Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1933/17.0YRLSB-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
IRRENUNCIABILIDADE
INDISPONIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADA A PROCEDÊNCIA
Sumário: A decisão revivenda não pode ser confirmada, sempre que a mesma afrontar a condição de irrenunciabilidade e indisponibilidade, à luz dos artº/s 1882 e 2008, ambos do CC.

SUMÁRIO: (da responsabilidade do relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:


A…, solteira, maior, titular do Cartão de Cidadão n°. emitido pela República Portuguesa, de momento a residir em…. veio requerer a revisão de sentença estrangeira contra K…titular do Cartão de Cidadão nº…, emitido pela República Portuguesa, com última residência conhecida em ….Alegam, em resumo:
- a ora Requerente e o ora Requerido, na sequência de envolvimento amoroso, tiveram dois filhos gémeos nascidos a 11/04/ 2015 em ..(conforme infra se dará ênfase) .Após o nascimento dos filhos menores, requerente e requerido terminaram a sua relação.
Por dificuldades de entendimento com o requerido, ainda não foi possível a transcrição do assento de nascimento das crianças na ordem jurídica portuguesa.
Perante a situação de indefinição e ausência do ora Requerido, a ora Requerente requereu junto do Tribunal do Magistrado Judicial de Primeira Instância, Panaji- Goa a Regulação das responsabilidades parentais relativa aos seus filhos menores.
Tendo os ora Requerente e Requerido acordado os termos da Regulação das Responsabilidades Parentais dos menores (conforme homologação judicial dos Termos do Acordo Responsabilidades Parentais, devidamente apostilhada, traduzida e certificada (Doe. 7 que junta e dá por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos).
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O requerido deduz oposição, nos seguintes termos, em resumo:
No caso em apreço, salvo melhor opinião, não se verificam os requisitos previstos nas alíneas a), b) e f) do art.º 980 do CPC.
A alegada certidão da decisão revidenda suscita dúvidas sobre a autenticidade e inteligência da decisão.

O referido documento não é, desde logo, uma certidão da sentença homologatória, por duas ordens de razão:
- Por um lado, porque do referido documento não resulta quem o emitiu, nem tampouco a data de emissão do mesmo. E, por outro lado, porque do mesmo não consta cópia da sentença homologatória mas apenas a referência a que "ambas as partes compareceram perante mim e assinaram o mesmo.
Para além disso, desconhecem-se as referidas as condições, alegadamente, notificadas, para o encerramento, o que se afigura essencial ao apuramento do preenchimento dos requisitos para a confirmação da sentença estrangeira, plasmados no art.º 980 do CPC.
Deve ser negada a sua revisão e confirmação, por falta do cumprimento do pressuposto previso na aI. a) do art.º 980° do CPC.
Não existe a menção do trânsito em julgado da decisão revidenda, nos termos do disposto no art.º. 980 aI. b) do CPC.
Deve ser negada a revisão da alegada sentença homologatória do acordo sobre o exercício das responsabilidades parenta is, por o reconhecimento da mesma conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, por duas ordens de razão:
a.- porque qualquer tipo de renúncia voluntária ao exercício das responsabilidades parentais, para além do que resulta do regime da adoção ou do caso especial do artigo 1907 do CC, conjugada com a renúncia do direito de acesso ao tribunal em qualquer questão conexa, é intolerável no ordenamento jurídico português;
b.-  porque a obrigação de alimentos é de carácter indisponível, irrenunciável e intransmissível, bem como de interesse e ordem pública.
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O que se apura:
Está junto aos autos o documento de fls 32 a 36-v, cuja tradução consta de fls 37 a 41.

O teor deste documento:
Carimbo redondo do Notário J.S. Rebello Tiswadi, panaji
Reg Nº 109/99
Certif. Data expiração 01/08/2019
Gov. de Goa (India)
carimbo redondo pouco legível Panaji
rubrica Superintendente
NO TRIBUNAL DO MAGISTRADO JUDICIAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, PANAJI-GOA
Processo No. DVA 12/2015/0
A…
Idade …
Filha de L…
Residente actualmente ……
... Requerente/queixosa
Vis
K…
Idade… filho de…
Residente em ….
... requerido/denunciado
Comparado com o original-rubricado
No verso constam 3 carimbos redondos parciais- um do notário J.5. Rebello, do Consulado geral de Portugal e Do Juiz de Panaji, aparecendo o restante na folha seguinte
 
Rubricado - Superintendente
 
NO TRIBUNAL DO MAGISTRADO JUDICIAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, PANAJI-GOA
Processo No. DVA 12/2015/0
A….
.... Requerente
Contra
K…
.... Requerido
"MAY IT PLEASE YOUR HONOUR"

