Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
518/18.9T8AGH.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
VALORAÇÃO DE TESTEMUNHO
APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores que tem a ver, designadamente, com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, as coincidências, as contradições, a linguagem gestual, etc.
II) O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal terá que apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo juiz sindicado e ponderados na sua decisão recorrida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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EM… e LC…, identificados nos autos, instauraram a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra JE…, também identificado nos autos, pedindo a condenação do réu a:
“A) Pagar a ER…, a título de danos não patrimoniais por este sofrido, quantia nunca inferior a € 15.000,00;
B) Pagar a LR…, a título de danos não patrimoniais por esta sofridos, quantia nunca inferior a € 20.000,00;
C) A pagar aos autores sobre tais quantias os juros legais que se vencerem, desde a data de citação e até integral e efetivo pagamento;”.
Alegaram, em síntese, que o réu apresentou queixa crime contra o autor marido, dando conta de que ao aceder a casa dos seus falecidos pais, verificou que a fechadura havia sido substituída por um toro de madeira e, bem assim, que a fechadura havia sido substituída, imputando tal conduta a ER…. No âmbito do inquérito, o autor ER… foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade.
Alegaram os autores ainda que o réu remeteu missiva ao Ministério Público onde apodou o autor marido de “mau caracter”.
O inquérito teve como fim o arquivamento e em virtude da decorrência desse processo, o autor marido não mais teve paz interior, passou a dormir sobressaltado, a andar ansioso e sentiu-se enxovalhado.
Aduziram, ainda, os autores que o réu pretendeu, com a queixa apresentada, que fosse desencadeado procedimento criminal contra o autor ER…, bem sabendo que LR…, irmã do réu e esposa do autor, exercia a função de cabeça de casal e estava presente aquando da ocorrência dos factos denunciados.
Por outro lado, no que à Autora mulher diz respeito, invocaram o teor de duas missivas postais, remetidas a 11.06.2013 e 11.12.2017, nas quais são mencionadas expressões que provocaram na Autora má disposição, choro, sentimento de vergonha e enxovalho.
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O réu contestou, por excepção – invocando que todos os factos relatados e situados em data anterior a 26.05.2015, se mostram já prescritos – e por impugnação - aduzindo que a vitimização dos autores é latente em sede de petição inicial, exigindo quantias exageradas por danos inexistentes, impugnado a factualidade alegada pelos autores, com excepção dos factos constantes do ponto 1 e 2.
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Teve lugar audiência prévia, com saneamento do processo, tendo sido fixado o objeto do litígio e os temas da prova.
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Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, em 28-01-2020, julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo o réu do pedido.
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Não se conformando com a referida sentença, dela apelam os autores, formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença, proferida em primeira instância e que julgou a ação proposta pelos recorrentes totalmente improcedente, absolvendo o réu e condenando os autores na totalidade das custas processuais geradas;
2. Salvo o devido respeito à mesma, a matéria de facto dada como provada e que levou ao desfecho em causa, peca por defeito, devendo, a final, ser outra a decisão a proferir, com a consequente condenação do réu no pagamento aos autores, ou pelo menos a ER…, de um quantum indemnizatório que face aos factos que deveriam ter sido dados como provados, o tribunal doutamente arbitrará;
3. A sentença em questão não faz uma interpretação devida dos factos, deixando para trás outros que deveriam ser dados como provados, e ao não fazê-lo, não aplicou devidamente o direito aos factos, devendo a sentença ser revogada;
4. Nesse sentido veja-se o testemunho de LRa… e MM…, acima descritos, nos seus tempos e textos e que aqui se dá por reproduzido, abstendo-se de o copiar dada a sua extensão e por mera economia processual;
5. A própria testemunha LCa… tem a percepção direta dos danos sofridos, pelo menos por ER… e, como faria qualquer cidadão comum, questiona-o sobre o porquê do seu estado, no que aquele então esclarece, tudo como acima fica exposto e que aqui se dá por reproduzido e, por economia processual, não se transcreve;
6. Partindo daqui, deveria ter sido dado como provado e não o foi que por força do processo movido aos autores e depois arquivado:
a) 18. ER… andava triste;
b) 19. ER… está emocionalmente abatido;
c) 20. Fechou-se em casa, evitando sair;
d) 21. Actualmente ainda sente revolta pelo sucedido;
e) 22. Passa muito tempo deitado;
f) 23. Encontra-se aliado daquilo que habitualmente fazia;
g) 24. Deixou de fazer os seus habituais passeios ao Monte Brasil;
h) 25. A testemunha LRa…, foi abordado, pelo réu, JE…, algures durante o ano de 2019, que lhe disse que o autor ER… não era boa pessoa;
i) 26. LR… fecha-se num quarto escuro;
7. Assim, estes danos merecem a tutela do direito, devendo-se decidir pela condenação do réu, no pagamento aos autores, ou elo menos ao autor ER…, de valor de indemnização que o tribunal prudentemente deverá arbitrar;
8. Tais factos surgem-nos como voluntários e ilícitos, em oposição com a ordem jurídica, lesando o direito dos autores ou do autor ER…. Ao participar criminalmente de ER…, o réu, aqui recorrido, não se muniu de toda a informação necessária para saber se o deveria fazer, querendo e conseguindo atingir o mesmo e preenchendo os requisitos para a verificação de responsabilidade civil;
9. Conduta esta que, pode retirar a possibilidade de participação por denúncia caluniosa, mas que não afasta a possibilidade de os danos da mesma resultantes, e por força dela, deverem ser reparados, nesta sede;
10. A sentença proferida não teve em consideração todos os factos que deveriam ter sido dados como provados e, como tal, não aplicou devidamente o direito aos factos, devendo a sentença ser revogada e decidindo-se, face ao supra descrito, pela condenação do réu no pagamento aos autores, ou pelo menos a ER…, de um quantum indemnizatório que face aos factos que devem ser dados como provados, o tribunal doutamente arbitrará (…)”.
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O réu contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso interposto e manutenção da sentença proferida.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos apelantes, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
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I) Impugnação da matéria de facto:
A) Se o Tribunal recorrido deveria ter dado como provado que, por força do processo movido aos autores e depois arquivado:
18. ER… andava triste;
19. ER… está emocionalmente abatido;
20. Fechou-se em casa, evitando sair;
21. Actualmente ainda sente revolta pelo sucedido;
22. Passa muito tempo deitado;
23. Encontra-se aliado daquilo que habitualmente fazia;
24. Deixou de fazer os seus habituais passeios ao Monte Brasil;
25. A testemunha LRa…, foi abordado, pelo réu, JE…, algures durante o ano de 2019, que lhe disse que o autor ER… não era boa pessoa;
26. LR… fecha-se num quarto escuro?
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II) Mérito da apelação:
B) Se a decisão recorrida deveria ter concluído pela condenação do réu em indemnização aos autores?
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3. Enquadramento de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. O Réu, JE…, apresentou queixa-crime contra o aqui Autor EM…, a qual deu origem ao processo de inquérito crime, registado sob o nº. …/…PBAGH, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca dos Açores, Departamento de Investigação e Ação Penal – Seção de Angra do Heroísmo.
2. Entre o mais, o Réu denunciou o seguinte: “no dia 08 de Setembro de 2015, ao pretender aceder ao interior da casa dos seus falecidos pais, sita em Angra de Heroísmo, verificou que o canhão da fechadura inferior havia sido retirado e substituído por um toro de madeira e, bem assim, que a fechadura tinha sido substituída.” (…) “Até meados de Outubro de 2012, as duas filhas, LC… e CM…, tinham acesso à casa e que, desde aquela altura até 23 de Agosto de 2013, LR… era a única detentora das chaves da casa que lhe foram posteriormente entregues, por ser cabeça de casal.” (…) “Terá sido nessa data que procedeu à mudança da fechadura superior da porta com o propósito de salvaguardar os bens que constituem o recheio daquela casa.”
3. O aqui Réu, JL…, foi admitido a constituir-se assistente do âmbito do processo mencionado em 1.
4. Ouvido em declarações, em 16.03.2016, JL… confirmou a factualidade que houvera denunciado.
5. O Autor, ER…, tomou conhecimento da pendência daquele processo a 19.06.2016.
6. Tendo, a 19.05.2016, sido constituído arguido, interrogado nessa qualidade e prestou Termo de Identidade e Residência.
7. O Ministério Público entendeu que a factualidade denunciada por JL… era, em abstrato, susceptível de integrar a prática de um crime de dano simples, previsto e punido pelos artigos 13.º, 14.º/1, 26º/1-1ª parte e 212º/1, em concurso aparente (consunção) com um crime de violação de domicílio agravado, previsto e punido pelos artigos 13º, 14º/1, 26º/1-1ª parte e 190º/1/3, todos do Código Penal.
