Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
168/17.7YUSTR.L1-3
Relator: MARIA MARGARIDA ALMEIDA
Descritores: ADMISSIBILIDADE RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.– No processo contra-ordenacional, inexistindo norma especial que o afaste, é aplicável aos recursos o disposto no artº 73º do DL nº 433/82, de 27 (RGCO).

II.– Nesse âmbito, apenas é admissível recurso para o TRL das decisões finais.

III.– É final, e não interlocutória, a decisão que, em sede de sentença de apreciação da impugnação judicial interposta, conhece de questões suscitadas naquele recurso, por as mesmas não terem carácter meramente instrumental em relação à decisão final.

III.– Tendo o tribunal “a quo” proferido decisão em que decidiu, em sede final, algumas das questões propostas pelos recorrentes e, no restante, determinou a nulidade da decisão administrativa, a admissibilidade do recurso interposto pelos arguidos quanto às primeiras questões ficará dependente de decisão final a proferir quanto à restante questão de fundo (condenação ou absolvição da recorrente).

IV.– A admissibilidade deste recurso fica então dependente de se verificarem os requisitos previstos no artº 73 do RGCO e, se puder vir a ser admitido , terá que subir, ser instruído e julgado conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa, conhecendo da restante matéria que a sentença de 19 de Junho de 2017 não conheceu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

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I–Relatório:


1.– Em 19 de Junho de 2017, foi proferida sentença que declarou nula a decisão administrativa, considerando improcedentes os demais fundamentos do recurso de impugnação apreciados.

2.– Inconformada, veio a M. – SCM, s.a. interpor recurso, relativo à parte da decisão que julgou improcedentes as nulidades por si arguidas, pedindo a revogação da sentença, nesta parte e a sua substituição por outra que declare a nulidade da prova recolhida nestes autos daí se retirando as necessárias consequências.

3.– O recurso foi admitido, por despacho de fls. 1679, tendo sido determinada a sua subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

4.– O Mº Pº e a Anacom apresentaram resposta a esse recurso, suscitando ambos a questão prévia da irrecorribilidade do recurso, o que determinaria a sua rejeição. Suscita ainda a Anacom a ilegitimidade da recorrente, defendendo, subsidiariamente, a improcedência do recurso.

5.– Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs visto.

II.– Ponto prévio.
Pese embora a questão que se passará a apreciar pudesse ser decidida por despacho proferido pela relatora - nos termos do artº 417 nº6 al. b) do C.P. Penal - a verdade é que desse despacho cabe reclamação para a conferência, atento o vertido no nº8 da mesma disposição legal.
Assim, e uma vez que o despacho que admitiu o recurso decidiu que o mesmo subiria nos próprios autos e não em separado, por razões de mera economia processual, atendendo-se ainda à natureza e aos prazos substantivos e adjectivos relativos a este tipo de infracções, opta-se por se proceder ao conhecimento da questão da admissibilidade do recurso directamente em conferência, nos termos do artº 420 do C.P. Penal.

III–Apreciando.
Da admissibilidade do recurso interposto

1.– Façamos uma breve resenha do desenrolar dos autos:
a.- Por decisão de 9 de Fevereiro de 2017, a ANACOM (Autoridade Nacional de Comunicações) condenou a arguida na coima única de € 120 000 pela prática de cinco contra-ordenações graves p. e p. pelo art. 113º, nº 2, h) da LCE, por violação das obrigações previstas no nº 6 do Regulamento nº 169/2013, de 15/05/2013 e em conformidade com o disposto no art. 37º, nº 1, a) da LCE, das quais quatro a título negligente e uma a título doloso. A ANACOM condenou ainda a arguida na sanção de admoestação pela prática de dez contra-ordenações p. e p. pela mesma norma da LCE por violações idênticas mas respeitantes à prestação de informações incompletas.
b.- Inconformada, a arguida recorreu desta decisão administrativa para o TCRS.
c.- A ANACOM manteve a decisão administrativa.
d.- O Ministério Público apresentou os autos para distribuição como recurso de impugnação judicial.
e.- O recurso da arguida foi admitido liminarmente e, após realização de audiência de julgamento, no dia 19/06/2017, foi proferida sentença.

2.– Na parte que ora nos importa, o TCRS pronunciou-se nos seguintes termos:
(…)

III.– QUESTÕES PRÉVIAS.
3.1.- Da nulidade da prova obtida em violação do princípio nemo tenetur, da nulidade da prova recolhida pelos agentes de fiscalização e da valoração probatória dos autos de diligências de fiscalização.
Remetendo para os fundamentos de defesa expostos no relatório, a arguida/recorrente veio sindicar a validade da prova recolhida e utilizada pela ANACOM na motivação da matéria de facto invocando a preterição do princípio nemo tenetur – ponto 2.2. do recurso de impugnação - cfr. artigos 47.º a 82.º do recurso de impugnação; e a proibição de prova relativa aos autos de diligências de fiscalização - ponto 2.3. do recurso de impugnação - cfr. artigos 83.º a 117.º do recurso de impugnação, e ponto 2.4. do recurso de impugnação - cfr. artigos 118.º a 148.º.
Vejamos cada um destes fundamentos, previamente à fundamentação da matéria de facto e da convicção probatória.
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3.1.1.- A sequente questão decidenda a tratar é saber até que ponto a arguida/recorrente deste processo pode ser sancionada com base em prova recolhida através do suposto exercício de poderes de regulação, fiscalização e supervisão da autoridade administrativa.
O iter processual/probatório a relevar para o conhecimento da questão é o seguinte:
- O presente processo tem por base elementos recolhidos no âmbito de quatro acções de fiscalização distintas (duas acções de fiscalização à PTC e duas acções de fiscalização à TMN), sendo as acções de fiscalização feitas em duas rondas subsequentes no tempo, e tendo, ainda posteriormente, a ANACOM recolhido elementos, no âmbito dos seus poderes de fiscalização, junto de cada uma das empresas;
- Após essa segunda ronda e após a conclusão pela existência de indícios de incumprimento do Regulamento n.º 169/2013, foram enviados, em 12 de Agosto de 2014, pedidos de informação à M. e à PTC, conforme fls. 157 e 811 dos autos, nos quais era mencionado que os mesmos tinham sido elaborados nos termos do disposto nos artigos 108.º e 109.º, n.º 1, alínea c) da LCE, i.e. ao abrigo dos poderes de fiscalização da ANACOM, sendo que “a não disponibilização a esta Autoridade das informações/documentação acima referidas consubstancia a prática de uma contraordenação grave, prevista e punível nos termos do disposto na alínea mm) do n.º 2 do artigo 113.º da LCE”;
- A ANACOM solicitou o envio de “cópia dos acordos de interligação ou outros acordos, celebrados com os respetivos operadores referentes à utilização dos números 1820, 1891, 1893 e 1896 e aos seus preços de retalho, em particular os que se encontravam em vigor entre 19.02.2014 e 28.03.2014, bem como os que vigoram na presente data”, tendo ainda solicitado então à PTC o envio de “cópia dos acordos comerciais celebrados com o designado Club Passport, relativo às ofertas promocionais prestadas através do número 1820”.
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O princípio do direito à não auto-incriminação[1] credita e investe na noção de que o visado num processo sancionatório tem o direito de, livremente e sem punição ou oneração, recusar colaborar com a acção sancionatória, seja através do mero silêncio ou, mais concretamente, através da recusa na apresentação de meios de prova.
É certo que tal princípio contra a auto-incriminação do arguido não encontra consagração expressa na Constituição. No entanto, isso não significa que o princípio não tenha natureza constitucional, sendo pacífico o entendimento a que se trata de um princípio constitucional não escrito. “No que ao direito processual português especificamente concerne, a vigência do princípio, nemo tenetur se ipsum accusare afigura-se-nos unívoca” - MANUEL DA COSTA ANDRADE, Sobre as Proibições de prova em Processo Penal, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pág. 125.
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de reconhecer em diversos acórdãos que é “inquestionável” que o princípio nemo tenetur assume consagração constitucional, destacando-se, entre outros, os Acórdãos do TC. n.ºs 695/95, 542/97, 304/2004, 181/2005, 461/2011, 340/2013 e 418/2013, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt.
Sobre a ratio desta presença garantística de ordem constitucional, “reconhecer-se que estes direitos processuais são um meio ou forma de concretizar um determinado direito fundamental não implica que este seja o seu fundamento directo e imediato. Desde logo se aponta que o próprio conceito de dignidade humana recobre de forma mediata toda a matéria penal e processual penal de um Estado de Direito”, sendo reflexo da essência de um processo penal em que se reconhecem e tutelam as garantias inerentes à qualificação do arguido como um autêntico sujeito processual - FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTA ANDRADE, Supervisão, Direito ao Silêncio, e Legalidade da Prova”, in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 41.

Outra leitura possível é a de enquadrar o direito à não auto-incriminação como um corolário do “fair trial”, ou do processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º1 na CEDH, e no artigo 20.º, n.º4 da Lei Fundamental – neste sentido VÂNIA COSTA RAMOS, Corpus Juris 2000 - Imposição ao arguido de entrega de documentos para prova e nemo tenetur se ipsum accusare, Revista do Ministério Público, n.º109, Jan/Mar 2007, pág. 69-72. 

Sobre o âmbito da validade material do princípio (delimitação do alcance e dos limites) acolhemos aqui a concepção ampla, ao invés de uma concepção restritiva[2] inerente à mera faculdade de o arguido não prestar declarações.

“…esta liberdade analisa-se numa dupla dimensão ou função. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa. (…) Pela negativa, a liberdade de declaração ganha a estrutura de um autêntico Abwehrrecht contra o Estado, vedando todas as tentativas de obtenção por meios enganosos ou por coacção de declarações auto-incriminatória” - MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 120-121.

Se, na dogmática do processo sancionatório de estrutura acusatória típico dos Estados de Direito, está assente a absoluta inexistência de obrigação de confissão verbal de prática da infracção, surgem, reiteradamente, novas frentes normativas de problematização do princípio do nemo tenetur, não raras vezes promovidas pelo Direito Público de natureza não penal[3].

Em situações de conflito entre o estatuto do arguido como sujeito processual e a efectivação do direito processual probatório “não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou, quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva” -MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 127.

No Direito contra-ordenacional, mercê da maior dispersão legiferante dos múltiplos regimes especiais, o problema adquire contornos de tema aberto, discutível e passível de variações normativas, doutrinárias e jurisprudenciais.

Daí que urja uma consolidação doutrinária e jurisprudencial dos critérios delimitadores do princípio nemo tenetur, assumindo-se, desassombrada e frontalmente, que tais garantias podem ser restringidas, limitadas e ultrapassadas.

“…para que não restem dúvidas sobre a constitucionalidade destas restrições, parece seguro que elas devem obedecer a dois pressupostos: devem estar previstas em lei prévia e expressa, de forma a respeitar a exigência de legalidade; e devem também obedecer ao princípio da proporcionalidade e da necessidade, previsto no artigo 18.º, n.º2, da CRP”- FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., pág. 45.

“…o modo de dirimir essa colisão é, não através de um critério “all or nothing”, mas por meio de uma compatibilização ou concordância prática que visa aplicar todos os princípios colidentes, harmonizando-os entre si na situação concreta” - AUGUSTO SILVA DIAS e VÂNIA COSTA RAMOS, O Direito À Não-Auto-Inculpação (Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare) no Processo Penal e Contra-Ordenacional Português, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 23.

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também se tem pronunciado sobre esta questão[4], sendo uma referência o Acórdão Funke v. France, de 25-02-1993, no qual o Tribunal entende que a entrega de documentos (extractos bancários) viola o direito à não auto-incriminação.

Ainda assim, o carácter não absoluto do direito à não auto-incriminação tem sido afirmado em vários arestos dos Tribunais superiores, debatendo-se a sua admissibilidade e consequências da valoração de elementos de prova recolhidos em preterição do princípio (cfr. - Ac. STJ de 05-01-2005, proc. nº 04P3276, Relator HENRIQUE GASPAR; Ac. STJ, de 12-03-2008, proc. nº 08P694, Relator SANTOS CABRAL; Ac. TRP de 28-01-2009, proc. nº 0816480, Relator MARIA DO CARMO SILVA DIAS; Ac. TRP de 27-2-2013, proc. nº 15048/09.1IDPRT.P1, Relator ERNESTO NASCIMENTO; Ac. TRG de 29-1-2007, proc. nº 1917/07-1, Relator CRUZ BUCHO; Ac. TRG de 12-3-2012, proc. nº 82/05.9IDBRG.G1, Relator ANA TEIXEIRA E SILVA; Ac. TRG de 20-1-2014, proc. nº 97/06.0IDBRG.G2, Relator ANTÓNIO CONDESSO; Ac. RL de 17-04-2012, proc. n.º 594/11.5TAPDL.L1-5, Relator SIMÕES DE CARVALHO; Ac. RL de 06-04-2011, proc. n.º 724/09.27FLSB -3; Relator A. AUGUSTO LOURENÇO, todos disponíveis em dgsi.pt.

O critério acima enunciado, veiculado pela doutrina e jurisprudência, dito de concordância prática ou da ponderação dos bens, parece ser o que melhor se adequa à produção legislativa e à expansão normativa do Direito Contra-ordenacional, uma vez que permite garantir soluções casuísticas com reforço na prática judiciária.

Outros critérios que atentam na dependência ou independência da vontade do arguido, ou que assinalam a conduta activa versus tolerância passiva, revelam-se insuficientes por introduzirem distinções remotamente praticáveis e por conduzirem a verdadeiras incriminações com base em conceitos de acção e sujeição manifestamente formais.

Se direito ao silêncio representa o “núcleo quase absoluto do nemo tenetur” (AUGUSTO SILVA DIAS e VÂNIA COSTA RAMOS, ob. cit., pág. 21), o problema de saber o que é que acontece nos casos em que o arguido não está obrigado a colaborar, mas por coacção é levado a contribuir para a sua própria incriminação sob pena de prática de uma infracção deve ser resolvido em função da ponderação casuística e através de um juízo de concordância prática.

Assim, quando a recusa do arguido ou do visado em processo sancionatório em prestar declarações, entregar documentos ou sujeitar-se a um exame não colida com obrigações legais em sentido oposto, ou, em caso de colisão, sempre que os interesses tutelados por tais obrigações legais não prevalecerem no caso concreto, tal recusa é legítima, o que significa que esse acto (de recusa) não pode ser perseguido como nova infracção.

Outrossim, na situação contrária, isto é, quando os interesses protegidos por tais obrigações legais prevalecerem, no caso concreto, sobre o direito à não auto-incriminação do arguido ou do visado, este deverá ser compelido a realizar a conduta em causa, podendo a sua recusa ser sancionada autonomamente. 

O afastamento do princípio nemo tenetur implicará, sempre, que uma lei prévia expressamente imponha um dever de colaboração, devendo esse dever obedecer aos critérios de proporcionalidade e necessidade do artigo 18.º, n.º 2, da CRP para que a recusa no seu cumprimento seja ilegítima e, por sua vez, ilegal. Nos casos em que a ordem é ilegítima, porque não obedece ao critério atrás enunciado, o arguido não está obrigado a colaborar.

Vertendo o Direito aos factos, afigura-se-nos, preclaramente, que a recolha e a disponível valoração probatória dos elementos recolhidos pela ANACOM, através das notificações de 12 de Agosto de 2014, é lícita, válida e conforme à lei e à constituição, também por aplicação do princípio ou do direito à não auto-incriminação.

No âmbito da Lei das Comunicações Electrónicas (doravante LCE), aprovada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, compete à ANACOM, na qualidade de Autoridade Reguladora Nacional (ARN) desempenhar as funções de regulação, supervisão, fiscalização e sancionamento previstas na presente lei, nos termos das suas atribuições – cfr. art.º 4.º, em acordo os objectivos de regulação previstos no art.º 5.º e ao abrigo dos poderes de supervisão e fiscalização previstos no art.º 107.º e seguintes.

As entidades que estão sujeitas a obrigações nos termos da presente lei devem prestar à ARN todas as informações relacionadas com a sua actividade, incluindo informações financeiras e informações sobre os futuros desenvolvimentos das redes ou dos serviços que possam ter impacte nos serviços grossistas que disponibilizam aos concorrentes, para que a ARN possa exercer todas as competências previstas na lei – art.º 108.º, n.º 1da LCE, podendo a ARN solicitar informações, especialmente para verificação caso a caso do respeito das condições estabelecidas nos artigos 27.º, 32.º e 37.º da LCE, quer quando tenha sido recebida uma queixa quer por sua própria iniciativa – art.º 109.º, n.º 1 al. c) da LCE;

O nó górdio do problema, assente o convencimento de que o princípio do nemo tenetur representa um princípio activo no Direito sancionatório na sua dimensão ampla, resolve-se perante a elucidação da tipologia da relação de poder em causa e estabelecida entre a ANACOM, nas vestes de ARN, enquanto entidades reguladora do mercado relevante das comunicações electrónicas, e a arguida/recorrente, enquanto entidade regulada.
Efectivamente, na relação de poder das entidades reguladoras e reguladas podem escalonar-se a tipologia de poderes seguinte: poderes regulamentares, poderes de supervisão e poderes sancionatórios, (…) destacando-se, no que respeita aos poderes de supervisão, as prerrogativas de realizar estudos, inquéritos, inspecções e auditorias, diferentes, autónomos e separados de poderes em matéria de “regulação repressiva” relativos à competência para instaurar processos de contra-ordenação, proceder à respectiva investigação e decidir, aplicando coima – neste sentido, CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, Coimbra Editora, pág. 112 e 113.

Assim, a actividade de supervisão, realizada pela concretização das prerrogativas previstas nos artigos 108.º e 109.º da LCE, tem ínsita, mais das vezes, uma actividade preventiva e de fiscalização de “antecâmera” da acção sancionatória mas que com ela não se pode confundir.

Assaz confirmativo deste entendimento, é o enquadramento dos departamentos de fiscalização da ARN e os departamentos de contencioso e instrução de processos sancionatório, estando os primeiros serviços enquadrados pela LCE e os segundos pelo, sendo certo que as notificações de 12 de Agosto de 2014 foram exclusivamente determinadas no âmbito do exercício dos objectivos de regulação e ao abrigo dos poderes de supervisão e de fiscalização previstos na LCE.

Na verdade, a aquisição de notícia de infracção e a tramitação do processo sancionatório, referidos nos artigos 15.º e seguintes do R.Q.CO.S.C., podem ser consequentes dos resultados da actuação e concretização dos poderes de supervisão e de fiscalização, sem que esteja em causa qualquer proibição da recolha de prova feito ao abrigo de prerrogativas para cumprimento das atribuições de regulação.

Parece-nos ser exactamente esse o caso dos autos.

O que é crucial e decisivo para a percepção da licitude, validade e legalidade da utilização dos elementos recolhidos numa acção de supervisão e fiscalização fora da pendência do procedimento sancionatório, pode ser dilucidado sob três perspectivas; adequação a função de regulação ou supervisão; utilidade para a função de regulação ou supervisão e escopo de realização de função de regulação ou supervisão, sendo que a s notificações em causa cumprem, exemplarmente, esse triplo desiderato.

Afigura-se-nos que, por um lado, a utilização dessas prerrogativas na recolha e solicitação de elementos à arguida/recorrente se revela correspectiva da realização das atribuições da ARN aquando da fiscalização desencadeada sobre os serviços informativos disponibilizados pelos números 1820, 1891, 1893 e 1896 e aos seus preços de retalho, e, por outro, permite realizar, directa e imediatamente, aquelas atribuições da LCE sobre estes serviços de comunicações electrónicas, independentemente de tal actividade de supervisão redundar na recolha de indícios de prática de infracções à LCE.

A antecâmara dos poderes de supervisão em relação aos poderes sancionatórios visa contemplar, precisamente, uma instância de controlo contínuo ou preventivo de determinada actuação das entidades reguladas que não implica um excesso de reacção punitivo ou sancionatório. Ora, se as atribuições de supervisão da ARN dispõem de normas especificadamente habilitantes para a realização da recolha de informações e elementos documentais; se esta autoridade administrativa deve actuar dentro da legalidade administrativa, então deverá diligenciar por cumprir as suas atribuições de interesse público e por via desses expedientes cujo escopo é o da actividade de regulação.

Neste conspecto, a utilização das prerrogativas previstas nos artigos 108.º e 109.º da LCE para a concretização das atribuições da ARN em matéria de supervisão e fiscalização de serviços informativos apresenta-se evidentemente adequada àquelas finalidades, independentemente do contributo que a resposta a essas prerrogativas possa adquirir para efeitos do impulso da acção sancionatória ou de aquisição de notícia de infracção.

Além de adequada, a realização de prerrogativas dos poderes de supervisão e fiscalização deverá assumir um contributo relevante para a actuação do regulador, ou seja, deverá servir àquela função de fiscalização ou supervisão, efectivando-a no caso concreto.

Também aqui, o cumprimento voluntário da arguida/recorrente (à data pelas diferentes visadas) daquela recolha e pedido de elementos vem garantir, precisamente, a instrução de um procedimento de supervisão e de fiscalização, já iniciado, ao mesmo tempo contínua e prudencial, salvaguardando a fiscalização actual e futura dos termos daqueles prestações de serviços pela ARN.

Por outro lado, os documentos recolhidos permitiram um cabal esclarecimento da matéria apurada no processo administrativo de regulação, ao ponto de terem sido aproveitados, no processo sancionatório, para elisão ou afastamento da responsabilidade da arguida/recorrente sobre eventuais ilícitos contra-ordenacionais relacionados com a prática de preços não publicitados ou com o acordo comercial entre a PTC e a PC.

Na verdade, apenas as visadas disporiam dos elementos relevantes para a efectivação dos poderes de supervisão e de fiscalização sobre os acordos de utilização e preços e retalho dos serviços informativos disponibilizados pelos números 1820, 1891, 1893 e 1896 e sobre outros acordos comerciais, no sentido em que, enquanto entidades reguladas, seriam as qualificadas titulares dos dados relevantes para a fiscalização da ARN, sendo imediatas destinatárias das obrigações e sujeições administrativas daqueles poderes.

Assim, a recolha e solicitação dos elementos referidos assume uma preponderância evidente no cumprimento das atribuições de regulação, pois que, de modo eficiente, célere e económico, permitiu que a autoridade administrativa acedesse a informação qualificada e privilegiada sobre o tarifário e acordos de utilização dos números sob acção de supervisão e fiscalização.

Como, aliás, se motiva na decisão administrativa, “nenhum dos elementos documentais solicitados (cópia dos acordos de interligação celebrados com outros operadores ou cópia do acordo comercial celebrado com o CP no âmbito do portal SAPO) constituem qualquer prova documental dos ilícitos que são aqui imputados. O primeiro, porque procurava auxiliar a fiscalização relacionada com a sobrefaturação das chamadas realizadas para os números 1820 e 1896 (que não era imputável a nenhuma das empresas arguidas), e o segundo, porque incide sobre a oferta comercial da PT Comunicações, S.A. num dos seus portais da Internet e não sobre a oferta comercial que era prestada através dos referidos números de telefone (essa sim, objeto dos autos e do ilícito que lhe é imputado)”.

As prerrogativas utilizadas pela ARN identificam expressamente a sua finalidade, pelo que, qualquer utilização da informação disponibilizada num processo sancionatório, poderia ser oportuna e devidamente sindicada quanto à legalidade do seu contributo para a responsabilização sancionatória, como de resto o foi.

Isto é, a autoridade administrativa não utilizou qualquer expediente irregular, obscuro, escondido ou encoberto nem tão pouco excedeu as suas competências de supervisão e de fiscalização, concretamente nos meios utilizados para a aferição das condições associadas aos direitos de utilização dos números de serviços informativos, os quais, independentemente da sua validade, se afiguram idóneos e conformes ao exercício dos seus poderes de regulação.

O que se pretende evitar a concordância prática entre o exercício de poderes de supervisão e o aproveitamento probatório desses elementos numa acção sancionatória é, precisamente, a frustração da actuação da autoridade administrativa de supervisão e fiscalização, sem se defender uma mera facilitação dos seus poderes inquisitórios no processo sancionatório, com adstrição dos visados a comportamentos activos de instrução probatória.

Portanto, os procedimentos de supervisão inerentes às notificações de 12 de Agosto de 2014 configuram um meio adequado, útil e finalisticamente dirigido para a prossecução do interesse público na supervisão no sector regulado da actividade desenvolvida pela arguida/recorrente e das então visadas PTC e TMN.

Em suma, entendemos que o interesse na instrução dos elementos recolhidos e solicitados prevalece, no caso concreto, sobre o princípio do direito à não auto-incriminação, validando e legitimando a sua utilização em processo sancionatório subsequente por configurarem meios de obtenção de prova legais e conformes no âmbito dos poderes de supervisão e fiscalização da ANACOM enquanto ARN e na prossecução dos objectivos de regulação do sector das comunicações electrónicas.
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3.1.2.– A outra questão decidenda a tratar, previamente à motivação probatória, é saber se as diligências de fiscalização configuram meios proibidos de prova, sendo proibida a sua valoração.
A arguida/recorrente procura inutilizar o aproveitamento da prova recolhida pelos agentes de fiscalização da ANACOM, nas vestes de ARN, nomeadamente os quatro Relatórios de Fiscalização e os correspondentes Registos de Diligência, por inexistência de informação prévia sobre a realização dos procedimentos de fiscalização e por omissão de identificação dos agentes quando das chamadas teste, o que consubstanciaria uma conduta de recolha de prova ilegal e por meio enganoso.
Não merece qualquer revisão crítica, o enquadramento jurídico, trazido pela arguida/recorrente, ínsito à qualificação dos agentes da ANACOM como agentes de autoridade por conjugação das disposições do art.º 48.º do Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de Dezembro[5], do preâmbulo Portaria n.º 126/2002, de 9 de Fevereiro[6], e do actual n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de Março, que aprova os atuais Estatutos da ANACOM, nos termos do qual os trabalhadores da ANACOM mandatados para o desempenho de funções de fiscalização, quando se encontrem no exercício das suas funções, são equiparados a agentes de autoridade, dispondo ainda o n.º 3 do mesmo normativo que os trabalhadores da ANACOM e às pessoas ou entidades qualificadas devidamente credenciadas que desempenhem as funções a que se referem o n.º 1 e o n.º 3 do artigo 12.º, são atribuídos cartões de identificação, cujo modelo e condições de emissão constam de regulamento interno a aprovar pela ANACOM.

Todavia, já se nos afigura manifestamente abusivo que, partindo do mesmo enquadramento, se defenda que as acções de fiscalização levadas a cabo pela ARN no âmbito da LCE, ao abrigo dos poderes de supervisão e de fiscalização, e a competência instrutória da ANACOM no âmbito de processos sancionatórios previstos no R.Q.CO.S.C. dependam de um requisito de validade de comprovação da qualidade do agente, tanto mais que, nos presentes autos, não subsistem dúvidas quanto à autoria dos relatórios e diligências efectuadas.

Este pressuposto de validade é invocado pela arguida/recorrente sem qualquer fundamento legal ou norma jurídica que se possam atender para tal efeito.

Na verdade, a chamada da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto e do seu artigo 31.º (que estabelece o dever de identificação prévia aos agentes e funcionários), desmerece a ratio e o âmbito de aplicação objectiva da mesma Lei, inerente à actividade de segurança interna desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática. Este âmbito de aplicação conjugado com a natureza dos agentes de fiscalização da ANACOM, flagrantemente incompatível com a figura dos agentes de segurança pública, frustra, imediatamente, qualquer aplicação analógica do art.º 31.º da Lei n.º 53/2008 à validade das diligências de supervisão e de fiscalização previstas na LCE, inexistindo qualquer remissão operante para aquele regime.

A equiparação jurídica dos agentes de fiscalização da ANACOM a agentes de autoridade não permite, em consciência e razão jurídica, sustentar que tais agentes representam forças e serviços de segurança pública, encarregados da ordem, a segurança e a tranquilidade públicas. A correspondência defendida pela arguida/recorrente decorre de uma falácia silogística, desprovida de qualquer razoabilidade na sua fundamentação material.

O dever de identificação, especialmente previsto noutros ramos do Direito Sancionatório Público (caso das infracções tributárias ou penais) está etiologicamente conexionado com a tutela dos bens jurídicos protegidos e com a proporcionalidade de meios invasivos de recolha de prova, insusceptíveis de migração sistemática para o Direito de mera ordenação social e especialmente para o regime jurídico das comunicações electrónicas. A necessidade do legislador estabelecer, naqueles regimes, uma norma prévia e expressa de exigência do dever de identificação como eventual pressuposto de legalidade da acção de fiscalização deverá ter-se como suficiente para afastar a plausibilidade dos argumentos esgrimidos pela arguida/recorrente.

Na verdade, não vislumbramos de que modo a realização de chamadas teste para números de serviços informativos possa tanger com a liberdade pessoal dos fiscalizados (agentes não responsáveis e não destinatários da norma de previsão) e do posterior direito de defesa dos arguidos em processo contra-ordenacional pela violação de deveres inerentes à prestação daqueles serviços aos respectivos utentes e consumidores.

Para tanto, torna-se desnecessário considerar sequer a utilidade da opção de os agentes de fiscalização da ANACOM de não revelarem a sua qualidade com o objetivo de obterem a mesma informação que um cidadão comum obteria na mesma circunstância.

Por outro lado, a ocultação da qualidade dos agentes fiscalizadores não determinou qualquer circunstância do processo de aquisição probatório relevante para o exercício das competências de supervisão e de fiscalização, que visavam, precisamente, aferir da qualidade dos serviços informativos prestados ao público e ao utente comum e das condições associadas aos direitos de utilização dos números.

Numa palavra, a ocultação da qualidade dos agentes não provocou, por si só, qualquer prestação da informação vertida nos respectivos autos e relatórios, pelo que se torna circunstância notoriamente despicienda para a apreciação da legalidade da prova assim recolhida e para efeitos da proibição de valoração estabelecida no art.º 126.º, n.º 2, alínea a), do C.P.P.

No que tange à arguição subsidiária da ocorrência de meio proibido de prova, tratando-se de uma mera acção de fiscalização concreta sobre o cumprimento das obrigações previstas na LCE e respectivo regulamento n.º 169/2013, de 15 de Maio, em que os agentes procederam, apenas e só, à interpelação dos operadores de call center das visadas PTC e TMN e à solicitação de informações relativas às obrigações inerentes ao direito de utilização dos números 1820 e 1896 e no âmbito das suas competências funcionais, considerando que os ilícitos imputados decorrem de comportamentos exclusivamente imputados à actuação dos colaboradores da arguida/recorrente, sem que o preenchimento dos elementos objectivos do tipo tenham sido determinados, potenciados ou incrementados pela actuação dos agentes fiscalizadores; considerando que a solicitação de informações por meio telefónico configura um expediente de fiscalização plenamente lícito mas autónomo do conteúdo das informações prestadas, afigura-se-nos que não subsiste qualquer desvalor jurídico do aproveitamento probatório dos autos de diligências, nomeadamente por obtenção de prova através de agente instigador.
*

3.1.3.– A última questão decidenda a tratar neste ponto, previamente à motivação probatória, é saber em que medida os registos das diligências de fiscalização efectuadas impedem a valoração probatória dos mesmos.

De acordo como o objecto da impugnação judicial, a arguida/recorrente vem sindicar o juízo da motivação probatória da decisão condenatória quanto ao art.º 17.º n.º 1 do R.Q.CO.S.C.
Neste particular, a arguida/recorrente limita-se a reiterar os argumentos inerentes à questão tratada no ponto 3.1.2. para efeitos do que entende ser a melhor interpretação do art.º 17.º do R.Q.CO.S.C.

Salvo o devido respeito, registando-se que a arguida/recorrente deixou impugnado o valor probatório de tais registos, afigura-se-nos que o problema em mãos não tem nada que ver com a legalidade dos respectivos meios de prova mas antes com a valoração dos mesmos, sendo certo que se prestaram depoimentos aos instrutores. Quando a autoridade administrativa faz consignar que os relatórios fazem fé sobre os factos presenciados pelos autuantes está somente a fazer operar um princípio de valoração da prova assim obtida que há-de merecer a devida análise mas que não pode ser confundido com uma proibição ou nulidade de prova.
Outrossim, o problema da confirmação da narração vertida dos registos insere-se no desiderato da avaliação da fiabilidade de tais registos e na competência dos respectivos agentes autuantes e que não deverá partir de qualquer valor de prova plena e inilidível em face da sua impugnação pela defesa da arguida.

Também nos parece excessiva a leitura da arguida/recorrente do art.º 17.º n.º 1 do R.Q.CO.S.C. no que respeita a factos neles descritos que foram presenciados pelos agentes autuantes. Os registos das chamadas teste efectuadas pelos próprios agentes para os números 1820 e 1896 correspondem, sem reservas, a factos efectivamente presenciados (o que é presenciado é a realidade epifenoménica do contacto telefónico), mal se compreendo o alcance limitativo do sentido que é conferido pela defesa, segundo a qual as conversações telefónicas estariam excluídas por o artigo respeitar, em regra, à apreensão de documentação, a pedidos de informação às entidades supervisionadas e à análise de determinados documentos ou equipamentos.

Certamente que será fácil de aceitar, por obediência maior ao bom senso e razoabilidade empírica, que o cumprimento dos objectivos de regulação de comunicações electrónicas e a supervisão das condições associadas aos direitos de utilização de números de serviços informativos deverá ser efectuado com recurso a estas diligências de fiscalização e através do expediente da simulação de chamadas telefónicas, sem qual se frustraria qualquer actividade de controlo da autoridade administrativa.

Só por mera liberdade de alegação em processo sancionatório é que se poderá relevar o argumento de que o valor probatório previsto no art.º 17.º n.º 1 do R.Q.CO.S.C. está dependente da presença física dos agentes de fiscalização da ARN, resultando tal pressuposto de uma tergiversão do dispositivo legal, sem fundamento atendível.

O sequente problema do direito à contradição do conteúdo narrado naqueles meios de prova (questão, aliás, recorrente no Direito Público Sancionatório) representa um ónus da fundamentação da decisão condenatória perante a impugnação do valor probatório e que deve ser devidamente enfrentado na respectiva motivação da matéria de facto, sem que tal envolva qualquer restrição inadmissível ao processo equitativo.

Para que fique claro, a ratio do artigo 17.º, n.º 1, do R.Q.CO.S.C., por respeitar in caso ao exercício de poderes de supervisão e fiscalização em matéria de comunicações electrónicas, permite que o mesmo seja aplicado a sumários de conversas telefónicas realizadas por agentes de fiscalização da ANACOM, sendo indefectível a conclusão de que a força probatória dos registos de diligência pode ser afectada sem que seja necessário produzir prova em contrário, bastando, de forma razoável, demonstrar a possibilidade ou a probabilidade de os factos não terem ocorrido como aí descrito.

Por conseguinte, reiterando a nossa apreciação exposta no ponto 3.1.2. nada impede a valoração probatória dos autos de diligência efectuados pela ANACOM nos termos do art.º 17.º n.º 1 e 2, do R.Q.CO.S.C.
*

Improcedem, portanto, as alegações e fundamentos vertidos nos artigos 47.º a 148.º do recurso de impugnação relativos à nulidade da prova obtida em violação do princípio nemo tenetur, à nulidade da prova recolhida pelos agentes de fiscalização e à proibição de valoração probatória dos autos de fiscalização.
(…)

3.3.2.– Em segundo lugar, e no que respeita a este tema do objecto do processo, a arguida/recorrente veio arguir a nulidade do procedimento e da decisão por aditamento de factos que não constavam da acusação e por alteração da qualificação jurídica dos mesmos factos – cfr. artigos 149.º a 164.º do recurso de impugnação.
(…)

No que respeita à falta de indicação, na comunicação para cumprimento do art.º 50.º do R.G.CO., conforme e completa do tipo contra-ordenacional, por omissão da previsão do art.º 37.º, n.º 1 al. a) da LCE haverá que aceitar que tal omissão é susceptível de implicar vício de nulidade da decisão por preterição do art.º 58.º, al. c) do R.G.CO., pelo que se recomenda à autoridade administrativa que, na sanação da nulidade acima exposta, concretize a imputação do tipo contra-ordenacional no incumprimento de requisitos ligados à oferta desse serviço, incluindo princípios de fixação de preços e preços máximos que podem aplicar-se na série específica de números tendo em vista garantir a protecção dos consumidores, e sem prejuízo da eventual revisão dos termos da condenação, nomeadamente quanto ao critério do concurso de infracções e medida das coimas parcelares.
(…)

Julgo parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida/recorrente M. - SCM S.A., declarando, em consequência, a nulidade da decisão condenatória de 9 de Fevereiro de 2017 proferida no âmbito do processo de contra-ordenação n.º 20002510-745/2015 e dos termos de processado subsequentes, por violação do artigo 50.º do R.G.CO. e do art.º 22.º do R.Q.CO.S.C., determinando a remessa dos autos à autoridade administrativa para suprimento da nulidade assinalada no ponto 3.3.2., improcedendo os demais fundamentos do recurso de impugnação apreciados.

3.– São as seguintes as conclusões apresentadas pela recorrente:
1.- O presente recurso é interposto, ao abrigo do disposto no artigo 74.º n.º 1 do Regime Geral das Contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (“RGCO”) e nos artigos 399.º, 401.º n.º 1 alínea b), 403.º n.º 1, 406.º n.º 1, a final, 407.º n.º 3 e 408.º n.º 1 a contrario, todos do Código de Processo Penal (“CPP”), quanto à Sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão proferida em 19 de Junho de 2017, que declarou a nulidade da decisão condenatória da ANACOM, mas limita-se, nos termos do disposto no artigo 407.º n.º 3 do CPP, à decisão que julgou improcedente a nulidade da prova recolhida aquando dos pedidos de elementos enviados à PTC e à TMN em agosto de 2014, por violação do princípio da não auto-incriminação e à decisão que julgou improcedente a nulidade da prova corresponde às acções de fiscalização consubstanciadas em chamadas telefónicas realizadas para os call centre do 1820 e do 1896 por agentes de fiscalização que ocultaram a sua qualidade, devendo ser admitido com efeito meramente devolutivo e devendo subir conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que tiver posto termo à causa.
2.- A norma que estabelece que o recurso para a relação de sentença ou de despacho do tribunal apenas é admissível nas situações que se enquadram numa das alíneas do artigo 73.º n.º 1 do RGCO, sendo irrecorríveis as restantes decisões, mesmo que sejam desfavoráveis aa arguida e que impliquem a perda do direito ao recurso quanto a tais questões é inconstitucional, por violação do direito de defesa, do direito ao recurso e do direito a um processo equitativo, ínsitos nos artigos 20.º, 32.º n.º 1 e 10 da CRP e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, inconstitucionalidade que expressamente se argui.
3.-  Deve, assim, e numa interpretação conforme à CRP do artigo 73.º do RGCO conjugado com o artigo 41.º n.º 1 do RGCO, o presente recurso ser admitido, ao abrigo do disposto no artigo 74.º do RGCO e no artigo 399.º do CPP por remissão do artigo 41.º n.º 1 do RGCO.
4.-  Para julgar improcedente a nulidade da prova correspondente às respostas da TMN e da PTC aos pedidos de informação formulados pela ANACOM em agosto de 2014 (fls. 157 e 811 dos autos) o Tribunal a quo partiu de um pressuposto erróneo.
5.- Com efeito, ao contrário do entendimento do Tribunal, aquando da realização da segunda ronda de acções de fiscalização e do envio de pedidos de elementos à TMN e à PTC em agosto de 2014, a ANACOM não prosseguia exclusivamente os objectivos de regulação e actuava no âmbito dos poderes de fiscalização, mas antes actuava investigando a prática de ilícitos contra-ordenacionais.
6.- A segunda ronda de acções de fiscalização e em particular os pedidos de elementos enviados à TMN e à PTC em agosto de 2014, com expressa indicação dos artigos 108.º e 109.º n.º 1 alínea c) da LCE e de que a não disponibilização dos elementos solicitados corresponderia à prática de um ilícito contra-ordenacional, ocorreram em momento em que a ANACOM tinha já, declaradamente, notícia da existência de indícios de ilícitos contra-ordenacionais, através do relatório elaborado após a primeira ronda de acções de fiscalização.
7.- Os pedidos de elementos enviados em agosto de 2014 foram determinados por pedido da Direcção do Contencioso da ANACOM e por quem viria a ser nomeado formalmente instrutor do processo e visavam expressamente “apurar a responsabilidade contra-ordenacional da PTC pelos factos descritos no Relatório” e para “apuramento do benefício económico obtido com [o] ilícito” para assegurar a ponderação dos objectivos de prevenção especial e adequar o valor da coima a aplicar à PTC (cfr. fls. 97 a 99 e 770 e 771 dos autos).
8.- Tal prova foi recolhida sem assegurar o direito de a Arguida não responder, ficando, ao invés, obrigada a entregar os elementos em causa sob pena da prática de um ilícito, tendo a ANACOM invocado normas que atribuem poderes de fiscalização, fazendo crer – com base em engano – que os pedidos se inseriam em verificações aleatórias no âmbito de poderes de supervisão e fiscalização quando, na verdade, cumpriam o propósito de recolha de prova de indícios de ilícitos já identificados.
9.- Pelo exposto, a prova recolhida nestes termos enganosos pela ANACOM em violação do direito à não auto-incriminação da M. – consubstanciada na prova recolhida durante a segunda ronda de acções de fiscalização à TMN e à PTC e com os pedidos de informação enviados à TMN e à PTC em agosto de 2014 – configura prova proibida, nos termos do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 1, do CPP, aplicável por via do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, não podendo ser utilizadas no âmbito deste processo, acarretando a nulidade do mesmo por terem sido utilizadas na Acusação e na Decisão Condenatória da ANACOM (artigo 122.º n.º 1 do CPP).
10.- Subsidiariamente, desde já se diga que andou mal o Tribunal a quo incorreu num erro na interpretação e aplicação da norma contida nos artigos 108.º e 109.º n.º 1 alínea c) da LCE, no sentido de a mesma permitir que a ANACOM solicite elementos a entidade regulada para recolha de prova necessária para demonstração de indícios já existentes e determinação do montante da coima, ficando a entidade regulada a colaborar sob pena de aplicação de uma coima
11.-  bem como numa errada aplicação do artigo 18.º n.º 2 da CRP e dos critérios relevantes para a restrição de direitos fundamentais como é o direito à não auto-incriminação, ao considerar apenas o ponto de vista dos objectivos de supervisão.
12.- Com efeito, os artigos 108.º e 109.º da LCE, invocados pela ANACOM nos pedidos de elementos enviados à PTC e à TMN, não prevêem a possibilidade de solicitar elementos – com a obrigação de entrega dos mesmos sob pena de aplicação de uma coima – no âmbito de investigação de infracções e no exercício de poderes sancionatórios da ANACOM, como é o caso, mas apenas no âmbito de poderes de fiscalização, pelo que inexiste lei expressa que preveja a possibilidade da restrição do direito à não auto-incriminação nestes termos.
13.- Adicionalmente, o Tribunal a quo também não indica qual a norma constitucional onde estaria previsto o interesse o direito de valor superior ou igual ao direito à não auto-incriminação restringido.

14.Mesmo que se entendesse que existiria um interesse superior a acautelar, a restrição ao direito à não auto-incriminação:
(i)- não é necessária, porquanto a ANACOM poderia ter obtido tais elementos de outra forma, nomeadamente solicitando-os a terceiros; e
(ii)- não é proporcional, na medida em que existe uma coacção directa, intensa e imediata sobre a arguida para que a informação ou a documentação seja entregue, quando existiria outra forma de a obter.

15.- A restrição efectuada ao direito à não auto-incriminação da M., decorrente da realização da segunda ronda de fiscalizações e dos pedidos de elementos remetidos à TMN e à PTC em agosto de 2014 não é lícita porque desconforme ao disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.
16. A norma contida nos artigos 108.º e 109.º n.º 1 alínea c) da LCE se interpretada e aplicada no sentido de permitir que a ANACOM solicite elementos a entidade regulada para recolha de prova necessária para demonstração de indícios já existentes e determinação do montante da coima, ficando a entidade regulada a colaborar sob pena de aplicação de uma coima é inconstitucional, por violação do princípio da não auto-incriminação e do direito a um processo equitativo, constitucionalmente consagrados e ínsitos nos artigos 2.º e 20.º da CRP.
17.- Pelo exposto, deve a Sentença na parte em que julga improcedente a nulidade da prova obtida à custa da Arguida e em violação do princípio da não auto-incriminação ser revogada e ser substituída por outra que julgue procedente a nulidade da referida prova invocada pela Arguida, nos termos do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, n.º 1, do CPP, aplicável por via do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, não podendo ser utilizadas no âmbito deste processo, acarretando a nulidade do mesmo por terem sido utilizadas na Acusação e caso venham a ser usadas em eventual Decisão Condenatória da ANACOM (artigo 122.º n.º 1 do CPP).
18.- O Tribunal a quo andou mal ao julgar improcedente a nulidade da prova recolhida através das chamadas realizadas pelos Agentes de Fiscalização para os serviços 1820 e 1896 não se identificando na sua qualidade, com fundamento na inexistência de um dever de identificação e na circunstância de a realização de acções de fiscalização “encobertas” em processo de contra-ordenação supostamente não contender com a liberdade pessoal dos fiscalizados.
19.Resulta do artigo 31.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto e posteriormente alterada o dever de os agentes de fiscalização da ANACOM, enquanto agentes de autoridade, se identificarem na sua qualidade aquando da realização de acções de fiscalização.
20.No entanto, ainda que se entenda que tal normativo não é aplicável aos agentes de fiscalização, é pressuposto legal o mesmo dever de identificação aquando da realização de uma acção de fiscalização, o que decorre de serem atribuídos, nos termos legais, aos agentes de fiscalização da ANACOM cartões de identificação, devendo os mesmos encontrar-se devidamente credenciados aquando da realização de acções de fiscalização, conforme decorre do artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de Dezembro, que aprovou os Estatuto do ICP-ANACOM – e que vigorava à data dos factos –, da Portaria.º 126/2002, de 9 de Fevereiro e do actual n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de Março, que aprova os actuais Estatutos da ANACOM.
21.O Estado não pode exercer os seus poderes de Autoridade contra os particulares mediante esquemas ardilosos e que dificultem a informação do particular quanto à existência de um procedimento do Estado que o visa e quanto às acções que o Estado está a realizar contra si ou na sua esfera, porquanto tal é contrário aos deveres de boa-fé, constitucionalmente previstos no artigo 266.º n.º 2 da CRP.
22.- O princípio do Estado de Direito democrático, o direito a um processo equitativo, o direito de defesa e o direito à autodeterminação informativa, decorrentes dos artigos 2.º, 20.º, 26.º, 32.º e 35.º da CRP, impedem que os particulares possam ser sujeitos ao exercício dos poderes do Estado sem o seu conhecimento, sem que tal se encontre previsto em lei e se justifique por um interesse superior – o que sucede, para casos de crimes graves, no processo penal, existindo lei que prevê expressamente essa restrição (Lei n.º 101/2001, de 25 de agosto) – o que não sucede no direito sancionatório das comunicações electrónicas, pelo que não pode admitir-se uma restrição a direitos fundamentais sem lei expressa, dado que tal contende com o disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP.
23.- Acresce referir que a forma como a ANACOM realizou as acções de fiscalização influenciou ou, pelo menos, potenciou o número de ilícitos imputado à M., na medida em que tal número de ilícitos está ligado ao número de vezes que ao agente de fiscalização telefona a questionar a mesma informação, tendo assim a acção de fiscalização influência na verificação do tipo objectivo de ilícito em causa.
24.Adicionalmente, a forma como a ANACOM conduziu as acções de fiscalização contendeu com o direito de defesa da M., ínsito nos artigos 50.º do RGCO e 32.º n.ºs 5 e 10 da CRP, impedindo-a de, no âmbito do processo de contra-ordenação, exercer pleno contraditório sobre os registos correspondentes, supostamente, às declarações que os seus colaboradores terão feito aquando das mencionadas acções de fiscalização.
25.- Se a M., através dos seus operadores, tivesse conhecimento da realização da acção de fiscalização, nem que fosse aquando do fim da chamada telefónica, mesmo depois de a informação ter já sido transmitida pelo operadores, tal permitiria, pelo menos, ao operador recordar o momento em que foi sujeito a acção de fiscalização e, em concreto, o conteúdo da informação que transmitiu, eventualmente reduzir, do seu lado, tais informações a escrito, podendo, posteriormente, se fosse caso disso, em situação de divergência, contestar e colocar em causa os registos elaboradores, do outro lado, pelos agentes de fiscalização da ANACOM.
26.- Porém, a M. é confrontada com esses registos, a que a ANACOM pretende atribuir um valor probatório reforçado, sem que disponha de alguma forma de contraditar ou contestar o seu conteúdo, o que se deve, apenas e só, à forma como a ANACOM conduziu a acção de fiscalização, impossibilitando-a, mais tarde, de exercer plenamente o contraditório e o seu direito de defesa relativamente à prova contra si recolhida.
27.- Em face do exposto, terá de concluir-se que os elementos recolhidos através das acções realizadas, não comunicadas à M. e por Agentes de Fiscalização da ANACOM que não se identificaram nessa qualidade, constituem prova nula, por terem sido obtida através de agente oculto e com recurso a meio enganoso nos termos do artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do CPP, ex vi artigo 41.º n.º 1 do RGCO.
28.- A utilização de prova nula acarreta a nulidade de toda a prova subsequente, nos termos dos artigos 126.° n.° 3 do CPP, 32.° n.° 8 e 34.° n.° 4 da CRP, por força do efeito à distância dessa nulidade, expressamente previsto no artigo 122.º n.º 1 do CPP, aplicável por remissão do artigo 41.º n.º 1 do RGCO.

4.– O Mº Pº e a Anacom defenderam a rejeição do recurso, com fundamento na sua inadmissibilidade, por se tratar de recurso de natureza interlocutória, logo irrecorrível, nos termos do artº 73 do RGCO.

5.– Decidindo.
i.- No requerimento por si apresentado, a recorrente pede que o recurso que interpõe, seja admitido com efeito meramente devolutivo e devendo subir conjuntamente com o recurso que vier a ser interposto da decisão que tiver posto termo à causa (sublinhados nossos).

ii.- Não obstante – e erroneamente – no despacho de 6 de Julho de 2017 o Mº juiz “a quo” fez constar:
Nos presentes autos, em 16-06-2017, foi proferida sentença a julgo parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida/recorrente, declarando, em consequência, a nulidade da decisão condenatória de 9 de Fevereiro de 2017, determinando a remessa dos autos à autoridade administrativa para suprimento da nulidade assinalada no ponto 3.3.2., improcedendo os demais fundamentos do recurso de impugnação apreciados.

Não se conformando com a sentença, a arguida/recorrente M. - SCM, S.A. veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, com subida nos autos, imediatamente e com efeito suspensivo.

E, seguidamente, procedeu ao recebimento do recurso, nos seguintes termos:
Porque é legal, tempestivo, interposto por quem tem legitimidade , estando devidamente instruído com as respectivas alegações e conclusões, admito o recurso de 30-06-2017 (ref.a 28597, interposto pela arguida/recorrente M. - SCM, S.A. da sentença de 16-06-2017, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 399.°; 401.°, n°l al. b); 406.°, n° 1; 407.°, n° 2, al. a) — recorribilidade, legitimidade e subida nos próprios autos e imediatamente', 408.°, n.° 1 al. a); - efeito suspensivo; 411.°, n° 1 al. b); 412.°; 414.°, n° 1 e 2 - prazo; motivação, conclusões e recebimento, todos do C.P.P., artigos 41.°, n.° 1; 73.°, n.° 1 al. a) e 74.°, n.° 4, do R.G.CO., e artigo 8.°, n° 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei n° 34/2008 de 26 de Fevereiro.

iii.- O que daqui decorre é simples:
A decisão de admissão imediata do presente recurso e o modo e os termos e momento de subida são da responsabilidade do julgador, o que determina que, a mostrarem-se errados, não poderá ser assacada à recorrente a responsabilidade pelas custas reportadas à presente decisão.

6.– Vejamos então.

i.- A decisão prolatada pelo TCRS desdobra-se em dois segmentos:
- O primeiro, o que determina a nulidade da decisão administrativa;
- O segundo, o que julga improcedente algumas outras questões que conheceu, suscitadas pela arguida, entre as quais (e no caso que aqui nos importa), as relativas à nulidade da prova recolhida aquando dos pedidos de elementos enviados à PTC e à TMN em agosto de 2014 e à decisão que julgou improcedente a nulidade da prova correspondente às acções de fiscalização consubstanciadas em chamadas telefónicas realizadas para os call centre do 1820 e do 1896 por agentes de fiscalização que ocultaram a sua qualidade.

ii.- Os segmentos decisórios que a recorrente pretende impugnar não são – como a própria reconhece – autonomamente susceptíveis de poderem ser apreciados, neste momento processual, em recurso, por um tribunal superior.
Na verdade, estamos perante um recurso interposto de uma decisão que ainda não pôs termo ao processo, na sua totalidade, uma vez que foi determinada a nulidade da decisão proferida pela autoridade administrativa, por fundamentos diversos.

7.– Assim, resta apurar qual a natureza da decisão proferida pelo tribunal “a quo”, no que se refere às questões que a recorrente suscita no presente recurso.
Pese embora a decisão judicial tenha declarado nula a decisão administrativa (e, nessa parte, esta deixa de existir em sede de ordenamento jurídico), a verdade é que se não quedou por aí, pois procedeu à apreciação de duas questões relativas à validade da prova, que a recorrente suscitou, considerando que à arguida não cabia razão.
8.– Temos assim que, em sede de apreciação de recurso de impugnação judicial, em processo contra-ordenacional, o Mº juiz “a quo” procedeu à apreciação de uma série de questões aí propostas, entendendo como questões prévias as concernentes à nulidade da prova obtida em violação do princípio nemo tenetur e à nulidade da prova recolhida pelos agentes de fiscalização, matéria esta em relação à qual a recorrente manifesta, no presente recurso, a sua não conformação com o decidido.
Sucede, todavia, que não estamos aqui perante questões prévias (que são as que obstam à possibilidade do conhecimento do mérito do recurso, o que não é o caso de nenhum dos dois temas atrás enunciados) mas antes perante questões que se inscrevem no próprio mérito do recurso e, que, como tais, têm de ser entendidas como decisões finais, pois põem termo ao processo no que a essas questões se reporta.
Assim, quanto a tais matérias, a sentença proferida tem natureza final.

9.– Tanto assim é que, se vier a ser proferida nova decisão administrativa e esta vier a ser impugnada judicialmente, a questão da validade da prova relativa aos temas em questão neste recurso já não poderá ser novamente alvo de discussão nessa sede (tribunal de 1ª instância), uma vez que já houve decisão judicial final a tal respeito e a lei não permite que, sobre o mesmo tema possa haver lugar a repetição de julgados, atenta a força do caso julgado (vide artºs 620 e 621 do C.P. Civil, aplicáveis ex-vi artº 4º do C.P. Penal e artº 41 nº1 do RGCO).
Assim, a seguir-se o raciocínio dos respondentes, de tal entendimento resultaria que as questões decididas a título de nulidade, erroneamente enunciadas como questões prévias quando, de facto, se prendem com o mérito, transitariam em julgado, sem poderem ser apreciadas por um tribunal superior.

10.– O que decorre do que se deixa dito é, no nosso entendimento, simples:
- a decisão proferida pelo tribunal “a quo” – relativamente à qual não foi suscitada nem se vislumbra que padeça de qualquer nulidade – é válida e já se pronunciou parcialmente, em termos finais, sobre determinadas matérias;
- assim, no que se reporta a todas as questões que a recorrente suscitou em termos de impugnação judicial e que não fundam a declaração de nulidade da decisão administrativa, a decisão proferida pelo tribunal “a quo” tem carácter de decisão final (e não meramente interlocutória), pois pôs termo ao processo quanto a essa questão, conhecendo de fundo.

11.– E se assim é, sobre tal decisão que pôs termo a tais matérias tem a recorrente direito a ver apreciado o recurso que relativamente às mesmas interpôs, designadamente quanto às questões relativas à nulidade da prova obtida em violação do princípio nemo tenetur e à nulidade da prova recolhida pelos agentes de fiscalização (vide, neste mesmo sentido, Acórdão do TRE, processo: 2473/04-1, de 3.11.2004: I. No processo contra-ordenacional só pode recorrer-se, para a Relação, das decisões finais e só das decisões finais que conheçam do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa, nos casos indicados no artº 73º do DL nº 433/82, de 27OUT. II. É final, e não interlocutória, a decisão que, no despacho de recebimento do recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, conhece de uma das questões suscitadas naquele recurso.)

12.– Resta então apurar o que resulta da lei quanto ao destino a dar ao presente recurso, em termos da sua admissibilidade, termos de subida e efeito.

13.– A Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro (LEI DAS COMUNICAÇÕES ELECTRÓNICAS) determina o seguinte, no seu artº 13.º (na parte que ora nos importa):

Controlo jurisdicional
1- As decisões, despachos ou outras medidas adoptados pela ARN no âmbito de processos de contra-ordenação decorrentes da aplicação do regime jurídico das comunicações electrónicas são impugnáveis junto do tribunal da concorrência, regulação e supervisão.
2- Os restantes actos praticados pela ARN são impugnáveis junto dos tribunais administrativos, nos termos da legislação aplicável.
3- A impugnação das decisões proferidas pela ARN que, no âmbito de processos de contra-ordenação, determinem a aplicação de coimas ou de sanções acessórias têm efeito suspensivo.
4- A impugnação das demais decisões, despachos ou outras medidas, incluindo as decisões de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, adoptados no âmbito de processos de contra-ordenação instaurados pela ARN têm efeito meramente devolutivo.
5- Aos processos de contra-ordenação instaurados no âmbito da presente lei aplica-se o disposto nos números seguintes e, subsidiariamente, o regime geral das contra-ordenações.
 (…)
12- As decisões do tribunal da concorrência, regulação e supervisão que admitam recurso, nos termos previstos no regime geral das contra-ordenações, são impugnáveis junto do tribunal da Relação territorialmente competente para a área da sede do tribunal da concorrência, regulação e supervisão.
13- O tribunal da Relação, no âmbito da competência prevista no número anterior, decide (…).

14.– Por seu turno, estipula o artº 73 do RGCO:
Decisões judiciais que admitem recurso
1– Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a)- For aplicada aa arguida uma coima superior a (euro) 249,40;
b)- A condenação da arguida abranger sanções acessórias;
c)- A arguida for absolvida ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d)- A impugnação judicial for rejeitada;
e)- O tribunal decidir através de despacho não obstante a recorrente se ter oposto a tal.
2– Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento da arguida ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3– Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.

15.– Da conjugação de tais preceitos, constata-se que as questões relativas à admissibilidade e condicionalismos dos recursos de decisões finais (ainda que parciais), terá de ser encontrada no âmbito do RGCO.
i.- O que resulta deste normativo é que, no caso de recursos interpostos pelos arguidos, a sua admissibilidade mostra-se condicionada à sua condenação em coima a partir de determinado montante ou em sanção acessória.
ii.- Assim, embora a decisão proferida pelo tribunal “a quo”, no que se refere às questões postas em crise no recurso que a recorrente interpôs, se tenha de entender como final nessa parte, pois conheceu questão de fundo (não estamos perante um despacho interlocutório, que se caracteriza como aquele que tem carácter meramente instrumental em relação à decisão final), a verdade é que a admissibilidade do presente recurso se mostra dependente de decisão final a proferir quanto à restante questão de fundo (condenação ou absolvição da recorrente).
 
16.– Daqui resulta desde logo que o presente recurso, se puder vir a ser admitido, terá que subir, ser instruído e julgado conjuntamente com o recurso interposto da decisão que vier a pôr termo à causa, conhecendo da restante matéria que a sentença de 19 de Junho de 2017 não conheceu; isto é, terá de ficar a aguardar que seja apreciada a sua admissibilidade, operação que apenas poderá ser realizada após o proferimento de decisão que ponha termo à causa, na sua íntegra.

17.– Deste regime de subida resulta, igualmente, que a admissibilidade desse recurso fica dependente da natureza da decisão que vier a ser proferida, pois será esta que determinará a legitimidade e a admissibilidade do recurso da decisão final, do qual depende o destino do recurso interposto pela recorrente M., sendo certo, igualmente, que ainda assim, a sua apreciação terá de ser expressamente pedida, face ao vertido no nº 5 do artº 412 do C.P. Penal (pois compete ao recorrente decidir se lhe interessa ainda que as questões contidas em tal recurso retido venham a ser alvo de apreciação).

18.– Decorre ainda que, cabendo ao Tribunal da Relação a apreciação de decisões proferidas por Tribunal de 1ª instância, como é o caso dos autos, pois a decisão objecto do recurso foi proferida por despacho judicial, isso significa que a decisão que ponha termo à causa, no que a este caso respeita, se reporta à que vier a ser proferida pelo Tribunal da Concorrência, que venha a conhecer da restante matéria de fundo ainda não apreciada.

19.– De tudo quanto se deixa exposto resulta que o despacho que admitiu o recurso interposto, porque não consentâneo com o regime legal, tem de ser alterado, já que, atento o disposto no artº 414 nº3 do C.P. Penal, tal decisão não vincula o tribunal superior.

iii–decisão.
Face ao exposto, não sendo a decisão de admissão do recurso vinculativa para este Tribunal (artº414 nº3 do C.P.Penal) e não devendo aquele ter sido admitido neste momento processual, acorda-se em revogar o despacho que o admitiu, substituindo-se por outro que determina que o recurso interposto pela arguida M. – scm, s.a. a fls. 1624 e segs. será alvo de apreciação, quanto à sua admissibilidade, quando e se vier a ser interposto recurso da decisão que ponha termo à causa na sua totalidade, proferida pelo Tribunal da Concorrência, nos termos e condicionalismos acima expostos.
Sem tributação.


Lisboa, 25 de Outubro de 2017



(Margarida Ramos de Almeida)
(Ana Paramés)



[1]Sobre a evolução e contexto histórico do princípio, cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS E MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Supervisão, Direito ao Silêncio, e Legalidade da Prova, in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Coimbra, Almedina, 2009.
[2]Cfr. FREDERICO DA COSTA PINTO, Supervisão do mercado, legalidade da prova e direito de defesa em processo de Contra-Ordenação” (Parecer) in Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 95-97, que reconduz o direito ao silêncio apenas ao direito a não responder a perguntas ou prestar declarações sobre os factos que lhe são imputados, e o direito a recusar a entrega de elementos no âmbito do dever de se sujeitar a diligências de prova previsto no artigo 61º, nº3, al. d) do CPP; e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, pág. 183.
[3]Como exemplo de deveres de cooperação de litigância recorrente, conferir, entre outros, os deveres impostos pela Lei da Concorrência, n.º 18/2003, de 11 de Junho, e pelo Código dos Valores Mobiliários. 
[4]Para ulterior desenvolvimento, cfr. JOANA COSTA, O princípio nemo tenetur na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Revista do Ministério Público 128 : Outubro : Dezembro 2011 [ pp. 117-183.
[5]Que aprovou os Estatuto do ICP-ANACOM, lendo-se no seu n.º 1 que os trabalhadores do ICP-ANACOM, os respectivos mandatários, bem como as pessoas ou entidades qualificadas devidamente credenciadas que desempenhem funções de fiscalização, quando se encontrem no exercício das suas funções, são equiparados a agentes de autoridade, e no n.º 2 que aos trabalhadores do ICP-ANACOM, respectivos mandatários, bem como pessoas ou entidades qualificadas devidamente credenciadas que desempenhem as funções a que se refere o número anterior serão atribuídos cartões de identificação, cujo modelo e condições de emissão constam de portaria do membro do Governo responsável pelas comunicações
[6] “ (…) considerando que as competências de fiscalização devem ser exercidas com inteira salvaguarda dos direitos e garantias dos cidadãos, sem prejuízo da eficácia das acções de fiscalização, os trabalhadores do ICP-ANACOM e os respectivos mandatários, bem como as pessoas ou entidades qualificadas devidamente credenciadas que desempenhem funções de fiscalização, são, para tais efeitos, equiparados a agentes de autoridade. Essas pessoas ou entidades devem, nos termos da lei, possuir cartões de identificação que atestem as funções que desempenham, cujo modelo e condições de emissão constam de portaria do membro do
Governo responsável pelas comunicações.