Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
167/09.2TYLSB-C.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
OBRIGAÇÃO DE MANTER CONTABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa e o seu comportamento negocial, quer por parte do empresário, quer por parte daqueles que se relacionam com a empresa, quer por parte do público em geral.
II. Para que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada possa ser fundamento de qualificação da insolvência como culposa, nos termos da al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, ele tem de ser ‘em termos substanciais”.
III. O incumprimento deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”
IV. E porque para o efeito em causa o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário, a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório
Por sentença de 05JUN2009 foi decretada a insolvência da devedora, nomeado o Administrador da Insolvência, bem como declarado aberto o incidente da qualificação da insolvência com carácter pleno (passando, após o posterior encerramento do processo, a carácter limitado).
O Administrador da Insolvência ofereceu o seu parecer no sentido de a insolvência ser qualificada de culposa porquanto não foi cumprida a obrigação de apresentação à insolvência e não foram depositadas as contas da sociedade desde 2006, e, além disso, não manter contabilidade organizada desde 2007, propondo a afectação por tal qualificação dos administradores da Insolvente (que não obstante terem renunciado aos seus cargos o fizeram quando já se verificavam os fundamentos da qualificação invocados).
O MP secundou tal parecer.
Foi ordenada a citação dos propostos afectados.
O Proposto Afectado pela Qualificação 1 deduziu oposição alegando não lhe poder ser assacada qualquer culpa pela insolvência, que ficou a dever-se à abrupta cessação de fornecimento de conteúdos e assistência pela ‘casa mãe’ suíça e pela recusa do accionista maioritário em fazer os investimentos a que se tinha comprometido, o que o levou a renunciar às funções de administrador, que vinha exercendo desde 21OUT2005, em 30MAI2008, desligando-se por completo da empresa; por outro lado ficou acordado com o accionista maioritário a requerer a insolvência, por a insolvente já não ter meios próprios para o fazer.
O Proposto Afectado pela Qualificação 2 deduziu oposição alegando que renunciou ao cargo de administrador da insolvente em 29JUN2005, não tendo tido qualquer intervenção na administração da mesma nos três anos anteriores ao início do processo.
O Proposto Afectado pela Insolvência 3 deduziu oposição alegando que foi administrador não executivo sem nenhuma intervenção relevante na gestão da sociedade e que em meados de 2006 renunciou ao cargo desligando-se por completo da vida da sociedade.
A final foi proferida sentença que, considerando não se verificarem os pressupostos da qualificação da insolvência com base no nº 3 do art.º 186º do CIRE (não apresentação à insolvência, elaboração, fiscalização e depósito das contas) mas verificar-se a situação prevista na al. h) do nº 1 do mesmo artigo (inexistência de contabilidade organizada), qualificou a insolvência como culposa, declarando como afectado pela mesma o Proposto Afectado pela Qualificação 1, ao qual aplicou a inibição prevista na al. c) do nº 2 do art.º 189º do CIRE pelo período de dois anos, e exonerando dessa afectação dos demais propostos.
Inconformado, apelou o (Proposto) Afectado pela Qualificação concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, inexistência de dolo ou culpa grave na sua conduta enquanto administrador da insolvente nem nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência, bem como desproporcionalidade da inibição que lhe foi aplicada.
Contra-alegou o MP propugnando pela manutenção do decidido.
II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde já se constata que transitou em julgado a decisão recorrida na parte em que exonerou da afectação os Propostos Afectados pela Qualificação 2 e 3, sendo as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- do erro na decisão de facto;
- da qualificação da insolvência como culposa ao abrigo do disposto na al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE;
- da proporcionalidade da decretada medida de inibição.
III – Fundamentos de Facto
Na 1ª instância fixou-se o seguinte elenco factual:
1. Em 11.02.2009, AAA — Sociedade de Capital de Risco, S.A. requereu a declaração de insolvência de BBB — Distribuição de Imprensa, Jornais e Revistas, S.A.
2. BBB — Distribuição de Imprensa, Jornais e Revistas, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 5.06.2009.
3. O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente por sentença de 2.11.2009
4. Foram nomeados para o Conselho de Administração para o triénio 2005/2007:
a. WWW ...;
b. YYY ... — Sociedade de Investimentos, S.A., que designou para exercer o cargo em nome próprio XXX ... ;
c. ZZZ ... .
5. XXX ...  renunciou à administração em 29.06.2006;
6. ZZZ ...  renunciou à administração em 28.01.2008;
7. YYY ...— Sociedade de Investimentos, S.A. renunciou à administração em 27.05.2008.
8. WWW ... renunciou à administração em 30.05.2008, tendo o registo da renúncia sido apresentado em 30.01.2009.
9. A insolvente depositou na conservatória do registo comercial as contas referentes ao exercício de 2006.
10. Desde 2007, na sequência da cessação de funções do TOC, que a insolvente não dispunha de contabilidade organizada.
11. O Requerido WWW ... era o promotor do projecto, accionista minoritário e quem geria a insolvente.
12. Os Requeridos XXX ...  e ZZZ ...  eram administradores não executivos.
13. ( …) Newspapers era uma empresa holandesa que desenvolveu uma tecnologia que permitia imprimir jornais numa máquina que os recebia por satélite.
14. A insolvente era a representante em Portugal da ( ... ) Swiss, GmbH.
15. A partir de data não concretamente apurada, a ( ... ) Swiss, GmbH deixou de fornecer os conteúdos (jornais) e de prestar a assistência técnica à insolvente.
16. A insolvente teve actividade até Maio de 2008.
O Recorrente pretende que a tal elenco factual se aditem os seguintes factos:
a) A BBB dependia totalmente da Casa Mãe, ( ... ) Swiss, GmbH, que fornecia o hardware e o software, prestando a respectiva assistência técnica;
b) As dificuldades sentidas pela insolvente (que acabaram por determinar a declaração da sua insolvência) ficaram a dever-se ao cessar dos fornecimentos e da assistência técnica por parte da ( ... ) Swiss, GmbH;
c) A renúncia do TOC ficou a dever-se à falta de pagamento dos seus honorários;
d) A renúncia do TOC ocorreu em finais de 2007.
Os factos cujo aditamento se pretende relevam para enquadrar circunstancialmente as causas da insolvência bem como o comportamento dos administradores da insolvente perante as mesmas e nessa medida podem vir a ter relevância para a apreciação jurídica das questões objecto do recurso, em face da plausível diversidade de abordagens jurídicas. Pelo que não se podem qualificar como irrelevantes, como alvitra o MP nas suas contra-alegações, havendo de conhecer da pretensão formulada.
E esses factos encontram-se suficientemente demonstrados através das declarações de parte (que explicitou, de forma objectiva, o modelo de negócio, o seu financiamento e a sua evolução) que foram corroboradas quer pela testemunha ( Maria ... ) (que, enquanto funcionária do accionista principal acompanhou o desenrolar do processo de investimento) quer pela testemunha ( Cat ... ) (funcionária da insolvente na área da contabilidade).
E, para além dos factos cujo aditamento se pretende, resultaram ainda demonstrados outros facto alegados pelo recorrente, em virtude das provas acabadas de referir que este tribunal entende, ao abrigo do disposto nos artigos 662º, nº 1, do CPC e 11º do CIRE, aditar ao elenco dos factos provados.
Em conformidade, fixa-se o seguinte elenco factual (assinalando a negrito as alterações efectuadas):
17. Em 11.02.2009, AAA — Sociedade de Capital de Risco, S.A. requereu a declaração de insolvência de BBB — Distribuição de Imprensa, Jornais e Revistas, S.A.
18. BBB — Distribuição de Imprensa, Jornais e Revistas, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 5.06.2009.
19. O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente por sentença de 2.11.2009
20. Foram nomeados para o Conselho de Administração para o triénio 2005/2007:
a. WWW ...;
b. YYY ...— Sociedade de Investimentos, S.A., que designou para exercer o cargo em nome próprio XXX ... ;
c. ZZZ ... .
21. XXX ...  renunciou à administração em 29.06.2006;
22. ZZZ ...  renunciou à administração em 28.01.2008;
23. YYY ...— Sociedade de Investimentos, S.A. renunciou à administração em 27.05.2008.
24. WWW ... renunciou à administração em 30.05.2008, tendo o registo da renúncia sido apresentado em 30.01.2009.
25. A insolvente depositou na conservatória do registo comercial as contas referentes ao exercício de 2006.
26. Desde 2007, na sequência da cessação de funções do TOC, que a insolvente não dispunha de contabilidade organizada.
27. O Requerido WWW ... era o promotor do projecto, accionista minoritário e quem geria a insolvente.
28. Os Requeridos XXX ...  e ZZZ ...  eram administradores não executivos.
29. ( …) Newspapers era uma empresa holandesa que desenvolveu uma tecnologia que permitia imprimir jornais numa máquina que os recebia por satélite.
30. A insolvente era a representante em Portugal da ( ... ) Swiss, GmbH.
31. A partir de data não concretamente apurada, a ( ... ) Swiss, GmbH deixou de fornecer os conteúdos (jornais) e de prestar a assistência técnica à insolvente.
32. A insolvente teve actividade até Maio de 2008.
33. A BBB dependia totalmente da Casa Mãe, ( ... ) Swiss, GmbH, que fornecia o hardware e o software, prestando a respectiva assistência técnica;
34. As dificuldades sentidas pela insolvente (que acabaram por determinar a declaração da sua insolvência) ficaram a dever-se ao cessar dos fornecimentos e da assistência técnica por parte da ( ... ) Swiss, GmbH, a partir de meados de 2006;
35. A insolvente tentou ultrapassar a situação intentando desenvolver internamente soluções tecnológicas que eliminassem a sua dependência da Casa Mãe;
36. O sócio maioritário, que havia mostrado interesse em financiar o esforço de desenvolvimento de soluções tecnológicas por parte da insolvente, não veio entretanto a confirmar esse interesse, recusando aquele financiamento;
37. E não se dispôs a aceitar a venda das suas acções a investidor angariado pela administração da Insolvente;
38. A renúncia do TOC ficou a dever-se à falta de pagamento dos seus honorários;
39. A renúncia do TOC ocorreu em finais de 2007.
IV – Fundamentos de Direito
Três são os requisitos estabelecidos no nº 1 do art.º 186º do CIRE para que a insolvência possa ser qualificada como culposa: a) uma actuação culposa (dolo ou culpa grave) por parte do insolvente ou dos seus administradores; b) que essa actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; c) que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada em consequência daquela actuação culposa (nexo de causalidade).
No nº 2 do mesmo artigo, porém, elencam-se um conjunto de situações em que se considera sempre culposa a insolvência.
Tem-se vindo a discutir se esse normativo estabelece presunções de culpa e nexo de causalidade, ou antes factos índice, situações típicas ou ficções legais, a partir dos quais se assume a qualificação da insolvência como culposa.
Mas por outro lado também se chama a atenção para que as várias alíneas do art.º 186º do CIRE estão eivadas de conceitos abertos/indeterminados para cuja densificação se torna necessário apelar a um nexo causal e a uma justa medida (proporcionalidade).
O que está em causa no presente caso é a al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE que determina que seja sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Nessa disposição legal estão compreendidas três diferentes situações de facto: a) a prática de irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; b) a manutenção de contabilidade fictícia ou de dupla contabilidade; c) incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter a contabilidade organizada.
Enquanto fundamento de qualificação da insolvência como culposa o não cumprimento da obrigação de manutenção de contabilidade organizada só releva na medida em que esse incumprimento seja substancial; na medida em que põe em causa a essência ou os fundamentos da exigência de contabilidade.
Assim, e como já se afirmou no acórdão da Relação de Coimbra de 08FEV2011 (proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1)[1], o incumprimento deve “considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.
A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa. Em primeiro lugar, revela ao empresário a situação económico financeira da empresa, permitindo-lhe aferir dos fluxos financeiros, das perdas, dos prejuízos, as actuações onde se geram factores negativos e positivos. Mas também para quem se relaciona com a empresa (sócios, credores, clientes), quer porque constitui garantia de quem com ela contrata, que se serve dos dados contabilísticos como meio de prova, quer porque evidencia perante terceiros a situação económica e patrimonial da empresa e a maneira de negociar do empresário, satisfazendo um geral interesse público.
Para os efeitos da alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário pelo que a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só se pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis[2].
No caso dos autos não se vislumbra que a ausência de contabilidade organizada durante o período que decorreu entre a cessação de funções do TOC no final de 2007 e a renúncia do cargo de administrador do Apelante em 30MAI2008 (que coincidiu com a saída dos trabalhadores e a cessação de actividade da empresa) tenha impossibilitado o conhecimento sobre as causas da insolvência; nem sequer da eventualidade de tal omissão visar a ocultação de situações que tenham agravado as causas da insolvência.
Neste termos conclui-se pela inexistência do invocado fundamento para qualificar a insolvência como culposa e, consequentemente, decretar a afectação do Apelante pela mesma.
V – Decisão
Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a sentença recorrida na parte ainda não transitada e, em consequência, se declara a insolvência fortuita exonerando-se o Apelante de por ela ser afectado.
Custas do recurso pela Massa Insolvente.

Lisboa, 11DEZ2019
Rijo Ferreira
Rosário Gonçalves
Manuel Marques
_______________________________________________________
[1] - CJ, 1/2011, pg.31.
[2] - Cf. Rui Estrela de Oliveira, Uma Brevíssima Incursão Pelos Incidentes de Qualificação da Insolvência, Revista ‘Julgar’, nº 11, 2010, pg. 242.