8. A Autora, LR…, foi também ouvida no âmbito do referido processo de inquérito, o que ocorreu a 02.05.2017.
9. Por despacho proferido a 22.08.2017, o Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito mencionado em 1.
10. Nesse despacho de arquivamento o Ministério Público fez exarar que “a atuação de LR…, já após ter sido nomeada cabeça-de-casal, ao arrombar a porta de entrada, mudar a fechadura e intervir ao nível das canalizações de duas casas de banho, visando evitar inundações e bem assim ao proceder à limpeza do caruncho que tomava conta do local, teve apenas o propósito de aceder ao imóvel, e de o manter e conservar em bom estado, evitando a sua degradação. Ademais, vislumbra-se nos presentes autos, um clima de alguma conflitualidade e desencontro de vontades entre alguns herdeiros. Considerando, pois, pelo exposto, que LR…, ao atuar da forma descrita, o fez ao abrigo dos poderes e deveres que tem enquanto cabeça-de-casal da herança, e sem qualquer intuito de danificar ou de aceder ilegitimamente ao imóvel integrante da herança, impossível se torna sequer, à falta de demonstração de outros factos, imputar a ER…, presente no local e data da prática dos factos, a comparticipação em qualquer facto criminalmente relevante”.
11. O Aqui Réu, assistente no processo mencionado em 1., perante o desfecho do inquérito não requereu a abertura de instrução.
12. O Réu sabe que ER… é casado com LR…, sua irmã.
13. Em 11.12.2017, o Réu, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de FL…, remeteu carta endereçada à Ré LR…, intitulada de reparações e pintura a efectuar na casa da Rua …, n.º …, com o seguinte teor: “Decorridos mais de três anos sobre o óbito da senhora MA…, não se compreende que, mesmo num agregado pseudo familiar como o nosso, um processo de partilhas se encontre praticamente na “estaca” zero. Tal só se começa a entender se recuarmos, pelo menos, aos anos sessenta do século passado, mais acentuadamente desde Outubro de 2011, altura em que os progenitores instituíram as filhas herdeiras da quota disponível da sua herança.
A partir de Agosto de 2012, data em que casualmente os filhos tomaram conhecimento do facto, sucederam-se uma série de episódios, alguns assaz burlescos, nomeadamente os associados aos óbitos do senhor FE… e de sua mulher.
Como é do seu conhecimento, desde Setembro de 2015, pelo menor, estou impedido de aceder ao imóvel em epigrafe, pelo que necessito da chave do mesmo, para que se possa avaliar a necessidade da realização das obras. A chave deverá ser entregue no escritório do advogado que me representa no processo de inventário com o n.º …/….
Sem prejuízo do solicitado e para evitar uma maior desvalorização do imóvel, sou do entendimento que o mesmo deverá ser vendido, por todos os herdeiros, a não ser que algum dos herdeiros tenha interesse em adquiri-los.
Aguardando as suas notícias, com os melhores cumprimentos.”
14. O Réu, por morte dos pais, procedeu à respectiva comunicação do óbito, prestou declarações e apresentou relação de bens, junto do serviço de finanças.
15. Assim como subscreveu as habilitações de herdeiros.
16. A Autora LR… subscreveu manuscrito, datado de 10 de Julho de 2013, no qual declarou, JL…, concordo, que sejas cabeça de casal.
17. Autores e Réu estão de relações cortadas.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
a. Após o conhecimento de que contra si pendia queixa crime e até ao dia em que foi nesse âmbito interrogado, o Autor ER… não mais teve paz interior.
b. Não dormia em condições
c. Andava nervoso e ansioso.
d. Sentiu-se enxovalhado.
e. Profundamente triste.
f. Teve enorme sofrimento emocional.
g. Fechou-se em casa, evitando sair.
h. Actualmente ainda sente profunda revolta pelo sucedido.
i. A conduta empreendida pelo Réu, ao apresentar queixa, é entendida pelo Autor ER… como representativa de traição familiar.
j. O Réu sabia que LR… era a cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do pai de ambos.
k. O Réu remeteu carta ao processo identificado em 1. dos factos provados, em que intitulava o Autor ER… de “mau carácter”.
