Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
29/18.2PFHRT.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
RECURSO
OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTES
OMISSÃO DE AUXÍLIO
NE BIS IN IDEM
CRIME E CONTRAORDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Em sede processual penal, a junção de documentos que não puderam ser submetidos à apreciação do julgador de 1ª instância (independentemente de poderem até ser de conhecimento posterior por parte quer do tribunal, quer de qualquer interveniente processual), não é admissível – tais documentos não podem ser admitidos em sede de recurso, por postergação quer dos princípios do contraditório e da imediação quer, essencialmente, por se traduzirem no aportar de uma nova dimensão de prova, que não se mostra contemplada em sede de recurso ordinário;
II - Não ocorre violação do princípio ne bis in idem quando o mesmo facto – existência de feridos em resultado do acidente de viação – suscita a aplicação da conjugação dos artigos 69.º, n.º 1, alínea a), 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal (punição a título de crime), por um lado, e da conjugação dos artigos 89º, nº 2, 146º, al. q), e 147º, todos do Código da Estrada (punição a título contraordenacional), por outro.
III - Estamos em face de tipos legais distintos que visam proteger bens jurídicos diversos. Consequentemente, à pluralidade de tipos legais integrados deve corresponder uma pluralidade de infrações, sem que ocorra a violação do preceituado no nº 5 do artigo 29º da Constituição - independentemente da proximidade que exista entre os bens jurídicos protegidos pelos tipos em causa, ocorre uma pluralidade de crimes(em sentido lato, ou uma pluralidade de infrações), pois que se violam as determinações de diferentes normas e são autónomos os fundamentos para o juízo referencial de censura em que a culpa se analisa em cada uma das violações.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

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I – relatório
1. No Juízo de Competência Genérica da Horta – Juiz 2, o arguido MS, com os sinais dos autos, foi submetido a julgamento em processo comum com a intervenção do tribunal singular, após acusação do Ministério Público, sendo-lhe imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 al. a) e 132.º n.º 2, alíneas e) e alínea h) segunda parte e 69.º n.º 1 alíneas a) e b) do Código Penal; e de dois crimes de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.

2. Por sentença de 7 de março de 2022, foi decidido:
“Face ao exposto, decide o Tribunal julgar a acusação parcialmente procedente e em consequência:
a) Absolver o arguido MS da prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas e) e f) do Código Penal;
b) Absolver o arguido MS da prática de dois crimes de omissão de auxílio agravado, previsto e punido pelo artigo 200.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal;
c) Condenar o arguido MS pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal, no dia 22-12-2018, nas penas parcelares de 100 dias de multa por cada um;
d) Condenar na pena única, em cúmulo, de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 € (oito euros) perfazendo a quantia de 1.360,00€ (mil trezentos e sessenta euros);
e) Condenar o arguido MS na pena acessória de proibição de condução de veículo a motor pelo período de seis meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, devendo o arguido entregar o seu título de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos dos artigos 69.º, n.º 3 do Código Penal, e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
f) Condenar o arguido a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC e encargos a que houver dado lugar, nos termos do dispostos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio judiciário;
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Notifique.
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Proceda-se ao depósito da sentença, nos termos do artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
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Após trânsito, comunique à D.S.I.C., à ANSR e IMT.”.

3. Inconformado com a parte da decisão final referente à sanção acessória, dela interpôs recurso o arguido, pedindo que se altere a decisão objeto do recurso, revogando a condenação naquela sanção, por violação do artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
“i. O arguido foi condenado na pena acessória de inibição de condenação em processo de contra–ordenação com o número 540892;
ii. O arguido foi condenado pela prática da infracção prevista e punida no artigo 89º, número 2 do código da Estrada que se aplica a quem abandonar o local do acidente quando existirem mortos ou feridos;
iii. Independentemente da qualificação jurídica da infracção a fundamentação de facto da contra–ordenação foi a existência de feridos graves.
iv. A decisão judicial condena com fundamento de direito no artigo no artigo 69º nº1, alínea a) do código penal;
v. Que se aplica sempre que haja feridos resultantes do acidente desde que com culpa do condutor.
vi. São pressupostos de ambas as condenações a existência de feridos.
vii. A diferença, e para mais, em termos de pressupostos da aplicação da sanção acessória em qualquer uma das punições é na Contra–Ordenacional que impõe a existência de feridos e o abandono do local.
viii. Entende o arguido que já foi penalizado e sancionado pelos mesmos factos e que está violado o artigo o artigo 29º, nº5 da CRP..”.

Requereu a junção de um documento (cópia da “sentença proferida no alegado processo de contraordenação”).

4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Extraiu as seguintes conclusões:
“1. Com o presente recurso o arguido, aqui recorrente pretende colocar em causa a pena acessória a que foi condenado, juntando para tal agora uma decisão final do processo de contraordenação proferida a 28.03.2019.
2. Acontece que o artigo 165.º Código de Processo Penal determina que: O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
3. E, salvo melhor entendimento, e uma vez que a decisão do processo contraordenacional foi proferida a 28.03.2019, tal junção de documento era possível, até ao encerramento da audiência.
4. E, sendo o encerramento da audiência tem, pois, de ser considerado o limite temporal máximo para a apresentação de documentos em processo penal, pugna o Ministério Público pela sua inadmissibilidade e consequente improcedência do recurso.
No entanto, se tal não for o entendimento dos Venerandos Desembargadores, importa aferir se existiu ou não a violação do Princípio non bis in idem
5. Veio o Recorrente invocar o Princípio non bis in idem ou ne bis in idem que significa que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, encontrando-se, no seu entender a presente sentença em violação do artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
6. Acontece que o Tribunal «a quo» condenou o arguido pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal em multa e na pena acessória de proibição de condução de veículo a motor pelo período de seis meses.
7. Já no processo de contraordenação foi aplicado a MS a sanção com fundamento de direito no artigo 89º, número 2 do Código da Estrada, ou seja: Se do acidente resultarem mortos ou feridos, o condutor deve aguardar, no local, a chegada de agente de autoridade. Tendo-lhe sido aplicada a sanção de multa e acessória de 90 dias de inibição de conduzir
8. Ora, salvo melhor entendimento, em momento algum a lei prevê a imposição de pena acessória única, o que só pode significar que o legislador quis excluir a possibilidade de realização de cúmulo jurídico para as penas acessórias, até porque correspondem a uma realização de factos com diversa relevância jurídica. Verificando uma autonomia entre a conduta relativa à qual originou responsabilidade contraordenacional e uma conduta que originou responsabilidade penal
9. Concluindo-se que não há cumulação de penas acessórias quando estamos perante uma condenação por um crime a que acresce uma pena acessória de proibição de conduzir, e uma condenação por contraordenação muito grave a que acresce uma sanção de inibição de conduzir pelo que deverão ser cumpridas de forma autónoma (Veja-se Acórdão da Relação de Lisboa de 28.10.2020).”.

6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, a sufragar os argumentos constantes da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância.

7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II – questões a decidir.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença condenatória proferida nos autos, na parte referente à pena acessória –, a questão colocada no recurso prende-se com a violação do princípio ne bis in idem.
Coloca-se, no entanto, a necessidade de apreciar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, de inadmissibilidade da junção do documento apresentado pelo arguido com o seu recurso.
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III – Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto. 
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
“(…)
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos provados:
Da prova produzida, com relevância para a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 22 de dezembro de 2018, pelas 5 horas e 5 minutos, na Estrada Príncipe Alberto do Mónaco, na freguesia de Angústias, concelho da Horta, no sentido de marcha nascente - poente circulava o ciclomotor Yamaha SA05 de matrícula XX-XX-XX, conduzido por LS e que transportava CS.
2. A velocidade imprimida por LS ao ciclomotor não era superior a 30 km/hora.
3. O ciclomotor tinhas as luzes de presença traseiras e dianteiras ativadas.
4. Trata-se de uma reta com ligeiro declive, com dois sentidos de circulação, existindo uma via afeta a cada sentido.
5. O local beneficia de iluminação artificial sendo, em condições normais, a visibilidade boa.
6. O piso é de aglomerado asfáltico em bom estado.
7. Situa-se dentro de localidade, sendo o limite máximo de velocidade permitida de 50 km/h.
8. É ladeada por passeios em ambos os sentidos.
9. Existe um cruzamento com semáforos, que se encontravam desligados na data e hora dos factos.
10. No mesmo sentido de marcha e imediatamente atrás do ciclomotor circulava o automóvel Toyotta …, de matrícula YY-YY-YY, conduzido pelo arguido MS.
11. O arguido circulava a velocidade superior a 50 km/hora.
12. Na aproximação ao cruzamento onde estão colocados os semáforos referidos e porque estes se encontravam desligados, LS abrandou a velocidade do ciclomotor conduzido por si, de forma a ver se algum veículo vinha da via que cruza com aquela onde seguiam.
13. Logo de seguida, porque seguia desatento, não prestando atenção à via em que circulava, o arguido fez o veículo conduzido por si embater contra a traseira do ciclomotor conduzido por LS.
14. Como consequência do embate sofrido e da força gerada pelo movimento impulsionado pelo arguido no automóvel contra a traseira do ciclomotor, LS e CS foram projetados pelo ar, acabando por cair na estrada.
15. O ciclomotor ficou imobilizado mais à frente, no meio da faixa de trânsito onde circulava, sendo que o arguido seguiu viagem.
16. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido LS sofreu escoriações no punho esquerdo e fratura na rótula do joelho esquerdo.
17. Tais lesões demandaram 456 dias de doença com afetação da capacidade para o trabalho.
18. Como consequência direta e necessária da descrita conduta do arguido CS sofreu ferida erosiva no hemiabdomen esquerdo a nível da cresta ilíaca; escoriação maior na região lombar esquerda e múltiplas erosões na perna e no tornozelo esquerdos.
19. O arguido sabia que, sendo a condução uma atividade perigosa, a lei obriga as pessoas a conduzir com cuidado, atenção e respeito pelas regras rodoviárias, designadamente, guardando a devida distância de outros veículos.
20. Contudo, não o fez, conduzindo de forma desadequada e sem o cuidado devido não prevendo que com a sua conduta poderia colocar em perigo os demais utentes da via, causando-lhes lesões, como efetivamente veio a suceder.
21. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
22. O arguido foi condenado por sentença de 27-11-2017, transitada em julgado em 27-11-2017, no processo sumaríssimo n.º …, que correu termos no Juízo de …, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, em 17-04-2016, na pena de 60 dias de multa, extinta em 16-01-2018.
23. Tem o 9.º ano de escolaridade.
24. Reside com a companheira e com dois enteados com 17 e 19 anos que estudam.
25. O arguido tem uma filha de 17 anos, que reside no continente, a quem paga pensão de alimentos no valor de 75,00 €.
26. Trabalha como encarregado operacional na Junta de Freguesia da Feteira.
27. Aufere 841 euros mensais.
28. Neste momento não paga prestação pela habitação.
29. Paga 50,00 € de eletricidade à mãe.
30. A companheira trabalha como auxiliar na Santa Casa da Misericórdia.
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Factos não provados:
A. Instantes antes do acidente descrito o arguido, por um lado, e LS e CS, por outro, haviam mantido discussão em estabelecimento de bar da cidade da Horta, e que culminou com a condução do arguido ao exterior por um segurança do mesmo.
B. A velocidade imprimida por LS ao ciclomotor não era superior a 20 km/hora.
C. Subitamente, o arguido decidiu imprimir maior velocidade ao seu automóvel, querendo fazê-lo investir contra a traseira do ciclomotor conduzido por LS.
D. A colisão deu-se a 10 metros dos semáforos existentes no local, e a 0,70 metros do passeio.
E. Na sequência do embate, LS e CS caíram alguns metros à frente, próximo do local onde se situa o estabelecimento de restauração denominado “Pizzaria Atlantis”.
F. O arguido fez o seu automóvel passar por cima do ciclomotor.
G. O arguido agiu com o propósito alcançado de mediante violação prevista, desejada e grosseira das regras de circulação rodoviária, fazer investir o automóvel contra o ciclomotor, que sabia ser conduzido e ocupado por LS e por CS.
H. O arguido agiu do modo descrito com o propósito alcançado de causar dor e sofrimento físico em LS e em CS.
I. Pelo modo de atuação descrito, o arguido sabia que colocava em perigo a vida de LS e de CS, o que quis.
J. Agiu movido por vontade de vingança por instantes antes se ter desentendido com LS e CS.
K. Sabia que o volume e peso do automóvel é muito superior ao do ciclomotor, e que ademais o condutor e passageiro do ciclomotor não estão protegidos por um habitáculo, pelo conhecia a possibilidade, que não dominava, de causar lesões graves à saúde ou mesmo à vida de terceiros, o que previu e quis.
L. De, após o acidente de viação, deixar de prestar auxílio a LS e a CS, acionando os meios e socorro necessários, estando em condições de fazer e recaindo sobre si tal dever dado que era única pessoa que se encontrava no local aquando do acidente, o que sabia e quis.
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Motivação da matéria de facto:
Ao dar como provada a factualidade supra descrita, o Tribunal formou a sua convicção na prova produzida em julgamento, designadamente, nas declarações do arguido e na prova testemunhal, documental e pericial com que os autos foram instruídos, toda ela apreciada de acordo com o seu valor probatório e as regras da experiência, nos termos dos artigos 124.º, 125.º, 126.º, 128.º, 164.º e 355.º, todos do Código de Processo Penal, segundo o princípio da livre apreciação da prova, tal como disposto no artigo 127.º do mesmo Código.
O arguido, presente em audiência de julgamento quis prestar declarações. Em suma, referiu não teve qualquer discussão com os ofendidos em momento anterior ao acidente. Relativamente ao acidente de viação declarou não ter visto os ofendidos LS e CS. Que possivelmente nesse momento estaria a mexer no rádio do carro e não viu o ciclomotor à frente do veículo conduzido por si.
Admitiu que poderia seguir em velocidade superior a 50 km/hora (limite legal estabelecido naquela zona) e que sentiu um embate, não tendo percebido no que bateu, pensando que se poderia tratar de um objeto. Mais referiu que apesar de ter sentido esse embate, não parou o carro para verificar em que teria embatido, designadamente, se teria sido numa pessoa, num objeto ou num animal. Referiu que não parou por ter ficado nervoso e que seguiu em direção à sua residência, no entanto, o vidro do para brisas do veículo conduzido por si começou a partir/estalar e por esse motivo acabou por imobilizar o veículo noutro local, a cerca de um ou dois quilómetros do local do acidente.
Que umas horas depois do sucedido se deslocou a pé à esquadra da polícia para dizer que tinha tido um acidente de viação no local dos factos e que nesse momento, o agente da Policia de Segurança Pública que o atendeu, informou-o de que tinha embatido num ciclomotor onde seguiam LS e CS.
Mais referiu que nessa sequência, o arguido telefonou aos ofendidos a pedir desculpa e a oferecer ajuda económica para a medicação. Esclareceu que o veículo conduzido por si pertencia ao seu irmão, HBS. Que a seguradora pagou um valor ao proprietário da mota atingida pelo arguido.
Mencionou ainda ter procedido à reparação do veículo do irmão.
Esclareceu ainda as suas circunstâncias pessoais.
As testemunhas JF, JD e JR, todos agentes da Polícia de Segurança Pública prestaram depoimento.
Mais concretamente, os agentes JF e JD esclareceram que se encontravam a fazer patrulha em viatura policial na Estrada Príncipe Alberto do Mónaco, no sentido descendente, contrário ao do sentido de trânsito em que os ofendidos tinham circulado, quando viram o ciclomotor no meio da via, e uns metros abaixo, os dois ofendidos, sendo LS no chão.
Ambos prestaram depoimento de forma calma, objetiva e distanciada, merecendo assim a credibilidade do Tribunal.
Referiram que o ciclomotor se encontrava a cerca de 50 metros dos ofendidos.
A testemunha JF referiu que o ofendido LS se encontrava confuso e que o depoente foi buscar uma cadeira de rodas ao hospital para o transportar. Corroborou as condições da via tal como descritas, bem como as circunstâncias de tempo e lugar e ainda referiu que à hora dos factos os semáforos existentes no cruzamento estão desligados.
Referiu que os ofendidos se encontravam perto da passadeira, perto dos semáforos e que o ciclomotor estava mais para cima, quase à entrada do hospital.
Que na sequência das declarações prestadas pelos ofendidos no local foram procurar o arguido e o veículo conduzido por si junto da residência do arguido e dos seus familiares não tendo visualizado o veículo nas imediações das residências em causa.
Também a testemunha JD referiu que circulavam em viatura da polícia na mesma estrada, sentido descendente, ou seja, poente-nascente, tendo visto o ciclomotor e os ofendidos no chão. Que o condutor do ciclomotor, LS não falou muito, não conseguia andar. Que CS identificou o condutor do veículo que os abalroou como sendo o “MS da N …”.
Já a testemunha JR, agente da Polícia de Segurança Pública referiu que estava na esquadra no dia dos factos e que por volta das 11 horas e 40 minutos atendeu o arguido que se dirigiu à esquadra a dizer que foi interveniente em acidente pelas 6 horas e que ficou nervoso e seguiu caminho. Que o arguido nessa ocasião disse que bateu em objeto que não conseguiu identificar.
Referiu ainda que informou o arguido sobre os intervenientes no acidente e que foi atingido um ciclomotor onde seguiam duas pessoas.
O ofendido LS referiu que no dia 22-12-2018 estava a subir a rua do Modelo e que tinha estado num café com os amigos, não sabendo concretizar qual. Que nesse estabelecimento também se encontrava o arguido. Que o depoente se encontrava acompanhado de CS. O depoente conhece o arguido, mas não são amigos, não tendo com este qualquer conflito, sendo que a situação dos autos foi a única situação que existiu entre ambos. Perguntado esclareceu que não teve qualquer discussão com o arguido no bar, mas que julga que o colega teve, o ofendido CS, não sabendo, contudo, esclarecer qual o motivo. Não sabe se a discussão ficou resolvida ou não. Que ia levar o colega a casa, CS, e seguia na mota de um amigo, RC, mota de marca Yamaha. Que na rua do modelo e do hospital, cujo nome não sabe, parou nos semáforos, que não estavam a trabalhar. Olhou para um lado e para o outro e foi sempre para cima, tem ideia de estar a passar a lomba e apagar. Ficou sem sentidos. Sentiu um embate por trás. Não viu nada, mas pelo impacto que sentiu não foi causado por outra mota. Depois, apenas se se lembra de ter acordado no hospital. Não se lembra dos policias. Deviam ser 5 ou 6h da manha.
Quando voltou a si, tinha dores na perna. Falou com os agentes no hospital quando acordou. Antes disso não se lembra de ter falado com eles. Não se lembra de onde ficou a mota. Sabe que foi para trás e lembra-se de bater no capot do carro. Ele e o amigo caíram para cima do veículo. A via estava iluminada com iluminação publica e tinha perfeita visibilidade. Mais referiu que o dono da mota foi ressarcido pela seguradora do arguido.
Esclareceu ainda que o arguido ligou ao depoente no dia a seguir para saber como estava e que lhe disse para não apresentar queixa, ao que o depoente respondeu que não tirava a queixa e que não queria dinheiro nenhum. Que o arguido ofereceu ajuda económica para a medicação e que se o depoente precisasse de dinheiro, para o contactar. Referiu que uma vez precisou de medicação e a sua mãe não tinha dinheiro, pelo que telefonou ao arguido a pedir e que o arguido pagou. Tirando esses dois contactos, não falou mais com o arguido. Referiu que o arguido disse ao depoente que não sabia e que não o tinha visto e pediu desculpa.
Que o depoente tinha as luzes da mota a funcionar e que circulava a cerca de 30 km/h. Teve rótula do joelho esquerdo fraturada, teve de pôr gesso e teve escoriações nos braços.
Que foi cerca de um ano e meio de recuperação e que durante esse ano não pode trabalhar. Que não consegue não consegue fazer certos trabalhos como pegar em pesos, nem consegue fazer força nas pernas. Atualmente trabalha como repositor em supermercado, mas na parte da charcutaria, o que não exige esforço físico.
Esclareceu ainda que recebeu uma indemnização do seguro do arguido no valor de cinco mil euros.
CS referiu que conhece o arguido há cerca de 12 anos. Não se lembra da data do acidente e que o mesmo ocorreu em frente ao hospital da Horta. Que ia com LS para uma discoteca. Vinham de um estabelecimento, onde tinham estado a beber, assim como o arguido. Que houve um desentendimento entre um amigo do depoente e o arguido e que esse desentendimento acabou, sendo que o depoente não se meteu no mesmo. Apenas no final da discussão o depoente se dirigiu ao arguido para acalmar a situação. Que antes de saírem desse estabelecimento, o arguido quis pagar a conta de uma das pessoas com quem o depoente estava o que sucedeu.
Foi com LS na scooter conduzida por este, na rua da Modelo até aos semáforos. Pararam nos semáforos, e nessa altura o depoente só viu “máximos”, tendo olhado três vezes para trás, percebeu que iam ter a colisão. Que o veículo vinha aumentando as mudanças. O depoente não conduz.
Que estavam a acabar de fazer o cruzamento dos semáforos a menos de 100 metros da entrada do hospital. Que na sequência do embate, foi disparado e bateu na parte superior do canto superior direito do veículo. Depois bateu com a cabeça, mas tinha capacete. Levantou-se logo a seguir a ter caído no chão. Foi projetado e depois caiu no meio da estrada. Levantou-se para tentar perceber qual era o carro.
Que logo de seguida, caiu uma grande tempestade e apareceu a polícia e perguntaram o que se tinha passado. Esclareceu que o depoente bateu com as costas no veículo e foi projetado para cima. Depois de caírem, o depoente puxou a mota porque estava no meio da estrada. Referiu que o veículo passou por cima da mota.
Referiu que pensa que o arguido não os viu de todo. Que bateu na mota onde o depoente ia e nunca parou.
A testemunha referiu ainda que depois do acidente o arguido telefonou ao depoente a pedir desculpa, dizendo que não os tinha visto e que o depoente na altura aceitou o pedido de desculpa.
O depoimento de CS revelou-se algo contraditório e pouco rigoroso em diversos aspetos. Desde logo, relativamente às datas, a testemunha primeiro referiu que o acidente ocorreu em 2015, mas questionado sobre a idade que teria nesse ano, a testemunha já referiu que afinal não podia ter sido em 2015, e que deveria ter sido em 2017. Também relativamente à sua perceção de distâncias, a testemunha evidenciou não ter noção daquelas, pois referiu-se à largura da mota fazendo um gesto com os braços que não excedia a largura dos seus ombros, referindo ser de dois metros.
Por outro lado, as contradições encontradas no seu depoimento: aquando da instância da Digna Magistrada do Ministério Público, a testemunha referiu de forma espontânea que pensa que o arguido não os viu de todo e que o desentendimento que existiu no estabelecimento com um amigo do depoente terminou. Questionado novamente sobre esses factos, já referiu que pareceu que a discussão não ficou resolvida e que não acreditou no arguido quando este lhe disse que não os viu. Ficou o Tribunal com a convicção de que o depoimento desta testemunha além de ser alterado no próprio decurso, padece de falta de rigor em diversos factos, o que inevitavelmente afeta a credibilidade do mesmo. Com efeito, a testemunha não conduz, porém, referiu que apenas viu os “máximos”. Terá visto certamente faróis, sendo que decorre das regras da experiência comum que à noite, quando um carro tem os faróis ligados com os níveis médios de iluminação, tal é suficiente para não permitir ver mais nada além das luzes. Não permite designadamente, ver com clareza as características do automóvel ou o condutor. Quem conduz com regularidade sabe que, de noite, é essa a imagem dos automóveis que circulam em sentido contrário ou no mesmo sentido atrás do veículo conduzido pelo agente. O que não significa que os faróis se encontrem no nível máximo. Nesses casos, quem olha para o veículo efetivamente fica de tal forma encandeado que nada mais vê. Mas não parece ter sido esse o caso pela descrição da testemunha, sendo certo que face à falta de rigor relativamente a outros pormenores, também relativamente a este, o Tribunal não conferiu credibilidade.
A testemunha referiu ainda que o veículo vinha a aumentar as mudanças. No entanto, é pouco provável que uma pessoa possa assegurar tal facto por observar um veículo em movimento durante segundos. Com efeito, do depoimento da testemunha resulta que tudo aconteceu rápido e não que a testemunha estivesse a observar o veículo do arguido há algum tempo.
Por outro lado, se o arguido acelerava, afigura-se pouco provável o aumento de mudanças já que para engatar nova mudança, seja acima ou abaixo, tal implica necessariamente desaceleração ainda que momentânea. Contudo, a testemunha não conduz, o que permite concluir que poderá ter pouca noção do que se descreve.
A testemunha referiu ainda que o carro passou por cima da mota. Ora, é pouco verosímil olhando para as fotografias do veículo. O automóvel não é muito alto e das fotografias resulta que a parte lateral do para-choques da frente ficou virado para dentro, o que sugere que efetivamente a mota foi, pelo menos, empurrada, por maior ou menor distância, pelo carro naquela zona do mesmo. Passar integralmente por cima da mota afigura-se pouco plausível uma vez que decorre das regras da experiência comum que as motas têm pelo menos cerca de 40 cm de largura atendendo ao guiador onde o condutor tem as mãos assentes.
Em suma, do seu depoimento, o Tribunal fica com a convicção de que efetivamente o acidente decorreu nos moldes supra descritos, mas não fica convencido quanto a todos os factos de que o arguido vinha acusado.
De facto, estas eram as testemunhas que poderiam corroborar a versão da acusação, designadamente, quanto à discussão e o eventual propósito do arguido em atingir os ofendidos. Contudo, tal não se pode retirar dos seus depoimentos.
Acresce que, no que respeita à dinâmica do acidente, não se pode deixar de considerar que ambos os ofendidos referiram que abrandaram junto do cruzamento. Ou seja, não seguiam a uma velocidade reduzida desde o início da via, tendo antes reduzido para atravessar um cruzamento de alguma perigosidade, que tinha os semáforos desligados.
Assim, afigura-se mais plausível que o arguido tenha embatido com o veículo conduzido por si, por não ter acompanhado o abrandamento efetuado pelo veículo da frente, isto é, do ciclomotor, acabando por provocar o embate.
A testemunha HBS, irmão do arguido, efetivamente confirmou que o carro conduzido pelo arguido pertence ao depoente. Nada de relevante acrescentou à demais prova produzida já que não assistiu aos factos.
Corroborou os danos na sua viatura automóvel, assim como já haviam sido referidos pelo arguido e são demonstradas pelas fotografias do mesmo juntas aos autos.
A testemunha RC confirmou que era o proprietário do ciclomotor conduzido pelo ofendido LS, não tendo assistido aos factos. Referiu que foi ressarcido pela seguradora.
A testemunha CL referiu que conhece o arguido por ter trabalhado na junta de freguesia onde o arguido trabalha. Que enquanto funcionário, nada tem a dizer contra, sendo uma pessoa prestável e empenhada.
A testemunha LL referiu também que conhece o arguido por ter trabalhado na junta de freguesia e que, na sua perspetiva, o arguido é trabalhador e bom colega, cumpridor. Que tudo o que era solicitado, o arguido cumpria.
Foram ainda valorados os documentos juntos, designadamente, exame ao local de fls. 177 e ss., fotogramas de fls. 44 e ss. informação clínica de fls. 94 e ss. e relatórios de exame médico de fls. 146 e de fls. 165 e ss.
Assim, mais concretamente, os factos 1 a 11 resultaram da valoração conjugada das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas LS, CS, JF e JD, estas últimas duas testemunhas, mais particularmente, no que respeita às características da via, a sua descrição, condições, o facto de os semáforos não funcionarem de noite. Também nesta parte, resultaram da valoração da reportagem fotográfica e relatório de inspeção ao local elaborado pela Polícia de Segurança Pública, cujo teor foi corroborado pela prova testemunhal.
No que respeita às circunstâncias de tempo de lugar também as mesmas foram corroboradas pelo arguido, pelos agentes da Polícia de Segurança Pública e pelo ofendido LS.
O arguido admitiu que poderia circular em excesso de velocidade o que se afigura perfeitamente plausível face à demais dinâmica dos factos relatada, quer pelo arguido, quer pelas testemunhas. Com efeito, o arguido teria de circular a uma velocidade superior à do veículo conduzido por LS, e considerando os factos, o Tribunal fica convencido de que foi a uma velocidade superior a 50 km/h porque se fosse a velocidade inferior, o arguido teria tido maior probabilidade de se aperceber que iria embater no veículo e também. Por outro lado, considerando o embate que foi – evidenciado pelos danos provocados na viatura conduzida por si, na projeção dos ofendidos e nos danos causados no ciclomotor, resulta conforme às regras de experiência comum que a velocidade não seria inferior a 50 km/h.
O facto 12 resulta do depoimento de LS.
O facto 13 resulta da valoração conjugada das declarações do arguido, com os depoimentos dos ofendidos LS e CS.
Com efeito, por um lado, a versão apresentada pelo arguido, de que não viu os ofendidos, apesar de não ser particularmente plausível, também não se afigura, no plano teórico, totalmente inverosímil. É pouco provável que o condutor não olhe para a estrada enquanto conduz, mas também é verdade e comummente sabido que muitos acidentes de viação ocorrem por faltas de atenção momentâneas, por vezes grosseiras, derivadas da indevida utilização do telemóvel enquanto se conduz, por exemplo, ou até da utilização do rádio do automóvel. Por outro lado, outros pontos da versão do arguido são efetivamente corroborados pela demais prova testemunhal produzida, designadamente que 1) não teve qualquer discussão com os ofendidos, não se vendo assim a motivação descrita na acusação; 2) o arguido apresentou-se espontaneamente na esquadra da Policia de Segurança Pública algumas horas depois do acidente; 3) telefonou no dia seguinte ao ofendido LSa pedir desculpa e oferecer ajuda financeira.
A testemunha CS teve um depoimento em certa medida contraditório, sendo certo que referiu que não houve qualquer discussão entre o arguido e a testemunhas, mas que eventualmente, o arguido poderia ter pensado que quem seguia no ciclomotor poderia ser a pessoa com quem teve a referida discussão. No entanto também referiu que a discussão parecia ter ficado resolvida e que o arguido quis pagar a conta de um dos seus amigos.
De facto, fica a convicção de que nem a testemunha tem qualquer convicção sobre se foi ou não intenção do arguido em atingir os ofendidos, sendo certo que ainda que existisse tal convicção, a mesma não seria suficiente para fundamentar e considerar provada o propósito por parte do arguido.
A verdade é que a conduta objetiva descrita pelos ofendidos tanto é compatível com uma eventual intenção do arguido em atingir os ofendidos, como com a ausência de tal intenção. Em suma, não se pode dizer que face à prova produzida, o Tribunal não possa concluir de outra forma que não a de que o arguido apenas atuou daquele modo por ser o seu propósito.
Fica efetivamente, uma dúvida que se afigura razoável e insanável sobre uma eventual pretensão do arguido em atingir propositadamente os ofendidos no ciclomotor em que circulavam.
E por estes motivos, não pode o Tribunal dar como provado que o arguido decidiu imprimir maior velocidade ao veículo conduzido por si de forma a embater o mesmo contra o ciclomotor conduzido por LS e tudo com o propósito de causar perigo à integridade física dos ofendidos.
No entanto, atendendo às declarações do arguido, não pode o Tribunal concluir de outra forma que não a de que o arguido conduziu pelo menos de forma desatenta e por esse motivo fez o seu veículo embater no ciclomotor, designadamente, porque não estava a olhar para a estrada no momento em que LS abrandou o ciclomotor perto do cruzamento, tendo o arguido pelo menos mantido a velocidade a que seguia, provocando inevitavelmente o embate.
Os factos 14 a 18 resultam, no que respeita à dinâmica do acidente, dos depoimentos das testemunhas CS e LS. Já no que respeita às consequências – as lesões – resultam da valoração conjugada dos seus depoimentos com os elementos clínicos juntos aos autos e o relatório pericial.
Os factos 19 a 21 relativos aos elementos cognitivos e volitivos subjacentes à conduta do arguido foram retirados da objetividade da mesma, o que se mostra conforme às regras de experiência comum.
O passado criminal do arguido resulta da valoração do seu certificado de registo criminal junto aos autos.
As suas condições pessoais resultaram das suas declarações prestadas em audiência.
Os factos não provados resultaram da ausência de prova nesse sentido ou da sua insuficiência, ou ainda por serem contrários com factos provados ou com a prova produzida.
Mais concretamente, o facto A foi contrariado pela prova testemunhal, designadamente, pelos depoimentos das testemunhas LS e CS.
O facto B mostra-se contrariado pelo depoimento de LS que referiu que seguia a cerca de 30 km/hora.
O facto C resultou não provado face à ausência de prova nesse sentido, sendo que o depoimento da testemunha CS não se mostra suficiente, pelos motivos acima expostos, para dar como provado que o arguido aumentou a velocidade subitamente. Do mesmo modo, nenhum dos depoimentos ou outros elementos, conjugado com as declarações do arguido e tendo presentes as regras de experiência comum, se mostram suficientes para dar como provado o propósito do arguido em acelerar e embater com o veículo conduzido por si no ciclomotor conduzido por LS.
O facto D resultou não provado em face da ausência de prova nesse sentido, não sendo suficiente o desenho junto ao auto de participação do acidente feito pelo agente da Polícia de Segurança Pública. Conforme referido pelo mesmo, foi identificado um “ponto provável da colisão” e não o local exato, sendo certo que aquele desenho foi feito com base nas declarações dos ofendidos, já que os agentes não assistiram ao acidente, Por outro lado LS referiu que ficou inconsciente, sabendo apenas que o embate se deu na zona do cruzamento. CS, por seu turno, no que respeita a distâncias demonstrou não ter qualquer noção realista das mesmas.
O facto E resultou não provado face à ausência de prova nesse sentido.
O facto F, conforme acima referido, não ficou provado, por, não obstante ter sido relatado pela testemunha CS, não se afigurar inverosímil, atendendo à imagem do carro e a sua altura, bem como à largura das motas que certamente não seria de apenas 20 ou 25 centímetros, como parece ser a altura do carro.
Os factos G a L resultaram não provados face à insuficiência de prova produzida nesse sentido, não sendo possível ao Tribunal concluir de forma sólida e segura que aquela foi a vontade do arguido e que viu o ciclomotor onde os ofendidos seguiam.
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IV. DO DIREITO
Crime de ofensa à integridade física qualificada
O artigo 143.º do Código Penal prevê e tipifica o crime de ofensa à integridade física nos seguintes termos: «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
O crime de ofensa à integridade física simples tutela a integridade física, que inclui a integridade corporal e a saúde física. São elementos constitutivos do tipo: 1) que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa (tipo objetivo); 2) o dolo, enquanto conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal (elemento subjetivo).
Trata-se de um crime de dano, quanto ao bem jurídico, uma vez que o tipo abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem. É um crime de realização instantânea e um crime de resultado quanto ao objeto da ação.
O elemento objetivo do tipo preenche-se com a ofensa do corpo ou da saúde de outrem, podendo ainda suceder uma ofensa simultânea a estes dois bens que são abrangidos pela integridade física. Não é assim necessário para o preenchimento do tipo qualquer dor ou sofrimento ou ainda qualquer incapacidade para o trabalho.
A ofensa ao corpo deve ser relevante e não insignificante. Constitui lesão da saúde a criação de um estado de doença, mas também o contributo decisivo ou relevante para a manutenção ou agravamento de um estado de doença ou sofrimento anteriormente existente.
O artigo 143.º exige o dolo em qualquer das suas modalidades nos termos do artigo 14.º do Código Penal. O dolo de ofensas a integridade física refere-se as ofensas no corpo ou na saúde do ofendido, sendo irrelevante a motivação para este efeito.
Por seu turno, o artigo 144.º prevê o crime de ofensa à integridade física grave, dispondo: «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) Tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d) Provocar-lhe perigo para a vida; é punido com pena de prisão de dois a dez anos.».
Já o artigo 145.º, n.º 1, do Código Penal, sob a epígrafe «Ofensa à integridade física qualificada» prevê que: «1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144.º-A; c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144.º e do n.º 1 do artigo 144.º-A. 2 – São suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º»
Este tipo de crime é assim aplicável apenas em conjugação com a previsão de um dos crimes previstos nos artigos 153.º ou 144.º do Código Penal.
Após prever o tipo fundamental de ofensa à integridade física simples (143.º) e o tipo de ofensa à integridade física grave (144.º), o Código Penal vem prever no artigo 145.º ainda uma qualificação tanto do tipo fundamental como da ofensa à integridade física grave, qualificação esta que decorre da especial censurabilidade ou perversidade do agente. O n.º 2 do artigo 144.º remete para o n.º 2 do artigo 132.º consagrando as circunstâncias neste previstas como suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, o que não é de verificação automática, cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-05-2018, processo n.º 213/15.0GACLB.C1, disponível em www.dgsi.pt .
Assim como no delito fundamental, o crime de ofensa à integridade física qualificada é um crime de dano, quando ao bem jurídico, e um crime de resultado, quanto ao objeto da ação. Visa proteger a integridade física do ofendido e ainda, nos casos da alínea c) do artigo 145.º que seja integrada pela alínea d) do artigo 144.º, protege-se também a vida.
A ofensa corporal tem de ser entendida com sentido médico-legal, como significando lesão corporal.
Tanto o preenchimento dos factos que integram o crime de ofensa à integridade física simples tem de ser a título de dolo, como ainda as circunstâncias que permitem no caso concluir pela especial censurabilidade do agente.
O arguido vem acusado da prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos pelos artigos 143.º n.º 1, e 145.º n.º 1 alínea a) com referência às alíneas e) e h) do artigo 132.º n.º 2, todos do Código Penal. Vejamos.
No caso dos autos ficou provado que o arguido fez embater o veículo conduzido por si no ciclomotor conduzido por LS e onde seguia CS, mas não resultou provado que o tenha feito com o propósito de o fazer. Resultou antes provado que conduzia o seu veículo desatento, porque não olhou para a estrada no momento que antecedeu o embate.
Assim, não ficou provada a atuação dolosa por parte do arguido, isto é, o conhecimento de que iria embater com o seu veículo no ciclomotor onde seguia LS e CS e a vontade de o fazer.
Conforme acima referido, o crime de ofensa à integridade física qualificada é um tipo doloso.
Não se preenchendo o elemento subjetivo do dolo, não se afigura pertinente analisar a integração dos factos nas alíneas e) e h) do artigo 132.º, n.º 2, nem de especial censurabilidade.
Não se provando o conhecimento e a vontade em atuar daquela forma, não pode o arguido ser condenado por estes crimes, devendo ser deles absolvido.
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Crime de ofensa à integridade física negligente:
«Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.»
O crime de ofensa à integridade física é um crime material e de dano, cujo resultado consiste na lesão do corpo ou da saúde de outrem. Por ofensa no corpo deve entender-se, como o faz Paula Ribeiro de Faria, (em «Comentário Conimbricense ao Código Penal», tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pág. 205, citando Eser) «todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante». E refere que integra o elemento típico, além de outras atuações, as «lesões da substância corporal, como as nódoas negras, feridas ou inchaços».
Observa ainda a mesma autora (obra citada, pág. 207) que «a ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta», devendo a gravidade aferir-se por um critério objetivo.
Nos presentes autos estão em causa ofensas à integridade física negligentes, sendo, para o preenchimento deste tipo de crime, além da negligência, a imputação objetiva do resultado.
Torna-se, pois, necessário, com vista a qualificar a conduta do arguido, em primeiro lugar, delimitar o que deve entender-se por conduta negligente e, subsequentemente, determinar quais as condições da referida imputação.
O artigo 15.º do Código Penal dispõe, «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
Deste modo, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade da realização típica – negligência inconsciente. Age ainda negligentemente quem, de forma ilícita e censurável, representa como possível a realização típica, mas atua sem se conformar com essa realização – negligência consciente.
As duas formas de negligência recebem tratamento idêntico, estão estruturalmente equiparadas, revelando em qualquer delas a violação de um dever de cuidado, que na negligência inconsciente se refere ao não reconhecimento do perigo e, na consciente, a uma sua falsa valoração.
A violação do dever de cuidado, determina-se por critérios objetivos, nomeadamente, pelas exigências postas a um homem avisado e prudente na situação concreta do agente.
O dever objetivo de diligência concretiza-se em numerosos sectores da vida através de regras de conduta (normas específicas, como as normas de trânsito) ou por regras da experiência, por exemplo, as legis artis de determinadas profissões ou grupos profissionais.
O Direito impõe a todos o dever de evitar a lesão a terceiros: é o dever geral de cuidado, de forma que, quando falamos das características típicas dos crimes negligentes e trabalhamos metodicamente, devemos indagar quais são os comportamentos que a ordem jurídica exige numa determinada situação – só assim poderemos medir a conduta do agente, saber e ela corresponde à do homem avisado e prudente na situação concreta do agente. A medida do cuidado exigível coincidirá com o que for necessário para evitar a produção do resultado típico.
Em muitos domínios a negligência começa quando se ultrapassam os limites do risco permitido. Consideremos a condução automóvel que, como muitas outras atividades comportam riscos que, em certas ocasiões, nem mesmo com o maior cuidado se podem evitar.
Põe-se em relação a tais atividades a questão da sua necessidade social ou da sua utilidade social e, por isso mesmo, o Direito aceita-as, não as proíbe, não obstante os perigos que lhe estão associados.
As condutas realizadas ao abrigo do risco permitido não são negligentes, não chegam a preencher o tipo de ilícito negligente. Se o agente não criou ou incrementou qualquer perigo juridicamente relevante não existe sequer a violação de um dever de cuidado. A negligência exclui-se se o agente se contém nos limites do risco permitido, se com a manobra que efetuou não criou nem potenciou um risco para a vida ou para a integridade física da vítima.
No entanto, atua negligentemente quem causa um resultado típico através de uma ação que aumenta o risco acima da medida permitida, aumentando o risco da produção do resultado, como por exemplo fazer manobras bruscas e sem previamente se assegurar de que as pode efetuar em segurança.
No caso dos acidentes de viação a omissão do dever de cuidado pode ocorrer, para além do mais, do desrespeito ou da falta de observância de quaisquer disposições que condicionam a circulação de veículos.
A factualidade provada quanto às circunstâncias do acidente revela que este resultou da omissão dos cuidados exigíveis ou, mais concretamente, na violação da obrigação dos condutores circularem no respeito do limite de velocidade e da distância de segurança que deve ser guardada dos outros veículos.
Para cumprimento desta e de outras normas rodoviárias, impõe-se que o condutor pratique a condução com atenção às circunstâncias da via, aos demais utentes da mesma, bem como à sinalética existente.
Efetivamente, caso tivesse tomado a atenção à via em que seguia, se tivesse adequado a velocidade e guardado distância de segurança, o arguido teria visualizado o ciclomotor onde seguiam os ofendidos e teria tido a possibilidade de agir de forma adequada, isto é, abrandar o veículo de forma a não embater no outro veículo.
Temos, pois, que o arguido conduzia sem os cuidados e a atenção que podia e devia observar no exercício de uma condução prudente.
Para o preenchimento do tipo legal objetivo de ofensa à integridade física por negligência, como já se referiu, é indispensável a imputação objetiva do resultado típico à ação violadora do dever objetivo de cuidado.
Significa isto que a omissão do dever de cuidado tem de ser a causa direta e imediata do evento que se pretendia evitar com a imposição do mencionado dever de cuidado. E para existir a imputação objetiva fundamental, desde logo, que se possa afirmar, com razoável probabilidade que o resultado ocorrido teria sido evitado se o agente tivesse procedido com o cuidado objetivamente exigível e, ainda, que o cuidado omitido visava impedir a verificação de resultados da espécie do efetivamente produzido.
A factualidade provada quanto às circunstâncias do acidente revela que o mesmo resultou da omissão dos cuidados exigíveis ou, mais concretamente, da violação do dever objetivo por parte do arguido que, poderia e deveria ter adequado a sua atenção e a velocidade a que seguia, designadamente abrandando ou imobilizando o veículo. Ao não fazê-lo, o arguido aumentou o risco de verificação de um acidente para os demais veículos que aí circulavam, designadamente o ciclomotor onde seguiam LS e CS, os quais nada puderam fazer para evitar o embate.
Efetivamente, caso tivesse tomado devidas precauções, ou seja, caso tivesse adequado a sua atenção à via em que circulava em vez de se distrair com outros objetos, não teria certamente deixado de visualizar o ciclomotor e efetuado a manobra de abrandamento ou imobilização exigida pelo caso e o acidente não se teria verificado.
Acresce que o condutor do ciclomotor circulava a uma velocidade reduzida no mesmo sentido de trânsito e abrandou ao chegar a um cruzamento que tinha os semáforos desligados, sendo que o próprio arguido também deveria ter abrandado ao aproximar-se de tal cruzamento e ter prestado atenção à possibilidade de circularem ali outros veículos.
Pelo exposto e porque inexiste causa que exclua a ilicitude ou dirima a sua responsabilidade, culpado na produção do acidente, praticou o arguido, com negligência inconsciente, dois crimes de ofensas à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º n.º 1 do Código Penal.
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Crime de omissão de auxílio:
Vem ainda o arguido acusado da prática de dois crimes de omissão de auxílio agravado, previsto e punido pelo artigo 200.º n.º 1 e 2 do Código Penal.
Prevê este normativo que,
«1. Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2. Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida, a integridade física e a liberdade de outra pessoa.
O tipo objetivo da omissão de auxílio consiste na omissão de auxílio a uma pessoa cuja vida, integridade física ou liberdade se encontra em perigo em virtude de grave necessidade decorrente de uma situação de desastre natural ou humano.
Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de abril de 2017 (Processo n.º 75/13.2GTCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt ) «I - Trata-se, na sua forma simples [crime de omissão de auxílio] de um crime comum – pois pode ter por agente qualquer pessoa – e de um crime específico impróprio, na sua forma qualificada pois só pode ter por agente o causador do perigo, de um crime de perigo concreto – pois a verificação do perigo é elemento constitutivo do tipo -, um crime de omissão pura – pois traduz na omissão de uma conduta exigida pela lei, esgotando-se na própria inobservância da norma – e de um crime de mera atividade – pois é irrelevante para o preenchimento do tipo a verificação de um resultado lesivo – que, tendo como fundamento da incriminação a solidariedade social, tutela os bens jurídicos vida, integridade física e liberdade.»
Refere ainda o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 02-12-2020, processo n.º 97/18.7GTCSC.L1-5, disponível em www.dgsi.pt :
«O fundamento legitimador do dever geral de auxílio, consagrado no art.º 200º do Código Penal, é a solidariedade humana que deve vincular todo e qualquer membro da sociedade e enquanto crime de perigo concreto, o referido tipo de ilícito pretende proteger o valor da solidariedade social relativamente a uma pluralidade de bens como a vida, a integridade física e a liberdade.
- A ilicitude da conduta está na não prestação do auxílio necessário, sendo este o que, na situação concreta, é, simultaneamente, considerado indispensável e adequado ao afastamento do perigo.
- Subjectivamente, impõe o dolo em qualquer das suas modalidades, bastando que o agente represente que o necessitado de auxílio corre riscos para qualquer um dos bens jurídicos mencionados; não se exige, assim, um dolo de resultado. Sendo a omissão de auxílio um crime de perigo concreto, a afirmação do dolo pressupõe e basta-se com a representação de que o necessitado de auxílio corre riscos de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade e com a conformação ou indiferença perante essa situação de perigo.»
No caso dos autos, não resultou provado que o arguido tenha visualizado o ciclomotor e que tivesse conhecimento de que circulava o referido ciclomotor, com os ofendidos e que por sua vontade tivesse embatido com o seu veículo naquele.
Também não resultou provado que o arguido tivesse de seguida imobilizado o seu veículo, de onde não se pode concluir que o arguido tenha percecionado e obtido o conhecimento de que se encontravam duas pessoas no local a necessitar de auxílio na sequência do embate.
Resultou apenas provado que o arguido seguiu sempre sem parar o veículo, mas já não que o arguido tivesse conhecimento de ter provocado o acidente e as lesões nos ofendidos. Isto é, não resultou provado que o arguido tivesse conhecimento de que os ofendidos LS e CS se encontrassem naquele local, necessitados de auxílio.
Não se podem ter assim como preenchidos os elementos subjetivos deste tipo de ilícito, pese embora tenha resultado provado que efetivamente, o arguido provocou a situação de perigo, criou a situação de necessidade de auxílio pelos ofendidos e abandonou o local.
Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, terá de ser absolvido o arguido dos crimes de omissão de auxílio de que vem acusado.
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V. DO DIREITO
Consequência jurídicas do crime
Escolha da pena:
O crime de ofensa à integridade física negligente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
De acordo com o artigo 70.º do Código Penal, «o tribunal dá preferência à [pena de multa] sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».
Por seu turno, a aplicação de penas tem como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, cf. artigo 40.º do Código Penal.
A proteção de bens jurídicos é levada a cabo através da utilização e aplicação da pena como instrumento de prevenção geral, servindo sobretudo para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado, e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).
Por outro lado, a reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
Para aferir da suficiência e adequação de uma pena não privativa da liberdade importa atender assim a um conjunto de fatores que remetem para as exigências de prevenção geral e especial.
Quanto às exigências de prevenção especial, importa atender, em particular, ao passado criminal do arguido, postura processual, bem como às suas circunstâncias pessoais e ainda aos factos praticados.
No caso dos autos, o arguido não conta com antecedentes criminais da mesma natureza, mas apenas com uma condenação por condução de veículo em estado de embriaguez.
Encontra-se social e profissionalmente inserido.
O arguido esteve presente em audiência de julgamento assumindo em parte os factos e apresentando uma versão alternativa a qual, face à ausência de prova de todos os elementos constantes da acusação, não se pode deixar de dar como provada.
Por outro lado, os factos que resultaram provados, considerando as diversas formas através das quais o tipo de crime em causa pode ser cometido, não pode deixar de se concluir o arguido violou de forma grosseira as normas da condução sendo especialmente censurável a forma como exerceu a condução.
Do mesmo modo, a conduta posterior ao crime, ao abandonar o local sem verificar em que ou em quem havia embatido fazem aumentar as necessidades de prevenção do caso.
As exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a frequência deste tipo de crime, sendo que frequentemente as pessoas violam normas básicas do Código da Estrada e optam por um estilo de condução pouco prudente, sem ter em consideração a perigosidade da atividade em si.
É certo que também resultou da produção de prova que o arguido pediu desculpa aos ofendidos e que umas horas depois do acidente se apresentou voluntariamente na esquadra para assumir a responsabilidade pelo acidente. Contudo, fica a dúvida sobre a espontaneidade desta atuação e sobre a sua real motivação – se um peso de consciência e um arrependimento sincero ou se uma tentativa de minimizar as consequências jurídicas que pudessem vir a recair sobre o mesmo.
Em todo o caso, considerando que o arguido se encontra integrado e não tem antecedentes criminais pelo mesmo tipo de crime, considera-se ainda adequado ao caso dos autos a aplicação de uma pena de multa.
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Medida da pena:
No caso dos autos, o crime de ofensa à integridade física negligente é punido com pena de prisão até 120 dias.
Importa considerar, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a medida da culpa do agente e as exigências de prevenção que se fazem sentir no caso.
Nos termos da citada norma, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: «a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.»
Assim, quanto às exigências de prevenção que se fazem sentir no caso, conforme já referido e para o que aqui releva, o arguido não tem antecedentes criminais da mesma natureza. O grau censura, ainda que dentro da negligência, não deixa de ser elevado, pois o arguido agiu com violação muito grosseira das regras mais básicas da condução – a de prestar atenção à estrada – e para piorar a situação, apesar de se ter apercebido de um embate, não imobilizou o veículo e não voltou de imediato ao local para averiguar em que ou em quem poderia ter embatido.
O arguido encontra-se inserido social e profissionalmente, pois reside com a companheira e os dois enteados, trabalha e paga as despesas que suporta com o sustento do seu agregado familiar em conjunto com a sua companheira.
Contudo, conforme referido, o modo de execução do crime agrava as necessidades de prevenção especial, o grau de culpa e ilicitude são elevados, face aos factos. As consequências foram graves, pois, o ofendido LS fratura da rótula do joelho esquerdo e ficou com um período largo e relevante de incapacidade para o trabalho.
As exigências de prevenção geral e especial são assim elevadas, conforme acima referido.
Tudo ponderado, considerando as exigências de prevenção, bem como o grau de ilicitude e de culpa, considera-se adequada uma pena de 100 (cem) dias de multa para cada um dos crimes que lhe são imputados.
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Do cúmulo jurídico:
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º do Código Penal: «1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.»
No caso dos autos, considerando as duas penas de 100 dias de multa, constata-se que o limite máximo concretamente aplicável é de 200 dias de multa, sendo o limite mínimo 100 dias.
Considerando, em conjunto, os factos dados como provados, bem como a personalidade do arguido – revelada pela total irresponsabilidade e irreflexão dos seus atos, considera-se adequada uma pena única de 170 dias de multa.
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Quanto ao valor diário da pena de multa, ficou provado que o arguido trabalha como encarregado operacional na junta de freguesia, auferindo 840,00 euros mensais.
Mais resulta que o arguido tem como principais despesas a pensão de alimentos de 75,00 euros a uma filha que reside no continente e as despesas de alimentação e consumos domésticos.
Assim, atendendo às condições económicas do arguido, considera-se adequado o montante diário mínimo de €8,00, o que resulta num total de €1360,00 (mil trezentos e sessenta euros).
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Pena acessória:
Nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal:
«1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:
a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;»
Considerando os factos aqui provados e a subsunção dos mesmos ao crime de ofensa à integridade física negligente, no exercício da condução e com violação de regras de trânsito (excesso de velocidade e distância de segurança), impõe-se ainda a condenação do arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor.
O arguido já foi condenado por condução de veículo em estado de embriaguez.
Encontra-se integrado e não tem outros antecedentes.
Os factos foram praticados com manifesta falta de prudência.
Tudo ponderado, julga-se adequada uma pena acessória de proibição de condução de veículos a motor, pelo período de seis meses.
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(…)”.
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iv – fundamentação.
iv-1 – Questão Prévia – Da (in)admissibilidade do documento apresentado pelo arguido com o requerimento de interposição de recurso.
O arguido, depois de mencionar na 1ª conclusão do recurso que foi condenado “na pena acessória de inibição [de condução][1] em processo de contra-ordenação com o número 540892, requereu a junção de um documento[2].
Impõe-se decidir sobre a admissibilidade da junção do aludido documento.
O objetivo da mesma, na perspetiva do recorrente, é a demonstração da prévia condenação no processo contra-ordenacional, pressuposto no qual assenta a impugnação recursiva apresentada – “(…) não pode o arguido ser condenado duas vezes pelos mesmos factos”.
O artigo 165º do Código de Processo Penal estabelece o momento próprio para a junção de documentos, sendo que a lei permite ainda a sua apresentação até um termo final – o encerramento da audiência de julgamento em 1ª instância.
Assim e em princípio, documentos que qualquer interveniente processual entenda que têm relevo para a descoberta da verdade material, deverão ser juntos até àquele momento, sendo que, caso o julgador assim o decida, pode ser oficiosamente ordenada a sua junção, nos termos do artigo 340º, nº 1, do Código de Processo Penal, igualmente até àquele limite processual (encerramento da audiência de julgamento em 1ª instância).
 Há uma razão para se estabelecer um termo limite para a apresentação de documentos com relevo para a decisão da causa – essa razão prende-se, essencialmente, com a circunstância de caber ao julgador de 1ª instância a apreciação de toda a prova atinente a uma determinada causa, sendo que essa apreciação tem de ser feita com pleno cumprimento quer do princípio do contraditório, quer do princípio da imediação.
Nas palavras de Germano Marques da Silva[3], “o processo estrutura-se na dialéctica entre a acusação e a defesa – audiatur et altera pars – e por isso o juiz, ainda que deva, autonomamente, buscar as bases necessárias à prolação da decisão – princípio da investigação ou da verdade material – deve também ouvir as razões, de facto e de direito, da acusação e da defesa, nisto se traduzindo o princípio do contraditório.
Este princípio consiste, em suma, no direito que assiste à acusação e à defesa de se pronunciarem sobre qualquer iniciativa processual tomada pela outra.
Mas mais. Na sua essência, o recurso é um remédio jurídico, o que significa que a reapreciação de segmentos decisórios, por um tribunal superior, se terá de fundar na invocação da existência de algo de concretamente errado na decisão proferida em 1ª instância. Efetivamente, o objeto dos recursos é a decisão recorrida e não a questão por esta julgada, sendo certo que com a sua interposição se abre apenas a possibilidade de reapreciação dessa decisão, com base na matéria de direito e de facto de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré-existente, pois, ao recurso.
No caso dos autos, o recorrente apresenta a cópia de uma decisão em processo contra-ordenacional que precedeu a sentença recorrida em quase três anos e que, sendo anterior ao encerramento da audiência em primeira instância, não foi junta aos autos até esse momento.
Decorre do que acima se referiu que, por princípio, em sede processual penal, a junção de documentos que não puderam ser submetidos à apreciação do julgador de 1ª instância (independentemente de poderem até ser de conhecimento posterior por parte quer do tribunal, quer de qualquer interveniente processual), não é admissível – tais documentos não podem ser admitidos em sede de recurso, por postergação quer dos princípios acima mencionados quer, essencialmente, por se traduzirem no aportar de uma nova dimensão de prova, que não se mostra contemplada em sede de recurso ordinário.
Na verdade, e nos casos em que novas realidades surjam já após tal momento terminal, a lei processual penal portuguesa previne a possibilidade da sua apreciação através de instituto próprio, expressamente consignado nos artigos 449º e seguintes do Código de Processo Penal, ou seja, em sede de recurso de natureza especial – o recurso de revisão[4].
Este tem sido o critério maioritariamente adoptado, como nos dá conta Maia Gonçalves, em "Código de Processo Penal Anotado", pág. 422, da 17.ª ed., da Almedina (alterando posição anterior). No mesmo sentido podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.11.1994, in Coletânea de Jurisprudência (Ac. do S.T.J.), Ano II, Tomo III, págs. 262, de 06.02.2008, de 22.10.2008, de 27.10.2010 e de 12.10.2011, estes todos acessíveis em www.dgsi.pt; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.11.1999 ( in Coletânea de Jurisprudência, Ano XXIV, tomo 5, pág. 47) e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.01.2007, acessível em www.dgsi.pt ).
Não ignoramos a existência de decisões - como a do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2009 (acessível em www.dgsi.pt) - que admitiram, em sede de recurso, a título excecional, a junção de documentos supervenientes, por os terem considerado imprescindíveis para a decisão da causa.
Também o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, por diversas vezes.
Deverá ver-se o Acórdão 90/2013[5], de 3 de Maio, publicado no D.R - 2.ª Série, nº 85, de 03.05.2013, Pág. 14.014) no qual o Tribunal Constitucional manteve a sua jurisprudência (constante) de decidir não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido em que não é admissível, após a prolação da sentença da 1.ª instância, a junção de documentos em sede de recurso que abrange a matéria de facto, mesmo quando esses documentos foram produzidos após aquele momento, só então sendo do conhecimento do arguido.
Permitimo-nos transcrever as razões para tal entendimento, para integral esclarecimento:
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão de constitucionalidade nos Acórdãos n.º 392/2003 e 397/2006, nos quais não julgou inconstitucional o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo-se escrito o seguinte no primeiro destes arestos:
"... a intempestividade da junção de documentos supervenientes, na fase de recurso para a relação, está directamente conexionada com os termos em que a lei regula os recursos em processo penal, particularmente, no que concerne à reapreciação da matéria de facto.
A decisão em 2.ª instância, sobre matéria de facto, não significa um segundo julgamento no sentido de se deverem apreciar novos elementos de prova. O juízo do tribunal de recurso tem por objecto a decisão de 1.ª instância, com a possibilidade, em certos casos, de "renovação" da prova (não de apresentação de novos elementos da prova - novas testemunhas, novos documentos) com os mesmos elementos probatórios que serviram de base à decisão recorrida.
Escrevem, a propósito, Simas Santos e Leal Henriques ("Recursos em Processo Penal", 3.ª ed., pág. 58):
"Ao estatuir que "sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença (isto é, de uma decisão que conhece, a final, do objecto do processo) abrange toda a decisão", o artigo 402.º, consagra no seu n.º 1, o princípio do conhecimento amplo.
O objecto legal dos recursos é, assim, a decisão recorrida e não a questão por esta julgada; com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão, com base na matéria de direito e de facto de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré-existente, pois, ao recurso".
Ora, a Constituição (maxime, artigo 32.º n.º 1), se assegura o direito ao recurso, deixa, no entanto, ao legislador ordinário uma margem de livre conformação na regulação do recurso, não impondo, de modo algum, que esta se traduza na permissão de um segundo julgamento da questão decidida em 1.ª instância.
Nesta lógica se compreende, sem vício de inconstitucionalidade, a proibição de junção de documentos supervenientes com vista a alterar a matéria de facto dada como provada em 1.ªinstância.»
É nítido que a interpretação sindicada está directamente conexionada com a perspectiva sobre os termos em que a lei ordinária define o âmbito dos recursos em processo penal, particularmente no que concerne à reapreciação da matéria de facto.
O Tribunal recorrido revela a sua visão sobre este tema quando disserta a propósito do disposto no n.º 1, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal:
"Deste preceito legal resulta que os recursos dirigidos a um tribunal hierarquicamente superior não se destinam a apreciar questões novas, não visam avaliar em primeira linha questões que não tenham sido suscitadas na 1.ª instância. Pelo contrário, estes meios de impugnação das decisões judiciais visam a reanálise, a reapreciação, de questões que já tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que podiam e deviam ter sido conhecidas, apesar de não terem sido apreciadas, com o intuito de correcção de vícios, de erros, de omissões ou de escolha da melhor solução jurídica para o caso.
A interposição de recurso deixaria de consubstanciar um meio de impugnação das decisões judiciais, de sindicância e de avaliação do seu mérito, com o intuito da sua modificação, para passar a ser um meio de vinculação do tribunal de recurso, do tribunal hierarquicamente superior, à decisão de questões novas, ainda não apreciadas pelo tribunal recorrido.
Deste modo, não ocorre qualquer vício da decisão judicial, susceptível de reparação pelo tribunal hierarquicamente superior através de recurso, quando o tribunal de 1.ª instância não teve a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que motiva a interposição do recurso, muito em particular por essa questão nova não ser cognoscível à data da decisão impugnada, por ter sido suscitada após a sua prolação, sendo desconhecida para o tribunal a quo."
Em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição que, relativamente à sentença condenatória, se traduz na necessidade de assegurar ao arguido a faculdade de pedir a sua reapreciação, quer quanto à matéria de direito, como à matéria de facto, por um tribunal superior.
Mas, o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efectuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, com direito à produção de novos meios de prova, designadamente os supervenientes, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando, face às provas produzidas na 1.ª instância, conforme já se decidiu no Acórdão 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt ), onde se lê:
"Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1.ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de "duplo julgamento". A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução...".
Daí que o direito do arguido recorrer da sentença condenatória, na parte em que decidiu a matéria de facto, possa não contemplar a possibilidade do tribunal de recurso apreciar novas provas que o arguido apresente em sede de recurso, mesmo que estas sejam supervenientes. É que tal fundamento de recurso já não se situa em sede de apreciação da correcção do julgamento da instância inferior que não teve a possibilidade de ponderar tais provas, visando antes a realização de um novo julgamento pelo tribunal de 2.ª instância, que também valore a prova apresentada já em sede de recurso.
Isto não quer dizer que a existência de novas provas não deva ser passível de utilização pelo arguido, de forma a que sejam assegurados, na plenitude, os seus direitos de defesa. Mas o mecanismo processual que possibilite essa utilização não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de segunda instância, que está a decidir sobre a procedência de um recurso ordinário, que analise e pondere, em primeira mão, essas provas supervenientes ao julgamento em primeira instância.
O nosso sistema processual penal prevê desde logo um expediente, no artigo 449.º do Código de Processo Penal, que, no seu n.º 1, d), admite a revisão da sentença transitada em julgado quando "se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação".
Nesse recurso extraordinário, há lugar a uma fase preliminar que decorre no tribunal que proferiu a decisão a rever (artigo 451.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), procedendo-se à produção da nova prova (artigo 453.º, do Código de Processo Penal). Terminada a realização destas diligências o processo é remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, acompanhado de informação sobre o mérito do pedido de revisão (artigo 454.º, do Código de Processo Penal). No Supremo Tribunal de Justiça, após vista ao Ministério Público, é então decidido o pedido de revisão, podendo ser ordenada a realização de qualquer diligência (artigo 455.º, do Código de Processo Penal). Pondera-se se as novas provas oferecidas são susceptíveis de infirmar o decidido. Caso seja autorizada a revisão, o processo é reenviado ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão a rever e que se encontrar mais próximo (artigo 457.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). E se o condenado se encontrar a cumprir pena de prisão ou medida de segurança de internamento, o Supremo Tribunal de Justiça decide em função da gravidade da dúvida sobre a condenação, se a execução deve ser suspensa (artigo 457.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Se ordenar a suspensão da execução ou se o condenado não tiver ainda iniciado o cumprimento da sanção, o Supremo Tribunal de Justiça decide se ao condenado deve ser aplicada medida de coacção legalmente admissível no caso (artigo 457.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Após a baixa do processo e realizadas as diligências que se entenderem necessárias, procede-se a novo julgamento da causa que já atenderá aos novos meios de prova, sem quaisquer limitações quer quanto à apreciação da matéria de facto, quer quanto à sua subsunção às disposições legais, observando-se em tudo os termos do respectivo processo como se não tivesse existido a decisão revista (artigo 460.º, do Código de Processo Penal). Se a decisão revista tiver sido condenatória e o tribunal da revisão absolver o arguido, aquela decisão é anulada, trancado o respectivo registo e o arguido restituído à situação jurídica anterior à sua condenação (artigo 461.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). A sentença que absolver o arguido no tribunal de revisão é afixada por certidão à porta do tribunal da comarca da sua última residência e à porta do tribunal que tiver proferido a condenação é publicada em três números consecutivos do jornal da sede deste último tribunal ou da localidade mais próxima, se naquela não houver jornais (artigo 461.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). A decisão absolutória deve também arbitrar ao arguido uma indemnização pelos danos sofridos e ordenar a restituição das quantias relativas a custas e multas que este tiver suportado (artigo 462.º, do Código de Processo Penal). Note-se ainda que, quando o condenado a favor de quem foi pedida a revisão se encontrar preso ou internado, os actos judiciais que deverem praticar-se preferem a qualquer outro serviço (artigo 466.º, do Código de Processo Penal).
Ora, o critério sindicado se não admite que sejam apresentados, em sede de recurso ordinário, documentos supervenientes como novos meios de prova a apreciar pelo tribunal de recurso no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não impede que esses documentos possam ser apresentados e valorados no âmbito de um recurso extraordinário de revisão que ponha em causa uma decisão condenatória já transitada em julgado.
Argumenta-se, porém, que a limitação a este meio de reacção "implica que o arguido tenha que aceitar passivamente o trânsito em julgado de uma sentença injusta, que lhe impõe o labéu de culpado contra a realidade de factos que suscitam "graves dúvidas" sobre a condenação recorrida. A obrigatória postergação para momento posterior ao trânsito em julgado de uma defesa que o arguido estava em condições de apresentar antes do trânsito constitui não só uma violação do princípio da presunção de inocência, como do princípio da celeridade processual. Dito de um modo simples, não é suficiente garantir o direito à revisão de um processo para quem já tem o labéu definitivo de culpado e entra logo a cumprir a pena aplicada (artigo 457.º, n.º 2), apesar de ele conhecer novos meios de prova que põem seriamente em causa a justiça da condenação. Impõe-se, portanto, nos casos de discussão dos referidos novos meios de prova uma audiência no tribunal de recurso logo na pendência do recurso ordinário (acórdãos do TEDH nos casos Helmers v. Suécia (plenário), Dondarini v. São Marino, Ekbatani v. Suécia (plenário), Pobornikoff v. Áustria, Kremzow v. Áustria, e Hermi v. Itália" (Paulo Pinto de Albuquerque, na ob. e loc. cit.).
Previamente à ponderação destes argumentos, não pode deixar, desde logo, de se mencionar que os arestos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acima identificados, que o Recorrente também invoca em defesa da sua tese, não têm por objecto a possibilidade de produção de novas provas nos tribunais de recurso, mas sim o direito dos arguidos estarem presentes e intervirem nas audiências que tenham lugar nesses tribunais, não sendo por isso convocáveis para a análise da presente questão de constitucionalidade.
Contudo, é verdade que a solução de fechar as portas dos recursos ordinários à avaliação de novas provas, mesmo que elas sejam supervenientes à prolação das decisões recorridas, e ao remeter a sua apreciação para um momento posterior ao trânsito em julgado da decisão final, introduz limitações temporais à produção dessas provas, permitindo que o processo termine com uma condenação e se inicie o cumprimento da respectiva pena, sem que elas tenham sido valoradas.
Todavia, há que ter presente que a possibilidade de novos meios de prova serem valorados pelo tribunal de recurso, o que, não se esqueça, poderia também acontecer por iniciativa da acusação, introduziria sérias perturbações e dilações à tramitação da instância recursória, pondo em causa a estabilidade e celeridade da sua tramitação, apresentando-se como uma solução dificilmente praticável.
Daí que, existindo interesses e valores dignos de tutela que justificam que se fixe um marco temporal na tramitação processual para a apresentação de provas, que exclua a fase de processamento do recurso ordinário, o legislador tenha liberdade para compatibilizar os diferentes valores em jogo, impedindo a produção de novas provas em sede de recurso ordinário, mesmo que supervenientes, mas assegurando, designadamente, que as mesmas poderão fundamentar a dedução imediata de um recurso de revisão, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, com uma tramitação caracterizada pela celeridade e pela possibilidade de ser ordenada a suspensão do cumprimento da pena entretanto iniciada, como sucede com as regras do recurso extraordinário de revisão acima descritas. É uma solução de distribuição dos custos do sacrifício de valores que respeita as exigências de proporcionalidade e que preserva o conteúdo essencial daqueles.
Além disso, não está excluída também a possibilidade de documentos supervenientes, com determinadas características, poderem excepcionalmente relevar em mecanismos como o reenvio para novo julgamento ou de renovação da prova, em caso de detecção dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, possibilidade que a decisão recorrida não deixa de encarar ao considerar que os documentos em causa não eram susceptíveis de "incontestavelmente influírem na decisão da causa".
Em suma, existindo no regime processual penal, quanto à matéria em questão, outros mecanismos, cujo regime confere ao arguido uma suficiente exequibilidade do seu direito de defesa perante a superveniência de provas, e não tendo a interpretação sindicada afastado o exercício desses meios de reacção, denota-se que tal interpretação não coloca em causa a garantia do direito de defesa do arguido, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, nem do direito a um processo equitativo
Assim sendo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objecto de fiscalização não viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.º 4, da Constituição, nem se vislumbra que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso apresentado pelo arguido… não merece provimento nesta parte.”.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre a questão no Acórdão nº 289/2020[6], tendo decidido “Não julgar inconstitucional o n.º 1 do artigo 165.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, em sede de recurso para a relação que abrange a matéria de facto, é extemporânea e como tal inadmissível a junção de documentos considerados pela defesa como essenciais e imprescindíveis para aferir da justeza da condenação que tenham sido produzidos e conhecidos pelo recorrente somente depois da decisão da primeira instância ou após a interposição do recurso, quando tais documentos, objetivamente considerados, comportam apenas uma outra valoração de situações já objeto de perícias ordenadas pelo tribunal de primeira instância”.
Este último aresto conta com uma declaração de voto do Conselheiro Manuel da Costa Andrade, que discorda do desvio do entendimento / critério normativo retirado do artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido da intempestividade da junção de documentos supervenientes em sede de recurso para o Tribunal da Relação, tal como vinha a ser constantemente enunciado pelo Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 392/2003, 397/2006 e 90/2013. Nestes referidos e anteriores acórdãos do Tribunal Constitucional sempre se sancionou a opção legislativa que configura o recurso para a Relação como instrumento de reapreciação do julgamento da 1.ª instância e das provas aí produzidas, a ponto de elementos probatórios supervenientes não poderem contribuir para aquele escrutínio (sempre com o pressuposto de que o sistema dispõe da «válvula de segurança» do recurso extraordinário de revisão, previsto no artigo 449.º do Código de Processo Penal, a franquear a porta a nova prova, conquanto dela se possam extrair “graves dúvidas sobre a justiça da condenação”).
Considerou o Conselheiro Manuel da Costa Andrade que o entendimento vertido no Acórdão 289/2020 constitui um desvio em face do anterior entendimento, adotando uma modulação do critério normativo, que passa pela análise da concreta tipologia de documentação apresentada e da sua fecundidade heurístico-probatória. Curando de apurar se “tais documentos, objetivamente considerados, comportam apenas uma outra valoração de situações já objeto de perícias ordenadas pelo tribunal de primeira instância”, o Tribunal Constitucional parece abrir a porta à possibilidade de se entender que a eventual relevância probatória da documentação apresentada poderia justificar um diferente juízo de (des)conformidade da mencionada interpretação do artigo 165º do CPP com a Constituição.
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Tendo em conta todas as considerações supra enunciadas, e mesmo a perfilhar-se a senda de tal desvio ao entendimento constante do Tribunal Constitucional, somos conduzidos a concluir pela inadmissibilidade da junção do documento apresentado com o requerimento de interposição de recurso. Não se trata de documento de génese superveniente e, por outro lado, não se mostra possível concluir que a junção de tal elemento de prova ao processo se justifique em termos de relevância para a decisão da causa.
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Face a tudo o que se deixa exposto, resta-nos concluir pela inadmissibilidade do documento apresentado pelo recorrente com o recurso.
Consequentemente, tal documento não será considerado.
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iv-2 – Da violação do princípio do ne bis in idem.
Não estando nos autos qualquer elemento de prova do qual o Tribunal a quo pudesse extrair a demonstração positiva de prévia condenação pelos factos do acidente de viação em causa no presente processo, mostra-se arredada a possibilidade de ponderação pela primeira instância do problema da violação do ne bis in idem.
E, sendo o recurso um remédio jurídico que, como supra se explicou, visa permitir a reapreciação de segmentos decisórios, por um tribunal superior, fundada na invocação da existência de algo de concretamente errado na decisão proferida em 1ª instância, sendo o objeto do recurso a decisão recorrida- e não a questão por esta julgada-, possibilitando-se apenas a reapreciação dessa decisão, com base na matéria de direito e de facto de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada (pré-existente, pois, ao recurso), é já possível concluir pela improcedência da pretensão do recorrente.
Mas, de todo o modo, sempre diremos que, mesmo caso figurasse nos autos o documento cuja junção foi tardiamente requerida, sempre seríamos conduzidos à improcedência do recurso.
O recorrente foi condenado nos presentes pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada como pena acessória a proibição de condução de veículo a motor pelo período de seis meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal. Considera que já foi penalizado e sancionado pelos mesmos factos e que ocorre violação do artigo 29º, nº 5 da CRP, na medida em que lhe foi aplicada antes a “pena acessória de inibição de condenação” no processo de contraordenação nº 540892, por infracção prevista e punida no artigo 89º, nº 2, do Código da Estrada.
O facto de a imputação naqueloutro processo ser de infracção qualificada como contraordenacional, não nos dispensa de aferir se ocorre identidade de objecto processual.
Assim é, desde logo, tendo em consideração a jurisprudência do TEDH sobre a aplicação do princípio ne bis in idem, designadamente naquilo que se reporta à condição de aplicação desse princípio consubstanciada pela identidade dos factos em juízo (idem). A circunstância de se organizarem vários processos (eventualmente a justificar que se fale de repetição de processos), não exclui que em todos eles se aprecie a mesma conduta (idem factum), mesmo que nem sempre sob a mesma qualificação jurídica (idem crimen).
Importa, pois, saber se o objecto do processo contraordenacional invocado nos coloca perante a imputação ao recorrente da mesma conduta (idem factum) que lhe é imputada neste processo.
O recorrente entende que sim, por na sua perspectiva ser pressuposto de ambas as condenações a existência de feridos.
Mas a resposta correta é negativa.
Vejamos a infracção imputada no processo contraordenacional.
Regendo sobre o comportamento exigido ao condutor em caso de avaria ou acidente, o artigo 89º do Código da Estrada, sob a epígrafe Identificação em caso de acidente, estabelece:
“1 - O condutor interveniente em acidente deve fornecer aos restantes intervenientes a sua identificação, a do proprietário do veículo e a da seguradora, bem como o número da apólice, exibindo, quando solicitado, os documentos comprovativos ou os dados dos documentos disponibilizados nos termos do n.º 1 do artigo 4.º-A da Lei n.º 37/2014, de 26 de junho, na sua redação atual.
2 - Se do acidente resultarem mortos ou feridos, o condutor deve aguardar, no local, a chegada de agente de autoridade.
3 - Quem infringir o disposto n.º 1 é sancionado com coima (euro) 120 a (euro) 600.
4 - Quem infringir o disposto no n.º 2 é sancionado com coima de (euro) 500 a (euro) 2500, se sanção mais grave não for aplicável.”.
O artigo 146º, al. q) qualifica como contraordenação muito grave “O abandono pelo condutor do local do acidente nas circunstâncias referidas no n.º 2 do artigo 89.º”, sendo que o artigo 147º, sob a epígrafe inibição de conduzir, estabelece quanto à sanção acessória aplicável:
“1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contraordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respetivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.”.
Tendo em conta a infração imputada no processo contraordenacional invocada pelo recorrente, constata-se que visa a protecção da segurança dos utilizadores das vias públicas em caso de acidente rodoviário, impondo determinado comportamento com a finalidade de assegurar a possibilidade de identificação dos intervenientes (com vista ao apuramento de responsabilidades) pelos agentes de autoridade, nas situações em que do acidente resultem mortos ou feridos.  
A protecção conferida pela norma de carácter sancionatório contraordenacional em causa naquele referido processo mostra-se muito específica (o que decorre da sua própria natureza e função, bem como do objectivo para o qual foi estabelecida) e não abrange os bens jurídicos tutelados pela incriminação criminal dos homicídios ou ofensas à integridade física cometidos no exercício da condução de veículos motorizados com violação das regras de trânsito rodoviário.
Assim, no caso concreto, os bens jurídicos protegidos pela norma administrativa e pelas normas penais são claramente distintos – isto é, as normas que fundam as sanções impostas ao arguido em sede contra-ordenacional protegem um bem jurídico diferente das normas de carácter criminal.
O bem jurídico protegido em sede de contraordenação cometida em violação do nº 2 do artigo 89º do Código da Estrada, decorrente do âmbito da própria norma, é a segurança rodoviária, na vertente da colaboração com as autoridades no apuramento das responsabilidades relacionadas com a ocorrência de um acidente de viação. Por isso, no preceito em questão, aprofunda-se o nível de exigência que se estabelece no nº 1 do artigo 89º, impondo aos condutores intervenientes num acidente de viação do qual resultem mortos ou feridos, o dever acrescido de aguardar no local a chegada de agentes de autoridade, permitindo desse modo que nessas situações de acidente rodoviário de gravidade acrescida, as entidades competentes para o levantamento do auto de ocorrência acedam de forma imediata, completa e direta aos elementos de identificação dos condutores, dos proprietários dos veículos e das respectivas seguradoras (incluindo o fornecimento do número da apólice, com exibição, quando solicitado, os documentos comprovativos, e com a prestação de esclarecimentos presenciais).
A norma do artigo 89º, nº 2, do Código da Estrada visa, pois, assegurar uma maior eficiência da acção de averiguação de circunstâncias pelas autoridades competentes em matéria de acidentes de viação. A infracção à norma (que será cometida por qualquer dos condutores intervenientes no acidente, causador do mesmo ou não) traduz-se no abandono do local antes da chegada dos agentes de autoridade, envolvendo maiores dificuldades no apuramento dos elementos relativos ao condutor ausente, ao proprietário do veículo por ele conduzido e ao seguro de responsabilidade civil respectivo.
No âmbito do processo de natureza contraordenacional o que determinou a condenação do arguido terá sido a falta de cumprimento de uma regra efectiva de conduta que, no caso, impunha que permanecesse no local do acidente até à chegada dos agentes de autoridade, para possibilitar a recolha presencial de elementos de identificação e demais informações necessárias, de forma direta, imediata e completa, de modo a que as entidades responsáveis pela elaboração do respectivo auto de ocorrência ficassem habilitadas a exercer, de forma adequada, célere e eficiente, os seus poderes de autuação. A tutela desse adequado exercício dos poderes de autuação esgota os limites do bem jurídico protegido pela incriminação.
Diferentemente, quanto às infracções criminais imputadas nos autos ao arguido – crimes de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal - o bem jurídico tutelado é diferente, correspondendo desde logo à protecção da saúde e integridade física das vítimas, no caso em contexto de violação das regras de trânsito rodoviário.  
Constata-se, pois, que não ocorre sobreposição de acções punitivas entre os presentes autos e o processo contraordenacional do Serviço Coordenador dos Transportes Terrestres da Direção Regional dos Transportes da Secretaria Regional dos Transportes e Obras Públicas da Região Autónoma dos Açores, em que se condenou o aqui recorrente MS pela contraordenação ao disposto no artigo 89º, nº 2, do Código da Estrada.
Nessa conformidade, por ausência do idem, mesmo a ter contado com a comprovação dessa prévia condenação do arguido em processo contra-ordenacional, jamais poderia o Tribunal a quo entender que se estava perante “o mesmo crime”, ao invés de se estar perante realidades materiais diversas, fundadoras de causas de responsabilização autónomas.
Conclui-se, pois, pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem, em face da imputação criminal destes autos e da condenação imposta ao arguido em sede contraordenacional.
E, sublinhe-se, não é o facto de existirem na configuração das distintas infracções, elementos factuais comuns – no caso, aquilo a que o recorrente se agarra, referindo ser pressuposto de ambas as condenações a existência de feridos – que afasta a conclusão a que chegamos.
Como é sabido, o mesmo facto naturalístico poderá constituir elemento típico integrador de múltiplos e diversos crimes, a punir em concurso real[7]. Nessas situações, apesar do ou dos factos comuns, perante a diversidade das infracções, determinada pelos respectivos e específicos bens jurídicos protegidos e pelos outros elementos típicos distintivos, não ocorre o idem e, consequentemente, não se afronta a Constituição da República Portuguesa e o seu artigo 29º, nº 5, que, a propósito da aplicação da lei criminal, estabelece que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Um concurso de normas reconduz-se à “aptidão de várias normas para serem aplicadas ao mesmo facto. A aplicação de uma norma implica a qualificação, a valoração de facto, isto é, a atribuição a esse facto de efeitos jurídicos (Direito Penal Português, Parte Geral I, Cavaleiro de Ferreira, pág. 162.).
A forma como tal concurso poderá ser resolvido pressupõe que se averigue, face ao caso concreto, qual a relação em que se encontram as normas em apreço, designadamente se estamos perante uma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção (para usarmos a terminologia mais habitual nesta sede) ou se se está perante uma pura progressão criminosa.
Significa isto que se pretende aferir se estamos perante um concurso ideal – em que uma das normas se torna prevalente em relação às restantes – ou perante um concurso real – em que ambas as normas são aplicáveis ao facto, entendido na sua unidade.
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, pág. 1020, a consunção surge quando “os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição da dupla valoração”, isto é, consistiriam na infracção ao princípio do “ne bis in idem”.
Não é isso que sucede no caso concreto, mesmo quando se constata que o mesmo facto – existência de feridos em resultado do acidente de viação – suscita a aplicação da conjugação dos artigos 69.º, n.º 1, alínea a), 143.º, n.º 1, e 148.º, n.º 1 do Código Penal (punição a título de crime), por um lado, e da conjugação dos artigos 89º, nº 2, 146º, al. q), e 147º, todos do Código da Estrada (punição a título contra-ordenacional).
Estamos em face de tipos legais distintos que visam proteger bens jurídicos diversos. Estabelecendo um paralelo com a situação enfrentada pelo Tribunal Constitucional no acórdão nº 76/02, de 26.2.2002 (proc. n.º 647/98), também neste caso, os bens jurídicos protegidos são distintos ao ponto de se afirmar que existe uma bipolaridade de bens jurídicos protegidos que, aliás, se revela na sua diferente natureza - pública e semi-pública-, reflectindo tal diversidade. Consequentemente, à pluralidade de tipos legais integrados deve corresponder uma pluralidade de infracções, sem que ocorra a violação do preceituado no nº 5 do artigo 29º da Constituição. Importará realçar que, independentemente da proximidade que exista entre os bens jurídicos protegidos pelos tipos em causa, ocorre uma pluralidade de crimes (em sentido lato, ou uma pluralidade de infracções), pois que se violam as determinações de diferentes normas e são autónomos os fundamentos para o juízo referencial de censura em que a culpa se analisa em cada uma das violações.
Assim sendo, conclui-se pela inexistência de violação do princípio ne bis in idem e pela improcedência do recurso.
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V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido MS e, em consequência, em confirmar a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
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Tributação.
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art.º 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Lisboa, 7 de março de 2023
Jorge Antunes
Sandra Oliveira Pinto
Mafalda Sequinho dos Santos

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[1] Inibição de condução e não, como por manifesto lapso, se escreveu nas conclusões “inibição de condenação”.
[2] Trata-se de cópia da decisão administrativa proferida em 28 de março de 2019 no âmbito do processo de contraordenação nº 540892, através da qual o Serviço Coordenador dos Transportes Terrestres da Direção Regional dos Transportes, integrada na Secretaria Regional dos Transportes e Obras Públicas da Região Autónoma dos Açores, condenou o aqui recorrente MS pela contraordenação ao disposto no artigo 89º, nº 2, do Código da Estrada, aplicando-lhe coima e a sanção acessória de 90 dias de inibição de conduzir, com base nos seguintes factos: “No dia 22/12/2018, pelas 05h15m, no local Estr. Pr. Alberto de Mónaco – Horta, conduzindo o veículo ligeiro misto particular, de matrícula XX-XX-XX, praticou a seguinte infracção: O condutor do referido veículo foi interveniente em acidente de viação, do qual resultaram dois feridos graves”.
[3] Cfr. Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição, pág. 77 e seguintes.
[4] Cfr. o artigo 449º do CPP que, sob a epígrafe “Fundamentos e admissibilidade da revisão”, estabelece:
1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;
f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;
g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.
2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.”.
[5] Cfr. Ac. TC nº 90/2013 – Relator Conselheiro João Cura Mariano, acessível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130090.html.
[6] Cfr. Ac. TC 289/2020 - Relator: Conselheiro Pedro Machete – acessível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200289.html
[7] A aplicação concreta do princípio ne bis in idem opera pelo recurso a institutos próprios quer, exclusivamente, do direito criminal (caso da consunção), quer através da aplicação subsidiária de normas que se mostram, em grande parte, consignadas em sede cível, como o caso julgado e a litispendência, por exemplo (aplicáveis ao processo penal ex vi art.º 4º do C.P.Penal), o que implica um esforço de adaptação desses normativos a um processado em que se não pretende dirimir, em primeira linha, os interesses das partes (como sucede, maioritariamente, no âmbito civil).