As partes chegaram a acordo na matéria nos seguintes termos:
TERMOS DO ACORDO

1. A Requerente concordou em retirar todas as queixas/alegações apresentadas por ela na petição acima, nos seguintes termos:
a) A custódia dos filhos menores….. deve permanecer e continuará a ser da responsabilidade da requerente durante a sua menoridade.
b)-  A requerente deverá proceder como tutora natural de ambos os filhos menores durante a menoridade

No verso constam 3 carimbos redondos parciais- um do notário J.5. Rebello, do Consulado geral de Portugal e Do Juiz de Panaji, aparecendo o restante na folha seguinte
 
Rubricado -Superintendente
para todos os fins e efeitos e a guarda de ambos os menores será sempre da requerente durante a sua menoridade e a mesma está autorizada a agir como tutora e tratar de todos os assuntos relativos aos dois menores, fruto da relação da requerente e do requerido, incluindo a representação perante várias embaixadas e Autoridades de Portugal e/ou Reino Unido ou outras autoridades competentes para efeitos de registo das referidas crianças, do seu nascimento em Portugal e/ou no Reino Unido e/ou perante FRRO ou outros responsáveis competentes na índia, relativamente a qualquer matéria que lhes diga respeito e redigir e assinar quaisquer papéis e documentos e executar todo e qualquer acto que seja necessário a tal fim, e para toda e qualquer finalidade relativa às crianças menores e seus assuntos.
c)- A requerente suportará sozinha todas as despesas próprias e dos seus dois filhos menores e não
No verso constam 3 carimbos redondos parciais- um do notário J.S. Rebello, do Consulado geral de Portugal e Do Juiz de Panaji, aparecendo o restante na folha seguinte
 
Rubricado Superintendente
exigirá qualquer pensão de alimentos ou montantes de qualquer natureza do Requerido relativamente ao mesmo, quer no presente ou em qualquer altura no futuro, até que as crianças menores atinjam a maioridade e posteriormente.
d)- Nenhuma das partes intentará qualquer outra acção relativamente à matéria acordada e aceite nos termos presentes em qualquer outro tribunal deste país ou de outro país qualquer.
e)-   Ambas as partes não desejam exercer o direito de recurso legal para as alegações nas intervenções.
2.  As partes pedem que a petição seja encerrada nos termos supra.
Panaji, Goa 07/04/3016
rubricado requerente
No verso constam 3 carimbos redondos parciais- um do notário J.S. Rebello, do Consulado geral de Portugal e Do Juiz de Panaji, aparecendo o restante na folha seguinte
 
Rubricado Superintendente
assinado
Adv. da requerente
Assinado
Requerido
Assinado
Adv. do requerido

Manuscrito: Ambas as partes compareceram perante mim e assinaram o mesmo.
Declararam que têm consciência e concordam com os termos acima. O processo encerrou-se nas condições notificadas.
carimbo do tribunal, pouco legível
rubricado 7/4/16 JMFI, Panaji, D'(ilegível)
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Consta de fls. 42:
Manuscrito: Para efeitos na Conservatória do Registo Civil, Portugal
- Carimbo em Português de reconhecimento de assinatura de Naveen S.L. IAS, Colector Adjunto-III, feita no Consulado geral de Portugal em Goa, em 29-04-2016
Assinado pelo Chanceler

- Carimbo do Consulado Geral de Portugal em Goa
- Carimbo do Juiz Civil de Panaji
A assinatura do Adv. J.S. Rebello, Notário está autenticada.
rubricado
(Naveen S.L. IAS)
Colector Adjunti -II
Gabinete do Colector (Norte Goa) Governo de Goa
(Autoridade nomeada) Autorização pelo Departamento do Interior
Data: 22/4/16 Reg. No. 11629
- carimbo do Governo de Goa Gabinete do ( .... ) Norte Goa)
Apostilha Governo da índia (Convenção Haia de 5 outubro 1961) :

Cópia Autenticada Data m que foi pedida 11-4-16
Data em que foi finalizada 11-4-16 Data para entrega 13-4-16
Data em que ficou pronta 13-4-16
Data (ilegível)                       13-4-16
Cópia e custo de (      ) -
Rs 35/ são creditadas ao Governo para o State Bank de Panaji, vide Recibo No 271108
rubricado 13/4/16
Superintendente
- Carimbo de pagamento de emolumentos em Português
-Carimbo em Português de reconhecimento de assinatura de (ilegível) Henriques
Reg nº 6866/16 datado 19/04/16
rubricado
J.S: Rebello Notário em Pangim Estado de Goa, India
6 selos notariais de 5 RS cada, com carimbo redondo aposto do notário J.S. Rebello
Apostilha Governo da India
( Convenção de Haia 5 Outubro 1961 )
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Cumpre decidir

Nos termos do disposto no art.º 980.º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que:
a)- Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b)- A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c)- A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d)- Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e)- O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f)- A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

O art.º 984.º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supra citadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos.

Analisando os documentos de fls 32 a 42

Nos termos da Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Atos Públicos Estrangeiros (concluída na Haia, em 5 de outubro de 1961, sob a égide da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado), a apostila consiste numa formalidade por cujo intermédio se certifica a autenticidade dos atos públicos emitidos no território de um Estado contratante e que devam ser apresentados no território de outro Estado contratante da mesma Convenção, desta forma lhes conferindo valor probatório formal.

Assim, atento o teor de fls 36 v e 42 não há que indagar da autenticidade do documento e muito menos da inteligência da decisão, a qual se mostra como clara e inteligível.

No que respeita ao trânsito em julgado, face ao teor do acordo e à decisão manuscrita que o processo se encerrou nas condições notificadas, inexistem dúvidas quanto ao trânsito em julgado da decisão; não pode o requerido  esquecer que subscreveu esta cláusula “ Ambas as partes não desejam exercer o direito de recurso legal para as alegações nas intervenções.”

Assim, a essência deste litígio reside na resposta a esta pergunta:
---o reconhecimento desta decisão conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português?
Cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. Tal implica que a aplicação da lei estrangeira será recusada “na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local”.[1]

Reatando a citação de Ferrer Correia (obra supra identificada, pág. 483), “não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja.”

No dizer do Supremo Tribunal de Justiça,[2] “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação"

Tal significa que o controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro.

Ordem jurídica esta que é enformada pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem, entre outros, os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito[3]

Voltando à análise do acordo, o que concluir?
O requerido renuncia às responsabilidades parentais, incluindo a prestação de alimentos, bem como à decisão de qualquer questão relativa às crianças:
 ”…para todos os fins e efeitos e a guarda de ambos os menores será sempre da requerente durante a sua menoridade e a mesma está autorizada a agir como tutora e tratar de todos os assuntos relativos aos dois menores (…), A custódia dos filhos menores, i.e., A…e R…deve permanecer e continuará a ser da responsabilidade da requerente durante a sua menoridade”.

Estabelece o artigo 36º, nº 5, da Constituição da República que os pais têm o direito e o dever de educação e de manutenção dos filhos. É um vínculo de direito-dever que se fixa na esfera de cada um dos pais e se traduz “na compreensão do poder paternal como obrigação de cuidado parental” envolvente, em particular quanto ao dever de manutenção, no vínculo “de prover ao sustento dos filhos, dentro das capacidades económicas dos pais, até que eles estejam em condições (ou tenham obrigação) de o fazer”.[4]

A lei civil complementa, neste particular, o quadro constitucional.

A filiação acarreta, para lá do mais, um dever de assistência, com o conteúdo da obrigação alimentar (artigo 1874º do Código Civil); do conteúdo das responsabilidades parentais, a que os filhos estão sujeitos até à maioridade ou emancipação, faz parte a obrigação de os pais, no interesse dos filhos, proverem ao seu sustento; desse dever apenas ficando desobrigados na medida em que os filhos se mostrem em condições de poder suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, os respectivos encargos (artigos 1877º, 1878º, nº 1, e 1879º, do Código Civil).

As responsabilidades parentais são irrenunciáveis (artigo 1882º do CC), bem como o direito a alimentos , que também é indisponível  ( art.º 2008 CC).

Daí que, perante esta condição de irrenunciabilidade e indisponibilidade, não pode a decisão ser confirmada, nos termos do art.º 980 al f) CC.
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Síntese: a decisão revivenda não pode ser confirmada, por afrontar a condição de irrenunciabilidade e indisponibilidade, à luz dos artº/s 1882 e 2008, ambos do CC.
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Pelo exposto, acordam em negar a confirmação da decisão revivenda.

Custas pela requerente.



Lisboa, 22/03/2018


Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida e Costa
Carla Mendes


[1]Conforme expende Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, pág. 406),
[2](acórdão de 21.02.2006, www.dgsi.pt, processo 05B4168).
[3]Cf Acórdão do STJ de 26-09-2017 ,in DGSI
[4]Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, volume I, 4ª edição, página 565; Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa anotada”,
tomo I, 2005, página 415.