l. Sempre que o Réu se dirigia à Canada …, n.º …, freguesia de Terra Chã, residência dos pais do Réu e da Autora LR…, o Autor convidava-o a beber café, promovendo o convívio entre ambos e com os pais do Réu.
m. A Autora assistiu ao sofrimento do Autor, seu marido, derivado de contra este pender queixa crime, sem que nada pudesse fazer para o aliviar daquele sentimento.
n. Ficando igualmente nervosa, ansiosa.
o. Os Autores foram apelidados de deterem “mau carácter” pelo Réu, em missiva remetida por este e dirigida ao Ministério Público no decurso do inquérito referido em 1. dos factos provados.
p. O funeral do pai do Réu e da Autora, ML…, foi marcado e agendado pela agência funerária que do mesmo tratou, sendo aquele marcado para as 09:00 horas do dia posterior ao óbito do falecido, por o padre, porque de uma cerimónia religiosa/católica se tratar, ter já agendado para as 11:00 horas uma Eucaristia com coroação.
q. Em virtude da missiva que o Réu lhe dirigiu, referidas em 13. dos factos provados, a Autora sentiu-se triste.
r. E sente-se, ainda hoje e com frequência, maldisposta.
s. À beira de uma depressão.
t. Chorando muitas vezes, algumas em silêncio.
u. Sente-se envergonhada e revoltada.
v. Enxovalhada.
w. Abalada, traída e perturbada.
x. Ainda hoje é assomada por esses sentimentos.
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4. Enquadramento jurídico:
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I) Impugnação da matéria de facto:
Concluem os autores, na alegação de recurso, nomeadamente, o seguinte:
“(…) 3. A sentença em questão não faz uma interpretação devida dos factos, deixando para trás outros que deveriam ser dados como provados, e ao não fazê-lo, não aplicou devidamente o direito aos factos, devendo a sentença ser revogada;
4. Nesse sentido veja-se o testemunho de LRa… e MM…, acima descritos, nos seus tempos e textos e que aqui se dá por reproduzido, abstendo-se de o copiar dada a sua extensão e por mera economia processual;
5. A própria testemunha LCa… tem a percepção direta dos danos sofridos, pelo menos por ER… e, como faria qualquer cidadão comum, questiona-o sobre o porquê do seu estado, no que aquele então esclarece, tudo como acima fica exposto e que aqui se dá por reproduzido e, por economia processual, não se transcreve;
6. Partindo daqui, deveria ter sido dado como provado e não o foi que por força do processo movido aos autores e depois arquivado:
a) 18. ER… andava triste;
b) 19. ER… está emocionalmente abatido;
c) 20. Fechou-se em casa, evitando sair;
d) 21. Actualmente ainda sente revolta pelo sucedido;
e) 22. Passa muito tempo deitado;
f) 23. Encontra-se aliado daquilo que habitualmente fazia;
g) 24. Deixou de fazer os seus habituais passeios ao Monte Brasil;
h) 25. A testemunha LRa…, foi abordado, pelo réu, JE…, algures durante o ano de 2019, que lhe disse que o autor ER… não
era boa pessoa;
i) 26. LR… fecha-se num quarto escuro; (…)”.
Com a alegação produzida, os autores/apelantes pretendem colocar em crise a factualidade apurada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da “exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso”), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto pelos Tribunais da Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte: “1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Revertendo ao caso dos autos, diga-se, liminarmente, que se afigura terem os autores/apelantes cumprido os ónus de impugnação de facto acima mencionados, indicando com precisão os pontos de facto que, em seu entender, deverão ter diverso resultado probatório, bem como, o sentido deste e, ainda, os meios de prova que, na sua perspetiva, a tal conduzem, com indicação de excertos dos depoimentos em questão.
Vejamos, pois, as questões de facto colocadas.
*
A) Se o Tribunal recorrido deveria ter dado como provado que, por força do processo movido aos autores e depois arquivado:
18. ER… andava triste;
19. ER… está emocionalmente abatido;
20. Fechou-se em casa, evitando sair;
21. Actualmente ainda sente revolta pelo sucedido;
22. Passa muito tempo deitado;
23. Encontra-se aliado daquilo que habitualmente fazia;
24. Deixou de fazer os seus habituais passeios ao Monte Brasil;
25. A testemunha LRa…, foi abordado, pelo réu, JE…, algures durante o ano de 2019, que lhe disse que o autor ER… não era boa pessoa;
26. LR… fecha-se num quarto escuro?
Alegaram os recorrentes que, “face ao ocorrido, durante a audiência de discussão e julgamento, se nada haverá a opor à verificação da excepção peremptória de prescrição do direito alegado pelos Autores –concretamente a Autora LR… – e, consequente absolvição, nesta parte, do Réu, do pedido, (…) o tribunal a quo (…) não deu como provado factos que deveria ter dado como provados, aliás o que se passa a demonstrar:
No seu depoimento, LRa…, declara, aos 1’58m que conhece quer os autores, quer o réu e, aos 2’00 min. Diz ser amigo de todos. Acrescentando, aos 2’58 que “tem achado [o autor E…] um pedaço deprimido, assim um pedaço alieiro àquilo que habitualmente fazia. E aí perguntei-lhe, ele também faz o favor de me dispensar a sua amizade (…) e ele contou-me duma situação difícil que foi gerada e se eu queria abonar em favor dele”, termina aos 3’40. Questionado responde que, aos 3’59 “ele vive com uma certa depressão e que já não faz as coisas como fazia, já não o encontro nos seus passeios que fazia até ao momento no Monte Brasil” termina aos 4´30. Perguntado se lhe disse porque é que estava assim, responde, a partir do minuto 5’06 que “ele disse-me que tinham gerado um processo que depois foi arquivado”, diz conhecer os autores há muitos anos, tendo sido professor do autor de filosofia, apontando para a década de setenta do século passado. Em relação à autora, esta é natural da freguesia onde a testemunha nasceu, conhecendo-a porque também conhece o réu, diz ter sido colega de escola deste.
Esclarece a testemunha, minuto 6’16, que os autores “como pessoas são ótimas (…) quase que poria a mão no fogo por eles, não prejudicam ninguém e que são pessoas que merecem toda a minha confiança, caso contrário não estaria aqui”, termina aos 7’18. E esclarece, min. 7’30, “houve alguém que me abordou à saída da Igreja de Santa Luzia e que me perguntou se eu conhecia o E…, disse conheço, e disseram-me que não era boa pessoa (…) o meu ex-colega de escola primária, o JE…, não faço ideia mas foi neste tempo, já neste ano [2019] quando eu fui celebrar à Igreja de Santa Luzia (…) ele aproximou-se de mim e disse-me isto, termina aos 8’50.
Questionado pelo advogado do réu esclarece que, min. 10’30, relativamente a ter conhecimento direto da existência de processo crime “ter conhecimento direto, estar em contato com ele, não. Eu perguntei-lhe tu estás assim tão abatido porquê, que é isso”, termina aos 12’35.
A instâncias da Senhora Juíza diz, a partir do minuto 12’50 “eu contato com ele e ele habitualmente ia fazer os seus passeios ali para o Monte Brasil” (…) e achava que ele andava deprimido “já há algum tempo, digamos assim. Agora precisar o tempo, nós quando nos encontramos com os amigos, não olhamos para o relógio nem para o calendário(…) talvez há um ano, há dois ou à três” e concretizando sobre o que fazia antes e não faz agora, acrescente “olhe pois era dar uns passeios, era interessar-se, temos assim uma certa afinidade intelectual, interessar-se por livros e eu quando referencio alguns livros relativamente a filosofia, relativamente a teologia e relativamente à Sagrada Escritura, ele diz eu já não tenho, já não me apetece, já não me apetece ler, já não me apetece estudar (…) pela idade não, ele é mais novo do que eu, a idade não é impedimento para coisa nenhuma (…) ele diz-me que foi por causa de um processo que lhe moveram (…) foi um processo que me moveram e a partir dali eu fiquei, fiquei abatido”, deixando de o ver com regularidade achando que estava deprimido “e também conversando com ele” min. 17’14. “e ele digamos que se abriu, se for esta a expressão, se abriu comigo, tem confiança comigo e me disse é esta a situação”. Termina o seu depoimento aos 17’59.
A testemunha MM…, minuto 2’35, esclarece que “ali em 2017, meados de 2017, eu senti que eles como que tinham desaparecido e eu mesma, que eles eram pessoas socialmente se manifestavam, eu ia ali a casa, pelo Natal, pelo aniversário dos filhos e tive assim um sentimento de onde é que estas pessoas andam e fui ao encontro deles (…) porque eles estão a ser difamados gravemente, porque qualquer informação é grave. É uma sociedade pequena. E quando fui ao encontro deles como que insisti para me falarem deles mesmos e me explicarem porquê este afastamento deles, neste momento emocionalmente estão muito abatidos. Encontro-os a fazerem o mínimo possível do que precisam para o seu próprio sustento (…) mas fecharam-se muito em casa. O E… passa muito tempo deitado, a Lucília não tanto mas fecha-se num quarto escuro. Quando eu fui lá, porque eu observo muito bem, o E… que sempre me pareceu uma pessoa alta e é, até o físico dele encurvado está.
Aquelas pessoas estão tristes, emocionalmente tristes, abatidas”. Termina ao min. 5’09.
Diz ter lido duas cartas, min 5’30”.
Concluem os recorrentes, em face da apreciação dos dois depoimentos que:
“(…) situam no tempo, ambas as testemunhas, a causa do dano como tendo se apercebido disso em meados de 2017, esclarecendo a testemunha LCa… que teria sido por força de um processo movido ao autor ER…. Não é forçoso e seria pedir mais que a testemunha identificasse concretamente o número do processo, fizesse parte do mesmo, ou tivesse a percepção do seu fim, isso, com o devido respeito nenhuma testemunha terá, mas o que se pode aperceber do seu testemunho é que reparou que o autor se mostrava “um pedaço deprimido, assim um pedaço alieiro àquilo que habitualmente fazia” e é por isso que o questiona sobre tais motivos e fica a saber deste o motivo concreto, um processo que lhe havia movido o réu e porque outro não existe, estamos a falar, face até à localização temporária dada pela testemunha, do processo em causa nos autos.
Ou seja, a primeira percepção que a testemunha tem do autor, e conhece-o vão largos anos, é de que este andava deprimido e aliado do que habitualmente fazia e tem uma percepção direta do que, abaixo, se deve dar como provado. Como qualquer comum mortal e amigo de longa data, questiona-lhe as razões, tendo sido esclarecido.
E no mesmo sentido vem a testemunha MA…, que repara que o casal de autores, há algum tempo que andava desaparecido e constata, da visita que lhes faz que estes se encontram emocionalmente abatidos, “encontro-os a fazerem o mínimo possível do que precisam para o seu próprio sustento”, “fecharam-se muito em casa”, “O E… passa muito tempo deitado, a L… não tanto mas fecha-se num quarto escuro”.
Ao nível da fundamentação de facto, a sentença recorrida começa por expressar que “ao declarar quais os factos que considera provados e não provados, o Juiz deve basear-se na análise crítica da prova, “indicando ilações tiradas dos factos instrumentais”, descrever os fundamentos que foram determinantes para a sua convicção, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica”.
Concretizando a razão da decisão tomada, o Tribunal recorrido refere ter alicerçado a sua convicção sobre os factos provados, na análise conjugada da prova testemunhal produzida em audiência final, a seguir discriminada, e pela análise dos elementos documentais juntos aos autos pelos Autores e Réu tudo com base nas regras da experiência comum (…).
Atentou-se na seguinte documentação (…):
Foram ouvidas as seguintes testemunhas:
a) LRa… e MM…, indicadas pelos Autores,
b) RM…, MG…, CM…, NM…, BC…, indicadas pelo Réu;
c) Em declarações de parte, foi ouvido o Réu, JE….
Assim;
A factualidade constante dos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15 e 16, vem suportada pelo teor dos documentos juntos aos autos, mencionados supra, cuja veracidade, autenticidade e teor não foi impugnada pelas partes (artigo 373.º e 376.º, ambos do Código Civil).
No tocante à factualidade versada no ponto 12, sobre as relações familiares entre Autores e Réu, resulta não só do depoimento de todas as testemunhas indicadas pelo Réu, como também do teor do documento junto com a contestação – procedimento simplificado de habilitação de herdeiros e registos.
O versado no ponto 16 resulta da conjugação da prova testemunhal, concretamente da apresentada pelo Réu, a qual foi unânime em declarar que não têm qualquer contacto com os Autores, concretamente, RL… e CG…, irmãos da Autora e do Réu, que aludiram que os Autores há muito que não têm contacto com a restante família. Sendo que o Réu, nas suas declarações de parte, afirmou que a última vez que falou com a irmã, a Autora, foi em 2014 por altura do falecimento da mãe de ambos.
No que tange aos factos não provados, o Tribunal entendeu que não foi carreada para os autos prova suficiente, com um nível de prova clara e preponderante, exigida em processo civil, para sustentar a sua convicção quanto à respectiva verificação, pelo que foi a mesma resolvida de acordo com as regras do ónus da prova.
Com efeito, as testemunhas LCa… e MM…, amigos dos Autores, não obstante referirem que estes andam diferentes (fecham-se em casa, mostram-se tristes), desconheciam em pormenor o que motivou tal situação.
Na verdade, LCa… só tem conhecimento dos factos porque o Autor ER… lhos relatou, já que, segundo a testemunha, este lhe confidenciou, numa altura, que não soube precisar, que tinha “tido um processo contra si, que foi arquivado” e que por isso “andava assim”.
Já a testemunha MM…, que nem conhece o Réu, diz que após o ano de 2017 surpreendeu-se porque parecia que os amigos e colegas de profissão, referindo-se aos Autores, tinham desaparecido. Foi a casa destes e ficou a pensar o que se terá passado com eles.
Ora, sendo esta testemunha amiga dos Autores, até colega de profissão, só deu por qualquer alteração na vida dos Autores no ano de 2017, sendo certo que o processo crime a que se alude nos autos, e no qual ER… foi constituído arguido, decorreu ente 2015 e 2016, e teve o seu desfecho, arquivamento, em 2017.
Assim, mal se entende o que terá provocado aquelas alterações de comportamento na pessoa dos Autores e descrito pelas testemunhas, já que os factos relatados na petição inicial e dados como provados apresentam marcos temporais distintos daqueles que a testemunha indica.
Acresce que MM… desconhecia a existência de qualquer processo em que ER… tivesse envolvido, mencionando que apenas tinha conhecimento de umas cartas cujo teor era sobre partilhas, que as viu em casa dos Autores sendo que, quanto a tanto, a Autora lhe terá dito que não esperava que os irmãos reagissem assim.
Descreveu os Autores como pessoas agradáveis, sensíveis, sempre prontos a ajudar, mas que LR… está profundamente triste, sente-se envergonhada, desconhecendo, contudo, o que motiva tais sentimentos (…)”.
Estas referências do Tribunal a quo não merecem qualquer censura, nem se mostram desajustadas à prova produzida.
Diga-se que, perante a impugnação de facto, este Tribunal ad quem procedeu à audição dos depoimentos prestados e, em face dos mesmos, não pôde concluir diversamente das conclusões alcançadas pelo Tribunal recorrido.
LCa…, por sua parte, prestou um testemunho coerente, mas pouco concretizado, revelando – referindo-se ao autor- que “tem achado que está um pouco deprimido, alheio ao que habitualmente fazia”. Não referiu a casa. Posteriormente, referiu que o autor lhe contou de uma situação “difícil que foi gerada e se eu queria abonar em favor dele…”. Referenciou que o mesmo “vive com uma certa depressão…”, mas, para além da circunstância de referir que o autor já “não faz os passeios que fazia até ao Monte Brasil” (vindo depois a mencionar tão-só “foi por causa de um processo que lhe moveram…”, afirmação que não foi minimamente justificada) - e nada concretizou com relevo e nexo com o réu.
Para além disso, referiu que o réu o abordou “à saída da Igreja de Santa Luzia” e lhe disse que o autor não era “boa pessoa”.
MM…, por seu turno, referiu que foi ao encontro dos autores, por os mesmos estarem a ser “difamados”, para que eles explicassem, “por palavras suas, o afastamento deles”, pessoas que caracterizou como “muito abatidos”; “fecharam-se muito em casa” “O E… passa muito tempo deitado”, “a L… não tanto mas fecha-se num quarto escuro”. “O E… que parece uma pessoa alta e é, parece encorvado, estão emocionalmente tristes, abatidas…e então difamar é uma coisa tremenda…”. Ao procurar concretizar a que “difamação” se referia, a testemunha mostrou-se, contudo, perfeitamente inconcludente. Disse também desconhecer da existência de um processo contra o autor. Fez apenas fé no estado de “tristeza profunda” dos autores.
Ora, não basta para se considerarem provados factos, que alguma testemunha os afirme, sendo certo que não é líquido que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão afirmados, já que ele não é um mero depositário de depoimentos.
A actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores que tem a ver, designadamente, com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, as coincidências, as contradições, a linguagem gestual, etc.
No caso dos autos, conforme decorre cristalinamente da fundamentação constante da sentença recorrida, o Juiz a quem cabia aferir da credibilidade dos meios de prova produzidos, não atribuiu, pelos motivos que salientou, crédito aos aludidos depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores, pelos motivos que explanou.
Como se sabe, “o standard que opera no processo civil é (…) o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i)-Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii)-Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.
Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.
Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.
Todavia, pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira”. Pelo que para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-10-2017, Processo 585/13.1TCFUN-A.L1-7, rel. LUIS FILIPE PIRES DE SOUSA).
Como bem salientou o Tribunal recorrido, a prova produzida sobre o estado dos autores, não atingiu o patamar de suficiência necessário para que o Tribunal formasse positiva convicção sobre a realidade das afirmações relatadas, como reportadas ou conexionadas com o processo instaurado pelo réu. Não bastou, no ver do Tribunal recorrido, afirmar tristeza ou sofrimento para que o mesmo tenha causa na conduta do réu.
Ora, nesse sentido, as provas produzidas foram inconclusivas. Não é uma mera questão de “esquecimento” do número de processo, mas seria necessário que as testemunhas revelassem, de forma convincente, uma probabilidade no sentido de que existiu causalidade adequada na conduta do réu – assente na dedução de um processo criminal que veio a ser objeto de arquivamento - relativamente ao estado que reputaram ter percepcionado nos autores.
Tal demonstração probatória não teve lugar e, daí, ser acertada a conclusão da inclusão da respetiva factualidade nos factos não provados.
Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS), “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Considerando o já expendido, tal não se divisa na alegação dos recorrentes em face da alteração pretendida introduzir na matéria de facto.
Improcede, pois, in totum, o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto arguida.
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II) Mérito da apelação:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso sobre a matéria de direito apresentado.
*
B) Se a decisão recorrida deveria ter concluído pela condenação do réu em indemnização aos autores?
Nas conclusões 7.ª a 10.ª da alegação dos recorrentes, estes consideraram, em consonância com a alteração de facto que gizaram a procedência da pretensão de Direito:
“7. Assim, estes danos merecem a tutela do direito, devendo-se decidir pela condenação do réu, no pagamento aos autores, ou elo menos ao autor ER…, de valor de indemnização que o tribunal prudentemente deverá arbitrar;
8. Tais factos surgem-nos como voluntários e ilícitos, em oposição com a ordem jurídica, lesando o direito dos autores ou do autor ER…. Ao participar criminalmente de ER…, o réu, aqui recorrido, não se muniu de toda a informação necessária para saber se o deveria fazer, querendo e conseguindo atingir o mesmo e preenchendo os requisitos para a verificação de responsabilidade civil;
9. Conduta esta que, pode retirar a possibilidade de participação por denúncia caluniosa, mas que não afasta a possibilidade de os danos da mesma resultantes, e por força dela, deverem ser reparados, nesta sede;
10. A sentença proferida não teve em consideração todos os factos que deveriam ter sido dados como provados e, como tal, não aplicou devidamente o direito aos factos, devendo a sentença ser revogada e decidindo-se, face ao supra descrito, pela condenação do réu no pagamento aos autores, ou pelo menos a ER…, de um quantum indemnizatório que face aos factos que devem ser dados como provados, o tribunal doutamente arbitrará (…)”.
Ora, tendo em conta os factos apurados pelo Tribunal recorrido, que resultaram inalterados nesta sede, verifica-se que o Tribunal recorrido procedeu a um correto enquadramento jurídico-normativo da temática da responsabilidade civil, relativamente à qual considerou a factualidade apurada.
Tal enquadramento jurídico não merece qualquer censura, sendo certo que, os recorrentes assentavam a alteração do sentido decisório, na procedência da impugnação de facto que, como se viu, soçobrou.
Assim, não merece também qualquer reparo, neste ponto, o decidido pelo Tribunal a quo, que não julgou procedente a correspondente pretensão deduzida pelos autores.
*
A responsabilidade tributária inerente incidirá sobre os apelantes, que decaíram integralmente na respetiva pretensão – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
*
5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação deduzida e, em consequência, em manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 10 de setembro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes