Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24075/17.4TSLSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO LEGAL
VINCULAÇÃO DA DECISÃO
LITISCONSORTE PRETERIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE / REVOGADA
Sumário: 1. Uma sentença proferida com preterição do litisconsórcio necessário legal não vincula o autor no confronto com o “codestinatário’’ ausente, nem se trata de uma sentença inexistente ou absolutamente nula.

2. Aquela sentença vincula as partes no confronto das quais foi pronunciada mas só em novo processo entre as mesmas instaurada em que se discuta idêntica questão, não já quando qualquer dos sujeitos primitivos promova nova causa chamando o litisconsorte preterido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
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JF instaurou acção declarativa, com processo comum, contra LS pedindo a condenação do réu no pagamento de € 5.012,00 (Cinco mil e doze euros), acrescida de juros de mora desde a data da prática dos factos e até efectivo e integral ressarcimento.
Alegou, em síntese, que:
- Em 06/03/2012, o Autor intentou acção contra as sociedades comerciais M. E.P.E. e Empresa de Segurança e autuada com o n.º…, tendo corrido termos No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
- No decurso da referida acção foi apurada a identidade e intervenção do R, funcionário da Empresa de Segurança na prática de factos ilícitos, alegado naquela acção;
- Em virtude dos factos praticados pelo R, que lhe danificou o passe, ao tentar ajudá-lo, sofreu danos patrimoniais, no valor do passe (€ 12,00) e danos não patrimoniais, resultantes de ter sofrido vexame e de ter passado a sofrer de depressão, quer pela situação em si, quer por se ter visto obrigado a instaurar acção contra as duas empresas supra identificadas.
O R não contestou.
O tribunal julgou:
a) verificada a excepção de caso julgado e, consequentemente, absolveu o R da instância, nos termos e para os efeitos dos artigos da aplicação conjugada dos artigos 278.º, n.º1, al e), 577.º, al. i), 580.º, n.ºs 1 e 2 e 608.º, todos do Código de Processo Civil, no que respeita ao pedido de condenação no pagamento de danos patrimoniais, no valor de 12€;
b) improcedente, por não provada, a acção, relativamente aos montantes peticionados a título de danos não patrimoniais, no valor de 5000€.
Inconformado, interpôs o autor competente recurso, cujqa minuta concluiu da seguinte forma:
“a) O Tribunal a quo proferiu decisão em que julgou verificada a excepção de caso julgado (absolvendo o Réu da instância), quanto ao pedido de condenação no pagamento de danos patrimoniais, no valor de € 12,00, e improcedente, por não provada, a acção, relativamente aos montantes peticionados a título de danos não patrimoniais, no valor de € 5.000,00.
b) A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de outra ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário.
c) Sendo que se repete a causa quando se verifica uma tríplice identidade: quanto aos sujeitos, quanto à causa de pedir e quanto ao pedido.
d) Ora, no presente caso, é inequívoco que as partes não são as mesmas, nomeadamente quanto ao(s) Réu(s).
e) E, quanto ao pedido de condenação no pagamento de danos patrimoniais, se o pedido é o mesmo – valor de € 12,00 – já o mesmo não se pode dizer quanto à causa de pedir.
f) Pois que, não obstante os factos ocorridos serem os mesmos, na presente acção, o Réu é demandado por factos pessoais seus, que o mesmo praticou directamente; contrariamente no que se verificava na anterior acção, relativamente às sociedades comerciais ali demandadas.
g) Já quanto ao pedido de pagamento dos danos não patrimoniais, para além de não se verificar a identidade das partes, inexiste ainda identidade do pedido e da causa de pedir:
h) Nos presentes autos, peticiona-se a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 5.012,00; enquanto na acção anterior se peticionava a condenação das ali Rés (sociedades comerciais) no pagamento da quantia de € 262,00.
i) Na acção anterior, os danos não patrimoniais peticionados resultavam da violação do direito de propriedade do Autor, relativamente ao título de transporte; e, nos presentes autos, a quantia peticionada deriva quase exclusivamente de danos não patrimoniais resultantes do atentado à honra e dignidade do Autor, à tristeza e mágoa e sentimento de injustiça e, inclusivamente mas não só (como parece resultar da sentença recorrida), da própria circunstância de ter tido de intentar a acção anterior e do tempo que esta esteve pendente e da sintomatologia depressiva que se vem desenvolvendo e agravando desde então.
j) Acresce que o caso julgado não se estende aos fundamentos da decisão.
k) Por outro lado e quanto à falta de prova, cumpre referir que não houve lugar a audiência de julgamento nem tão-pouco a audiência prévia.
l) Não tendo sido, como tal, apreciada, produzida ou sequer admitida a prova indicada pelo Autor/Recorrente, que arrolou testemunhas, requereu o depoimento de parte do Réu e a tomada de declarações ao Autor, bem como a realização de perícia médico-legal de psicologia forense, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, destinada a avaliar os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, bem como o nexo de causalidade entre os mesmos e a actuação do Réu.
m) O que poderá considerar-se um verdadeira violação do direito de acesso à justiça, plasmado no nº1 do artº20º da Constituição da República Portuguesa (CRP): “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)”; do princípio da igualdade ínsito no artº13º da mesma e que emana depois no princípio da igualdade das partes em juízo previsto no artº4º do CPC; e do direito à acção judicial, a todos garantido com força obrigatória directa e geral (nº1 do artº18º e nº4 do artº20º, ambos da CRP; artº10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; nº1 do artº6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artº47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; e artº2º do CPC).
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, seguindo o processo os seus ulteriores termos até final’’.
Não houve contra-alegações
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A única questão decidenda consiste em saber se se mostra ou não verificada a excepção dilatória de caso julgado.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1. O A instaurou os presentes autos de Acção de Processo Comum contra LS, nos precisos termos que constam relatados supra; (motivação: exame dos autos)
2. O A instaurou uma acção contra as sociedades comerciais M E.P.E e Empresa de Segurança que correu termos com o n.º… Na Instância Local de Lisboa, no âmbito da qual terminou formulando o pedido de condenação das RR, no pagamento das quantias de 262€, a título de danos patrimoniais e de 250€, a título de danos não patrimoniais, tendo por fundamento os seguintes factos:
- O Autor é titular de um cartão Lisboa Viva;
- No dia 24 de Maio de 2011, pelas 18h00, entrou na estação do Metropolitano de Lisboa do Jardim Zoológico, com o propósito de se deslocar de metropolitano, utilizando para o efeito o cartão Lisboa Viva supra referido e que se encontrava válido para utilização;
-Tendo-se dirigido às barreiras de acesso à plataforma do metropolitano, passou o referido cartão Lisboa Viva no sensor da barreira;
-Não obstante, a barreira não abriu;
-Tendo o Autor repetido a operação de passar o cartão no sensor, o resultado foi o mesmo, ou seja, a barreira permaneceu fechada;
-Perante tal situação, procurou um funcionário do Metropolitano de Lisboa que o pudesse auxiliar;
-Contudo, naquele momento, não se encontrava à vista qualquer funcionário do Metropolitano de Lisboa, o Autor dirigiu-se ao funcionário da Empresa de Segurança, que se encontrava no local e que era o Réu aqui demandado;
-Tendo-lhe solicitado auxílio sobre a forma de ultrapassar a barreira de acesso ao metropolitano;
- Questionado pelo Autor acerca da razão de o seu cartão Lisboa Viva não fazer abrir as barreiras de acesso, o vigilante informou de que as mesmas apresentavam problemas há mais de um mês;
- Acto contínuo, o vigilante pegou no cartão do Autor e começou a manipulá-lo com tal violência, enquanto o fazia passar repetidamente no sensor, e acabando por o danificar;
- Por diversas vezes o vigilante dobrou o cartão, após o que o mesmo não mais funcionou;
- Contrariamente ao que sucedera antes, nesse mesmo dia;
- Face à atitude e comportamento do vigilante, que apresentava igualmente um discurso menos próprio, como quem se encontra etilizado, o Autor solicitou-lhe a presença de um funcionário do Metropolitano de Lisboa;
- O que o vigilante recusou;
- Uma vez que o vigilante não patenteava qualquer identificação, o Autor solicitou-lhe a respectiva identificação ou exibição da placa de identificação;
- O que o vigilante igualmente recusou;
- Entretanto e tendo-se apercebido da situação, abeiraram-se dois outros seguranças da 2045, S.A., que se encontravam no local;
- Os quais chamaram também uma funcionária do Metropolitano de Lisboa, que posteriormente recepcionou a reclamação e na qual se identifica como a funcionária nº…;
- A funcionária que compareceu no local dos factos confirmou, na presença do Autor e dos 3 seguranças (incluindo o Réu), que o cartão se encontrava irremediavelmente danificado e não podia mais ser usado;
- O Autor solicitou a emissão de novo cartão, pagando para o efeito o montante de € 12,00 (doze euros);
- O novo cartão apenas lhe foi entregue no dia seguinte, 25/05/2011, pelas 15h25;
- Entre estes dois momentos, foi passada ao Autor uma Guia de Substituição;
- O cartão Lisboa Viva danificado continha um “passe L123”, que permite, entre outros, a circulação em toda a área metropolitana de Lisboa – Coroas 1, 2 e 3 –, no Metropolitano, na Carris, na CP e na Transtejo;
-A guia de substituição que lhe foi entregue apenas dava acesso aos transportes de validação electrónica.
- E já não àqueles em que a validação, não se fazendo por via electrónica, se fazia por exibição da vinheta aposta no Cartão;
- O que se mostrava impraticável, dada a hora (18h00 a 18h53) a que ocorreram os factos do dia 24/05/2011;
- Pelo que, até ao dia 25/05/2011, pelas 15h25, viu-se o Autor impedido de utilizar a totalidade das funcionalidades do seu “passe L123”;
- Como consequência directa da actuação ilícita do vigilante, o Autor teve de suportar para emissão de novo cartão;
- E, para o efeito, efectuou um carregamento suburbano do seu cartão Lisboa Viva, apenas para o percurso entre a Póvoa de Santa Iria e Vila Franca de Xira, uma vez que o L123 abrange aquela primeira localidade.
- Os danos causados pelo funcionário ao cartão Lisboa Viva do Autor impediram-no assim de utilizar tal carregamento, no trajecto em questão e nos dias 24 e 25/05/2011.
- Mais o obrigando a, no dia 25/05/2011, deslocar-se propositadamente à estação do Metropolitano da Avenida, para levantamento do novo cartão. (motivação: exame da cópia da douta sentença de 17.10.2013, constante de fls. 10, v.)
3. Na presente acção, para além dos factos transcritos em 2, o A mais alegou:
- Aos danos invocados aliam-se o vexame de toda a situação,
- Ao agir como agiu, bem sabia o Réu que iria danificar o cartão Lisboa Viva do Autor, o que quis e concretizou;
- Tendo deliberadamente afectado o direito de propriedade do Autor sobre o cartão, nomeadamente o direito de retirar do mesmo todas as suas utilidades;
- Como consequência directa da actuação ilícita do Réu, viu-se o Autor lesado no montante de € 12,00 (doze euros), que teve de suportar para emissão de novo cartão;
- Para além deste prejuízo patrimonial, o Autor teve igualmente danos não patrimoniais resultantes da privação do uso do seu “passe” (na parte validável através de vinheta), o qual constitui um indispensável instrumento de trabalho e de lazer do Autor;
- Assim lhe acarretando a actuação do Réu inúmeros incómodos, desde logo os decorrentes da necessidade de feitura e levantamento de novo cartão, bem como as resultantes da privação de utilização da totalidade das funcionalidades do mesmo;
- E à necessidade de ter intentado e se ter sujeitado à acção referida no n.º 2, única possível na altura, por falta de identificação da pessoa em concreto a accionar, como ora se faz;
- Em tudo tendo o Autor ficado muito ferido na sua honra e dignidade pessoais, causando-lhe tristeza, mágoa e fazendo-o sentir-se injustiçado, constrangido e inferiorizado;
- Situação que se arrastou no tempo que durou a acção mencionada no n.º 2 e que se mantém, porquanto ainda não lhe “foi feita justiça”, volvidos que são mais de 6 anos sobre o ocorrido;
- E que se vem agravando, apresentando o Autor actualmente uma sintomatologia depressiva, pautada por sentimentos de tristeza, disforia, desamparo, inutilidade e pessimismo (motivação: exame da douta Petição)
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Do direito
O primeiro grau julgou procedente a excepção de caso julgado, porquanto:
1. Naquilo que respeita aos pressupostos da responsabilidade e danos patrimoniais
a) não tendo o A intentando a acção contra o comissário, mas tendo sido parte na primeira acção, não pode invocar que o caso julgado não lhe é oponível, na exacta medida em que tendo aí sido parte, o caso julgado o vincula, no que respeita à definição da relação material controvertida.
b) dúvidas não subsistem de que no caso se verifica a citada tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) na medida em que da circunstância de o A não ter dirigido a acção contra o comissário nada se retira, tanto mais, que à luz do citado artigo 519.º do Código Civil, se verifica um impedimento legal de instauração da presente acção, no que respeita aos montantes já peticionados na acção referida no n.º 2 dos factos assentes.
2. No que concerne aos danos não patrimoniais peticionados
c) No que respeita aos montantes peticionados a título de danos não patrimoniais, resultantes da actuação ilícita descrita no ponto 2 dos factos assentes, haverá apenas que referir que não resultam demonstrados os demais pressupostos da responsabilidade civil, por força da autoridade de caso julgado, do decidido na sentença proferida naqueles autos.
d) No que respeita a danos não patrimoniais, peticionados em razão de o A se ter visto na necessidade de instaurar a primeira acção, haverá apenas que referir que também não se verifica o primeiro dos pressupostos da responsabilidade civil, a saber, a existência de facto ilícito.
Com efeito se, por um lado, o R não foi parte naquela acção - razão pela qual não lhe poderá ser causalmente assacada a sua pendência, nos termos em que o foi -, por outro, a própria acção improcedeu, não tendo sido alegado nem se descortinando, em que medida o R possa ser responsabilizado quer pela instauração da acção nos termos em que o foi, quer pela sua improcedência’’.
Será de manter a decisão?
Distingue-se entre o efeito negativo e o efeito positivo do caso julgado. O julgado produziria um efeito negativo de tipo preclusivo impedindo o juiz de voltar a decidir sobre o mesmo direito cuja existência ou inexistência foi acertada (e isto por aplicação da proibição do bis in idem); no segundo caso produziria um efeito positivo, de natureza substancial, obrigando o juiz a conformar a sua pronúncia ao acertamento contido na sentença transitada , a qual constitui em definitivo a nova disciplina específica da relação objecto da decisão e portanto opera de modo semelhante a qualquer norma legal incidente sobre tal relação (Giampiero Balena, Elementi di Diritto Processuale Civile, Vol 2, 3.ª ed., 2006:283).
Decorre ainda deste efeito que num novo processo a parte pode deduzir livremente novos factos que ocorreram num momento em que já não podiam ser introduzidos tempestivamente no processo.
No caso sujeito é patente que não existe identidade entre os sujeitos, o que basta só por si para afastar o caso julgado na sua vertente negativa. De resto, a responsabilização em juízo do comitente e comitido ex artigo 500.º, n.º 1, CC configura uma hipótese de litisconsórcio legal (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil , 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997:156 e Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processo Civil, Vol I, Almedina, Coimbra 2010: 425).
Uma sentença proferida com preterição deste litisconsórcio não vincula o autor no confronto com o “codestinatário’’ ausente, nem se trata de uma sentença inexistente ou absolutamente nula (sentença inutiliter data) (Rui Pinto , Notas ao Código de Processo Civil, Vol I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015:87 ss).
Como sustentam Luigi Montesano e Gionanni Arieta aquela sentença vincula as partes no confronto das quais foi pronunciada mas só em novo processo entre as mesmas instaurada em que se discuta idêntica questão, não já quando qualquer dos sujeitos primitivos promova nova causa chamando o litisconsorte preterido (Trattato di Diritto Processuale Civile, I.1, Cedam, Padova, 2001:617).
Acresce que, como resulta do n.º 3, dos factos assentes foram alegados factos supervenientes razão pela qual não se pode impor a força positiva do caso julgado.
Assim sendo as coisas, havendo que conhecer do mérito e a inexistir outra razão que o impeça impõe-se fixar os factos relevantes com devida fundamentação, obviando á deficiência da decisão (cfr. artigo 662.º, n.º 2, al. c)) CPC).
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Pelo exposto acordamos em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a sentença impugnada que substituímos por outra que ordena o prosseguimento do processo.
Sem custas.
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28.06.2018
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura