Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16/17.8T8SXL-B.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: PROVIDÊNCIAS RELATIVAS A CÔNJUGES
FIXAÇÃO DE ALIMENTOS A CÔNJUGE
CONTRIBUIÇÃO PARA AS DESPESAS DOMÉSTICAS
DIVÓRCIO
PODER DISCRICIONÁRIO
RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE / NULIDADE DA DECISÃO
Sumário: I - Nas providências relativas as cônjuges, disciplidinadas no capítulo II desse Título XV - regidas nos termos do processo de jurisdição voluntária -, não se integra a fixação de alimentos ao cônjuge no âmbito do processo de divórcio, pois apenas se prevê a imposição da obrigação de contribuição para as despesas domésticas.

II - Decorre do nº 7 do art. 931º do CPC que a decisão de fixação de alimentos provisórios a favor do outro cônjuge é proferida no âmbito do poder discricionário do juiz.

III - Não admitem recurso os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário. 

IV - Mas não deverão ser colocados entraves à recorribilidade quando a interposição de recurso seja fundada, em termos expressos ou tácitos, na alegação de que o despacho excede os limites da discricionariedade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório

Na acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge instaurada por TB contra RB foi realizada tentativa de conciliação em 10/05/2017, tendo sido lavrada acta onde se lê:
«Seguidamente foi pelo Mmo Juiz dada a palavra aos presentes e seguiram-se declarações dos mesmos, onde declararam nomeadamente que:
A cônjuge mulher pretende divorciar-se.
O cônjuge marido não pretende divorciar-se.
A cônjuge mulher prescinde de prestação de alimentos da sua mulher.
O cônjuge marido pretende prestação de alimentos da sua mulher.
A cônjuge mulher pretende que o menor resida consigo.
O cônjuge marido pretende também que o menor resida consigo.
***
Logo de seguida foi pelo Mmo Juiz dada a palavra à Digna Curadora de Menores, que no uso da mesma, proferiu a seguinte:
Promoção
Que se fixa regime provisório e se remetam os pais para Audição Técnica Especializada.
***
De imediato, foi pelo Mmo Juiz, proferido o seguinte:
Despacho
Atento o declarado e o demais vertido nos autos, cujo teor dou por aqui reproduzido, decido provisoriamente nos termos seguintes:
·A utilização da casa de morada de família sita na Rua X Amora - Seixal, continuará a caber em conjunto a ambos os cônjuges até Julho de 2017.
Após tal mês, a utilização da mencionada casa de morada de família, que é bem comum do casal, caberá em exclusivo à cônjuge mulher até à partilha ou venda de tal bem comum do casal, continuando a mesma a assegurar todas as respectivas despesas e encargos.
·O menor Gonçalo passará metade de todos os seus períodos de férias escolares, junto de cada um dos progenitores.
·As ocasiões de Natal! Ano-Novo e Páscoa serão passados alternadamente pelo menor, junto de cada progenitor.
·No dia do Pai, dia da Mãe, dia de aniversário do pai e dia de aniversário da mãe, o menor passará o dia junto do festejado, sem prejuízo das respectivas actividades lectivas.
·No dia de aniversário do menor, este tomará uma das principais refeições do dia com cada um dos progenitores.
·O menor residirá alternada e semanalmente junto de cada um dos progenitores, transitando de agregado à sexta-feira, imediatamente após o horário lectivo, o que sucederá logo no início do ano lectivo de 2017/2018.
·O exercício das responsabilidades parentais correntes e em questões de particular importância continuará a caber em conjunto a ambos os pais.
•O menor poderá pernoitar à quarta-feira no agregado do progenitor com quem não passe essa semana.
•Cada um dos progenitores suportará as despesas correntes do menor, quando o tenha consigo.
•A mãe continuará a suportar a mensalidade do colégio e demais actividades que o menor frequenta.
•A título de alimentos ao cônjuge marido/progenitor do menor, a mãe pagará €-200,00 mensais, o que fará até ao dia 8 de cada mês a que os alimentos respeitem, por depósito ou transferência bancaria, para conta do progenitor cujo IBAN o mesmo facultará a Juízo em 5 dias.
A prestação supra é devida desde o mês de Agosto de 2017, inclusive.
•Tal prestação será actualizada anualmente em Janeiro de cada ano com referência ao Índice de Preços ao consumidor, divulgado pelo LN.E., com referência ao ano imediatamente anterior, com início em Janeiro de 2018.
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Nos termos do artigo 38° alínea b) do RGPTC, remetem-se os pais para Audição Técnica Especializada, pelo prazo máximo de 2 meses.
Notifique, ademais para contestar nos termos do artigo 931°., n°.5, do CPC.
***
Do presente despacho foi dado conhecimento a todos os presentes, os quais disseram ter ficado cientes.
De seguida, pelas 12h00, o Mmo Juiz declarou encerrada a conferência, da qual, para constar, se lavrou a presente acta, que lida e achada conforme, vai ser devidamente assinada.
(ass.electr.m.d.q.aprese.pp.)».
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Em 25/05/2017 foi interposto recurso de apelação por TB, que terminou a alegação com as seguintes conclusões:
1 - O douto despacho proferido na diligência de Tentativa de Conciliação, cuja acta tem a referência 366005658, de 10.05.2017, determinou que «a título de alimentos ao conjugue marido/progenitor do menor, a mãe pagará 200,00 € mensais, o que fará até ao dia 8 de cada mês a que os alimentos respeitem, por depósito ou transferência bancária, para a conta do progenitor cujo JBAN o mesmo facultará a Juízo em 5 dias. A prestação supra é devida desde o mês de Agosto de 2017, inclusive»;
2. O Tribunal não fundamentou a sua decisão de fixar a obrigação da recorrente em pagar alimentos ao recorrido no valor de 200,00 euros mensais. Nem indicou os meios de prova que justificaram tal decisão. Foi assim violado o disposto no art. '154º, nºº1, do CPC, o que tem por consequência a nulidade do douto despacho recorrido nos termos dos arts. 613º, nº 3 e 615º nº 1 al. b) do CPC, que expressamente se invoca;
3. O valor máximo, líquido, dos rendimentos mensais da autora é de 2.034,99 euros. O valor total das despesas mensais suportadas pela autora recorrente, em média, varia entre os 2.800,00 euros e os 3.100,00 euros, sendo a diferença coberta com a ajuda de sua mãe que, periodicamente transfere quantias de 1.000,00 euros e 500,00 euros para a conta da autora. Deste modo, a autora, objectivamente, não tem meios para pagar 200,00 euros de pensão mensal ao recorrido;
4. Inexiste nos autos qualquer razão objectiva ou subjectiva para o recorrido não procurar um trabalho destinado a garantir a sua subsistência; 
5. Pelas razões referidas em 3 e 4 das presentes conclusões, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 2004º, nºs I e 2 e 2016º do CC.
Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso de Apelação e, consequentemente, ser revogado o douto despacho recorrido constante da acta de 10 de Maio de 2017, ref. 366005658, na parte em que impôs à autora recorrente a obrigação de pagar 200,00 euros por mês ao recorrido a título de alimentos.
E assim se fará Justiça.
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Não há contra-alegação.
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Em 05/06/2017, RB intentou contra TB procedimento cautelar para fixação de alimentos provisórios em que pediu a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 200 € mensais a título de alimentos provisórios (apenso A).
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Em 10/10/2017 foi realizada «Conferência de Pais» nos autos de divórcio, constando da acta, além do mais:
«(…)
Atento o declarado e o mais vertido nos autos principais e apenso A, cujo teor se dá a qui por reproduzido, admite-se o recurso de fls. 60 e seguintes, o qual subirá de imediato para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com certidão integral dos autos principais e apenso A, em separado.
Instrua-se ainda tal apenso com CD contendo as gravações das diligências ocorridas nos autos.
Atento ainda o declarado e mais vertidos nos autos principais e apenso A, cujo teor se dá aqui por reproduzido, constata-se que o cônjuge marido permanece na que foi casa de morada de família, para além do acordado, continuando o cônjuge mulher a suportar as despesas inerentes a tal habitação.
Atento, nomeadamente tal, declara-se suspensa a obrigação de pagamento de alimentos da cônjuge mulher ao cônjuge marido, enquanto perdurar a permanência do mesmo na que foi casa de morada de família.».
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Em 22/06/2017 TB deduziu oposição no apenso A.
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Em 12/09/2017 foi proferido o seguinte despacho no apenso A:
«Nos termos do artigo 272º, do CPC, atento o recurso intentado nos autos principais e o objecto do mesmo, bem como deste apenso, declaro suspensa a instância neste apenso até decisão transitada do mesmo recurso.
(…)».
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são estas:
- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e de indicação dos meios de prova que a justificaram
- se a apelante não tem meios para pagar a pensão mensal de 200 € ao apelado
- se inexiste razão objectiva ou subjectiva para o apelado não procurar trabalho para garantir a sua subsistência
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III - Fundamentação
A dinâmica processual a considerar é a que consta no relatório.
E a título de questão prévia:
Ouvida a gravação da diligência realizada em 10/05/2017 constata-se ser evidente que foi debatida a questão referente à fixação de alimentos provisórios a favor do apelado, tendo este dito e a sua patrona, a instâncias do senhor juiz - visto que resultou dessa diligência que o apelado não tem emprego, vivendo a expensas da apelante -, que não prescinde de alimentos, tendo a apelante declarado que, embora com dificuldade, estava na disposição de lhe entregar 100 € mensalmente, tendo o apelado manifestado considerar insuficiente essa quantia.
Além disso, como se vê do texto da acta de 10/05/2017 que acima se reproduziu, consta que «O Cônjuge marido pretende prestação de alimentos da sua mulher».
Portanto, é incompreensível que o senhor advogado, mandatário da apelante que subscreve a alegação recursiva tenha feito constar nesta peça:
«Desde logo cumpre referir que em momento algum da diligência de Tentativa de Conciliação a recorrente se recorda que o recorrido, por si ou por intermédio da sua Ilustre Advogada, tenha requerido a atribuição de pensão de alimentos a título provisório. De resto, quer na acta de 1 de Março de 2017, ref. (…), quer na acta de 10 de maio de 2017, Ref. Nada consta no sentido de que o recorrido, expressamente ou implicitamente, tenha requerido a atribuição de tal benefício às custas da autora.
Consequentemente, estamos perante uma decisão que o Tribunal recorrido tomou por iniciativa própria.».
De salientar que nem se mostra que a apelante tenha arguido falsidade da acta, ao abrigo do disposto no art. 451º nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil.
É certo que a referida alegação da apelante não foi levada às conclusões, não tendo sido, por isso, incluída nas «questões a decidir». Mas, perante a estranheza dessa alegação, tivemos a diligência de fazer o que a apelante deveria ter feito, para avivar a memória: ouvir a gravação.
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Posto isto.
Alega a apelante que o tribunal pode, por sua iniciativa, fixar um regime provisório de alimentos, como previsto no art. 931º nº 7 do CPC, mas não está dispensado de fundamentar a sua decisão, indicando os factos e os meios de prova. Assim, diz, a decisão recorrida é nula, pois não contém os fundamentos de facto nem indica os meios de prova que fundamentaram a fixação da obrigação imposta à apelante de pagar alimentos ao apelado no valor mensal de 200 €.
O art. 154º do CPC determina:
«1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.».
E do art. 615º no 1 al. b), aplicável ex vi do art. 613º nº 2 aos despachos, decorre que estes são nulos quando não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Ora, na verdade, a decisão recorrida não especifica qualquer fundamento de facto para impor aquela obrigação à apelante.
O nº 7 do art. 931º do mesmo Código estabelece:
«Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos (…); para tanto o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.».
O processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge é um processo especial, integrado no Título VII do Livro V «Dos processos especiais». Não é um processo de jurisdição voluntária, pois este consta do Título XV.
Nas providências relativas as cônjuges, disciplinadas no capítulo II desse Título XV - regidas, essas sim, nos termos do processo de jurisdição voluntária -, não se integra a fixação de alimentos ao cônjuge no âmbito do processo de divórcio, pois apenas se prevê a imposição da obrigação de contribuição para as despesas domésticas.
Mas decorre do nº 7 do art. 931º que, como refere a apelante, a decisão é proferida no âmbito do poder discricionário do juiz.
Com efeito, prescreve o art. 152º nº 4 que consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário, os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador.
O art. 630º nº1 determina que não admitem recurso os despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário
Sufragamos o entendimento de que «Não deverão ser colocados entraves à recorribilidade quando a interposição de recurso seja fundada, em termos expressos ou tácitos, na alegação de que o despacho excede os limites da discricionariedade. A adopção de um critério menos rigorista no tribunal de cuja decisão se recorre, tendo como pressuposto a provisoriedade do despacho de admissão (art. 641º, nº 5, facultará ao tribunal superior a possibilidade de assumir a última palavra com mais distanciamento e mais garantias de correcta integração.» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 58).
Ora, invoca a apelante, com razão, que a discricionariedade, o critério de conveniência, não se confunde com arbitrariedade e que o tribunal não está dispensado de fundamentar a decisão.
É pois evidente a nulidade da decisão recorrida ao fixar a obrigação de prestação de alimentos no valor de 200 €, sem a fundamentar de facto e de direito.
Por isso, não é possível saber qual a razão dessa decisão, tanto mais que também foi decidido que «A utilização da casa de morada de família (…) continuará a caber em conjunto a ambos os cônjuges até Julho de 2017» e que em 10/10/2017 o mesmo senhor juiz declarou suspensa tal obrigação de prestação de alimentos «enquanto perdurar a permanência do mesmo na que foi casa de morada de família» por se constatar que o apelado «permanece na que foi casa de morada de família, para além do acordado, continuando a cônjuge mulher a suportar as despesas inerentes a tal habitação».
Por quanto se disse, impõe-se julgar nulo a decisão recorrido, procedendo pois, a apelação.
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IV - Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, julga-se nulo a decisão recorrida que impôs à apelante a obrigação de prestar alimentos provisórios ao apelado.
Custas pelo apelado, sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficie.
Lisboa, 21 de Junho de 2018

Anabela Calafate

António Manuel Fernandes dos Santos       

Eduardo Petersen Silva