Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2555/13.0TTLSB.L1-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
RECIBO
BOA-FÉ
EMPRESA PÚBLICA
CONSERVAÇÃO E MICROFILMAGEM DA DOCUMENTAÇÃO ARQUIVISTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I- Embora recaia sobre o A. /trabalhador o ónus de prova de ter auferido, ao longo de vários anos, determinadas prestações patrimoniais, e sendo os recibos de vencimento o meio mais indicado para o fazer, porque se trata de simples cidadão, que não tem obrigação de ter escrita organizada, poderá ser desculpável que tenha extraviado os recibos de vencimento de há 10 ou 15 anos.
II- A R., sendo uma sociedade comercial (até há muito pouco tempo, de capital inteiramente público) para além de estar obrigada à conservação da respectiva escrita e documentação pelo prazo de 10 anos, como estabelecido no art. 40º do C. Comercial, enquanto empresa pública tutelada pelo antigo Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, estava sujeita às normas de regulamentação sobre conservação e microfilmagem da documentação arquivística estabelecidas na Portaria 562/77, de 8/9, que no respectivo art. 7º remetia subsidiariamente para a P.597/75, de 9/10.
III- De acordo com o estabelecido no art. 2º nº 1 al. c) desta última portaria, as folhas de vencimentos, salários, férias ... podem ser inutilizados cinco anos após a aposentação ou morte de todos os funcionários nelas inscritos e, de acordo com o art. 3º nº 1 “os documentos referidos no artigo precedente poderão ser inutilizados antes dos prazos indicados, contanto que sejam microfilmados” . O que bem se compreende pois se, de acordo com o disposto pelos art. 38º da LCT, 381º do CT de 2003 e 337º do CT de 2009, o prazo de prescrição dos créditos emergentes do contrato de trabalho só se inicia após a cessação deste, é óbvio que as folhas de vencimentos e salários devem ser preservadas durante a vigência do contratos e até cinco anos após a respectiva cessação, dado que grande parte dos litígios, em regra se manifestam após a cessação dos contratos.
IV- É assim de concluir que a R. há-de ter ainda em arquivo, ou pelo menos em microfilme, cópia dos recibos de vencimento dos meses referidos pelo A., não lhe assistindo razão quando afirma que não tem obrigação legal de os manter. 
V- Considerando-se justificada a dificuldade do A. em provar as prestações auferidas nesses meses, e desculpável o facto de ter extraviado os recibos, devido ao lapso de tempo decorrido, atento o disposto pelo nº 4 do art. 7º do novo CPC, o requerimento do A. no sentido da notificação da R. para juntar aos autos cópia dos ditos recibos é de deferir, não sendo curial extrair para já quaisquer ilações da tomada de posição assumida pela R. na contestação sobre a questão, uma vez que quando a mesma o fez ainda não tinha recaído qualquer decisão sobre o requerimento, nem a mesma fora notificada com advertência para o preceituado pelo nº 2 do art. 417º.
VI- Só após a notificação nesses termos e se a mesma não juntar os documentos em causa no prazo que para tal lhe for estabelecido, nem o justificar, haverá que apreciar livremente o valor da recusa para efeitos probatórios ou, julgar invertido o ónus de prova, se se considerar que a mesma tornou culposamente impossível a prova desses factos que recai sobre o A. (art. 417º nº 2 do CPC e 344º nº 2 do CC).
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

AA intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho com processo comum contra “CTT – Correios de Portugal, S. A”, com sede na Rua de S. José 20, 1166-001 Lisboa,  pedindo que a ré seja condenada ao pagamento de € 7.214,79 correspondente  à média anual da retribuição por trabalho suplementar, nocturno, subsídio de divisão de correio e compensação por redução de horário de trabalho, não pagas na retribuição das férias, subsídio de férias e subsídio de Natal no período de 1999 a 2003, acrescida dos respectivos juros de mora, vencidos e vincendos desde a data dos vencimentos até efectivo e integral pagamento. Pediu, a final, que a R. fosse notificada, nos termos do art. 528º do CPC para juntar aos autos cópias dos recibos de vencimento do A. de meses de Fevereiro a Novembro de 1999, Janeiro a Abril e Junho a Dezembro de 2000, Janeiro a Março de 2001, Fevereiro a Abril e Novembro de 2001 e Abril, Junho, Setembro a Dezembro de 2003, dado já não os ter na sua posse, por os ter extraviado.
A ré contestou, alegando que ao contrário do alegado pelo A. os recibos de vencimento referidos não lhe são inacessíveis, porque lhe foram oportunamente entregues; não lhe foi possível localizá-los e não tem obrigação de os manter em arquivo por mais de 8 anos, tendo em conta o prazo fiscal e para a segurança social. Arguiu a excepção de prescrição dos juros e também se defendeu por impugnação, concluindo pela improcedência da acção.
O A. notificado da contestação, nada disse
Foi proferido despacho saneador que apreciando o requerimento do A. para que a ré fosse notificada para juntar os recibos de vencimento relativos aos meses indicados, foi o mesmo indeferido por, tratando-se de recibos de vencimentos, entregues ao autor, não ser exigível à ré mantê-los acessíveis tanto tempo (mais de dez anos), e incumbir ao autor o ónus de prova do que alega sendo-lhe, por isso, exigível que não os tivesse extraviado.
E, de seguida, foi proferida decisão de mérito, que julgou improcedente a acção, absolvendo a R.  do pedido.
O A., não conformado, apelou, formulando nas respectivas alegações as seguintes conclusões:
(…)
            A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência.
Neste tribunal o M.P. emitiu parecer favorável à procedência.

  O presente recurso incide, por um lado sobre o indeferimento da junção de documentos em poder da parte contrária, requerida pelo A. na petição e, por outro, sobre a decisão de mérito, mais precisamente sobre a questão de saber qual a periodicidade mínima que as retribuições acessórias têm de apresentar para poderem integrar a retribuição das férias e os subsídios de férias e de Natal.

Na 1ª instância foram considerados provados (por acordo), os seguintes factos[1]:
1. O autor foi admitido para prestar serviço sob a autoridade e direcção da ré em 08.12.1968[2], mantendo-se ao seu serviço, ininterruptamente, como carteiro, até 06.03.2013, data em que foi aposentado.
2. Exerceu[3] a sua actividade profissional em diversos locais da ré em Lisboa.
3. Entre 1999 e 2003 o autor recebeu da ré, a título de trabalho suplementar e nocturno, e outras prestações as quantias constantes dos quadros do artigo 20.º da p. i..
4. A ré sempre pagou ao autor a retribuição de férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal referentes ao trabalho prestado naqueles anos tendo em conta apenas a retribuição base e diuturnidades por ele auferidas.

            Apreciação
  Alega o recorrente que a Srª Juíza decidiu o seu requerimento de junção de documentos na posse da R., sem contraditório e inapropriadamente, não lhe tendo permitido produzir prova sobre a pertinência da junção e não tendo invocado qualquer norma legal ou convencional que refira que não era exigível à Ré manter os documentos por tanto tempo (dez anos), nem tendo permitido, por outro lado que fosse produzida prova em sentido contrário e não aplicando a partir daí, as normas relativas à inversão do ónus da prova.
        Não cremos que assista razão ao recorrente quanto à alegada violação do contraditório, porquanto, como mostra a carta de fls. 100, foi o mesmo notificado da contestação apresentada pela R., na qual esta tomava posição quanto ao requerimento do A. de junção de documentos, nos termos do art. 528º do CPC, alegando, por um lado que os mesmos não eram inacessíveis ao A., uma vez que lhe tinham sido entregues, cabendo-lhe a ele preservá-los e, por outro lado, que não lhe foi possível localizar os recibos que o A. solicitava e não estava legalmente obrigada a mantê-los em arquivo tanto tempo, não podendo o A. imputar à R. o ónus de os localizar.
   Não podemos pois de forma alguma considerar que a questão tenha sido decidida sem o A. sobre ela se poder pronunciar e só nesse caso se poderia concluir pela violação do contraditório. O A. pronunciou-se sobre a questão logo na própria petição, quando afirmou, no art. 19º, que a R. tinha (os recibos de vencimento) na sua posse, em sistema informático.
          Questão diferente, que não constitui propriamente violação do contraditório, é a de ter sido proferida decisão no saneador, partindo do pressuposto de que a R. não tem em seu poder cópia dos recibos em causa. Quanto a esta, outra questão já nos parece que assiste razão ao recorrente quando se insurge contra a decisão em si mesma (que considera inapropriada) de, indeferir o requerimento.
          Afigura-se-nos, efectivamente, e salvo o devido respeito, que tal decisão não terá sido suficientemente ponderada. Por um lado, porque parte do pressuposto que a R. respondeu que não tem os documentos (vide fls. 102) e, o que se constata, é que não foi isso que a R. alegou, mas apenas “não foi possível localizar os recibos” (vide fls. 62), acrescentando que não tem obrigação legal de os manter. A Srª Juíza alinhou por esta orientação, embora, como refere o recorrente, sem fundamentar legalmente porque que é que não é exigível à R. manter os recibos de vencimento tanto tempo (mais de 10 anos).
          Ora, não se podendo concluir (até por a R. o não ter alegado) que a R. não tivesse os recibos de vencimento do A., mas apenas que os não tinha localizado, e tendo o A. alegado que a R. os tinha “na sua posse em sistema informático” (cfr. art. 19º da p.i.), esse facto, se bem que instrumental, teria de ser considerado controvertido, determinando que o A. tivesse que provar que a R. tem cópias digitalizadas dos recibos cuja junção requereu, sendo pois prematura a decisão daquela questão (e, por consequência, da própria acção) no saneador, sem permitir que se fizesse tal prova. Nos termos do art. 595º nº 1 al. b) do CPC tal só deve suceder quando o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas. E não era essa a situação, no caso.
          Embora o ónus de prova da matéria que com os documentos em questão o A. pretendia provar[4] racaia inequivocamente sobre o próprio A., é lícito, à luz dos princípios da cooperação e da boa fé processual (art. 266º e 266º-A do CPC então vigente, 7º e 8º do novo CPC) que este, tendo-os extraviado, como o próprio declara, procure obtê-los através da colaboração da contraparte, se esta porventura os tem em seu poder, informatizados ou digitalizados, como refere.
          A um simples cidadão, como é o A., que não tem obrigação de ter escrita organizada, poderá ser desculpável que tenha extraviado os recibos de vencimento de há 10 ou 15 anos.
          A R.,  sendo uma sociedade comercial (até há muito pouco tempo de capital inteiramente público) para além de estar obrigada à conservação da respectiva escrita e documentação pelo prazo de 10 anos, como estabelecido no art. 40º do C. Comercial, enquanto empresa pública estava sujeita às normas de regulamentação sobre conservação e microfilmagem da documentação arquivística estabelecidas na Portaria 562/77, de 8/9, que no respectivo art. 7º remetia subsidiariamente para a P.597/75, de 9/10. De acordo com o estabelecido no art. 2º nº 1 al. c) desta última portaria, as folhas de vencimentos, salários, férias ... podem ser inutilizados cinco anos após a aposentação ou morte de todos os funcionários nelas inscritos e, de acordo com o art. 3º nº 1 “os documentos referidos no artigo precedente poderão ser inutilizados antes dos prazos indicados, contando que sejam microfilmados” . O que bem se compreende pois se, de acordo com o disposto pelos art. 38º da LCT, 381º do CT de 2003 e 337º do CT de 2009, o prazo de prescrição dos créditos emergentes do contrato de trabalho só se inicia após a cessação deste, é óbvio que as folhas de vencimentos e salários devem ser preservadas durante a vigência do contratos e até cinco anos após a respectiva cessação, dado que grande parte dos litígios, em regra se manifestam após a cessação dos contratos.
  Tudo isto permite concluir que a R. há-de ter ainda em arquivo, ou pelo menos em microfilme, cópia dos recibos de vencimento dos meses referidos pelo A. no art. 19º da p.i., pelo que não lhe assiste razão quando afirma que não tem obrigação legal de os manter. 
