Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2816/19.5YRLSB-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO ESTÁVEL
BRASIL
ESCRITURA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Uma “escritura pública de declaração” de união estável brasileira pode ser objecto do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira previsto nos arts. 980º e seguintes do Cód. Proc. Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
A e B , residentes na Rua das Camélias nº …,  Caputera, na cidade de Arujá, no Estado de São Paulo, Brasil, vêm requerer a revisão e confirmação da escritura pública declaratória de união estável, outorgada em 18 de Novembro de 2010, no Brasil, a qual formalizou a união estável entre os Requerentes.
Cumprido o disposto no 982º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve ser indeferido o pedido formulado, uma vez que o “documento apresentado não contém qualquer decisão nem qualquer declaração da entidade administrativa que lavrou a escritura pública que ateste os factos ali descritos, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira”.
O Tribunal é competente e não ocorrem nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.
II – QUESTÃO A DECIDIR
A questão a decidir consiste em verificar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença estrangeira apresentada.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com fundamento no documento junto aos autos a fls. 10/11 pelos Requerentes, dão-se como provados os seguintes factos com relevância para esta decisão:
1 - No dia 18 de Novembro de 2010, os Requerentes compareceram perante o Tabelião do 1º Ofício de Notas da cidade de Guarulhos, Estado de São Paulo, Brasil, onde foi lavrada Escritura Pública de União Estável, nos termos da qual pelos Requerentes foi declarado o seguinte: “1) Que convivem maritalmente desde 30 de novembro de 1995; e, estabeleceram uma união estável, numa convivência duradoura e continua, estabelecida com objetivo de constituição de família, sendo equiparada ao casamento, de acordo com o artigo 1723 do Código Civil Brasileiro aprovado pela Lei 10.406 de 10/01/2002, com o artigo 226 parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988 e com o disposto nas Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96, sendo que a mesma é minha dependente economicamente; 2) Que aplicar-se-ão as relações patrimoniais no que couber, o regime da Comunhão Parcial de Bens; 3) Que, os bens móveis e imóveis adquiridos por qualquer um, na Constância da união estável e a titulo oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais; salvo se adquiridos por ambos e houver estipulação contraria ao presente: 4) Desta união há dois filhos em comum (…);  5) Que fazem a presente declaração nos termos acima, para todos os fins e efeitos de direito, especialmente os de sucessão hereditária e universal, bem como os previdenciários e outros que a lei ou determinação judicial venham a abrigar, e, 6) inclusive para fins de dependente em Convênio Médico e Seguradoras de Planos de Saúde, Companhias de Seguradoras, Cooperativas, Associações, Sindicatos, Clubes Sociais, Instituto Nacional de Seguro Social-INSS, imposto de renda, Sistema Financeiro da Habitação, Caixas Econômicas, e outros que se façam necessários. E, de como assim disseram e a pedido lhes lavrei a presente que feita e lida em voz alta, acharam-na em tudo conforme, outorgaram, aceitaram e assinam, com a despensa de testemunhas instrumentárias”.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
De acordo com o disposto no art. 980º do Cód. Proc. Civil, para que uma decisão proferida no estrangeiro seja confirmada é necessário:
a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) que o réu tenha sido regularmente citado para acção nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Face ao disposto no art. 983º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, o pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no citado art. 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do art. 696º do mesmo diploma legal.
O art. 984º do Cód. Proc. Civil estipula que “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”.
O Ministério Público opõe-se à procedência do pedido formulado, alegando que o “documento apresentado não contém qualquer decisão nem qualquer declaração da entidade administrativa que lavrou a escritura pública que ateste os factos ali descritos, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira”.
Sobre a mesma questão de direito suscitada nestes autos, pronunciou-se, entre outros, o recente Acórdão desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019, Luis Filipe Sousa, acessível em www.dgsi.pt, onde, de forma magistral e insigne, se escreve:
“Tendo em vista tomar posição sobre a questão, comecemos pela análise do regime jurídico brasileiro atinente à união de facto.
Assim, nos termos do Código Civil Brasileiro, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm:
TÍTULO III DA UNIÃO ESTÁVEL
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521 ; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2 o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
Nos termos do art. 215º do Código Civil Brasileiro, a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.
Conforme refere Ronan Cardoso Naves Neto, A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, 2017, pp. -7473, «(…)a escritura pública declaratória de união estável, apesar de não possuir presunção absoluta de veracidade, serve de prova pré-constituída da existência da união estável, uma vez que incide fé pública sobre a declaração dos companheiros no tocante à convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. Assim, constitui instrumento apto a disciplinar as relações patrimoniais entre os conviventes. (…) Não obstante a força probante da escritura pública declaratória de união estável, certo é que apenas o registro de tal documento no registro público é que operará efeitos em relação a terceiros e cognoscibilidade das demais pessoas acerca de tal relacionamento familiar. Repise-se que, embora destituído dos atributos dos documentos públicos, é possível que os conviventes formalizem seu relacionamento afetivo através de documento particular devidamente assinado. Todavia, imprescindível é que tais documentos tenham ingresso no registro público para que operem efeitos contra terceiros de boa-fé.»
No que tange ao registo de tal escritura pública, rege o Provimento nº 37 do Conselho Nacional de Justiça, com os seguintes termos:
«O CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA em exercício, Conselheiro Guilherme Calmon, no uso de suas atribuições legais e regimentais;
CONSIDERANDO que compete ao Conselho Nacional de Justiça o controle da atuação administrativa do Poder Judiciário (art. 103-B, § 4º, I, II e III, da Constituição Federal);
CONSIDERANDO que compete ao Poder Judiciário a fiscalização dos serviços notariais e de registro (art. 103-B, § 4º, I e III, e art. 236, § 1º, ambos da Constituição Federal);
CONSIDERANDO que compete ao Corregedor Nacional de Justiça expedir provimentos, e outros atos normativos, destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro (art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça);
CONSIDERANDO a existência de regulamentação, pelas Corregedorias Gerais da Justiça, do registro de união estável no Livro "E" do Registro Civil das Pessoas Naturais;
CONSIDERANDO a conveniência da edição de normas básicas e uniformes para a realização desse registro, visando conferir segurança jurídica na relação mantida entre os companheiros e desses com terceiros, inclusive no que tange aos aspectos patrimoniais;
CONSIDERANDO que o reconhecimento da necessidade de edição dessas normas encontra amparo em requerimento nesse sentido formulado pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais - ARPENBRASIL, autuado como Pedido de Providências nº 0006113-43.2013.2.00.0000;
CONSIDERANDO o disposto na Resolução nº 175, de 14/05/2013, do Conselho Nacional de Justiça;
RESOLVE:
Art. 1º.
É facultativo o registro da união estável prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, mantida entre o homem e a mulher, ou entre duas pessoas do mesmo sexo.
Art. 2º. O registro da sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como da escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, será feito no Livro "E", pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde houver, no 1º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tiveram seu último domicílio, devendo constar: a) a data do registro; b) o prenome e o sobrenome, a data de nascimento, a profissão, a indicação da numeração da Cédula de Identidade, o domicílio e residência de cada companheiro, e o CPF se houver; c) prenomes e sobrenomes dos pais; d) a indicação das datas e dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais em que foram registrados os nascimentos das partes, os seus casamentos ou uniões estáveis anteriores, assim como os óbitos de seus anteriores cônjuges ou companheiros, quando houver, ou os respectivos divórcios ou separações judiciais ou extrajudiciais se foram anteriormente casados; e) data do trânsito em julgado da sentença ou do acórdão, número do processo, Juízo e nome do Juiz que a proferiu ou do Desembargador que o relatou, quando o caso; f) data da escritura pública, mencionando-se no último caso, o livro, a página e o Tabelionato onde foi lavrado o ato; g) regime de bens dos companheiros, ou consignação de que não especificado na respectiva escritura pública ou sentença declaratória.
Art. 3º. Serão arquivados pelo Oficial de Registro Civil, em meio físico ou mídia digital segura, os documentos apresentados para o registro da união estável e de sua dissolução, com referência do arquivamento à margem do respectivo assento, de forma a permitir sua localização.
Art. 4º. Quando o estado civil dos companheiros não constar da escritura pública, deverão ser exigidas e arquivadas as respectivas certidões de nascimento, ou de casamento com averbação do divórcio ou da separação judicial ou extrajudicial, ou de óbito do cônjuge se o companheiro for viúvo, exceto se mantidos esses assentos no Registro Civil das Pessoas Naturais em que registrada a união estável, hipótese em que bastará sua consulta direta pelo Oficial de Registro.
Art. 5º. O registro de união estável decorrente de escritura pública de reconhecimento ou extinção produzirá efeitos patrimoniais entre os companheiros, não prejudicando terceiros que não tiverem participado da escritura pública.
Parágrafo único. O registro da sentença declaratória da união estável, ou de sua dissolução, não altera os efeitos da coisa julgada previstos no art. 472 do Código de Processo Civil.
Art. 6º. O Oficial deverá anotar o registro da união estável nos atos anteriores, com remissões recíprocas, se lançados em seu Registro Civil das Pessoas Naturais, ou comunicá-lo ao Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais em que estiverem os registros primitivos dos companheiros.
§ 1º. O Oficial averbará, no registro da união estável, o óbito, o casamento, a constituição de nova união estável e a interdição dos companheiros, que lhe serão comunicados pelo Oficial de Registro que realizar esses registros, se distinto, fazendo constar o conteúdo dessas averbações em todas as certidões que forem expedidas.
§ 2º. As comunicações previstas neste artigo poderão ser efetuadas por meio eletrônico seguro, com arquivamento do comprovante de envio, ou por outro meio previsto em norma da Corregedoria Geral da Justiça para as comunicações de atos do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Art. 7º. Não é exigível o prévio registro da união estável para que seja registrada a sua dissolução, devendo, nessa hipótese, constar do registro somente a data da escritura pública de dissolução.
§ 1º. Se existente o prévio registro da união estável, a sua dissolução será averbada à margem daquele ato. § 2º. Contendo a sentença em que declarada a dissolução da união estável a menção ao período em que foi mantida, deverá ser promovido o registro da referida união estável e, na sequência, a averbação de sua dissolução.
Art. 8º. Não poderá ser promovido o registro, no Livro E, de união estável de pessoas casadas, ainda que separadas de fato, exceto se separadas judicialmente ou extrajudicialmente, ou se a declaração da união estável decorrer de sentença judicial transitada em julgado.
Art. 9º. Em todas as certidões relativas ao registro de união estável no Livro "E" constará advertência expressa de que esse registro não produz os efeitos da conversão da união estável em casamento.
Art. 10. Este Provimento não revoga as normas editadas pelas Corregedorias Gerais da Justiça, no que forem compatíveis.
Art. 11. As Corregedorias Gerais da Justiça deverão dar ciência deste Provimento aos Juízes Corregedores, ou Juízes que na forma da organização local forem competentes para a fiscalização dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, e aos responsáveis pelas unidades do serviço extrajudicial de notas e de registro.
Art. 12. Este Provimento entrará em vigor na data de sua publicação. Brasília - DF, 07 de julho de 2014. Conselheiro Guilherme Calmon, Corregedor Nacional de Justiça, em exercício.
Nos termos do Artigo 733º do Código de Processo Civil Brasileiro de 2015:
Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual da união estável , não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731º.
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
Desta breve incursão no ordenamento jurídico brasileiro, infere-se o seguinte. Em primeiro lugar, a união estável é erigida à qualidade de entidade familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas. Essa escritura pública – como foi o caso – integra um verdadeiro contrato, designadamente com disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros. Esse contrato pode ser objeto de registo, colhendo então efeitos perante terceiros. A lei processual equipara a extinção consensual da união estável aos casos de divórcio consensual, podendo efetuar-se todos por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial.
Ou seja, a ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial. E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras que os determinam sejam objeto de homologação judicial.
Nos termos do artigo 1º da Convenção da Haia sobre Reconhecimento de Divórcios e Separações de Pessoas (Resolução da Assembleia da República n.º 23/84), «A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento num Estado contratante de divórcios e separações de pessoas obtidas noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou outro oficialmente reconhecidos neste último Estado e que aí produzam efeitos legais» (negrito nosso). Ou seja, a aplicação da convenção não está condicionada à existência de um processo judicial mas de um procedimento que seja reconhecido no noutro Estado e que aí produza efeitos legais. Esta Convenção reforça o que acima foi dito no sentido de que a interpretação do conceito de sentença/decisão não deve ficar limitado ao quadro concetual do Estado onde se procede à sua revisão.
Ora, conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.6.2013, Granja da Fonseca, 623/12:
« (…) tal como se considerou no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2013[1], abordando um caso idêntico ao dos autos, “a interpretação do acórdão sob recurso do que seja uma decisão da autoridade administrativa estrangeira peca por demasiado restritiva”.
“O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados”.
“Do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa”.
“Se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo”.
“Não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970)”.
Acresce que se, assim não fosse, “estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade” (…)»
Daqui resulta que, sendo admissível a formalização da união estável no Brasil através de escritura pública perante tabelião, como foi o caso, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que caucionam o ato, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira.
Com efeito, no Brasil, a atividade notarial está regida no art. 236º da Constituição nestes termos:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
 §1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
Refere a este propósito Ronan Cardoso Naves Neto, A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, que:
 «As atividades notariais e de registro, portanto, são transferidas ao particular pelo Estado através de um ato de delegação administrativa» (p. 51).
 « (…)a prestação dos serviços notariais e de registro devem observar os princípios gerais que regem a Administração Pública, a saber, supremacia do interesse público, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência» (p. 55).
«(…)pode-se afirmar que o entendimento mais coerente e consentâneo com o Supremo Tribunal Federal é que, de acordo com a Constituição da República de 1988, a natureza jurídica dos serviços notariais e de registro corresponde a uma função pública transferida ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis, após aprovação em concurso público de provas e títulos, para ser exercido em caráter particular, sujeito à fiscalização por parte do Poder Judiciário, seja através das Corregedorias Gerais de Justiça dos estados, seja através dos juízes corregedores locais» (p. 58)
Em suma, a intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis. Ou seja, a intervenção do notário assume a natureza de caucionamento do ato em causa, na sequência de delegação administrativa sui generis por parte do Estado brasileiro. A intervenção notarial permite que o ato despolete efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objeto de declaração judicial em sentido estrito, estando mesmo a atividade notarial sujeito à fiscalização do Poder Judiciário. (…)
Flui de todo o exposto, que a escritura pública em causa integra ainda uma decisão sobre direitos privados para efeitos do art. 978º, nº1, do Código de Processo Civil, estando sujeita a revisão.
No que tange a tal escritura, inexistem dúvidas sobre a autenticidade das declarações de vontade em causa nem sobre a inteligibilidade delas. O seu reconhecimento não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Inexistem elementos que indiquem que essas declarações tenham sido tomadas por órgão cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, ou que esteja pendente ou já tenha sido proferida outra decisão sobre a mesma questão em Portugal.”.
Concorda-se inteiramente com esta orientação (cfr., no mesmo citado, Ac. do TRL de 21/11/2019, Pedro Martins, acessível in www.dgsi.pt), face ao bem fundado da mesma, pelo que aqui se perfilha igual entendimento.
Assim, e sem necessidade de maiores considerações, conclui-se pela procedência da pretensão dos Requerentes.
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar procedente a pretensão dos Requerentes e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a mencionada escritura pública de declaração de união estável outorgada em 18 de Novembro de 2010, no Tabelião do 1º Ofício de Notas da cidade de Guarulhos, Estado de São Paulo, Brasil.
Valor da causa: € 30.000,01.
Custas pelos Requerentes – cfr. art. 527º, nº1, parte final, do Cód. Proc. Civil.
Registe e notifique.
Oportunamente, cumpra o disposto no art. 78º do Código de Registo Civil.
*
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2020
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro