Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
581/12.6PLSNT-A.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: LEI DO CIBERCRIME
ACESSO ILEGÍTIMO
DADOS DE TRÁFEGO
INTERCEPÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I - A Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15 de Setembro) nos seus artigos 12.º a 17.º respeitam a meios de obtenção de prova, mormente sua conservação e recolha. São eles: a “preservação expedita de dados”, a “revelação expedita de dados de tráfego”, a “injunção para apresentação ou concessão de acesso a dados”, a “pesquisa de dados informáticos”, a “apreensão de dados informáticos” e, finalmente, a “apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”.

II - Com excepção desta última, em que se faz expressa menção à intervenção do juiz, todas as outras diligências são levadas a cabo por ordem da autoridade judiciária competente o que necessariamente inculca a ideia de que essa autoridade judiciária pode ser o Ministério Público ou o Juiz consoante a fase processual.

III - Este novo regime especial de obtenção de meios de prova teve em vista superar a lacuna da Lei nº 109/91 de 17 de Agosto (Criminalidade Informática) que por não conter essas normas processuais que adequassem o regime legal às particularidades da investigação “empurrou” a jurisprudência para a interpretação de que só em relação a crimes de catálogo seria possível a obtenção de certo tipo de dados como os dados de tráfego e mercê da intervenção do juiz de instrução (cfr. por exemplo, o Ac. T.R.E. de 26.06.2007, proc. 843/07-1, em que estava em causa a investigação do crime de acesso ilegítimo do art. 7º, nº 1 da citada Lei nº 109/91)

IV - Significa isto, na leitura integrada de todo o regime legal, que se julga adequada a interpretação de que se os dados a obter são “dados de tráfego”, de acordo com a definição do art. 2º, al. c) da Lei do Cibercrime, e tiverem de ser recolhidos junto de uma operadora localizada em território nacional, independentemente de estarmos perante “crimes graves”, enunciados no artigo 2º, nº 1, alínea g) da Lei 32/2008 de 17 de Julho, poderá a autoridade judiciária competente, tendo em vista a descoberta da verdade, ordenar que estes sejam disponibilizados sob pena de punição por desobediência. É o que resulta do disposto no art. 14º, nºs 1, 2, 3 e 4 da mesma Lei. 

V - Pedir à operadora que forneça os dados em questão não é a mesma coisa que proceder a uma intercepção de uma comunicação, mesmo que com esta se vise proceder ao registo de “dados de tráfego”.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Recurso Independente em Separado – Inquérito n.º 581/12.6PLSNT-A – Comarca da Grande Lisboa-Noroeste – Sintra – Juízo de Instrução Criminal – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório

No âmbito do Inquérito com o n.º 581/12.6PLSNT que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Sintra (Juiz 2), na sequência de despacho proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução que indeferiu diligências, veio o Ministério Público interpor o presente recurso pedindo que se determine que o Mmo. Juiz a quo profira despacho no sentido pretendido pelo recorrente na promoção formulada nos autos.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

1. A factualidade em investigação nos presentes autos é susceptível de integrar a prática de crime de burla informática, previsto e punido pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal, e/ou de acesso ilegítimo, previsto e punido pelo artigo 6º, nº 1, da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro.

2. A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva nº 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

3. A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada, nos termos do artigo 9º, por despacho fundamentado do juiz se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves, definidos nos termos da alínea g), do nº 1 do artigo 2º da mesma Lei.

4. Os tipos legais em causa nos presentes autos não integram, efectivamente, o conceito de crimes graves e, como tal, excluem a aplicação do regime legal supra referido.

5. O regime de acesso aos dados gerados e tratados no contexto de comunicações electrónicas encontra-se regulado pelas disposições do Código de Processo Penal (artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal) e pela Lei do Cibercrime.

6. A intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas, só podem ser autorizadas durante o inquérito se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução, mediante requerimento do Ministério Público e apenas relativamente aos crimes de catálogo, elencados nas várias alíneas (artigo 187º, nº 1, do Código de Processo Penal).

7. Tal regime é extensivo às conversações ou comunicações por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes, e à obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações (artigo 189º, nºs 1 e 2 do mesmo Código).

8. A Lei do Cibercrime prevê, nos seus artigos 11º a 19º, um regime especial de preservação, pesquisa, apreensão e intercepção de comunicações relativas ao Cibercrime e à recolha de prova em suporte electrónico.

9. É admissível o recurso à intercepção de comunicações em processos relativos a crimes previstos nesta lei ou cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187º do Código de Processo Penal (artigo 18º da referida Lei).

10. Esta disposição legal, na parte que se refere aos crimes previstos na Lei do Cibercrime, veio alargar o catálogo dos crimes previstos no artigo 187º do Código de Processo Penal para os quais é legalmente admissível a intercepção das comunicações, assim permitindo a aplicação do regime das intercepções telefónicas aos crimes previstos na Lei do Cibercrime, aí se incluindo o tipo legal de acesso ilegítimo previsto no seu artigo 6º, um dos indiciados nestes autos.

11. É igualmente admissível, por força da extensão do regime das escutas e intercepções ao registo de comunicações, prevista no artigo 189º, nº 2, do Código de Processo Penal, quanto ao crime de acesso ilegítimo, a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações, desde que ordenados pelo Juiz de Instrução em relação às pessoas referidas no nº 4 do artigo 187º do Código de Processo Penal.

12. O disposto no nº 2 do artigo 11º da Lei do Cibercrime não afasta a aplicação do que decorre dos artigos 11º a 19º da mesma Lei, designadamente aos presentes autos.

13. Quando se prevê que as disposições processuais previstas nos artigos referidos não prejudicam o regime da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, tal significa que a investigação dos crimes graves ali expressamente definidos conta, e contínua a contar, com as possibilidades previstas em tal Lei, especiais relativamente a todos os outros crimes.

14. São dados de tráfego “os dados informáticos relacionados com uma comunicação efectuada por meio de um sistema informático, gerados por este sistema como elemento de uma cadeia de comunicação, indicando a origem da comunicação, o destino, o trajecto, a hora, a data, o tamanho, a duração ou o tipo de serviço subjacente” (artigo 2º, alínea c), da Lei do Cibercrime.

15. A informação referente à identificação de qual o lP (Internet Protocol) do computador que esteve na origem de determinada comunicação efectuada por meio de um sistema informático – dados solicitados e indeferidos na decisão sob recurso – enquadra-se nesta qualificação de dado de tráfego, pois que, para além de serem necessários ao estabelecimento e à direcção de uma comunicação, identificam ou permitem identificar a comunicação e possibilitam a identificação das comunicações entre o emitente e o destinatário, a data e a hora da comunicação.

16. É da competência do Juiz de Instrução solicitar tal informação às empresas fornecedoras de serviços de comunicação, nos termos do disposto no artigo 18º, nºs 1, alíneas a) e b), 2 e 3, da Lei do Cibercrime.

17. Estes dados (dados de tráfego e de localização e os dados conexos necessários para identificação do assinante ou do utilizador registado) são elementos que, para além de necessários ao estabelecimento de uma comunicação, devem ser salvaguardados e participar das garantias a que está submetida a utilização do respectivo serviço, em especial na parte respeitante ao sigilo das comunicações.

18. O princípio de inviolabilidade e de sigilo nas comunicações electrónicas não é absoluto e sofre as necessárias derrogações.

19. A transmissão de dados referentes às categorias previstas no artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, pode ser autorizada por despacho do juiz de instrução desde que tal seja indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, muito difícil de obter, que esteja em causa um dos crimes de catálogo expressamente previstos na alínea g) do nº 1 do artigo 2º da mesma Lei, e que as pessoas em causa se enquadrem numa das categorias previstas no nº 3 do mencionado artigo 9º de tal Lei.

20. Por outro lado, é admitida a intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas (e de conversações ou comunicações por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e intercepção das comunicações entre presentes, e de obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações – cfr. artigo 189º do Código de Processo Penal), por despacho fundamentado do juiz de instrução, mediante requerimento do Ministério Público, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, e se estiver em causa um dos crimes de catálogo ali elencado.

21. O referido princípio sofre nova derrogação no âmbito da Lei do Cibercrime, designadamente e no que ora importa, pelo disposto no artigo 18º que admite o recurso à intercepção de comunicações (o registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou a recolha e registo de dados de tráfego) relativamente aos crimes previstos no respectivo catálogo, por despacho fundamentado do juiz de instrução, mediante requerimento do Ministério Público, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.

22. Atendendo à natureza de um dos crimes ora em investigação – acesso ilegítimo – e ao facto de apenas com o conhecimento dos lPs referentes às comunicações a acessos identificados no decurso da investigação como relevantes para a indiciação dos crimes denunciados se poderá avançar na descoberta da identidade do autor ou autores dos factos em averiguação, de onde resulta que a obtenção da informação solicitada é indispensável para a descoberta da verdade material, não se vislumbrando outra forma de obter tal prova, resultam reunidos os pressupostos legais para a solicitação à operadora FACEBOOK, de toda a informação disponível relativamente à identificação daqueles que realizaram os últimos acessos ao perfil do Facebook “http:f/www.facebook.com/profile.php?íd= ...”, incluindo os correspondentes IP, com as respectivas referências de data e hora e zona associadas, e toda a demais informação disponível acerca da identificação dos titulares desses lPs, que deveria ter sido deferida.

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Não houve contra-alegações.

                                                 

A Mm.ª Juiz sustentou o despacho recorrido.

Nesta Relação, a Digna Procuradora-geral Adjunta emitiu douto Parecer em que acompanhou a posição defendida pelo Recorrente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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Fundamentação

A decisão sob recurso é a seguinte:
A factualidade descrita indicia a prática de um crime de acesso ilegítimo, p e p pelo artigo 6° da lei nº 109/2009 de 15 de Setembro a que cabe pena de prisão até 1 ano ou multa.
As informações que o Ministério Público pretende obter encontram-se protegidas pelo segredo das comunicações (cfr. artigo 4º e 6º da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto).
De acordo com o disposto no artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, a transmissão de dados referentes às categorias previstas no artigo 4º do mesmo diploma, entre as quais se incluem os dados pretendidos pelo Ministério Público – artigo 4º nº3 b) só pode ser autorizado por despacho do juiz de instrução, sempre que houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, muito difícil de obter. A lei exige ainda que se esteja perante um dos crimes de catálogo enunciados no artigo 2º, nº 1, al.g) ou, residualmente, no artigo 187º do CPP.
Ora não se enquadrando o crime em apreço nos autos no catálogo de crimes previstos no artigo 2º al g) da Lei nº 32/2008 e artigo 187º aplicável ex vi artigo 189º nº2 estes do CPP e 6º nº7 da Lei nº 41/2004 de 18 de Agosto, está vedada a divulgação de tais dados.
Com os fundamentos de facto e de direito expostos, indefere-se o requerido.
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Apreciando…

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Assim, cumpre averiguar se estando em causa factos susceptíveis de integrar a prática de crimes previstos na Lei 109/2009 de 15 de Setembro, e sendo necessário para a investigação de tais crimes, a obtenção de dados de tráfego e de localização e dados conexos necessários para identificação do assinante ou do utilizador registado num sistema informático, a lei exige que se esteja perante um dos crimes de catálogo enunciados no artigo 2º, nº 1, alínea g) da Lei 32/2008 de 17 de Julho.

                                                  *

Os presentes autos tiveram início com a denúncia que indivíduo não identificado acedeu à conta de facebook da queixosa, alterou a password desta, impedindo-a de aceder ao seu perfil, e ainda acedeu à sua informação pessoal e privada, além de que enviou uma mensagem para um contacto específico, que não é o marido da queixosa, dizendo “Olá Amorzinho! Estás bom? Tenho muitas saudades tuas!”.

Em face da denúncia (e sendo certo que nenhuns outros elementos constam do inquérito) poder-se-ia afirmar que estamos perante uma intromissão ou acesso, sem permissão legal, a um sistema ou programa de natureza pessoal – no caso o facebook – o que integraria o crime de “acesso ilegítimo” previsto no art. 6º, nº 1 da Lei 109/2009 de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), como se refere na promoção do Ministério Público e no despacho recorrido.

Contudo, não houve apenas uma intromissão ou acesso, sem permissão legal, a um sistema ou programa de natureza pessoal. Efectivamente, quem assim actuou também procedeu à alteração da password de acesso ao sistema, desta forma, e objectivamente, impedindo que a sua titular o usasse a partir de então.

Pode, assim, questionar-se se em vez do crime previsto no art. 6º, não terá sido antes cometido o crime previsto no art. 4º, nº 1 (dano relativo a programas ou outros dados informáticos), ou mesmo o do art. 5º, nº 1 (sabotagem informática), todos da citada Lei 109/2009.    

Considerando que, de acordo com os elementos de que dispomos, a conduta não terá assumido a gravidade exigida no art. 5º referido – apesar de ter sido ainda colocada no sistema, por quem a ele acedeu sem permissão, uma mensagem para que fosse vista e lida por terceiros – não estaremos perante um crime de “sabotagem informática”, mas como a sua titular ficou sem capacidade de aceder ao sistema mercê da alteração da password, ficando sem a capacidade de usar o sistema, poderemos pelo menos dizer que a conduta em causa integrará o crime de “dano relativo a programas ou outros dados informáticos” previsto no art. 4º, nº 1, punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

De facto, comete o crime de dano relativo a programas ou outros dados informáticos previsto naquele art. 4º, nº 1, quem, além do mais “tornar não utilizáveis ou não acessíveis programas ou outros dados informáticos alheios ou por qualquer forma lhes afectar a capacidade de uso” sem estar autorizado pelo proprietário ou titular do sistema ou de parte dele.

  Por outro lado, em face dos elementos até agora apurados, nada aponta para o cometimento do crime de burla informática p. e p. pelo art. 221º do Cód. Penal, como alega o Ministério Público, designadamente face à inexistência de indícios de “enriquecimento ilegítimo” por parte de quem interferiu no sistema e de “prejuízo patrimonial” para a queixosa.

Analisemos, então, a pretensão do Ministério Público.

A promoção indeferida pelo despacho recorrido pretendia obter informações junto da operadora “Facebook”, concretamente, a “identificação daqueles que realizaram os últimos acessos ao perfil do facebook da queixosa, “incluindo os correspondentes IP, com as respectivas referências de data e hora e zona associadas e toda a demais informação disponível acerca da identificação dos titulares desses IPs". Ou seja, pretende-se obter “dados de tráfego” na definição constante do art. 2º, al. c) da citada Lei 109/2009 e, mais concretamente, “dados” previstos na alínea a) do nº 1 do art. 4º da Lei 32/2008 de 17 de Julho (Lei que regula a conservação e transmissão de dados).
O despacho recorrido tinha indeferido a pretensão com o fundamento que “De acordo com o disposto no artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, a transmissão de dados referentes às categorias previstas no artigo 4º do mesmo diploma, entre as quais se incluem os dados pretendidos pelo Ministério Público – artigo 4º nº3 b) só pode ser autorizado por despacho do juiz de instrução, sempre que houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, muito difícil de obter. A lei exige ainda que se esteja perante um dos crimes de catálogo enunciados no artigo 2º, nº 1, al.g) ou, residualmente, no artigo 187º do CPP.”.

Ou seja, o fundamento do despacho recorrido para negar a pretensão do Ministério Público foi a circunstância de as informações em causa estarem protegidas pelo segredo das comunicações, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 4º e 6º da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, e 4º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho.

Aquele primeiro diploma (Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto) visa a protecção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações e aplica-se ao tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público em redes de comunicação públicas como se determina no seu art. 1º, nº 2.

Com a epígrafe “Inviolabilidade das comunicações electrónicas” o invocado art. 4º, nº 1, dispõe que as empresas que oferecem redes ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego e o art. 6º estipula como princípio geral que os dados de tráfego devem ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos de transmissão da comunicação.

Já o segundo diploma (Lei nº 32/2008, de 17 de Julho), regula a conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações com a finalidade exclusiva de investigação, detecção e repressão de crimes graves como se explicita no seu art. 3º.

O art. 4º, especifica as categorias de dados a conservar pelos fornecedores de comunicações electrónicas e entre eles (nºs 1, al. a) e 2, al. b), i e iii) aqueles cujo interesse para a investigação que está agora em causa é afirmado, ou seja, os que permitem identificar a “fonte de uma comunicação”.

E o art. 9º regula as condições de transmissão de dados, a qual só pode ser autorizada por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves – “crimes graves” são, na definição da alínea g) do nº 1 do art. 2º do mencionado diploma, os crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.

Assim, e como resulta evidente, o catálogo descrito não contempla os crimes sobre que versa a investigação do caso presente.

Não contempla nem poderia obviamente contemplar, pois a Lei do Cibercrime é posterior.

Ora é precisamente a circunstância da Lei do Cibercrime ser posterior a estas leis referidas que tem que ser colocada em evidência, ou melhor, é este, precisamente, o aspecto a analisar com detalhe – e sobre o qual o despacho recorrido não se deteve.

A já referida Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15 de Setembro) contém disposições penais materiais – que constituem o seu Capítulo II, entre as quais aquelas que supra se mencionaram – mas além disso tem, no seu Capítulo III, um conjunto de disposições processuais especiais, digamos assim, relativamente ao regime geral.

O primeiro artigo deste Capítulo III é o 11º que precisa o “âmbito de aplicação das disposições processuais”. Ali se determina que, com excepção da “intercepção das comunicações” e das “acções encobertas” (em relação às quais há algumas especialidades) as demais disposições processuais aplicam-se a processos relativos a crimes:

“a) previstos nessa Lei do Cibercrime;

b) cometidos por meio de um sistema informático;

c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.

Atentando nas disposições seguintes – os artigos 12º a 17º – constata-se que todas elas respeitam a meios de obtenção de prova, mormente sua conservação e recolha. São eles: a “preservação expedita de dados”, a “revelação expedita de dados de tráfego”, a “injunção para apresentação ou concessão de acesso a dados”, a “pesquisa de dados informáticos”, a “apreensão de dados informáticos” e, finalmente, a “apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”. Com excepção desta última, em que se faz expressa menção à intervenção do juiz, todas as outras diligências são levadas a cabo por ordem da autoridade judiciária competente o que necessariamente inculca a ideia de que essa autoridade judiciária pode ser o Ministério Público ou o Juiz consoante a fase processual.

Repare-se que este regime especial, preconizado pela Lei do Cibercrime, é perfeitamente entendível e justificável. O que está em causa é a obtenção de prova intangível, que só pode corporizar-se no processo com a intervenção especializada e indispensável dos próprios operadores dos sistemas. Se não fosse estabelecido um regime especial como aquele que está definido no mencionado diploma a investigação dos crimes nele previstos estaria condenada ao fracasso e estes crimes seguramente ficariam impunes. Apenas quanto aos crimes de catálogo seria então possível a obtenção dos dados pretendidos.

Crê-se, aliás, que este novo regime especial de obtenção de meios de prova teve em vista superar a lacuna da Lei nº 109/91 de 17 de Agosto (Criminalidade Informática) que por não conter essas normas processuais que adequassem o regime legal às particularidades da investigação “empurrou” a jurisprudência para a interpretação de que só em relação a crimes de catálogo seria possível a obtenção de certo tipo de dados como os dados de tráfego e mercê da intervenção do juiz de instrução (cfr. por exemplo, o Ac. T.R.E. de 26.06.2007, proc. 843/07-1, em que estava em causa a investigação do crime de acesso ilegítimo do art. 7º, nº 1 da citada Lei nº 109/91)

Seria este o destino a que ficaria confinada a investigação do caso dos autos, e de todos os outros em que se investigassem crimes previstos na Lei do Cibercrime, se vingasse a interpretação do despacho recorrido.

Significa isto, na leitura integrada de todo o regime legal, que se julga adequada a interpretação de que se os dados a obter são “dados de tráfego”, de acordo com a definição do art. 2º, al. c) da Lei do Cibercrime, e tiverem de ser recolhidos junto de uma operadora localizada em território nacional, independentemente de estarmos perante “crimes graves”, enunciados no artigo 2º, nº 1, alínea g) da Lei 32/2008 de 17 de Julho, poderá a autoridade judiciária competente, tendo em vista a descoberta da verdade, ordenar que estes sejam disponibilizados sob pena de punição por desobediência. É o que resulta do disposto no art. 14º, nºs 1, 2, 3 e 4 da mesma Lei. 

E a circunstância de estar em equação a sua obtenção junto de entidades estrangeiras não modifica a questão – ressalvada, é claro, a discutível eficácia da cominação legal, que não seria de efectuar por isso mesmo.

Diga-se apenas que, salvo melhor opinião, pedir à operadora que forneça os dados em questão não é a mesma coisa que proceder a uma intercepção de uma comunicação, mesmo que com esta se vise proceder ao registo de “dados de tráfego”. Interceptar a comunicação significa, obviamente, interferir em tempo real na “viagem” da comunicação para aceder ao seu conteúdo e não é isso que está em causa. O que se pretende é obter informação sobre algo que já ocorreu no sistema e que lá está armazenada.

Assim, para fundamentar esse pedido não será de invocar o disposto no art. 18º, nºs 1, als. b) e c), 2 e 3 da Lei que se tem vindo a citar, já que este normativo regula apenas a intercepção de comunicações.

Em suma, a conclusão a extrair é a de que é necessária e possível a obtenção dos dados que interessam à investigação dos presentes autos (a informação referente à identificação de qual o lP (Internet Protocol) do computador que esteve na origem da comunicação efectuada, já que apenas com o conhecimento dos lPs referentes às comunicações a acessos identificados no decurso da investigação como relevantes para a indiciação dos crimes denunciados se poderá avançar na descoberta da identidade do autor ou autores dos factos em averiguação, de onde resulta que a obtenção da informação solicitada é indispensável para a descoberta da verdade material, não se vislumbrando outra forma de obter tal prova) e de que a autoridade judiciária competente para o fazer mesmo junto de uma entidade que opera a partir do estrangeiro é o Ministério Público.

Pelo que é de revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que atribua a competência para a obtenção dos dados em causa ao Ministério Público.

                                     

Decisão


Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, ordenando a substituição do despacho recorrido por outro que atribua a competência para a obtenção dos dados em causa ao Ministério Público.

Sem custas.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013
(processado e revisto pela relatora)

(Alda Tomé Casimiro)

(Filomena Lima)