as necessárias adaptações, ou seja, sempre que haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litigio.

No presente caso, ao pedido da autora de divisão de coisa comum corresponde o processo especial dos artigos 925º e seguintes do CPC, enquanto o pedido de reconhecimento do crédito pelos pagamentos do mútuo bancário segue a forma do processo comum de declaração.

Contudo, não pode deixar de se considerar que a apreciação da existência ou inexistência de crédito de uma das partes por via  do pagamento das prestações do empréstimo bancário de aquisição do imóvel tem interesse relevante para o preenchimento das quotas, nomeadamente para fixação do valor de tornas, estando as duas questões intimamente ligadas e afigurando-se a apreciação conjunta indispensável para a justa composição litígio, devendo assim proceder-se à adaptação do processado determinando-se que os autos sigam os termos do processo comum, ao abrigo do artigo 926º nº3 do CPC (cfr. neste sentido acs STJ 1/10/2019, p. 385/18, RL 24/09/2015, p. 2510/14 e RG 25/09/2014, p. 260/12, todos em www.gsi,pt; em sentido contrário, no mesmo site, ac. RL 25/06/2020, p. 329/18).

Procedem, pois, as alegações de recurso nesta parte, devendo ser admitido o pedido reconvencional e determinar-se o prosseguimento dos autos com a forma de processo comum para a apreciação da reconvenção.

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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, revogar a sentença recorrida na parte em que não admitiu o pedido reconvencional e, consequentemente: a) admitir a reconvenção e determinar que os autos sigam os termos do processo comum para a sua apreciação; b) manter a sentença no restante.     
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Custas em ambas as instâncias na proporção de 2/3 para a autora apelada e 1/3 para o réu apelante.
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Lisboa,2021-02-04
                                                           
                                                                                                                                                                         
Maria Teresa Pardal                                                                     
Anabela Calafate 
António Santos