Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8242/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
CLÁUSULA CIF
ANULAÇÃO
FRETAMENTO DE NAVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- De harmonia com o artigo 5º/1 da Convenção de Bruxelas de 1968, que constitui excepção à regra geral  de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, em matéria contratual pode o réu ser demandado perante o Tribunal onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi  ou deve ser cumprida.
II- No caso de pedido de anulação de contrato de compra e venda de mercadoria, que foi entregue com defeito que a torna absolutamente imprópria para consumo, com indemnização pelos prejuízos sofridos pelo comprador, a obrigação que importa considerar, cujo incumprimento é fundamento do pedido, é a obrigação de entrega da mercadoria.
III- A mercadoria devia ser entregue em Lisboa tendo sido estipulada cláusula CIF.
IV- Por esta cláusula o vendedor escolhe o navio, paga o frete marítimo até ao porto mencionado e fornece um seguro marítimo contra o risco de perda ou de dano nas mercadorias durante o transporte, pagando a respectiva importância, assumindo o comprador os riscos decorrentes do transporte
V-  A estipulação de uma tal cláusula não contende com a determinação do lugar de entrega, não traduz acordo entre as partes no sentido de considerar que o local de entrega da mercadoria é o porto de embarque e não o porto de destino.
VI- O requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode também ser demandado se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer deles (artigo 6º/1 da Convenção), importando, no entanto, que os pedidos estejam conexionados de tal sorte que a instrução e julgamento simultâneos evitem soluções inconciliáveis, o que sucede quando é atribuído ao vendedor e à sociedade que intermediou a venda uma omissão dolosa, que implica uma concertação, no sentido de se vender mercadoria imprópria para consumo
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. C.[…] Lda. demandou no dia 6JAN1993 C. […] GMBH com sede em Hamburgo e Co. […] Lda. pedindo, anulado que seja o contrato de compra e venda de 333 sacos de semente de abóbora adquiridos à sociedade alemã por intermédio da Co.[…] a entregar em Lisboa com preço CIF, dado que a A. o celebrou na convicção de que a mercadoria se encontrava própria para consumo público e as RR agiram com dolo manifesto, a sua condenação no pagamento de 3.568.884$00 com juros legais a contar da citação.

2. O referido valor corresponde  aos danos emergentes correspondentes a 2.456.232$00, preço pago pela A. na aquisição da mercadoria que se encontrava totalmente imprópria para consumo conforme foi verificado à  descarga directa realizada em Nisa, acrescido das despesas alfandegárias no montante de 207.164$00 e das despesas de transporte até Nisa no montante de 81.900$00.

3. Da decisão que julgou o tribunal competente internacionalmente foi interposto recurso pela sociedade alemã por entender que, face ao disposto no artigo 2º da Convenção de Bruxelas, a acção devia ter sido proposta no território do seu domicílio.

4. A excepção contida a esta regra, que poderia ser aplicada ao caso, consta do artigo 5º/1 da Convenção que prescreve que “ o requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode ser demandado num outro Estado contratante em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida” e essa prestação característica é a obrigação de entrega da coisa.

5. A mercadoria devia ser entregue, nos termos do contrato celebrado, com a cláusula “CIF-Lisbon” significando o incoterm CIF que o vendedor tem a obrigação de pagar o transporte (até ao porto do destino) e o  seguro durante o transporte, transferindo-se o risco quando a mercadoria é colocada na embarcação do porto de origem sendo, portanto, este o lugar do cumprimento da obrigação de entrega.

Apreciando:

6. Na presente acção está em causa o pedido de indemnização do comprador, anulado o contrato, pelo prejuízo que este não sofreria se a compra não tivesse sido celebrada, indemnização que lhe assiste em caso de dolo que foi invocado (artigo 908.º do Código Civil).

7. O pedido resulta da circunstância de ter sido vendida mercadoria que se verificou encontrar-se, no local onde foi entregue ao comprador, num tal estado de impropriedade para o consumo que se impôs, por razões sanitárias, a sua destruição.

8. O pedido está, portanto, conexionado com o incumprimento contratual da vendedora que entregou mercadoria defeituosa com vício que impede a sua utilização (artigo 913.º do Código Civil).

9. No que respeita à noção de “ obrigação que serve de fundamento ao pedido” o acórdão de 6 de Outubro de 1976 do Tribunal de Justiça (caso 14/76) considerou que “ num litígio respeitante às consequências da violação pelo concedente de um contrato de concessão exclusivo tais como o pagamento de indemnizações ou a resolução do contrato, a obrigação que importa tem em referência para aplicação do artigo 5º/1 da Convenção é aquela que decorre do contrato da responsabilidade do concedente e cujo incumprimento é invocado para justificar o pedido de danos ou a resolução do contrato por parte do concessionário”.

10. Assim, também no caso em apreço o pedido de indemnização e anulação do contrato decorre do incumprimento por parte do vendedor da sua obrigação de entrega da mercadoria em condições.

11. No que respeita ao lugar onde a obrigação deva ser cumprida que o artigo 5º/1b) do Regulamento (CE) Nº 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000 veio explicitar ser, “ no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”, esse lugar de entrega de mercadoria situa-se em Lisboa (artigo 2º da petição) situando-se em Nisa os armazéns da A., onde a mercadoria foi descarregada em regime de descarga directa.

12. Na Proposta de Regulamento apresentada ao Conselho, a propósito do referido artigo 5º,  salientou-se que “ se conserva a regra prevista na Convenção de Bruxelas em matéria de obrigação contratual (a). No entanto, a fim de atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado em que corre o processo [9], o segundo parágrafo designa de forma autónoma o local de execução da "obrigação que serve de fundamento ao pedido", em duas hipóteses precisas. Para a venda de mercadorias, este lugar será aquele em que, por força do contrato, as mercadorias foram ou deveriam ter sido entregues. No que diz respeito à prestação de serviços, esse lugar será, ainda por força do contrato, aquele em que os serviços foram ou deviam ter sido prestados. Esta designação pragmática do local de execução, repousando num critério puramente factual, é sempre aplicável qualquer que seja a obrigação em litígio, incluindo quando esta obrigação consista no pagamento da contrapartida pecuniária do contrato. Aplica-se também quando o pedido incida sobre várias obrigações. É possível escapar a esta regra por meio de um acordo expresso sobre o local da execução”( ver Bruxelas, 14.07.1999 COM (1999) 348 final 99/0154 (CNS)

13. A cláusula CIF (cost, insurance and freight) acompanhada da designação do porto de destino consiste num incotermo de venda na origem, válido unicamente para o transporte marítimo ou por vias navegáveis interiores. Este incotermo especifica que o vendedor escolhe o navio, paga o frete marítimo até ao porto mencionado e fornece um seguro marítimo contra o risco de perda ou de dano nas mercadorias durante o transporte. É o vendedor que paga a importância, mas a mercadoria viaja, assumindo o comprador os respectivos riscos. O momento da transferência do risco ocorre com a  passagem da mercadoria  pelo filerete da embarcação no porto de embarque. O carregamento no navio e as formalidades aduaneiras de exportação correm por conta do vendedor.

14. A estipulação de uma tal cláusula não contende com a determinação do lugar de entrega, não traduz acordo entre as partes no sentido de considerar que o local de entrega da mercadoria é o porto de embarque e não o porto de destino. A cláusula CIF garante o comprador quanto ao risco de perda ou danificação da mercadoria durante o transporte.

15. É, aliás o que se refere no artigo 3º da petição onde se diz que “ nos termos do referido contrato, a mercadorias comprada pela A. seria entregue em Lisboa, estando já incluídas no preço a pagar todas as despesas até ao local de entrega” facto que não foi contrariado pela ora recorrente na contestação.

16. A ré, na contestação, argumentou de forma diversa da que consta das alegações de recurso, pois aí sustentou que “ a obrigação que serve de fundamento ao pedido é a obrigação de pagamento do preço das mercadorias adquiridas pela A. à 1ª Ré” e, sendo o preço uma obrigação pecuniária, o domicílio a considerar seria o domicílio do credor ao tempo do cumprimento, ou seja, Hamburgo.

17. Verifica-se ainda que, para além da ré, foi demandada outra sociedade  com domicílio em Portugal.

18. O artigo 6º/1 da Convenção de Bruxelas de 1968 (ver JOCE, 98/C 27/01), versão consolidada, prescreve que o requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode também ser demandado “ se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer deles”.

19. O Tribunal de Justiça no acórdão da 5ª secção de 27 de Setembro de 1988, Kalfelis contra Banco Schröder, Münchmeyer, Hengst e outros (caso 189/87) considerou que “a norma constante do artigo 6º, parágrafo 1, aplica-se sempre que os pedidos deduzidos contra os diferentes réus apresentam desde o início conexão, ou seja, sempre que haja interesse em instrui-los e julgá-los em conjunto a fim de evitar soluções que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente. Cabe à jurisdição nacional verificar em cada caso particular se esta condição se mostra satisfeita” 

20. Importa igualmente sublinhar, como se refere no Acórdão de 27-10-1998 (caso c-51/97) Reunião Europeia SA e Spliethoff's Bevrachtingskantoor BV, Capitão comandante do navio «Alblasgracht V002», “que importa em primeiro lugar constatar que a Convenção não se refere à noção de litígio indivisível, mas somente à que é mencionada no artigo 22º de ‘pedidos conexos’

21. Assim, tal como o Tribunal precisou no acórdão de 24 de Junho de 1981, Elefanten Schuh (150/80, Rec. p. 1671, ponto 19), o artigo 22º da Convenção tem por objecto regular os pedidos conexos quando as jurisdições de diferentes Estados são implicadas. Ele não é atributivo de competência; em particular, ele não estabelece a competência de um juiz de um Estado contratante para decidir sobre um pedido que apresente conexão com outra em que o Tribunal é demandado em conformidade com as regras da Convenção.

22. No referido acórdão, o Tribunal decidiu que o artigo 22º da Convenção é apenas aplicável quando as causas conexas são suscitadas perante as jurisdições de dois ou mais Estados contratantes.

23. Ora, resulta da causa que as acções separadas não foram propostas perante jurisdições de diferentes estados contratantes de modo que, em qualquer dos casos, as condições de aplicação do artigo 22º não se mostram verificadas.

24. Convém lembrar que em conformidade com o artigo 3º da Convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante não podem ser demandadas diante dos tribunais de um outro Estado contratante a não ser em virtude das regras enunciadas nas secções 2 a 5 do título II.

25. Entre elas figura o artigo 6º, ponto 1, da Convenção segundo o qual o réu pode ser demandado ‘se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer deles’

26. Assim, tal como resulta do próprio enunciado do artigo 6º, ponto 1, este não é aplicável a não ser que o litígio em causa seja instaurado nos tribunais do lugar do domicílio de um dos réus […]

27. A este propósito importa observar que o objectivo de segurança jurídica que a Convenção pretende assegurar não seria atingido se o Tribunal de um Estado contratante reconhecendo-se competente em relação a um dos demandados não domiciliado num Estado contratante, se permitisse demandar um outro domiciliado num Estado contratante perante o mesmo Tribunal, fora dos casos previstos pela Convenção, privando-o assim do benefício das regras constantes da Convenção

28. Importa acentuar que a excepção enunciada pelo artigo 6º, ponto 1, da Convenção, derrogando o princípio da competência das jurisdições do Estado do domicílio do demandado, deve ser interpretado de tal sorte que não possa pôr em causa a própria existência do princípio, designadamente permitindo ao requerente propor acção dirigida contra vários réus com o fim único de obstar a que um dos réus seja demandado nos tribunais do Estado onde se encontra domiciliado” […]

29. Assim, depois de acentuar que o artigo 6º, ponto 1, da Convenção, tal como o artigo 22º, tem por finalidade evitar decisões incompatíveis, o Tribunal decidiu no acórdão Kalfelis que, para a aplicação do artigo 6º, ponto 1, deve existir entre as diversas pretensões dirigidas pelo autor contra vários réus um laço de conexão, que revele interesse no julgamento conjunto, a fim de se evitar que as soluções possam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente.

30. A este propósito, o Tribunal decidiu, no mencionado acórdão, que um Tribunal competente nos termos do artigo 5º,ponto 3, da Convenção para conhecer  de um aspecto da causa que assente num fundamento delitual não é competente para conhecer dos outros aspectos da mesma causa que assentem em fundamentos não delituais.

31. Resulta do exposto que duas pretensões de uma mesma acção dirigidas contra diferentes réus e fundadas, uma na responsabilidade contratual e a outra na responsabilidade delitual, não podem ser consideradas conexionadas “

32. Esse elemento de conexão veio a ser expressamente referenciado no artigo 6º/1 do Regulamento (CE) N.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 e, assim sendo, sempre importaria, no caso, considerar, a não se verificar o fundamento atributivo de competência referenciado no artigo 5º/1, se, face à petição, poderia considerar-se existir esse elemento de conexão.

33. A recorrente, na contestação, referiu que a A. não alegou quaisquer factos perpetrados pela ré Co […] que “ sejam causa de responsabilidade pelo cumprimento defeituoso da prestação” considerando, por isso, que ela foi demandada ficticiamente a fim de se tentar atribuir competência aos tribunais portugueses.

34. A A., no entanto, declarando que o contrato de compra e venda foi celebrado por intermédio da Co.[…], veio (artigo 17º da petição) afirmar que “ as rés ao venderem à A. uma mercadoria que se encontrava imprópria para consumo público, omitindo esse facto, agiram com dolo”.

35. Não importando, para estes efeitos, considerar se a pretensão deve ou não deve proceder no que toca à 2ª ré demandada, certo é que a A. responsabiliza esta ré conjuntamente com a vendedora por saber que a mercadoria vendida se encontrava imprópria para o consumo, fundando-se a sua responsabilidade (da 2ª Ré) por ter intervindo num contrato de compra e venda sabendo que a mercadoria não estava em condições.

36. A prova, se ambas as acções fossem julgadas separadamente, de que houve dolo, ou seja, o conhecimento efectivo de que a mercadoria, quando vendida, não estava em condições, contraposta à prova de que não houve dolo, produzida noutra acção, é susceptível de revelar uma inconciliabilidade, pressupondo-se que o dolo ou a sua ausência pode sempre ser reconhecido em relação a todos os intervenientes.

37. Num caso como o figurado não parece que se possa excluir - estamos a falar de uma venda doloso de mercadoria avariada - uma prática concertada e, nessa medida, pode falar-se de soluções inconciliáveis. Não existindo tal prática concertada, não parece que ocorra tal inconciliabilidade, pois bem podia o vendedor desconhecer o estado da mercadoria, mas já o seu intermediário não o desconhecer, não se impondo, a ser assim, uma condenação ou absolvição conjuntas por serem diferentes os elementos integradores da respectiva responsabilidade

38. Face ao peticionado, há uma alegação que envolve uma actuação conjunta, ou seja, a omissão quanto a ambos os réus do estado em que se encontrava a mercadoria, contribuindo, assim, para que fosse celebrado um contrato de compra e venda.

Concluindo:

I- De harmonia com o artigo 5º/1 da Convenção de Bruxelas de 1968, que constitui excepção à regra geral  de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado, em matéria contratual pode o réu ser demandado perante o Tribunal onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi  ou deve ser cumprida.
II- No caso de pedido de anulação de contrato de compra e venda de mercadoria, que foi entregue com defeito que a torna absolutamente imprópria para consumo, com indemnização pelos prejuízos sofridos pelo comprador, a obrigação que importa considerar, cujo incumprimento é fundamento do pedido, é a obrigação de entrega da mercadoria.
III- A mercadoria devia ser entregue em Lisboa tendo sido estipulada cláusula CIF.
IV- Por esta cláusula o vendedor escolhe o navio, paga o frete marítimo até ao porto mencionado e fornece um seguro marítimo contra o risco de perda ou de dano nas mercadorias durante o transporte, pagando a respectiva importância, assumindo o comprador os riscos decorrentes do transporte
V-  A estipulação de uma tal cláusula não contende com a determinação do lugar de entrega, não traduz acordo entre as partes no sentido de considerar que o local de entrega da mercadoria é o porto de embarque e não o porto de destino.
VI- O requerido com domicílio no território de um Estado contratante pode também ser demandado se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer deles (artigo 6º/1 da Convenção), importando, no entanto, que os pedidos estejam conexionados de tal sorte que a instrução e julgamento simultâneos evitem soluções inconciliáveis, o que sucede quando é atribuído ao vendedor e à sociedade que intermediou a venda uma omissão dolosa, que implica uma concertação, no sentido de se vender mercadoria imprópria para consumo

Decisão: nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente

Lisboa,  18 de Janeiro de 2007

(Salazar Casanova)
(Ferreira de Almeida)
(Silva Santos)