Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
959/20.1S5LSB.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: BURLA INFORMÁTICA
PREENCHIMENTO DO TIPO
CRIME DE RESULTADO
CRIME DE EMPREENDIMENTO
CRIME CONTINUADO
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CRIME EXAURIDO
UNIDADE DE ACÇÃO
PLURALIDADE DE ACÇÃO
REGISTO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I- O preenchimento do tipo objectivo correspondente ao artigo 221º/1 do CP, implica que o agente percorra dois passos, a saber: a utilização de dados informáticos e a realização de determinada operação que cause prejuízo patrimonial a terceiro e enriquecimento ilícito ao agente.
II- O número de vezes que o agente introduz os dados não se reveste de relevância penal quanto à fixação do número de crimes porque essa introdução não integra, só por si, a prática do crime.
III- Sendo este um crime de resultado, a prática do crime só se completa pelo uso efectivo dos dados em compras. Não basta o apoderamento do código; essa apropriação não é o objecto da tutela penal levada a efeito pela norma.
IV- Este é um crime de empreendimento, por abranger a prática de múltiplos actos, prolongado, de trato sucessivo ou exaurido.
V- A conduta do agente consiste no empreendimento de uma certa atividade lucrativa, que realiza pela execução de múltiplos actos, a coberto do uso abusivo do código do cartão do lesado, ainda que todos eles subordinados uma intenção delictiva que se iniciou com a primeira utilização e se renovou em cada uma delas.
VI- Nas práticas com estas características, a uma pluralidade de acções, compreendidas dentro de um determinado limite temporal (e correspondendo, cada uma delas, a uma renovação da resolução criminosa, ainda que em tudo semelhante à anterior) faz-se corresponder um único crime, que se consuma nos primeiros actos subsumíveis ao tipo mas que é punido pela conduta de maior gravidade penal que o integra.
VII- São requisitos substantivos positivos do crime exaurido a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, para quem o estenda aos crimes contra as pessoas, a identidade da vítima.
VIII- É requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efectiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente.
IX- É requisito processual o facto de o tipo incriminador supor (ou mesmo prever) a reiteração.
X- O que está em causa, na exigência de que as condenações constem do registo criminal, é uma especial exigência de ponderação dos fins e dos efeitos da acessibilidade ao seu conteúdo, para fins administrativos e particulares e para fins de exercício de profissão ou actividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade (artigo 10º/6, da Lei 34/2013).
XI- A comunicação ao MAI der uma condenação para a qual se exija carteira profissional, o que não determina, automaticamente, a sua perda, até porque, por força do acórdão do TC n.º 376/2018, 18/9 foi declarada «a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo, por violação do n.º 1 do artigo 47.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição».
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida JAJ, solteira, gerente, filha de … e de …, natural de …, nascida em …, portadora do Cartão de Cidadão com o n.º …., residente na Avenida …., acusada da prática de um crime de burla informática e nas telecomunicações, previsto e punido (p. e p.e) pelo artigo 221.º/1 do Código Penal (CP) foi condenada pela prática de quatro crimes de idêntica natureza e subsunção jurídica, nas penas unitárias de 120, 100, 80 e 80 dias de multa e, em cúmulo jurídico, foi condenada na pena única de 280 dias de multa, à taxa diária de 6€, num total de 1.680€.
Mais foi ordenada a comunicação da condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna e a remessa de boletins ao Registo Criminal.
A arguida não apresentou contestação à acusação.
Foi proferido despacho de alteração não substancial dos factos e alterada a qualificação jurídica dos factos, tendo a arguida abdicado do prazo de defesa.
A arguida recorre, agora, da sentença proferida.
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II- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1.  A arguida exerceu as funções de ajudante familiar, na sociedade “H…, Lda.”, no período compreendido entre os dias 24 de outubro de 2019 e 13 de agosto de 2020;
2.  A arguida prestou tais serviços, além do mais, na residência de FR, sita na Avenida …., em Lisboa;
3.  Em data concretamente não apurada de 2019, mas anterior ao dia 18 de Dezembro, a arguida esteve na posse do cartão de crédito com o n.º4261.50**.****.6508, titulado por FR, associado à sua conta do Novo Banco com o NIB ….., e copiou os seus dados, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV;
4. Uma vez na posse daqueles dados a arguida acedeu à aplicação Uber Eats, indicando o telemóvel 96….. e o endereço de e-mail ....@hotmail.com, por si utilizados, e efetuou as seguintes compras, tendo para o efeito digitado os dados do cartão de crédito de FR, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV:
a.  12/01/2020 – 15,70 euros;
b.  17/01/2020 – 13,40 euros;
c.  23/01/2020 – 15,70 euros;
d.  31/01/2020 – 19,50 euros;
e.  17/02/2020 – 24,30 euros;
f.    12/03/2020 – 30,80 euros;
g.  31/03/2020 – 21,40 euros;
h.  21/04/2020 – 30,20 euros;
i.   28/04/2020 – 16,70 euros;
j.   05/05/2020 – 27,20 euros;
k.  05/05/2020 – 12,95 euros;
l.   10/05/2020 – 30,10 euros;
m. 10/05/2020 – 19,25 euros;
n.  15/05/2020 – 19,25 euros;
o.  23/05/2020 – 18,75 euros;
p.  30/05/2020 – 18,75 euros;
q.  09/06/2020 – 26,25 euros;
r.   19/06/2020 – 6,90 euros;
s.  22/06/2020 - 19,80 euros;
t.   27/06/2020 – 19,50 euros;
u.  15/07/2020 – 25, 70 euros;
v.  26/07/2020 – 32,30 euros.