Ora afigurando-se-nos justificada a dificuldade do A. em provar as prestações auferidas nesses meses, e desculpável o facto de os ter extraviado, devido ao lapso de tempo decorrido, entendemos, atento o disposto pelo nº 4 do art. 7º do novo CPC, que o requerimento formulado na p.i. ao abrigo do disposto no art. 528º do CPC (actualmente art. 429º do novo CPC) deveria ter sido deferido, não sendo curial extrair para já quaisquer ilações da tomada de posição assumida pela R. na contestação sobre a questão, uma vez que quando a mesma o fez ainda não tinha recaído qualquer decisão sobre o requerimento, nem a mesma fora notificada com advertência para o preceituado pelo nº 2 do art. 417º. Só após a notificação nesses termos e se a mesma não juntar os documentos em causa no prazo que para tal lhe for estabelecido, nem o justificar, haverá que apreciar livremente o valor da recusa para efeitos probatórios ou, julgar invertido o ónus de prova, se se considerar que a mesma tornou culposamente impossível a prova desses factos que recaia sobre o A. (art. 417º nº 2 do CPC e 344º nº 2 do CC).
          Entendemos, em face do que antecede, que o recurso merece provimento no que tem a ver com o despacho que indeferiu o requerimento para notificação da R., nos termos do art. 528º do CPC (429º do novo CPC) para juntar aos autos cópia dos recibos de vencimento identificados no art. 19º da p.i., o qual deve ser revogado e substituído por outro de sentido contrário, que fixe prazo para a junção.
         Consequentemente fica sem efeito a decisão que conheceu do fundo da causa e prejudicado o recurso quanto a essa parte.
Só depois de decorrido o prazo a fixar para a junção dos documentos requeridos  e consoante a atitude da R. e a valoração probatória que dela se fizer, em conformidade com o estabelecido pelo nº 2 do art. 417º do CPC, haverá que fixar a matéria de facto, mormente quanto ao facto alegado no art. 7º da p.i., procurando tanto quanto possível, concretizá-lo em termos quantitativos, de forma a completar os quadros que constam do art. 20º, será proferida nova decisão sobre o mérito.

          Decisão
   Pelo exposto se acorda em julgar procedente o recurso na parte em que incidiu sobre o despacho que indeferiu o requerimento do A. para notificação da R., nos termos do art. 528º do CPC (429º do novo CPC), para juntar aos autos cópia dos recibos de vencimento identificados no art. 19º da p.i., revogando-o e, em sua substituição, se deferindo tal requerimento e  fixando em 20 dias o prazo para a R. proceder à requerida junção, ordenando-se ainda  que a respectiva notificação seja efectuada com advertência para o preceituado pelo art. 417º nº 2 do CPC.
          No demais fica prejudicada a apreciação do recurso, face à anulação da decisão de mérito que necessariamente decorre da decisão antecedente.
          Custas pela R.
          Lisboa, 4 de Junho de 2014

          Maria João Romba
          Paula Sá Fernandes
          Filomena Manso
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[1] Tendo-se consignado que se optou por não incluir nos mesmos os quadros que constam da p. i. pelo facto de os mesmos desformatarem, sendo que os valores neles constantes não foram impugnados.
[2] Por manifesto lapso de escrita, que aqui se rectifica, a sentença refere 1967, quando a petição indica 1968, o que foi expressamente aceite na contestação.
[3] Eliminamos a expressão “…e exerce” por entendermos que só por lapso de escrita ficou a constar da sentença, já que não corresponde ao que foi alegado no art. 3º da p.i.. e expressamente aceite pela R. n art. 42º da contestação.
[4] Que será, pelo menos o alegado no art. 7º da p.i. , ou seja, “…que pelo menos desde 1999 (o A.) sempre efectuou por ordem e no interesse  da R. trabalho suplementar e nocturno todos os meses”.
Teria sido mais curial que o A., antes de propor esta acção, tivesse proposto a acção especial para apresentação de documentos, actualmente prevista no art. 1045º do CPC (ao tempo no art. 1476º), só avançando para esta acção quando dispusesse de todos os dados factuais sobre as prestações que auferiu no período em causa e não, como fez, invocando ter prestado trabalho nessas condições todos os meses do dito período, mas concretizar apenas a parte das prestações auferidas  de que tinha prova documental.
Decisão Texto Integral: