Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
985/15.2T8AGH-A.L1-6
Relator: CARLOS M. G. DE MELO MARINHO
Descritores: EXECUÇÃO
PLURALIDADE DE EXECUÇÕES
EXECUÇÃO FISCAL
HABITAÇÃO PRÓPRIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Os Tribunais devem fazer a articulação e harmonização de interesses aparentemente colidentes quando os mesmos sejam conjugáveis ou a sua hierarquização quando essa concatenação não se revele possível no caso concreto;

II. O sistema jurídico não pode remeter os titulares de direitos para potenciais becos sem saída no que à sua protecção efectiva se refere;

III. O disposto no n.º 1 do art. 794.º do Código de Processo Civil deve ser lido como referindo a pendência de execuções efectivas com potencialidade de atingirem o seu fim último de materialização coerciva de direitos, incidentes sobre os mesmos bens, o que afasta do seu âmbito as execuções definitivamente inviabilizadas antes de atingirem a sua finalidade última face ao disposto no n.º 2 do art. 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


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I.RELATÓRIO:

                 
A C..., com os sinais identificativos constantes dos autos,  instaurou «Execução Sumária (Ag. Execução)» contra I... e T..., neles também melhor identificados, por intermédio da qual pediu em Juízo a cobrança coerciva de capital e juros relativos ao contrato de mútuo garantido por hipoteca invocado no requerimento executivo e alegadamente incumprido.

Nesse processo, com data de 26.02.2016, foi realizada penhora de 2/3 do bem imóvel descrito a fl. 25.

Com data de 17.04.2014 havia sido penhorado 1/3 do mesmo imóvel na execução fiscal n.º 2.............80 em que figuravam como Exequente o Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo e como Executado T....

Na acção executiva em que se gerou o presente recurso, o Sr. Agente de Execução declarou, com data de 31.05.2016, invocando o disposto no art. 794.º do Código de Processo Civil,  sustar a execução relativa ao objecto da penhora com fundamento na existência de penhora anterior.

Com a mesma data, esse Agente subscreveu o texto reproduzido a  fls. 21 e 22 pelo qual comunicou ao Ex.mo Mandatário da Exequente a existência de duas penhoras anteriores incidentes sobre o aludido prédio, sendo uma delas relativa a execução em que figurava como Exequente o Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo.

A Exequente reclamou o seu crédito através de requerimento dirigido ao Sr. Chefe do Serviço de Finanças do Conselho de Angra do Heroísmo.

No processo de execução fiscal, a caixa económica (…) requereu a venda de 1/3 do referido prédio urbano.

Aí foi decidido não haver lugar à venda requerida com o fundamento proposto e objecto de concordância superior de que «a presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal. Estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado».

A Exequente apresentou, no processo em que se gerou o recurso, requerimento com o seguinte teor:
C..., exequente no processo à margem identificado, vem expor e requerer a V.Exa o seguinte:
No âmbito da presente execução a exequente penhorou, entre outros, o direito a 1/3 do prédio urbano sito na Rua (...), inscrito na respetiva matriz sob o artº (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Angra do Heroísmo na ficha nº (…) da referida freguesia, da qual é titular o executado TA....

Por notificação do Agente de Execução, datada de 2 de junho de 2016, que informou ter a execução, relativamente àquele bem penhorado, sido sustada por existir uma penhora anteriormente registada a favor do Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo, a exequente foi reclamar créditos no processo de execução fiscal nº ..., conforme prova cópia do seu requerimento (doc. nº 1).

O processo de execução fiscal seguiu a sua tramitação, tendo chegado à fase da venda, tendo a exequente – face à morosidade do processo – requerido se diligenciasse pela sua venda, tendo obtido da Autoridade Tributária o despacho que se junta (doc. nº 2), referindo não efetuar a venda, uma vez que o prédio constitui a casa de morada do executado, pelo que na nova redação do artº 244º do CPPT, está impedida de o fazer.

Atendendo a este posição da Autoridade Aduaneira – assente num normativo legal de duvidosa constitucionalidade – a exequente só poderá, em hipótese, ser ressarcida do seu crédito se o executado mudar de residência ou só após a sua morte, o que contraria as mais legítimas expetativas e direitos de quem concede um financiamento, tanto mais com garantia hipotecária sobre o referido imóvel.

Face ao exposto, requer-se a V.Exa que prossiga a presente execução para a venda do referido 1/3 do executado TA..., sendo notificada a Autoridade Tributária para, querendo, reclamar os seus créditos na presente execução.

O Tribunal «a quo» proferiu a seguinte decisão:
(…) entendemos, na interpretação que fazemos do art.º 244º, n.º 2, do CPPT, que o Exequente não se encontra impedido de exercer o direito a ver satisfeito o seu crédito através da penhora do bem imóvel que se encontra penhorado na execução fiscal, podendo promover a venda do mesmo.”

III.– Face ao exposto, e apesar das judiciosas considerações a que alude o acórdão citado pela exequente, entendemos que a nossa posição mantém actualidade, sendo a mais conforme com a lei, e, nessa medida, julgamos que, quanto àquele bem, a execução permanece sustada por força da existência de penhora anterior, indeferindo, assim, o requerido prosseguimento dos autos quanto a esse bem, com a sua consequente venda em sede de execução judicial.

É dessa decisão que vem o presente recurso interposto pela Exequente, que alegou e apresentou as seguintes conclusões:
A)– A ora Recorrente instaurou, em 24 de setembro de 2015, contra os Recorridos uma ação executiva para cobrança da importância de 123.071,42 e juros vincendos, da qual 99.316,12 era referente a capital e os restantes 23.755,31 de juros vencidos até aquela data;
B)– Na sequência da referida execução for penhorado o direito a 1/3 de cada um dos executados, ou seja, 2/3 do prédio urbano sito na Rua..., a freguesia da Nossa Senhora da Conceição, concelho de Angra do Heroísmo, inscrito na matriz sob o artigo …. e descrito na Conservatória do Registo Predial de Angra do Heroísmo na ficha n.º … da referida freguesia.
C)– Por notificação do Agente de Execução de 31 de maio de 2016 foi a da execução sustada quanto ao direito a 1/3 do executado TA..., sobre o identificado prédio, pelo facto de existir uma penhora anteriormente registada no Processo de Execução Fiscal n.º ..., em que figura como exequente o Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo, processo esse, entretanto extinto, mas encontrando-se também registada uma penhora no Processo de Execução n.º …. e apenso, pelo que a, ora, Recorrente, nesta execução fiscal reclamou os seus créditos.
D)– Atingida a fase de venda do referido 1/3 e porque a mesma não era realizado, a Recorrente, no dia 1 de Fevereiro de 2018, apresentou um requerimento à Autoridade Tributária e Aduaneira, no referido processo executivo,no qual se requereu o agendamento da sua venda, tendo esta, por despacho do dia 2 de fevereiro de 2018, deliberado não haver lugar à marcação de respetiva venda, pelo facto do executado ter morada no referido prédio e com a nova redação do art.º 244º n.º 2 do CPPT não haver lugar em processo de execução fiscal à realização de venda do imóvel destinado a habitação própria e permanente do devedor, quando o prédio esteja efetivamente afeto a esse fim.
E)– Perante este despacho da Autoridade Tributária e Aduaneira a Recorrente apresentou no Tribunal recorrido um requerimento em 26 de fevereiro de 2018, onde explica e junta cópia do referido despacho, requerendo o prosseguimento da presente execução com vista à venda do direito a 1/3 do executado TA.....
F)– Em 6 de junho de 2018 a, ora, Recorrente é notificada do despacho do Mº Juiz do Tribunal a quo que indeferiu o requerimento para o prosseguimento do presente processo executivo quanto ao referido bem, bem como a sua consequente venda em sede de execução judicial.
G)– Como o próprio Tribunal recorrido reconhece, a nova redação do art. 244 do CPPT estabeleceu um impedimento legal à venda dos imóveis que se encontram nessas circunstâncias, pelo que, o, ora, Recorrente fica sem possibilidade de ser ressarcido do seu crédito, total ou parcial, pois não pode vender o bem, quer por via dos presentes autos, quer por via do processo executivo fiscal, onde reclamou os seus créditos.
H)– A não prosseguirem os presentes autos para a venda do bem penhorado, por força da penhora anteriormente registada à ordem a execução fiscal - na qual não haverá venda, em face da Lei nº 13/2016 de 23/05, que alterou o art. 244º do CPPT - obsta-se que o credor hipotecário possa executar a sua garantia e obter a satisfação do seu crédito pela venda judicial do seu objeto, em execução por si movida, o que limita inaceitavelmente o seu direito de acesso à justiça, constitucionalmente consagrado no art. 209 da CRP"
I)– Estando os autos de execução fiscal suspensos não se verifica, neste caso concreto o circunstancialismo do art.º 794 nº 1 do C.P.C - pendência de duas ou mais execuções dinâmicas sobre o mesmo bem;
J)– O despacho do Mº Juízo, do qual se recorre, viola os artºs 794º nº 1 do CPC, artº 244º do CPPT, bem como o consagrado no artº 209 da C.R.P, pelo que deve o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene o levantamento da sustação quanto ao direito a 1/3 do executado TA... sobre o imóvel dado de hipoteca e o consequente prosseguimento da presente execução para a venda do bem penhorado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É a seguinte a questão a avaliar:
O despacho impugnado viola o disposto nos art.s 794.º n.º 1 do Código de Processo Civil e 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário bem como o consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa?

II.– FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto
Relevam, neste espaço lógico da presente decisão, os factos processuais vertidos no relatório supra-lançado.

Fundamentação de Direito
O despacho impugnado viola o disposto nos art.s 794.º n.º 1 do Código de Processo Civil e 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário bem como o consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa?
O Recorrente pretende que seja reponderada a decisão impugnada à luz do disposto nos artigos referidos na pergunta supra-lançada.

O primeiro estabelece:
Artigo 794.º
Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens
1– Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.

O segundo estatui:

Artigo 244.º
Realização da venda
1– A venda realiza-se após o termo do prazo de reclamação de créditos.
2– Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
3– O disposto no número anterior não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis.
4– Nos casos previstos no número anterior, a venda só pode ocorrer um ano após o termo do prazo de pagamento voluntário da dívida mais antiga.
5– A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não releva para efeitos do disposto no artigo 217.º, enquanto se mantiver o impedimento à realização da venda previsto no número anterior, e não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado.
6– O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado.
(negrito nosso)

Consta do terceiro:
Artigo 20.º
(Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva)
1.– A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2.– Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3.– A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.
4.– Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5.– Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.

A Exequente poderia, ainda, ter invocado, no quadro da sua linha de interesses, outras normas de relevo que apontam para a insuceptibilidade de perda da necessária dinâmica processual em direcção à efectiva tutela de direitos, não só emergentes do Direito internacional pactício (art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da União Europeia) e da União Europeia ( art. 47.º da Carta Dos Direitos Fundamentais Da União Europeia) mas também do próprio Direito adjectivo (entre as quais avultam o art. 2.º e o art. 10.º, n.º 4 do Código de Processo Civil).

Esta fileira de interesses que identificaríamos, sintetizando, como de acesso aos Direito e aos Tribunais e à tutela efectiva de direitos, convive, na situação que cumpre apreciar, com dois outros, a saber: o de apoio aos cidadãos e famílias  endividadas atingidas pela crise das dívidas soberanas e do sector financeiro, colocados em risco de perderem a sua habitação própria e permanente (vd. o  art. 1.º da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que introduziu a redação acima transcrita dos n.ºs 2 a 6 do  art. 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, consignando: «A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado»), e o interesse público e colectivo de real cobrança dos créditos fiscais (cf.  art. 103.º da Constituição da República Portuguesa).

Na busca da melhor solução, tem peso decisivo o disposto no art. 9.º do Código Civil invocado na decisão impugnada que aponta para uma interpretação reconstitutiva da unidade sistemática e que atenda aos elementos genésicos da norma, aqui se incluindo a sua teleologia. Mas não tem menor peso a noção a assumir de que os Tribunais devem fazer a articulação e harmonização de interesses aparentemente colidentes quando os mesmos sejam conjugáveis ou a sua hierarquização quando essa concatenação não se revele possível no caso concreto.

A construção da Recorrente é toda ela assente num dos interesses, de carácter inegavelmente central e decisivo: o de acesso ao Direito e aos Tribunais e à tutela efectiva.

Quanto ao segundo, que poderemos apelidar, de forma simplificadora, de interesse de protecção do acesso à habitação pelos sobreendividados, estamos perante vontade de relevo claramente inferior (por atender a finalidades programáticas que não podem ser materializadas à custa de direitos fundamentais de outros cidadãos), tutelada num contexto fiscal e não fora dele e que não extrava para áreas não visadas pelo legislador como é a dos processo judiciais. Não cabe, pois, aqui, tutelá-lo, apenas cumprindo respeitar a opção legislativa corporizada na norma de incidência tributária sob referência.

Relativamente ao terceiro, encontramo-nos em plena área de exclusiva  opção política admitindo-se, pois, a sua compressão nos termos materializados no n.º 2 do  art. 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Nesse quadro, não faz, sobretudo, sentido pretender tutelá-lo contra-corrente, com encarniçamento da vontade de manter indefinidamente a garantia que o Estado, afinal, decidiu alijar.

O legislador, relativamente aos processos de execução fiscal situados no contexto descrito não estabeleceu, sequer, balizas temporais o que permite concluir que prescindiu da cobrança coerciva nas condições definidas na «fattispecie» até alteração de vontade a manifestar em novo diploma legal, pelo que, à luz do Direito constituído, há que concluir que renunciou à cobrança através da alienação de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar. Daqui resulta que não tem sentido colocar o interesse da cobrança dos créditos fiscais na equação de aferição do relevo e articulação de interesses. Não fora esta opção «definitiva», antes deveríamos porfiar pela não frustração dos interesses fiscais e supressão dos efeitos da penhora tributária, situação em que ganharia mais sentido a solução atingida na decisão da 1.ª instância.

Aqui chegados, temos, pois, que o único interesse a ponderar nesta sede é  o relativo à tutela efectiva. A melhor solução do problema proposto será, assim, a que melhor assegurar a tutela dos direitos dos credores munidos de títulos executivos.

A este nível, o Tribunal «a quo», após louvável e respeitável construção que revelou séria preocupação com a coerência do sistema, concluiu que, apesar da decisão contrária já obtida da Administração Fiscal, a Exequente deveria, ainda, lutar, porfiar, recorrer, convencer a Justiça Tributária a impor a essa Administração que promova a venda do bem, apesar de o legislador lhe dizer expressamente para não o fazer, com  fundamento em se tratar de situação em que existem créditos não tributários a graduar, reconhecer e fazer honrar.

Digamos que, apesar de válida, esta solução, porque sempre dependente de futuras interpretações de sinal diverso e potenciais bloqueios é por demais incerta e potencialmente menos efectiva. Por esta via, inegavelmente relevante e decisiva, a construção questionada dá o flanco e revela fragilidade.

Poderia, no entanto, tratar-se de fragilidade aceitável já que, em termos ideais, a solução avançada pelo Tribunal «a quo» é também susceptível de conduzir, nos casos de aceitação a jusante da tese nela contida, à tutela efectiva.

Mas será que existe melhor solução? Haverá resposta técnica que, não violando princípios axilares, melhor proteja as empresas e os cidadãos que visem cobrar, com recurso à vis executiva, créditos garantidos por bens abrangidos pelo art. 244.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário?

É a este nível que se revela a utilidade e importância da tese vertida no aresto jurisprudencial afastado pelo Órgão Judicial de 1.ª instância. Tal decisão, não restringindo ou desaplicando regras de Direito adjectivo e menos frustrando os seus objectivos, assentou a sua arquitectura sobre uma acertada e inteligente noção de processo dinâmico (ou seja, consagrando a concepção de que o processo corresponde a um encadeado de actos orientados para uma finalidade que não pode ser definitivamente entorpecida ou bloqueada – vd., por todos, o já invocado  art. 2.º do Código de Processo Civil).

Tem todo o sentido técnico e bondade, quanto à solução atingida, o  sumariado a propósito desse aresto (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.09.2017, processo n.º 1420/16.4T8VIS-B.C1, Relator: Juiz Desembargador FONTE RAMOS, in http://www.dgsi.pt) nos seguintes termos:
1.– A ratio legis da norma do art.º 794º do CPC, tendo subjacente razões de certeza jurídica e de protecção tanto do devedor executado, como dos credores exequentes, postula que ambas as execuções se encontrem numa situação de dinâmica processual.
2.– Com o estatuído no seu n.º 1 pretende-se evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens`; a liquidação tem de ser única e, em princípio, há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar.
3.– Inexistindo inércia da Fazenda Nacional na tramitação da execução fiscal (com penhora prioritária) mas, apenas, a consequência decorrente do regime jurídico que impede a venda, nesse processo, de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (art.º 244º, n.º 2 do CPPT, na redacção conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23.5), afigura-se que, inviabilizado na execução fiscal mecanismo algum de tutela do direito do credor garantido pela penhora na execução comum (o credor reclamante, neste caso credor hipotecário, não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma), não resta alternativa ao levantamento da sustação da execução comum para que se providencie pela actuação conducente à realização da venda no processo executivo cível, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação.
4.– Entendimento contrário, cremos, postergaria os mais elementares princípios do processo executivo e afrontaria, necessariamente, o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e a garantia do credor à satisfação do seu crédito (art.º 62º, n.º 1 da CRP), tornando, pelo menos, desproporcionadamente mais difícil ou onerosa a satisfação do direito do exequente (com violação do art.º 18 da CRP).

O sistema jurídico não pode remeter os titulares de direitos para potenciais becos sem saída no que à sua protecção efectiva se refere.

Face ao que se vem referindo, tem que se concluir que  o disposto no n.º 1 do  art. 794.º do Código de Processo Civil deve ser lido como referindo a pendência de execuções efectivas, com potencialidade de atingirem o seu fim último de materialização coerciva de direitos,  incidentes sobre os mesmos bens, o que afasta do seu âmbito as execuções definitivamente inviabilizadas antes de atingirem a sua finalidade última ao abrigo do estabelecido no n.º 2 do  art. 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

Flui do exposto dever-se responder afirmativamente à questão proposta.

III.–DECISÃO
Pelo exposto, julgamos a apelação procedente e, em consequência, revogamos a decisão impugnada que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos relativamente ao bem dela objecto.
Custas pelos Apelados.
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Lisboa, 07.02.2019



Carlos M. G. de Melo Marinho (Relator)
Anabela Moreira de Sá Cesariny Calafate (1.ª Adjunta)
António Manuel Fernandes dos Santos (2.º Adjunto)