5. Uma vez na posse daqueles dados a arguida acedeu à aplicação Uber Trips, indiciando o telemóvel 96…. e o endereço de e-mail ...@hotmail.com, por si utilizados, e efetuou as seguintes compras, tendo para o efeito digitado os dados do cartão de crédito de FR, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV:
a.  04/01/2020 – 15,35 euros;
b.  04/01/2020 – 3,28 euros;
c.  17/03/2020 – 10,37 euros;
d.  20/03/2020 – 3,60 euros;
e.  20/03/2020 – 2,92 euros;
f.  22/03/2020 – 11,20 euros;
g.  26/03/2020 – 1,51 euros;
h.  28/03/2020 – 9,63 euros;
i.   01/05/2020 – 4,33 euros;
j.   05/05/2020 – 11,91 euros;
k.  09/05/2020 – 4,39 euros;
l.   16/05/2020 – 9,21 euros;
m. 28/05/2020 – 11,00 euros;
n.  30/05/2020 – 6,05 euros;
o.  30/05/2020 – 5,30 euros;
p.  10/06/2020 – 5,60 euros;
q.  18/06/2020 – 10,36 euros;
r.   17/07/2020 – 12,99 euros.
6. No dia 3 de fevereiro de 2020, a arguida acedeu ao site da Declathon e encomendou meias de futebol, caneleiras de futebol e chuteiras, no valor global de 48,40 euros, tendo para o efeito digitado os dados do cartão de crédito titulado por FR, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV;
7.  A arguida indicou o seu próprio nome, a morada sita na Av. …. como morada de entrega e o telemóvel 96…., por si utilizado;
8.  No dia 8 de julho de 2020, a arguida acedeu ao site da Adidas e comprou uma mochila, um saco e um boné, no valor global de 39,50 euros, tendo para o efeito digitado os dados do cartão de crédito titulado por FR, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV;
9.  A arguida mais indicou o seu próprio nome e morada para efeitos de entrega da compra efetuada;
10.  A arguida atuou com o intuito, aliás concretizado, de utilizar o supra identificado cartão de crédito, titulado por FR para, sem autorização ou conhecimento deste, seu legítimo titular, efetuar compras na internet, designadamente na Uber Eats, Uber Trips, Decathlon e Adidas, mediante a introdução naquelas aplicações e sites dos dados daquele meio de pagamento, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV, assim pretendendo obter, como efetivamente obteve, um enriquecimento equivalente ao valor dos pagamentos efetuados;
11.  Mais sabia a arguida que com esta sua conduta provocava, como efetivamente provocou, um prejuízo no valor global de 691,30 €, no património do ofendido, equivalente ao valor dos pagamentos por si efetuados;
12.  A arguida agiu sempre de forma deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
13.  A arguida não tem antecedentes criminais registados;
14.  A arguida trabalha como vigilante, auferindo o salário mensal de 816€ e sendo portadora de cartão de vigilante;
15.  Tem um filho de 9 anos, vivendo com ele numa casa arrendada, cuja renda é de 5€;
16.  Tem o 12.º ano de escolaridade.
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Não há factos não provados
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IIII- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
« A convicção do Tribunal assentou na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, assim como do teor dos documentos constantes dos autos, análise esta feita segundo o princípio da livre apreciação, nos precisos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, isto é, segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador.
Prima facie, importa referir que, em sede de audiência de julgamento, a Arguida prestou declarações quanto aos factos que lhe são imputados, negando totalmente a descrição aí vertida.
Com efeito, a arguida afirmou que ia apenas a casa do Sr. FR para trabalhar, não sendo verdade que ficou na posse do seu cartão, que acedeu aos dados e pagou encomendas com ele.
Mais afirmou que o email que consta da acusação não é dela, uma vez que o seu email acaba em Hotmail e o da acusação em Gmail, sendo, de resto, igual. Já quanto ao seu número de telemóvel e morada confirmou que os seus são os mesmos da acusação.
Terminou afirmando que não consegue explicar porque é que os seus contactos estão associados àquelas compras, acrescentando que estavam a trabalhar mais duas funcionárias naquela casa, pelo que pode ter sido alguma delas.
No entanto, admite não conhecer as outras pessoas que lá trabalhavam por não se cruzarem nos horários e por isso também não haver qualquer quezília entre elas.
As declarações da Arguida foram prestadas de forma clara e assertiva, contudo a sua versão não se afigurou credível, considerando o depoimento da Testemunha JR, e, especialmente, a prova documental, como de seguida se explicitará.
JR prestou um depoimento claro e honesto, tendo revelado imparcialidade, apesar de o ofendido ser o seu irmão, porquanto não se mostrou interessado em atribuir culpas, tendo apenas revelado os factos com objetividade.
Com efeito, no seu depoimento, JR, afirmou que se dirigiu com o irmão a uma caixa multibanco para verificar o extrato, quando se aperceberam que constavam débitos de valor diminuto mas diários em comerciantes como a Uber Eats, a Adidas e o Continente, que o irmão não reconheceu como sendo dele. Por esse motivo, foram apresentar queixa no dia 25 de agosto de 2020.
Mais confirmou a testemunha que JAJ trabalhou para o irmão, tendo-se despedido uns dias após eles terem cancelado o cartão, o que os deixou desconfiados.
Por último, afirmou ainda que o irmão deixava a carteira dentro do casaco que estava pendurado à entrada da sua casa.
No que respeita à prova documental, o Tribunal teve em consideração os seguintes documentos:
- Auto de denúncia (fls. 1-3);
- Elementos bancários do Novo Banco (fls. 4 a 22, 29 a 52, 60 a 120, 232);
- E-mails da Uber (fls. 56 a 59 e 269 a 272);
- E-mail da Google.INC (fls. 134 a 137);
- E-mail da Adidas (fls. 191 a 194);
- E-mail da “H…, Lda.” (fls. 260);
- E-mails da “Decathlon” (fls. 266 a 268);
- Certificado de Registo Criminal (fls. 280);
- Print extraído da Base de Dados da Segurança Social (fls. 281).
Quanto aos factos n.º 1 e 2, o Tribunal baseou a sua convicção na conjugação das declarações da arguida, da testemunha JR e do email da H. Ldª, de fls. 260.
Para dar como provado que a arguida esteve na posse do cartão de crédito do ofendido (facto provado n.º 3), tendo copiado os seus dados e acedido à aplicação da Uber Eats e Uber Trips, inserido esses mesmos dados e efetuado as compras descritas nos factos provados n.º 4 e 5, o Tribunal tomou em consideração os elementos bancários do Novo Banco (fls. 4 a 22, 29 a 52, 60 a 120, 232), onde constam todas as transações efetuadas, nomeadamente as que foram feitas através da aplicação Uber Eats e Uber Trips, conjugados com os emails da uber de fls. 56-59 e 269-272, onde esta empresa confirmou que uma conta registada com o nome da arguida, o seu email e número de telemóvel efetuou várias transações utilizando aquele cartão de crédito.
Desta forma, no que respeita aos documentos do Novo Banco, e tendo em consideração o facto provado n.º 4, isto é, as operações da Uber Eats, a conjugação destas operações com os documentos é a seguinte: alínea a) a d) – doc. de fls. 7; alínea e) – doc. de fls 9; al. f) e g) – doc. de fls 11; al. h) e i) – doc. fls. 13; al. j a p) – doc. de fls. 15; al. q) a t) – doc. de fls. 18; al. u) e v) – doc. fls. 20.
Já no que respeita ao facto provado n.º 5, isto é, as operações da Uber Trips, a conjugação é a seguinte: alínea a) e b) – doc. de fls. 7; alínea c) a h) – doc. de fls. 11; al. i) – doc. de fls. 13; al. j) a o) – doc. de fls. 15; al. p) e q) – doc. de fls. 18; al. r) – doc. de fls. 20.
No que respeita aos factos provados n.º 6 e 7, o Tribunal formou a sua convicção no documento do Novo Banco de fls. 9, conjugado com o email da Decathlon de fls. 266, que associa a compra naquele valor (48,40€) ao nome da arguida, ao seu email, ao seu cartão Decathlon e à sua morada.
Quanto ao facto provado n.º 8, teve-se em consideração o documento do Novo Banco de fls. 21, conjugado com o email da Adidas de fls. 191 a 194, que, mais uma vez, associa aquela compra com o cartão de crédito do ofendido ao nome, email e contacto da arguida.
Para dar como provado que aquele número de telemóvel, 96…, aquele email, ...@hotmail.com, pertencem à arguida, o Tribunal baseou-se nas declarações da própria arguida que admitiu serem estes os seus contactos, corroboradas pelo e-mail da Google.INC (fls. 134 a 137). Já para dar como provada a morada da arguida, teve-se também em conta as suas próprias declarações, assim como o print extraído da Base de Dados da Segurança Social (fls. 281).
Desta forma, pese embora a arguida não tenha admitido os factos, certo é que a prova testemunhal e documental, quando conjugada com as regras da experiência, é suficiente para o Tribunal formar a convicção no sentido do seu envolvimento nos exatos termos explanados na factualidade provada.
Com efeito, o facto de todas as compras que constam da acusação e que foram feitas com o cartão de crédito do ofendido estarem associadas ao nome, email, contacto telefónico e morada da arguida, conjugado com o facto de a mesma ter acesso à carteira do ofendido, que se encontrava na entrada da casa onde esta trabalhava e, ainda, com o facto de não existir qualquer motivo para que outra pessoa com o mesmo acesso utilizasse os seus contactos para a prejudicar (porquanto a própria ofendida admitiu que não havia animosidade entre as pessoas que trabalhavam na casa do arguido, afirmando, inclusive, que não as conhecia), leva o Tribunal a não ter quaisquer dúvidas de que estes factos foram praticados pela Arguida.
Quanto à prova de que a arguida agiu de forma deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram punidas pela lei penal (facto provado n.º 12), assim como que esta atuou com o intuito concretizado de utilizar o cartão de crédito de FR para efetuar compras na internet, pretendendo assim obter um enriquecimento equivalente ao valor dos pagamentos efetuados (facto provado n.º 10), o Tribunal baseou a sua convicção nas regras da experiência comum e do normal acontecer da vida.
Com efeito, tendo resultado provado que a arguida utilizou aquele cartão para as referidas compras, claro está que o fez com o intuito de o utilizar e, com isso, enriquecer.
Também resultou provado que o ofendido não deu o consentimento para tal utilização com base no depoimento da testemunha JR, que, de forma credível, afirmou que estava com o irmão quando se aperceberam destas compras e que o mesmo ficou espantado e foi ele próprio que sugeriu irem à polícia apresentar queixa, o que fizeram (cfr. auto de denúncia – fls. 1 a 3, onde consta a assinatura do ofendido, confirmada em sede de audiência de julgamento pela referida testemunha).
Quanto ao prejuízo verificado (facto provado n.º 11), o mesmo resulta da soma dos valores dos Elementos Bancários do Novo Banco (fls. 4 a 22, 29 a 52, 60 a 120, 232).
Por último, a inexistência de antecedentes criminais registados da arguida (factualidade dada como provada em 13) foi assim considerada com base no certificado de registo criminal (fls. 280) e, as condições sociais e económicas da arguida (factos provados 14 a 16) com base nas suas próprias declarações.»
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IV- Recurso:
A arguida recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« I- A possibilidade de não transcrição das sentenças condenatórias destina-se, como é conhecido, a evitar a estigmatização de quem sofreu uma condenação por crimes de diminuta gravidade, ou sem gravidade significativa, e as repercussões negativas que a publicidade ou divulgação dessa condenação podem acarretar para a reintegração social do condenado, nomeadamente, no acesso ao emprego.
II- Entende a recorrente que o douto Tribunal a quo efectuou uma interpretação errónea do artigo 13º nº 1 da Lei 37/2005 de 5 de Maio.
III- Conforme ensina a Dr.ª Catarina Veiga: “o conhecimento do passado criminal dos delinquentes funciona, grande parte das vezes, não como base para a determinação de providências dirigidas à sua reintegração social, mas como fundamento para a simples agravação do rigor punitivo, de harmonia com uma prevenção geral negativa ou de intimidação”. – in “Considerações Sobre a Relevância dos Antecedentes Criminais do Arguido no Processo Penal”, 2000, pág. 64 a 68.  
IV- Esta ideologia deverá ser expurgada do processo de verificação dos pressupostos de que depende a não transcrição da sentença para o certificado de registo criminal, sob pena de se estar a ostracizar o individuo ao invés de reintegrá-lo ou manter a sua  integração na sociedade. 
V- Consta do acórdão recorrido, no ponto 2.1.1 , e ponto 2.1.3 “in fine”.
-“Atendendo à factualidade dada como provada, verifica-se que a arguida não possui quaisquer antecedentes criminais registados, encontrando-se inserida do ponto de vista social, familiar e profissional.”
“Ora, conforme explanado supra, a arguida revelou uma postura de impunidade perante o Tribunal, não tendo confessado os factos nem demonstrado arrependimento. No entanto, não tem antecedentes criminais registados, não revelando uma tendência criminosa evidente.”(sublinhado nosso):
VI- A transcrição da sentença para o registo criminal quando requerido para fins de emprego irá estigmatizar a vida profissional da recorrente, fechando a porta do mercado de trabalho a alguém que sofreu uma condenação por crimes sem gravidade muito significativa atenta a factualidade dada como provada, bem como a moldura penal concreta que lhe foi aplicada.
VII- Insiste-se que, neste termos é forçoso colocar a hipótese de não transcrição da sentença para o certificado de registo criminal , ao abrigo  do artigo13º nº 1 da Lei 37/2005 de 5 de Maio, sob pena, da arguida não conseguir de futuro a renovação da licença para o exercício da sua actividade profissional, de segurança privada que exerce actualmente, concluindo-se, como pugnamos, que, caso contrário, fecha-se a porta do mercado de trabalho a alguém que sofreu uma condenação por crimes sem gravidade significativa, contribuindo para a dessocialização da arguida;
VIII- Sendo certo que a medida prevista no Artº 13 nº1 da Lei n.º 37/2015, é de carácter administrativo e precária, dado o teor do seu n.º3 onde se diz que ”o cancelamento previsto no n.º1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso do interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida decisão”, o que quer dizer que o legislador criou um mecanismo de correcção automática da decisão tomada ao abrigo do nº1 do Artº13, em caso de frustração do juízo de prognose efectuado pelo juiz.
IX- Ora, aferidas em concreto as circunstâncias que acompanham o crime, se conclui que delas não decorre a indução do perigo da prática de novos crimes, pelo que a ora recorrente deve beneficiar da não transcrição no registo criminal da condenação em apreço, para os fins a que se referem os nsº5 e 6 do Artº 10 da Lei 37/15 de 05/05.
X- Sob pena de ficarem violadas as normas constitucionais vertidas no nº 2 do artº 32º, nº6 do artº 29º e nº4 do artº 30º da Constituição da Republica  Portuguesa, deve ser reduzida a pena única aplicada á arguida;
XI- Ao aplicar á arguida a pena única pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6€ (seis euros), o que perfaz o total de 1.680€ (mil seiscentos e oitenta euros), o tribunal “Ad Quo”, aplicou uma pena excessiva violando assim o principio da proporcionalidade e adequação constitucionalmente consagrado (artº 18 nº 2 da CRP).
Nestes termos e nos demais de direito, e pelo douto  e sabiamente suprido por V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve a sentença recorrida ser revogada na parte em que nega o pedido de não transcrição da sentença para o certificado de registo criminal  e ordena a comunicação da condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna para os fins que entender por convenientes, e substituído por outro que determine a não transcrição da sentença dos presentes autos no registo criminal da ora recorrente, quando o mesmo for requerido para efeitos de emprego, e que não ordene a comunicação da condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna, devendo ainda a pena de multa aplicada ser reduzida em número de dias e taxa diária,  fazendo-se assim a mais sã e serena Justiça».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
« 1. Vem a arguida recorrer da sentença na parte em que determinou a transcrição da presente condenação para o CRC da arguida, nos termos e para os efeitos do artigo 13º da LICriminal e ordenou a comunicação da condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna, tal como requerido pelo Ministério Público em alegações.
2. Coloca ainda em causa a medida concreta da pena única aplicada (280 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total de €1680,00), classificando-a como “excessiva” e violadora do disposto nos artigos 32º, nº 2, 29º, nº 6 e 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
3.  Não preenchendo a arguida o requisito material (não decurso das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos crimes) no que respeita à não transcrição da condenação aqui sofrida para o seu CRC, a sua pretensão deve ser indeferida,
4.  Tanto mais que a arguida exerce funções como vigilante.
5.  A medida da pena única concreta determinada à arguida pela prática de quatro crimes de burla informática – 280 dias à taxa diária de €6,00 – mostra-se justa, adequada e proporcional à culpa da arguida e à gravidade da sua conduta, não merecendo por isso qualquer reparo.
Pelo exposto, e concordando-se em absoluto com os fundamentos da douta sentença, somos a concluir que a decisão recorrida, no contexto temporal e no circunstancialismo concreto em que foi proferida não merece qualquer censura ou reparo, devendo a mesma ser mantida na integra.».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso  exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
As questões colocada pela recorrente são:
- Redução da pena única;
- Revogação da ordem de transcrição da sentença no registo criminal e de comunicação da mesma ao Ministério da Administração Interna.
Oficiosamente coloca-se a questão da integração jurídica dos factos.
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VI- Fundamentos de direito:
1- Do número de crimes e da redução da pena:
Defende a arguida que a pena única aplicada é excessiva atento o montante que atinge, de €1.680,00 pelo que viola os princípios da proporcionalidade e adequação consagrados no artigo 18º/2, da CRP.
A questão da medida da pena pressupõe, contudo, que se sufrague o enquadramento jurídico conferido aos actos praticados pela arguida pela sentença recorrida, o que não sucede, sendo que a decisão sobre a integração jurídica dos factos é de conhecimento oficioso.
A história deste processo conta-se rapidamente: a arguida, tendo acesso a um cartão de crédito, copiou os códigos respectivos para os usar em compra na internet, o que fez durante cerca de seis meses. Conforme consta do ponto 10 do provado «A arguida atuou com o intuito, aliás concretizado, de utilizar o supra identificado cartão de crédito, titulado por FR para, sem autorização ou conhecimento deste, seu legítimo titular, efetuar compras na internet, designadamente na Uber Eats, Uber Trips, Decathlon e Adidas, mediante a introdução naquelas aplicações e sites dos dados daquele meio de pagamento, designadamente o respetivo número, data de validade e código CVV, assim pretendendo obter, como efetivamente obteve, um enriquecimento equivalente ao valor dos pagamentos efetuados».
Este ponto do provado coincide com o que foi feito constar da acusação.
Do mesmo resulta que se imputou à arguida uma única intenção, determinante da retirada dos códigos do cartão: a de usá-los, como se o cartão de crédito lhe pertencesse, para fazer sucessivas compras usando a internet. E, efectuado o julgamento foi essa a intenção que se provou.
Ora, o Tribunal recorrido alterou a qualificação dos factos, deixando de considerar que eles se subsumiam a um único crime para os configurar como a execução de quatro crimes, mediante o seguinte entendimento: « Importa agora analisar por quantos crimes é que deve ser condenada, sendo que vem apenas acusada da prática de um crime.
Dispõe o artigo 30.º do Código Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Entende-se que o critério legal consagrado neste preceito é o defendido por Eduardo Correia, segundo o qual há concurso efetivo de crimes quando os factos praticados pelo agente são subsumíveis a crimes que protegem bens jurídicos diferentes e exista pluralidade de resoluções criminosas ou, protegendo o mesmo bem jurídico, forem cometidos em ocasiões diferentes, com a ressalva de que, estando em causa bens jurídicos iminentemente pessoais, a pluralidade de destinatários da conduta implica a pluralidade de crimes.
Ora, a arguida preencheu o tipo objetivo de ilícito quatro vezes: quando inseriu o n.º do cartão, data de validade e CVV em cada uma das aplicações (Uber Eats e Uber Trips) e também no site da Decathlon e Adidas, tendo-o o feito em quatro ocasiões diferentes.
No que respeita às aplicações da Uber, entende-se que o crime foi cometido duas vezes e não todas aquelas em que foi feita uma encomenda ou um pedido de transporte, porquanto a arguida associou o cartão do ofendido às suas contas apenas duas vezes, sendo o processo automático nas compras subsequentes feitas na mesma aplicação, pelo que, o dolo criminoso apenas se renovou quando mudou de aplicação e inseriu novamente os dados do ofendido.
Desta forma, a arguida JAJ cometeu quatro crimes de burla informática, crime previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal.».
Só que, como se verá, a simples inserção dos associados código do cartão numa determinada aplicação não preenche o tipo de crime em apreço.
O preenchimento do tipo objectivo correspondente ao artigo 221º/1 do CP, no que ao caso interessa, implica que, com intenção de obter enriquecimento ilícito para si ou para outrem, o agente utilize dados informáticos sem autorização do respectivo titular, por essa via causando prejuízo patrimonial a outra pessoa.
São, portanto, três os passos a percorrer: a utilização de dados informáticos e a realização de determinada operação que cause prejuízo patrimonial a terceiro e enriquecimento ilícito ao agente.
Este crime tutela a utilização correta dos meios informáticos e simultaneamente, o património de outrem.
A lesão do património produz-se, não através da acção típica da burla de afectação directa da vontade da pessoa através de um artifício, engano ou erro consciente, mas pela obtenção de proventos económicos à custa do empobrecimento alheio, através da utilização abusiva de dados de outrem, sem a sua autorização.
Do exposto resulta que o número de vezes que o agente introduz os dados não se reveste de relevância penal, quanto à fixação do número de crimes, porque essa introdução funciona apenas como acto preparatório da prática do crime.
Estando nós em face de um crime de resultado, a prática do crime só se completa pelo uso efectivo dos dados em compras na internet. Não basta o apoderamento do código; essa apropriação não é o objecto da tutela penal levada a efeito pela norma.
Nem tão pouco releva para a contagem do número de crimes o número de vezes que o agente obteve proventos económicos à custa do empobrecimento alheio, porque todos os factos foram praticados em subordinação a uma intenção de vir a praticar crimes (o que por si não constitui a prática de nenhum crime) e a concreta intenção subjacente à prática do primeiro acto delituoso (que, repete-se, abrange já o uso dos dados, a intenção de obter proventos e de causar prejuízo em simultâneo com a execução dos actos materiais correspondentes) “apenas” se reitera em cada utilização, Cada uma dessas intenções é, em tudo, semelhante àquelas outras que presidiram à prática dos actos anteriores que, por si, já constituíam, cada uma,  a prática de um crime.
Estamos face a um tipo de crime doutrinariamente chamado de empreendimento por abranger a prática de múltiplos actos.
Tudo se passa em termos semelhantes àqueles em que ocorre, por exemplo, um crime de tráfico. O agente ao determinar-se a vender estupefaciente determina-se à prática de uma actividade delituosa, venha ela a consubstanciar-se em quantas aquisições ou quantas vendas vierem a ocorrer: o delito consuma-se pelo primeiro acto de tráfico, mas perdura pelo tempo em que o agente actua renovando a sua determinação inicial, renovando-a porque essa determinação só por si não constitui a prática do crime.
A conduta pretendida pela arguida foi o empreendimento de uma certa atividade lucrativa que realizou pela execução de múltiplos actos, a coberto do uso abusivo do código do cartão do ofendido, ainda que todos eles subordinados uma intenção delictiva que se iniciou com a primeira utilização e se renovou em cada uma delas.
Estamos no claro domínio dos chamados crimes prolongados, de trato sucessivo ou exauridos.
A tutela do direito penal refere-se, normalmente, a actos isolados, dando origem a que cada acto configure um crime autónomo (artº 30º/1, do CP).
Mas, situações há em que, por necessidade de acorrer a circunstâncias distintas, se configuraram doutrinariamente construções tendentes a punir num mesmo crime variados actos de execução de um ou de distintos tipos consagrados.
A nossa legislação acolheu algumas destas construções e designadamente, as do crime permanente, no artº 119º/2 - a), do CP); do crime continuado, nos artºs 119º/ 2- b), 30º/2 e 3, e 79º, do CP; do crime habitual, no artº 119º/ 2 b), do CP, bem como do crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, no artº 19º, nº 3, do CPP, o que abrange o crime continuado mas também o designado, doutrinariamente, por crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido.
Quando os crimes envolvem uma repetição de actuação no tempo que se transforma em “actividade” do agente, em que a contagem dos actos se torna impossível ou inútil, pela gravidade que distingue o conjunto da soma dos actos, doutrina e jurisprudência falam em crime prolongado, de trato sucessivo ou exaurido, na medida em que englobam num único crime uma diversidade de condutas (que isoladamente constituiriam crime). No crime exaurido, à medida que os actos se repetem, numa unidade resolutiva (que não é uma unidade de resolução) agrava-se a culpa do agente.
Nas práticas com estas características, a uma pluralidade de acções, compreendidas dentro de um determinado limite temporal (e correspondendo, cada uma delas, a uma renovação da resolução criminosa, ainda que em tudo semelhante à anterior) faz-se corresponder um único crime, que se consuma nos primeiros actos subsumíveis ao tipo mas que é punido pela conduta de maior gravidade penal que o integra ([1]).
«O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos atos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única» ([2]).
São requisitos substantivos positivos do crime exaurido a homogeneidade da conduta do agente, a sua repetição no tempo, a violação do mesmo tipo de crime ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico e, para quem o estenda aos crimes contra as pessoas, a identidade da vítima.
É requisito substantivo negativo a ocorrência de hiato ou hiatos significativos de tempo entre as diversas condutas, de tal forma que coloquem em crise, no âmbito da apreciação dos factos, que a repetição das condutas se deva a uma efectiva tendência ou hábito de vontade criminosa do agente. «Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infrações, nos termos do art.º 30.º, n.º 1, do CP» ([3]).
É requisito processual o facto de o tipo incriminador supor (ou mesmo prever) a reiteração sendo que, «contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respetiva ilicitude» ([4]).
Verificando-se, nos autos, o requisito processual, os requisitos substantivos positivos (todos os actos se subsumem ao mesmo tipo de crime, praticado diversas vezes, de forma homogénea) e não se verificando o requisito substantivo negativo, ou seja, a ocorrência de hiato ou hiatos significativos (na medida em que os factos imputados à arguida neste processo ocorreram, seguidos, durante seis meses), impõe-se a consideração de que estamos face à prática de um único crime.
Ora, o crime em causa é punível com prisão até 3 anos ou com pena de multa (de 10 a 360 dias).
O Tribunal recorrido entendeu que a pena de multa é adequada às necessidades de prevenção especial, atento o facto de a arguida ser primária. Cremos que a decisão se mostra adequada ao princípio enformador do nosso sistema penal de preferência pelas penas não privativas de liberdade, desde que satisfaçam as finalidades da punição (artigos 70º e 40º do CP).
Na escolha da medida da pena há que ter em conta, a par  da aplicação do princípio ne bis in idem, o grau de ilicitude do facto, a intensidade dolosa, as sua consequências, o modo de execução (circunstâncias correlatas ao tipo-de-ilícito), o grau de culpa demonstrada, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a personalidade manifestada no facto, os sentimentos revelados na preparação do crime, os fins ou motivos (circunstâncias atinentes ao tipo-de-culpa) a sua postura intelectual e emotiva perante a actuação, a condição familiar, cultural e sócio-económica, a sensibilidade à pena e a susceptibilidade de por ela ser influenciado (artigo 71º/CP).
Ora, a noção de justiça exige a aplicação de critérios de proporcionalidade entre o tipo de pena e a culpa, a personalidade do agente e as necessidades cautelares por ela indiciadas. Só no respeito por tais critérios se pode afiançar a estabilização das expectativas comunitárias na qualidade da justiça feita pelo sistema judiciário, ou seja, a confiança no sistema penal por parte da comunidade.
No caso, não ocorrem circunstâncias modificativas da pena abstracta, quais sejam a reincidência, caso de atenuação especial ou a dispensa de pena.
A gradação da medida da pena far-se-á, portanto, com reporte unicamente às necessidades de prevenção, agravantes e atenuantes gerais.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, face à necessidade da manutenção da confiança social de confiança na segurança do comércio online, cada vez de uso mais frequente e necessário às exigências hodiernas.
Como agravantes temos que considerar, no capítulo da gravidade da ilicitude, o longo período de tempo durante o qual o crime foi cometido, o montante obtido e o prejuízo causado, estes últimos, no caso, coincidentes.
No que concerne os elementos relativos à culpa ela foi intensa e gravosa, porque a arguida usou as suas prerrogativas profissionais de acesso ao lar do ofendido, conferidas por via de uma contratação tendente à protecção da vítima, precisamente para praticar actos lesivos do seu património.
A relação subjacente à oportunidade da prática do crime visa a protecção do infortúnio alheio e não o seu contrário, sendo que a intrusão da arguida no ambiente mais íntimo da vítima, no seu lar, emerge de uma relação profissional que exige moral ética adequadas ao seu desempenho.
Quanto ao motivo determinante da conduta foi a obtenção de facilidades económicas, cuja montante não ultrapassa a gravidade mediana considerada no tipo.
Quanto à personalidade revelada, convenhamos que deixa preocupação, pois que nem a evidência da prova produzida, que seria expectável para qualquer pessoa de mediana inteligência, refreou a arguida no seu ensejo infirmativo dos factos, revelando ausência de reconhecimento do mal do crime.
Demonstram-se, assim, efectivas necessidades de prevenção especial ainda que algo mitigadas pelas atenuantes, que consistem na a ausência de antecedentes criminais, aos 30 anos de idade, e na adequada inserção familiar e social - sendo que a profissional se mostra afectada pelos factos em apreço, não obstante se constatar que a actuação da arguida terminou em Julho e que apenas depois da queixa, ou seja, depois de 25 de Agosto deixou de trabalhar no local, o que aponta no sentido de ter cessado a actividade de mote próprio.
Tudo ponderado, e considerando a natureza da pena, entende-se ajustada a pena de 210 dias de multa, correspondente a quase dois terços da moldura aplicável. A esta multa, caso não venha a ser paga, corresponde uma pena de prisão por 140 dias, nos termos do artigo 49º/1 do CP.
Atendendo a que a arguida aufere uma remuneração pouco acima do salário mínimo nacional, à qual há que deduzir descontos legais porque já está sujeita a IRS, o que a leva para o patamar económico da sobrevivência, e que tem um filho em idade escolar a cargo cujo sustento não pode ser posto em causa, conferindo ao agregado um rendimento per capita na ordem dos €350,00, fixa-se o montante diário da multa no mínimo legal, de € 5,00.
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2- Da revogação da ordem de transcrição da sentença no registo criminal e de comunicação da mesma ao Ministério da Administração Interna:
A recorrente insurge-se quanto a estas duas determinações contidas na sentença, fundamentado a discordância sobre a última, no corpo da motivação, em que «(…) se o MAI decidir não renovar o cartão profissional da arguida, em virtude de lhe ser comunicada a sentença, conforme requereu o MP, e deferiu o tribunal “a quo”, acarretará para a arguida consequências idênticas àquelas que derivam da (…) transcrição da sentença no seu registo criminal, tendo em conta a actividade de segurança privada que a arguida desempenha, que garante o seu sustento e do seu filho menor».
O Tribunal recorrido fundamentou as decisões nos seguintes termos: «Em sede de alegações finais, veio o Ministério Público requerer que, uma vez que a arguida, neste momento, exerce funções de vigilante, sendo que um dos requisitos para exercer esta profissão é não ter antecedentes criminais, seja comunicada a condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna para os fins que entender por convenientes, nomeadamente aferir das condições pessoais da arguida para manter estas funções.
Por sua vez, veio a defensora da arguida opor-se a tal comunicação e, ainda, pedir que o tribunal ordene a não transcrição da condenação para o certificado de registo criminal, uma vez que a arguida depende deste trabalho e tem um filho para cuidar.
Nos termos do artigo 22.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, é um requisito para se exercer a profissão de vigilante não ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática, entre outros, de crime doloso contra o património.
Já nos termos do artigo 13.°, n.° 1 da Lei n.° 37/2015, de 5 de maio, “os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.° 5 e 6 do artigo 10.°”.
Desta forma, para que seja ordenada a não transcrição da sentença para o certificado de registo criminal, necessário é que estejam preenchidos três requisitos:
(i) a condenação em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade; (ii) a ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; e (iii) que da avaliação das circunstâncias que acompanharam o crime, não se induza o perigo de prática de outros ilícitos.
Quanto ao primeiro e segundo requisitos, estes encontram-se preenchidos. No entanto, o mesmo não se pode dizer do terceiro requisito.
Com efeito, a arguida aproveitou-se da sua circunstância profissional e do facto de ter livre acesso à residência e aos bens do ofendido para praticar o crime, algo que revela uma atitude de leviandade perante funções que merecem uma responsabilidade acrescida. Ademais, importa não esquecer que a mesma não revelou qualquer arrependimento nem sequer confessou os factos, o que demonstra que não está suficientemente alertada para as consequências da sua conduta.
Por último referir ainda que existe uma ligação relevante entre o crime pelo qual a arguida está a ser condenada – que tem como bem jurídico protegido o património de outrem – e a natureza e os fins associados ao exercício da atividade de segurança privada.
Deste modo, entende-se que se deve negar o pedido de não transcrição da sentença para o certificado de registo criminal.
Quanto à comunicação da condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna requerida pelo Ministério Público, entende-se que a mesma é de deferir, porquanto tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que a não renovação do cartão profissional de segurança privado “configura-se como um efeito automático da condenação por um dos crimes do preceito em crise, decorrendo mecanicamente desta” – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 748/2014, proc. n.º 132/14 (Conselheiro José da Cunha Barbosa).
Desta forma, comunique-se a condenação da arguida ao Ministério da Administração Interna para os fins que entender por convenientes, nomeadamente aferir das condições pessoais da arguida para manter estas funções.».
No que respeita à questão da não transcrição o Tribunal recusou o pedido com fundamento, portanto, em duas ordens de fundamentos:
- Porque a arguida se aproveitou da sua circunstância profissional para praticar o crime e se não demonstrou «alertada para as consequências da sua conduta»;
- Porque existe uma ligação relevante entre o crime cometido contra o património e a natureza e os fins associados ao exercício da atividade de segurança privada.
O que está em causa, nesta concreta vertente do registo criminal, é uma especial exigência de ponderação dos fins e dos efeitos da acessibilidade ao seu conteúdo, para fins administrativos e particulares e para fins de exercício de profissão ou actividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade (artigo 10º/6, da Lei 34/2013).
Como se sabe, a sujeição a uma pena revela, por princípio, uma qualquer deficiente aquisição de valores de “dever ser” dominantes, ou seja, tem aptidões socialmente estigmatizantes para o condenado.
O mundo do trabalho, em que, de um modo geral, a oferta excede a procura, reflecte um vertente especialmente sensível a este tipo de efeitos, na medida em que a mácula do certificado do registo criminal é olhada como um risco - risco para a comunidade laboral de ser ver a braços com comportamentos delinquentes e risco de integração do agente nessa mesma comunidade. Evidentemente, o risco será sempre proporcional à natureza do crime e à sua gravidade, tendo por reporte a actividade profissional para que o certificado de registo criminal venha a ser exigido.
Independentemente de se equiparar, ou não, a problemática que aqui se desenvolve à da aplicação das medidas de segurança ([5]) o certo é que se nos afigura que esta é mais uma situação em que se impõe a aplicação dos princípios da proporcionalidade, necessidade e menor intervenção, estruturantes do direito penal e processual penal.
Nesta medida, a avaliação que se faça há-de ser sempre casuística, com reporte para as concretas características de personalidade reveladas pelo condenado, quer na execução do facto quer no comportamento conexo com ele, porque é aí que se espelham as «circunstâncias que acompanharam o crime», a que a norma se refere. Por isso, a par da consideração do passado criminal do condenado, exige-se um juízo de prognose sobre o carácter único e tendencialmente irrepetível da conduta, de modo a que as legítimas expectativas sociais que se jogam na publicidade do certificado de registo criminal se não gorem.
Os factos praticados pela arguida foram-no no desempenho de uma actividade de serviços domiciliários. Por força dessa actividade teve acesso ao interior de uma residência e aos documentos pessoais do ofendido.
Esta não é a única actividade que permite o acesso a este tipo de dados.
O primeiro óbice que a sentença recorrida coloca decorre da postura da arguida em julgamento, da qual resulta um alheamento de consciência quanto ao cometimento do crime e, consequentemente, quanto à ilicitude da sua actuação e quanto à gravidade das consequências da mesma, ou seja, quanto ao “mal do crime”.
Convenhamos que a objecção tem razão de ser.
O juízo de prognose que se exige para efeitos de não transcrição não difere daquele que se exige, por exemplo, para a suspensão da execução de uma pena. Qualquer um deles exige a prova de factos relativos à personalidade do agente que o suportem, sob pena de se aplicar os benefícios em causa de forma automática e indiferenciada.
É facto que a arguida foi condenada numa simples pena de multa, é primária e tinha 30 anos de idade à data dos factos.
Mas também o é que os factos foram cometidos durante seis meses, em cerca de 40 actuações distintas, sendo que a arguida demonstrou uma perfeita indiferença ao bem jurídico de natureza patrimonial revelado, que se mostra susceptível de afectação em inúmeras vertentes.
A arguida podia ter-se remetido ao silêncio, em julgamento, o que se não a favorecia também não a desfavoreceria. Contudo, tomou uma atitude de negação que demonstrou em juízo uma personalidade suficientemente desconforme com os valores tutelados pelo tipo de crime que cometeu..
Não obstante se entender que, atentos os factos relativos ao crime e às suas circunstâncias, a pena de multa se mostra suficiente à sua reintegração social, a sua atitude, posterior aos factos, não permite ancorar já uma valoração positiva sobre a desadequação, ao caso, do cumprimento da regra geral de transcrição do crime no respectivo cadastro penal.
A pressuposta “ostracização do arguido”, como a arguida refere, não resulta ipso facto do averbamento de uma pena de multa, nem será por isso que se “fecha” o mercado de trabalho para a mesma, sendo que é obrigação do Tribunal usar institutos jurídicos de acordo com os respectivos  pressupostos legais.
Coube à arguida a decisão sobre a melhor forma de defender os seus interesses, em juízo, sendo que isso implica, naturalmente, assumir todas as consequências que daí possam resultar.
Tendo em conta a personalidade revelada faltam, no caso, elementos de facto que permitam concluir da inexistência de perigo de prática de novos crimes.
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No que concerne à comunicação da condenação ao MAI, a recorrente confunde perda de licença de exercício da profissão com comunicação. O Tribunal recorrido limitou-se a determinar uma comunicação da condenação, o que não determina, automaticamente, como a recorrente entende, a perda da carteira profissional.
Nos termos do artigo 18º/1 da Lei 34/2013, de 16/5, o «pessoal de vigilância apenas pode exercer as funções previstas para as especialidades a que se encontra habilitado com cartão profissional», sendo que nos termos do artigo 22º/2, do mesmo diploma, o «pessoal de vigilância deve preencher, permanente e cumulativamente, os requisitos previstos nas alíneas a) a d), f) e g) do número anterior». Ora, a alínea d) do nº 1 determina que quem exerça a atividade de segurança privada deve preencher, «permanente e cumulativamente», o requisito de não ter sido «condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime doloso (…) contra o património, contra a vida em sociedade, designadamente o crime de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, (…) ou por qualquer outro crime doloso punível como pena de prisão superior a 3 anos, sem prejuízo da reabilitação judicial»
Significa isto que havendo conhecimento por uma autoridade pública de que a norma está a ser infringida, pois que a exigência não se coloca apenas em termos de renovação da licença, mas antes é uma condição de exercício da actividade – é o que se retira da expressão «permanentemente», não pode infringir o dever de comunicação. Com isto se cumpre e esgota o cumprimento da lei por parte do Tribunal.
Situação diversa é a perda da licença, até porque, por força do acórdão do TC n.º 376/2018, 18/9 foi declarada «a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 22.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, e, quanto à remissão para a mesma feita, das normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo artigo, por violação do n.º 1 do artigo 47.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição».
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo parcial provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida no que concerne à condenação penal, condenando a arguida pela prática de um crime de burla informática e nas telecomunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º/1 do Código Penal, na pena de duzentos e dez dias de multa, à taxa diária de cinco euros, a que correspondem, em alternativa, cento e quarenta dias de prisão.
No demais, mantem-se a sentença recorrida..
Sem custas.
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Lisboa, 22/ 02/2023,
Maria da Graça dos Santos Silva
Maria Leonor Canedo Silveira Botelho
Ana Paula Grandvaux
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[1] Cf. entre o mais, Eduardo Correia, 1968:201 e 202, Ac STJ de 29/11/2012, no proc. 862/11.6TAPFR.S1; de 23/01/2008, no proc. 4830/07-3ª; 
[2] Cf. Ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1709/06-3ª
[3] Cf. Ac. do STJ de 12-07-2006, acima referido.
[4] Cf. Ac. do STJ de 23-01-2008, proc. n.º 4830/07-3ª
[5] Cfr. Figueiredo Dias, em «Direito Penal Português», pág. 612 e ss.