Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2132/19.2T8ALM.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: REIVINDICAÇÃO
NULIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA – SALVO QUANTO AO FUNDAMENTO ATINENTE À INVERSÃO DA POSSE, NOS TERMOS REFERIDOS.
Sumário: I) Arguido que seja, tempestivamente (cfr. artigo 155.º, n.º 4, do CPC), vício atinente à irregularidade da gravação de um depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento e verificada alguma deficiência no registo de gravação, só ocorrerá nulidade, se a irregularidade cometida puder influir no exame ou na decisão da causa (cfr. artigo 195.º, n.º 1, do CPC).
II) A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento (que apresenta, pontualmente, sobreposições de vozes e ruído “de fundo” ou “eco”, que torna, nalguns pontos, mais difícil a perceção do respetivo depoimento), não influindo no exame/decisão da causa, não consubstancia nulidade.
III) Só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 615º do CPC.
IV) Ao recorrente que impugne matéria de facto cabe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal recorrido e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente, aduzindo argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado, evidenciando que o mesmo é injustificado/inconsistente.
V) Limitando-se o recorrente a invocar que deve ser alterada a matéria de facto (nos termos que enuncia), “face à documentação junta ao processo, quer pelo autor, quer pelo réu, e em vista do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, e parte, inquiridas, sumariados na douta sentença a págs. 12 e 13 dela”, não indicando, nem na motivação, nem nas conclusões do recurso, as partes concretas da prova gravada que imporiam tal alteração, há lugar à rejeição imediata do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
VI) No vigente Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
VII) Assim, se a enunciação dos temas da prova se pode efetuar em diversos graus de concretização, já no momento de proceder ao julgamento da matéria de facto, tem o juiz de indicar com precisão “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados” (artigo 607.º, n.º 4, do CPC), reportando-se tal julgamento a factos, pelo que, não deve conter matéria de direito ou conclusiva, designadamente, se esta se reportar ao cerne do objeto da questão a decidir.
VIII) Todavia, a mesma seleção factual pode conter expressões ambivalentes, de cariz fático-jurídico, com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.
IX) As palavras “ocupar”, “explorar”, “exploração”, “residir”, “habitada” e “viver” (por referência à fruição das utilidades de um prédio) constituem expressões de uso vulgar, comum, utilizadas na linguagem corrente, integrando tais conceitos matéria factual, na medida em que traduzem o sentido vulgar de uma situação de facto, acessível ao comum dos cidadãos, com um significado preciso e unívoco, cuja apreensão não depende da interpretação ou aplicação de qualquer preceito normativo, não devendo, por isso, ser excluídas da matéria de facto enunciada na decisão recorrida.
X) Verificando-se um conflito de presunções, a resultante do registo (cfr. artigo 7.º do Código do Registo Predial) - de que é titular a autora (cujo respetivo direito se encontra inscrito no registo desde 02-12-2015) - e a que deriva da posse (cfr. artigo 1268.º, n.º 1, do CC) - de que, desde 1997, beneficia o réu - , o mesmo é resolvido pelo disposto no artigo 1268.º, n.º 1, do CC, prevalecendo a presunção possessória, por mais antiga.
XI) O vencimento obtido pela recorrente na impugnação de determinado ponto de facto ou em determinado fundamento jurídico acessório, que não teve repercussão na decisão da pretensão recursória, não importa em juízo de procedência parcial da apelação, nem releva para efeitos de repartição da responsabilidade pelas custas, as quais incidem totalmente pela recorrente.
(Sumário elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. LIMAGESTE - IMOBILIÁRIA DO LIMA, S.A. identificada nos autos, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra AA e BB, também identificados nos autos, pedindo se declare que é dona e legítima possuidora do prédio rústico que identifica, bem como da benfeitoria – moradia - nele implantada, condenando-se os réus no reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre os ditos prédio rústico e benfeitoria, a entregarem à Autora o prédio e benfeitoria livres de pessoas e coisas e a pagarem à Autora da quantia de 2.000,00 €, bem como na quantia mensal de 50,00 €, por cada mês que decorrer desde a presente data e até efectiva entrega do prédio.
Para tanto alegou a Autora, em síntese, que adquiriu por compra e venda em processo de insolvência 1/10 do terreno e a construção nele implantada. Todavia, o terreno encontra-se ocupado pelos Réus sem qualquer título que os legitime para o efeito.
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2. Citados, apenas o Réu AA contestou defendendo-se por excepção e impugnação e em reconvenção pediu que o Tribunal reconhecesse ao Réu/Reconvinte a titularidade do direito de propriedade em função da sua aquisição por usucapião de 1/10 indiviso do prédio rústico, composto de terreno de pinhal sido no lugar de ......, Lote 116, ….., União de Freguesias de ….. e ….., concelho de ……, à Praceta ….., inscrito na matriz predial sob o artigo … Secção AL, descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, e no qual se encontra implantado um imóvel inscrito na matriz urbana sob o artigo …º da União de Freguesias de .... e ...., tendo tido origem no artigo matricial …º da extinta Freguesia de ….., sito na Rua ….., nº 1, no lugar de ......, ……, a qual corresponde à antiga Rua das ……., nº 1.
Concluiu o Réu pugnando pela improcedência da acção e consequente absolvição dos pedidos e procedência do pedido reconvencional.
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3. A Autora/Reconvinda apresentou réplica.
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4. Proporcionado o exercício de contraditório, em 07-01-2021 foi proferido despacho a admitir o pedido reconvencional, a considerar fixado o valor da causa, a dispensar a realização da audiência prévia e elaborado despacho saneador, tendo sido julgada improcedente exceção de ilegitimidade passiva invocada pelo réu, fixado o objecto do litígio e enunciados os factos admitidos por acordo e os temas da prova, na sequência do que foi apresentada reclamação, que foi apreciada.
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5. Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento.
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6. Após, em 14-06-2021, foi proferida sentença decidindo pela improcedência da pretensão da autora e pela procedência da reconvenção do réu, nos termos do seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se julgar integralmente improcedentes os pedidos formulados pela Autora e procedentes os pedidos reconvencionais deduzidos pelo Réu AA e em consequência:
I. Absolvem-se os Réus AA e BB de todos os pedidos contra eles formulados pela Autora;
II. Condena-se a Autora/Reconvinda a reconhecer o Réu/Reconvinte AA como proprietário sobre 1/10 indiviso do prédio rústico composto de terreno de pinhal sito no lugar de ......, lote 116, que corresponde ao actual lote 1, ….., União de Freguesias de .... e ...., concelho de ….., à Praceta ….., inscrito na matriz predial sob o artigo … Secção AL, e descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de ….., sob o nº …..;
III. Condena-se a Autora/Reconvinda a reconhecer o Réu/Reconvinte AA como proprietário das benfeitorias implantadas sobre o 1/10 a que se refere o ponto II. e que correspondem a uma construção descrita na matriz predial urbana sob o artigo ….º da União de Freguesias de .... e ...., tendo origem no artigo matricial ….º da extinta Freguesia de ….., sito na Rua ……, nº 1, no lugar de ......, …., a qual corresponde à antiga Rua das …….., nº 1.
As custas da acção e do pedido reconvencional ficarão a cargo da Autora/Reconvinda (…)”.
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7. Não se conformando com a referida sentença, dela apela a autora, formulando as seguintes conclusões:
“(...) A - O facto de ser, parcial mas completamente, imperceptível o depoimento, gravado, de uma das testemunhas arroladas pelo réu, configura uma irregularidade, geradora de nulidade, por influir na decisão da causa;
B - É nula a, aliás douta, sentença recorrida, uma vez que dela não constam, especificados, os fundamentos de facto, positivos e negativos, documentados, nela aludidos, que justificam a decisão;
C - Está demonstrada nos autos a propriedade, registada, da autora sobre os prédios dos autos, pelo que goza ela da presunção de que aqueles lhe pertencem, presunção que o réu não ilidiu;
D - Dos factos provados não resulta que, desde há mais de 15 anos, contados de 2019 - data da propositura da acção -, isto é, desde 2004, o réu tenha praticado, sobre os prédios, actos de posse, designadamente, de forma ininterrupta;
E - As expressões ocupavam, constante do facto M), explorar, constante dos factos O) e T), e residir, habitada e viver, constantes do facto U) - todos na redacção da douta sentença -, não consubstanciam quaisquer factos, antes traduzindo meras conclusões;
F - Os meios probatórios constantes do processo, nomeadamente todos os 59 documentos juntos pelo réu - insusceptíveis de ser contrariados por prova testemunhal - impõem decisão diversa sobre vários pontos da matéria de facto;
G - A decisão que deve ser proferida sobre a matéria de facto é a constante do nº. 19 desta motivação de recurso;
H - O réu alegou ter comprado os prédios dos autos, compra que a douta sentença teve por não demonstrada;
I - Não tendo praticado actos de posse sobre os prédios dos autos, o réu não podia ser mais que mero detentor, ou possuidor precário, pelo que não podia adquirir para si por usucapião;
J - Como simples detentor, o réu só poderia adquirir os prédios dos autos se estivesse invertido o título da posse, o que não ocorreu;
K - Estando imperceptível a gravação do depoimento de uma das tetemunhas (irregularidade geradora de nulidade) e não especificando os fundamentos de facto, documentados, que justificam a decisão, é nula a sentença, por força do disposto nos arts. 195º.-1 e 615º.-1 b) CPC, como tal devendo ser declarada, com as legais consequências;
mas, sem prescindir, julgando a acção totalmente improcedente, e procedente a reconvenção, violou a douta sentença recorrida o disposto nos arts. 7º. CRP, 640º.-1 e 662º.-1 CPC, e 875º., 1253º., 1265º., 1287º., 1290º. e 1296º. CC, pelo que é ilegal, como tal devendo ser declarada, e substituída por outra que decrete a procedência dos pedidos formulados pela autora e a improcedência dos efectuados pelo réu, com o que tudo se fará JUSTIÇA (…)”.
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8. O réu apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso da autora.
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9. O recurso foi liminarmente admitido por despacho de 07-10-2021.
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10. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos apelantes, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC) - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso -, as questões a decidir são as de saber:
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I) Questão prévia:
A) Se se verifica nulidade, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, por impercetibilidade da gravação do depoimento da testemunha CC?
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II) Nulidades da sentença:
B) Se a sentença é nula por não estarem especificados os fundamentos de facto que justificam a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC?
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III) Impugnação da matéria de facto:
C) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
D) Se deve ser alterada a matéria de facto nos seguintes termos:
a) A alínea E) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “E) O réu, esporadicamente, comeu, dormiu, recebeu família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na … Conservatória do Registo Predial de …. sob o número ….., inscrito na matriz sob o artigo … secção AL”; a alínea L) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “L) O constante da alínea E) ocorreu, com intervalos, desde o início do mês de Junho de 1997, desconhecendo-se até quando, mas nunca para além de 2011”; a alínea P) deve passar a facto não provado?
b) As alíneas M), O), T) e U) devem passar para factos não provados?
c) A alínea Q) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “Q) Após Junho de 1997, o réu terá celebrado um contrato de fornecimento de água”?
d) A alínea R) deve passar a facto não provado?
e) Os factos dados como não provados n.ºs. 1) e 3) devem passar a factos provados?
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II) Mérito do recurso:
E) Se a decisão recorrida deverá ser revogada, por violar o disposto nos arts. 7º. CRP, 1253.º, 1265.º, 1287.º, 1290.º e 1296.º do CC?
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3. Enquadramento de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
A) Do documento junto a folhas 05 verso a 07 dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais consta:
“Compra e Venda
No dia vinte e sete de Novembro de dois mil e quinze, na Rua ….., da cidade de ….., instalações do cartório da notária DD, perante a mesma, compareceram como outorgantes:
Primeiro:
EE, (…), que outorga na qualidade de administrador da insolvência nomeado para os autos de liquidação (CIRE) que corre seus termos pela Comarca de …. – Instância Local – Secção Cível- J…, aí registado sob o número um cinco cinco nove barra um zero ponto ….., em que é insolvente, FF, (…), qualidade e poderes que verifiquei serem os suficientes para a prática deste acto em face de uma certidão judicial, que arquivo.
Segundo:
A) GG, (…); e
B) HH (…),
que outorgam na qualidade, respectivamente, de presidente e administrador do conselho de administração e em representação da sociedade comercial anónima com a denominação “Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.”, (,,,), qualidade e poderes que verifiquei serem os suficientes para a prática deste ato em face da certidão permanente (…).
(…)
Declarou o primeiro outorgante, na focada qualidade em que intervém:
Que, pela presente escritura, pelo preço de cinco mil e cem euros, que declara ter já recebido, vende, à representada dos segundos outorgantes, “Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.”, o seguinte:
Um – Um décimo indiviso do prédio rústico, terreno composto de pinhal, situado no Lugar de ......, lote cento e dezasseis, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número …./…., parte indivisa essa aí registada a favor do identificado insolvente pela apresentação ……, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL, com o valor patrimonial correspondente à dita parte indivisa de €2,62, contiguo ao qual não possui qualquer outro de igual natureza, sobre o qual, pela apresentação ……, está registada uma servidão (sem demarcação) – a favor do lote de terreno designado pelo número … compreendido no prédio número ….. a folhas trinta e nove do B-catorze (lote que corresponde à quarta parte do mesmo prédio) – imposta no prédio ….., a folhas cento e setenta e oito do B- trinta e seis (destacado do nº. …..). Encargo: passagem através do mesmo prédio. Causa: divisão e demarcação do prédio nº. ….., pela apresentação ….., está registada uma servidão (sem demarcação) – a favor do terreno em compropriedade com a área de três hectares compreendido no prédio número ….. a folhas trinta e nove do B-catorze e a favor dos prédios nºs ……, respetivamente a folhas cento e setenta e oito a folhas dois verso do B-trinta e seis, imposta no prédio nº …… a folhas dois verso do B-trinta e sete. Encargo: passagem através do prédio nº …... Causa: divisão e demarcação do prédio nº ….., pela apresentação ……, está registada a declaração de insolvência do mencionado FF.
Declaram os segundos outorgantes, na focada qualidade em que intervêm:
Que, para a sua representada, aceitam este contrato nos termos exarados e que a sua representada destina o prédio adquirido a revenda. (…)”.
B) Da certidão emitida pela ... Conservatória do Registo Predial de ..... referente ao prédio rústico, descrito sob o nº ….., da freguesia de ......, sito na ….., Lote 116, ….., consta sob a AP. …… de 2015/12/02; causa: Compra em processo de insolvência; quota adquirida: 1/10; sujeito activo: Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.; sujeito passivo: FF (conforme documento junto a folhas 07 verso a 10 verso e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
C) O prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ……, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL, integra-se numa Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI), denominada Parcela 116, para a qual a Câmara Municipal de ….. autorizou loteamento, tendo emitido o alvará nº .../2016.
D) Nos termos do alvará a que alude a alínea C), foi autorizada a constituição de 10 lotes, num total de 10 fogos, sendo que o lote 1, para além de uso habitacional, inclui também o uso de comércio/serviços (actividades económicas).
E) Os réus comem, dormem, recebem família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ……, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.
F) Da certidão emitida pela ... Conservatória do Registo Predial de ..... encontra-se descrito sob o nº ….. o prédio rústico, composto de pinhal, com a área de 5.040m2 , lote nº 116, sito na …., e da qual consta sob a Ap ….., referente a Aquisição de 1/10 a favor de FF por compra a II e mulher JJ, tudo conforme documento junto a folhas 85 verso a 87 verso e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
G) Em 06 de Agosto de 1997, o Réu AA e o irmão LL constituíram uma sociedade comercial chamada “Restaurante Sétimo….., Lda.” com sede na Rua ….., Lt 1, ….., ….., como objecto de exploração de bar, snack-bar e restaurante, conforme documento junto a folhas 108 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
H) No dia 31 de Março de 2007 o Réu contraiu matrimónio com a Ré, o qual veio a ser dissolvido por decisão transitada em julgado no dia 01 de Fevereiro de 2018.
I) Do documento junto a folhas 169 a 170 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta:
“Compra e Venda
No dia onze de Julho de mil novecentos e noventa e cinco, no … Cartório Notarial de ……., perante mim, Licenciado MM, compareceram como outorgantes:
Primeiro: II (…) e esposa D. JJ (…).
Segundo: FF (…).
Declararam os primeiros outorgantes:
Que, pela presente escritura, livre de quaisquer ónus ou limitações, vendem ao segundo outorgante, pelo preço de setecentos e vinte cinco mil escudos, que declaram já ter recebido, um/dez avos indivisos do prédio rustico com a área de três mil novecentos e quarenta metros quadrados, sito na ….., freguesia de ......, concelho de ......., o qual está:
a) descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o numero ….. do livro B – Trinta e Sete;
b) registada a mencionada fracção a favor dele pela inscrição numero …… do livro G-Cento e Trinta e Três;
c) inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo … da secção AL (…).
Declarou o segundo outorgante:
Que, aceita a presente venda nos termos exarados.
Assim o outorgaram.
(…)”.
J) Aquando da aquisição a que alude a alínea A) já estava construída, embora ainda, sobre 1/10 do identificado prédio rústico, uma moradia com dois pisos, destinada a habitação, comércio e serviços, com logradouro, garagem e três lugares de estacionamento, que já foi utilizada para os referidos fins.
L) O constante da alínea E) ocorre desde o início do mês de Junho de 1997.
M) Quando a Autora pretendeu entrar na moradia verificou que os réus ocupavam todo 1/10 do prédio, construção e terreno.
N) A construção nos 1/10 do prédio rústico foi construída por II, no início da década de 1980, e a qual se mantém até aos dias de hoje, utilizando-a como habitação própria, nela residindo, e ainda como estabelecimento comercial, mais concretamente como restaurante chamado “T……..”, o qual explorava directamente através da confecção e venda de refeições e bebidas, o que fazia à vista de todos e sem qualquer oposição.
O) A construção edificada nos 1/10 do prédio foi também vendida verbalmente a FF e desde então e até Junho de 1997, FF passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário.
P) Desde o início do mês de Junho de 1997 que o Réu se comporta como dono dos 1/10 do prédio e da referida construção, tendo procedido à realização de pinturas interiores e exteriores, renovação total das casas de banho, modernização da cozinha, colocação do sistema de exaustão e ares condicionados e reparação de todo o telhado da construção, tendo-se instalado na construção em meados de Junho de 1997, à vista de todos e sem oposição.
Q) Após a data a que alude a alínea P) o Réu celebrou contratos de fornecimento de água.
R) A partir do dia 16 de Agosto de 1999, o irmão mais novo do Réu AA, LL passou também a residir na construção a partir desta altura, comendo, dormindo, recebendo família e amigos e recebendo correspondência.
S) Na sequência do constante da alínea G), o Réu AA e irmão instalaram na construção existentes no 1/10 do prédio um restaurante, conhecido como “Sétimo…..”, no qual confeccionavam e vendiam refeições e bebidas e, por volta de meados do ano de 2001, mudaram de ramo de actividade, passando o estabelecimento de restaurante para bar.
T) Posteriormente a exploração deste estabelecimento passou a ser feita pelos irmãos do Réu AA, LL e NN, e posteriormente no ano de 2004 e até ao ano de 2010 o Réu AA e irmão decidiram arrendar o espaço comercial sito no rés-do-chão da construção, recebendo a respectiva renda / retribuição.
U) E quando o Réu foi residir para ….., a construção continuou a ser habitada, no 1º andar, pelos irmãos do Réu, LL e NN e após o divórcio o Réu passou novamente a viver na construção.
V) O prédio a que alude a alínea A) corresponde actualmente à totalidade do lote 1, do loteamento nº …/99, com a área de 322 m2, a confrontar do norte com Particular, do sul com Praceta ….., do nascente com lote 2 e do poente com Rua ……, sito no lugar de ......, ……, União de Freguesias de .... e ...., inscrito na matriz sob o artigo … - secção AL, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o nº …….
X) O Réu nunca pagou qualquer renda quer à Autora, quer a terceiro.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1 - A Autora, por ela e antecessores, designadamente por FF, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs de 1/10 do prédio a que alude a alínea A) utilizando-o sem restrições, ocupando-o, cultivando o terreno, nele edificando uma moradia, pagando impostos e contribuições, tudo à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros.
2 - Na data da escritura de compra e venda a que alude a alínea A) foram entregues pelo Senhor Administrador da Insolvência, e recebidas pela autora, as chaves da identificada moradia.
3 - Sobre essa moradia a Autora e seus antecessores, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs do 1º. andar da moradia para comer, dormir, receber família e amigos em tempo de férias, e o rés-do-chão como espaço de lazer e discoteca, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros;
4 - Em Dezembro de 2015, quando a Autora pretendeu entrar na moradia, verificou que o canhão da fechadura estava mudado e desde então que os Réus vêm prometendo entregar o prédio.
5 - FF vendeu verbalmente ao Réu AA 1/10 do prédio rústico, que corresponde ao lote 01, bem como a construção edificada nesses 1/10 pelo valor de esc:66.000.000$00 (sessenta e seis milhões de escudos), sendo que a escritura de compra e venda não foi celebrada porque a construção não estava legalizada e não possuía licença de utilização, tendo sido acordado entre ambos que logo que tudo estivesse legalizado seria celebrada a respectiva escritura de compra e venda.
6 - A Autora tem perfeita consciência da divergência entre o valor por ela pago e o valor real (de mercado) dos 1/10 do prédio a que aludem os autos.
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4. Enquadramento jurídico:
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I) Questão prévia:
A) Se se verifica nulidade, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, por impercetibilidade da gravação do depoimento da testemunha CC?
Preliminarmente, a recorrente suscita uma questão atinente à regularidade da gravação efetuada na audiência de discussão e julgamento relativamente a uma das testemunhas inquiridas.
A questão vem colocada nos seguintes termos:
“2. Decorre ainda prazo (que termina a 3.09.2021), nos presentes autos, para interposição e motivação do recurso (deste recurso), no qual se pretendia fosse reapreciada a matéria de facto.
Para o efeito de elaborar a motivação, a autora/recorrente solicitou em juízo cópia da gravação dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, a qual lhe foi entregue em 21.07.2021 - referência citius ……..
3. Na audição do CD que lhe foi entregue, verificou a autora estar parcial, mas quase completamente, imperceptível, o registo do depoimento de uma das testemunhas arroladas pelo réu, CC.
A imperceptibilidade do, aliás extensíssimo (quase uma hora), depoimento da testemunha impede que o teor dele possa ser aferido, quer pela autora quer, sobretudo, pelos Senhores Juízes Desembargadores da Relação de Lisboa.
4. Tal circunstância configura irregularidade, com patente e manifesta influência na decisão da causa e que, assim, produz nulidade - art. 195º.-1, in fine, CPC -, que se deixa expressamente invocada - art. 196º. CPC.”.
E na conclusão A do presente recurso, termina a recorrente dizendo que, o “facto de ser, parcial mas completamente, imperceptível o depoimento, gravado, de uma das testemunhas arroladas pelo réu, configura uma irregularidade, geradora de nulidade, por influir na decisão da causa;”.
O 1.º réu contra-alegou arguindo, por um lado, estar precludido o direito de arguição do vício (dizendo, em suma, que “o prazo de arguição da deficiência conta-se a partir do termo do prazo de disponibilização da gravação imposto ao tribunal”, pelo que, “dispondo o tribunal de dois dias para disponibilizar a gravação da audiência final, o prazo para a arguição da deficiência da gravação termina doze dias após a prática do ato”, sendo que, no caso, a audiência teve lugar no dia 28-04-2021, pelo que, a gravação ficou disponível no dia 30-04-2021, concluindo que, “qualquer das partes poderia ter suscitado a irregularidade do ato até à segunda-feira dia 10 de maio de 2021. A partir desta data, considera-se a irregularidade sanada”) e, por outro lado, que “o depoimento ferido de irregularidade não é essencial à decisão de mérito”.
Apreciemos:
“O CPC de 1961, na sua última versão, previa a hipótese de ser requerida a gravação da prova nas ações cuja decisão fosse suscetível de recurso ordinário, havendo conexão entre a gravação da prova e a possibilidade de impugnação da decisão proferida em 1.ª instância sobre a matéria de facto (era o que decorria, genericamente, do disposto nos arts. 522.º-B, 522.º-C, 685.º-B e 712.º do CPC de 1961).
(…) Com o atual regime, em resultado de uma opção do legislador, a gravação tem um outro significado e uma maior amplitude: abarca a gravação da audiência final e não apenas da prova oralmente produzida; e reporta-se a todas as audiências finais, ou seja, audiências de acções, de incidentes e de procedimentos cautelares. Ademais, ocorre por imposição legal, sem necessidade de requerimento e independentemente da questão do recurso” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 189).
Com efeito, o vigente artigo 155.º do CPC dispõe que a audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada (n.º 1), sendo efetuada em sistema sonoro - “sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor” (n.º 2) – devendo ser “disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato” (n.º 3).
Nos termos do artigo 155.º, n.º 4, do CPC, “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”.
Conforme se concretizou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2016 (Pº 104/09.4-B.E1, rel. CANELAS BRÁS): “A nulidade decorrente de uma deficiente gravação da prova produzida na audiência de julgamento poderá ser arguida no prazo de dez dias a contar da sua efectiva disponibilização pela Secretaria do Tribunal”.
O mencionado artigo 155.º, n.º 4, do CPC veio “clarificar um aspeto que vinha sendo controverso na prática forense, estabelece o prazo de 10 dias para a arguição de qualquer falta ou deficiência da gravação, contado a partir do momento em que a gravação é disponibilizada. Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 190).
Mas, arguido que seja, tempestivamente (cfr. artigo 155.º, n.º 4, do CPC), o mencionado vício atinente à irregularidade da gravação de um depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento e verificada alguma deficiência no registo de gravação, isso não significa que a nulidade opere em todas as situações, o que só sucederá, de harmonia com o previsto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, se a irregularidade cometida puder influir no exame ou na decisão da causa.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 190) cabe ao juiz, confrontado que seja com a falta ou deficiência da gravação, “fixar a respetiva consequência, o que tanto pode implicar a repetição integral da audiência (se nada foi gravado ou se toda a gravação apresenta deficiências), como uma repetição parcial (limitada aos atos não gravados ou cuja gravação é deficiente). No limite, se puder entender-se que o ato não gravado ou deficientemente gravado não influi no exame e decisão da causa (art. 195.º, n.º 1, in fine), nada se repetirá (concede-se que assim possa ser se a falha da gravação for limitada às alegações orais dos mandatários – art. 640.º, n.º 3, al. e) ). A impugnação do despacho proferido neste contexto, que não é de mero expediente nem proferido no uso legal de um poder discricionário, submete-se ao disposto no n.º 2 do art. 630.º”.
Vejamos algumas concretizações, a nível jurisprudencial, em torno da aplicação do regime jurídico em questão (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2021 (Pº 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1, rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO): “A previsão do n.º 3 do art. 155.º do CPC segundo a qual a gravação da audiência final deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram. O prazo de dez dias, a contar da referida disponibilização, previsto no n.º 4 do artigo 155.º do CPC, faz recair sobre as partes um dever de diligência em averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância. Na hipótese de a secretaria não disponibilizar a gravação no prazo de dois dias a contar do acto, a parte tem o ónus de, através de requerimento dirigido ao juiz, suscitar a questão; caso se confirme o incumprimento do prazo do art. 155.º, n.º 3 do CPC, o prazo do n.º 4 do mesmo artigo só começará a contar-se a partir do momento em que a secretaria passe a ter a gravação ao dispor das partes”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-05-2021 (Pº 15321/19.0T8SNT.L1-7, rel. CARLOS OLIVEIRA): “A deficiência da gravação, que acarrete, no todo ou em parte, a impercetibilidade ou inaudibilidade dos depoimentos objeto de registo, constitui irregularidade que se traduz em nulidade secundária, a arguir mediante reclamação da parte interessada no seu reconhecimento, no prazo de 10 dias a contar do fim do prazo de 2 dias contados do termo da realização do ato judicial objeto da gravação (Art. 155.º n.º 3 e n.º 4 do C.P.C.), sanando-se o vício se não for respeitado esse prazo perentório. Não se encontrando a gravação em condições de permitir a devida apreciação dos depoimentos relevantes para a apreciação da impugnação da matéria de facto, não poderá o Tribunal da Relação apreciar fundadamente esse fundamento do recurso”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-04-2021 (Pº 35548/15.3T8LSB-A.L1-6, rel. MANUEL AGUIAR PEREIRA): “A deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final só provoca a nulidade do acto se dela resultar a impossibilidade de se conhecer o teor do depoimento e se essa impossibilidade for susceptível de influir no exame e decisão da causa, nos termos do artigo 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil; A deficiente gravação sonora de cerca de dois minutos do depoimento de uma testemunha prestado em audiência final durante cerca de quarenta e nove minutos não é susceptível de influir no exame e decisão da causa em primeira instância por parte do Juiz de Direito que presidiu à audiência, quando através da expressão da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto se indicia que foi tomada em consideração na decisão a totalidade do depoimento prestado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17-12-2020 (Pº 122900/17.2YIPRT-C.E1, rel. FRANCISCO XAVIER): “I. A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma, a qual deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do respectivo acto. II. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes. III. A lei impõe à parte um especial dever de diligência na verificação do conteúdo da cópia da gravação que foi disponibilizada, por forma a poder arguir em tempo eventuais irregularidades e permitir a sua correcção antes de eventual recurso da sentença, obviando-se também os inconvenientes de posterior anulação de decisões”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-10-2019 (Pº 2243/18.1T8STR.E1, rel. ANA MARGARIDA LEITE): “I - Decorrido o prazo fixado no artigo 155.º, n.º 4, do CPC, para a arguição da falta ou deficiência da gravação da audiência final sem que o vício tenha sido arguido, fica precludida a possibilidade de arguição posterior; II - Impondo a lei às partes o ónus de verificar a qualidade da gravação das provas, fixando o prazo para a arguição das deficiências detetadas, de forma a poderem ser supridas em momento prévio à interposição de recurso, não pode o vício da deficiência da gravação ser oficiosamente conhecido pela Relação; III - Tendo a Relação constatado que a gravação do depoimento prestado por determinada testemunha enferma de deficiências que o tornam impercetível e tratando-se de elemento probatório essencial para a apreciação da impugnação da decisão de facto, não dispõe a Relação de todos os elementos probatórios de que dispôs a 1.ª instância, pelo que se encontra impossibilitada de proceder à reapreciação da prova produzida, o que impede o conhecimento da impugnação da decisão de facto;”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-05-2019 (Pº 57308/18.0YIPRT.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES): “I – A omissão ou deficiência da gravação configura uma nulidade processual, porquanto está em causa a omissão duma formalidade prescrita por lei (art. 195º do CPC), que a parte interessada terá de arguir autonomamente, sem prejuízo da iniciativa oficiosa do juiz durante a audiência, ao qual compete tomar as providências para que a lei se cumpra (art. 199º, n.º 2 do CPC). II – A gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias após a realização do ato alvo de gravação e as partes estão sujeitas ao prazo de 10 dias para invocarem a falta ou deficiência da gravação, contado da disponibilização desta. III – Decorrido o prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, sem que seja arguido o vício da sua falta ou deficiência, o mesmo fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso (30 ou 40 dias) e apenas nas próprias alegações de recurso. IV - Nessas situações, a deficiência da gravação da prova, traduzida na impercetibilidade de múltiplos excertos da inquirição da testemunha cujo depoimento é considerado decisivo para alterar a decisão proferida (pelo tribunal a quo) sobre a matéria de facto, compromete a possibilidade da Relação proceder à reapreciação dessa decisão”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-02-2019 (Pº 17579/15.5T8PRT.G1, rel. PAULO REIS): “I - Sendo a lei expressa ao estabelecer o início da contagem do prazo para a arguição da deficiência da gravação dos meios de prova no momento em que é disponibilizada, deve entender-se que tal não envolve a entrega do suporte digital contendo cópia dessa gravação mas a mera colocação do referido registo, pela secretaria judicial, à disposição das partes, a qual deve ocorrer no prazo de 2 dias contados de cada um dos atos sujeitos à gravação; II - O artigo 155.º, n.º 4, do CPC impõe às partes o ónus de invocar o vício da falta ou deficiência da gravação no prazo perentório nele previsto; III - Não o fazendo, o vício fica sanado pelo decurso do prazo, não podendo ser conhecido oficiosamente pela Relação; IV - A deficiência da gravação dos depoimentos produzidos em sede de audiência final é impeditiva da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto sempre que torne inviável a ponderação de tais meios de prova e estes se revelem essenciais para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da matéria de facto, devendo a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou o Tribunal de primeira instância;”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02-10-2018 (Pº 159/16.5T8BJA-A.E1, rel. JOÃO NUNES): “A deficiência/ininteligibilidade da gravação da prova constitui nulidade processual, que tem de ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada (n.º 4 do artigo 155.º do Código de Processo Civil); Essa disponibilização às partes deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do acto/gravação; Contudo, a disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, consistindo na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma.”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-09-2018 (Pº 7839/15.0TBLSB-A.C1, rel. FALCÃO DE MAGALHÃES): “Dispõe o 155º, nº 3 do NCPC: “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respectivo ato.” E o nº 4 do mesmo artigo estabelece: “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.”. A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efetiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes. Foi intenção do legislador que o procedimento tendente à obtenção de cópia da gravação pelas partes seja o mais simples possível, sem necessidade de realização de qualquer notificação pela secretaria e tendo em vista garantir que algum problema que se verifique com a gravação seja resolvido, com rapidez, no tribunal de primeira instância. Afronta a razão de ser da lei o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-04-2018 (Pº 1004/16.7T8STR.E1, rel. ALBERTINA PEDROSO): “É entendimento que cremos pacífico após a entrada em vigor do actual artigo 155.º, n.º 4, do CPC, que decorrido o prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, sem que seja arguido o vício da sua falta ou deficiência, o mesmo fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017 (Pº 229/17.2T8VVD.G1, rel. JOSÉ AMARAL): “1) A disponibilização pela Secretaria Judicial, nos termos do artº 155º, nº 3, do CPC, da gravação da audiência final, não precisa de ser requerida. É oficiosa. Consiste, não na entrega, remessa, sequer notificação ou qualquer outra acção equiparada, mas tão só na colocação ao alcance das partes e para uso destas do suporte destinado às mesmas a fim de o procurarem, examinarem e utilizarem. 2) Caso a Secretaria não cumpra pontualmente tal obrigação, a parte que lhe solicite a gravação e, ao pedi-la, seja confrontada com a sua indisponibilidade, pode reclamar para o respectivo juiz com fundamento na omissão, nos termos dos nºs 5 e 6, do artº 157º. 3) Se, porém, aquela se dever à por si constatada falta ou deficiência do registo até aí não notados nem supridos pelo tribunal, tal vício deve ser invocado, no prazo de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é (ou devia ser) disponibilizada – nº 4, do artº 155º. 4) Não sendo ele arguido, fica, nos termos gerais do artº 139º, nº 3, precludido o direito de, depois, invocar a correspondente irregularidade. 5) O acto relevante para início da contagem do prazo da Secretaria não é a audiência considerada na sua totalidade. Não é o termo desta que marca o seu início. Tal acto, quando aquela se desdobre e prolongue por múltiplas sessões em outras tantas datas, é o da realização de cada uma delas. É, pois, em relação a cada sessão diária, que a parte deve contabilizar o seu prazo para recolher e verificar a gravação e reclamar pela sua deficiência ou falta”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-10-2017 (Pº 1382/14.2TBLLE-A.E1, rel. SEQUINHO DOS SANTOS):
“A disponibilização, às partes, da gravação da audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares, nos termos do artigo 155.º, n.º 3, do CPC, consiste na simples colocação, pela secretaria judicial, da referida gravação à disposição das partes para que estas possam obter cópia da mesma. Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes”; e
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-10-2014 (Pº 1926/10.9TASTB.E1, rel. JOÃO GOMES DE SOUSA, ainda que respeitante a recurso penal): “Se mais do que deficiente gravação, o depoimento transcrito revela deficiência de comunicação do arguido, que deixa de se fazer entender, por ter passado a falar mais baixo ou ter dirigido a voz para longe da fonte de captação de som, não existe qualquer nulidade ou irregularidade”.
Antes de prosseguirmos na apreciação da questão, cumpre sublinhar que no despacho de admissão liminar do recurso – proferido em 07-10-2021 – o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade arguida nos seguintes termos:
“Em sede de alegações de recurso veio a recorrente suscitar a irregularidade decorrente do facto do depoimento da testemunha CC se encontrar quase completamente imperceptível, o que no entender da recorrente é passível de gerar nulidade.
O recorrido pronunciou-se em sede de contra-alegações.
Apreciando e decidindo.
Conforme resulta da consulta via citius a recorrente solicitou no dia 25 de Junho de 2021 cópia das gravações das audiências de julgamento, solicitando ainda a entrega das mesmas ao administrador da autora, HH.
As cópias das gravações foram entregues no dia 21 de Julho de 2021.
A data a partir da qual se conta o prazo para a falta ou deficiência da gravação é o dia em que a gravação foi disponibilizada à parte.
Tudo visto, e tendo as gravações sido disponibilizadas à recorrente no dia 21 de Julho de 2021 a invocação efectuada pela recorrente é tempestiva, o que se decide.
Todavia, o Tribunal procedeu à audição do depoimento da testemunha e, salvo uma ou outra palavra que era menos perceptível, conseguiu ouvir o depoimento (colocou quer o som do computador, quer o som da gravação em média studio no máximo).
Mais se refira que o depoimento desta testemunha (quanto à realização de obras e permanência no imóvel) não foi o único que levou o Tribunal ficar convicto que o Réu realizou obras e que tem vindo ao longo dos anos a utilizar o imóvel), ou seja, foi ponderado este depoimento, mas não foi o único em que assentou a convicção do Tribunal.
Face ao exposto, e por entender que o depoimento da testemunha no essencial e na sua esmagadora maioria é perceptível, entendo não existir qualquer acto gerador de irregularidade que comprometa o destino dos autos.
Notifique.”.
Considerada tempestiva a arguição do vício pela recorrente, o Tribunal recorrido entendeu que não existiu ato gerador de irregularidade.
Deste despacho não consta ter sido interposto recurso.
De todo o modo, considerando que, porventura (ponderada alguma jurisprudência), se poderá entender que, ainda assim, porque indeferida e porque arguida nas alegações de recurso, o objeto do recurso permanece com a questão suscitada (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-03-2015, Pº 1277/12.4TBFLG.P1, rel. FERNANDO SAMÕES), conhecer-se-á da arguida irregularidade.
Ora, cumpre evidenciar que, ouvido por este Tribunal da Relação, na sua integralidade o aludido depoimento da testemunha CC (assim como, aliás, os demais depoimentos prestados em audiência de julgamento), tal como o mesmo foi fornecido ao Mandatário da autora, considerando que o CD de gravação foi devolvido a estes autos (em conjunto com a alegação da autora) o mesmo é perfeitamente audível e percetível, muito embora a gravação apresente, pontualmente, algumas sobreposições de vozes e algum ruído “de fundo” ou “eco”, que torna, nalguns pontos, mais difícil a perceção do respetivo depoimento, dificuldade que, contudo, é suprida pela subsequente intervenção dos demais intervenientes processuais, que permitem descortinar os pontos em que a audição de tal depoimento se torna menos audível (primeiro, por parte da Juíza do Tribunal recorrido, desde logo, no interrogatório preliminar e, também, na parte final do depoimento da testemunha, bem como, por parte dos Advogados de ambas as partes, a respeito de cada uma das intervenções/questões e esclarecimentos efetuados) e, bem assim, pela audição repetida (que se efetuou) em torno dos pontos menos claros.
O acabado de referir permite concluir e evidenciar que a deficiente qualidade da gravação sonora do depoimento da testemunha CC não é suscetível de influir no exame e na decisão da causa por parte da Juíza de Direito que, em 1.ª instância, presidiu à audiência de discussão e julgamento, tendo na fundamentação da convicção, expressa na decisão recorrida sido, aliás, tomada especifica posição sobre o depoimento prestado, conclusão que, em face do despacho de 07-10-2021, resulta, igualmente, reforçada.
Mas, por outro lado, cumpre evidenciar que a recorrente, que impugna matéria de facto, em ponto algum da respetiva alegação faz alusão ao teor do aludido depoimento ou a algum segmento do mesmo, que determinasse a sua relevância e pertinência para a procedência da mencionada impugnação.
É que ao recorrente que impugne matéria de facto “cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 770, nota 4).
Tal não sucede, no que concerne ao depoimento de CC, que, não é, por qualquer modo, colocado em crise em sede de impugnação de facto.
Com efeito, a respeito da impugnação de facto, a recorrente fundamenta-a, quase de forma exclusiva, na invocação de que o Tribunal recorrido não considerou os documentos juntos aos autos. De forma “quase exclusiva”, pois, em boa verdade, a recorrente invoca, a determinado ponto da alegação – na alínea D, na página 11 – que a decisão de facto deve ser alterada, nos termos que propõe, “face à documentação junta ao processo, quer pelo autor, quer pelo réu, e em vista do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, e parte, inquiridas, sumariados na douta sentença a págs. 12 e 13 dela”.
A generalidade e imprecisão da impugnação não relevam neste ponto e, determinam, aliás, em face do que dispõe o artigo 640.º do CPC (como se precisará infra), a rejeição de uma tal impugnação (no que aos aludidos depoimentos respeita), tudo confluindo na conclusão de que a irregularidade encontrada no registo da gravação do depoimento da testemunha em questão, não influiu, de algum modo, na apreciação ou na decisão da causa.
Mostra-se, pois, inconsequente e irrelevante a arguida irregularidade, atinente à gravação do depoimento em questão, que não produz o almejado efeito invalidatório, nem determina a nulidade/.
Assim, de acordo com o exposto, conclui-se que não se verifica a nulidade arguida.
*
II) Nulidades da sentença:
B) Se a sentença é nula por não estarem especificados os fundamentos de facto que justificam a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC?
Alega no recurso a recorrente, nomeadamente, que:
“7. Na fundamentação da decisão, diz-se na sentença, a págs. 12 dela, ter a convicção de natureza positiva [quanto à restante factualidade, isto é, a das alíneas J), L), N, O), P), Q), R), S), T), U) V) e X)], resultado da conjugação da prova testemunhal e documental.
Mas, como se vê do seguimento da motivação, nenhum documento é analisado, sequer mencionado, como fundamentador da decisão.
O mesmo se diga quanto aos factos de natureza negativa, relativamente aos quais a douta sentença refere - a págs. 15 dela - terem sido "apreciados e ponderados os documentos juntos aos autos", mas sem que tais 'apreciação' e 'ponderação', se traduzam em algo de concreto, constituindo um total nada vezes nada.
8. Não constam, pois, especificados, os fundamentos de facto, documentados, aludidos na sentença, que justificam a decisão, o que é causa de nulidade desta, que se deixa invocada - art. 615º.-1 b) CPC”.
E conclui a apelante, na conclusão B da alegação de recurso, que: “É nula a, aliás douta, sentença recorrida, uma vez que dela não constam, especificados, os fundamentos de facto, positivos e negativos, documentados, nela aludidos, que justificam a decisão”.
Vem, pois, arguido que a sentença recorrida padece da nulidade ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Vejamos:
Estabelece o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Conforme referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, 2020, pp. 61-62) “a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara e coerente e suficiente.
a) Antes de mais, a fundamentação há de ser expressa. Apesar de, em confronto com o artigo 268.º, n.º 3, que trata da fundamentação dos atos administrativos, nada se dizer no artigo 205.º quanto ao carácter expresso da fundamentação, uma opção que deixe ao destinatário a descoberta das razões da decisão não cumpre a exigência constitucional de fundamentação, justamente porque “fundamentar é pôr em comunicação” e “O próprio ato de pôr em comunicação não pode deixar de ser comunicado” (ANTÓNIO CORTÊS, A fundamentação, pág. 301).
b) A fundamentação deve, além disso, ser clara e coerente. Os motivos apresentados pelo órgão decisor não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos, que tornam o raciocínio que lhe está subjacente em algo imprestável para a inteligibilidade da decisão. Como refere VIEIRA DE ANDRADE [O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 2003 (reimp.), pág. 234], uma declaração incongruente “não é uma fundamentação, porque não pode ser um discurso justificativo, faltando-lhe a racionalidade que é uma condição necessária de toda a decisão pública de autoridade num Estado de Direito”.
c) Por fim, a fundamentação há de ser suficiente. Naturalmente, como foi sublinhado nos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 pelo deputado Miguel Macedo, a Constituição não pretende impor “fundamentações densas, particularmente de origem doutrinária”, mas antes uma “fundamentação adequada, obviamente, à importância e circunstância da decisão judicial em causa” (Diário da Assembleia da República, de 26.7.1997, pág. 17 (…)). Mas, para que a fundamentação seja suficiente, dela devem constar os motivos, de facto e de direito, que justificam o sentido da decisão, de modo a que o destinatário a possa compreender e, sobretudo, apreciá-la criticamente. Na medida em que toda a questão jurídica é simultaneamente uma questão de facto e uma questão de direito, a fundamentação da decisão há de refletir essa bidimensionalidade (…)”.
Mas, a fundamentação deverá também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
A lei processual concretiza no artigo 154.º do CPC o comando constitucional.
Prescreve o n.º 1 do artigo 154.º do CPC que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
O dever de fundamentação apenas é dispensado no caso das decisões de mero expediente.
“Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso. Naturalmente que tal dependerá da complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas. Noutros casos a simplicidade da fundamentação é expressamente anunciada por preceitos legais (art. 385.º, n.º 3, a respeito dos alimentos provisórios, ou o art. 664.º, n.º 5, a respeito de certos recursos de apelação). (…).
Não pode medir-se a fundamentação pelo seu “volume” ou “extensão”, antes pelo seu conteúdo substancial.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 188).
Por sua vez e na linha da previsão constitucional, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, será nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Sobre a nulidade por falta de fundamentação, “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).
Na verdade, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 615º do CPC. A fundamentação deficiente, medíocre, incompleta ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-04-1975, in BMJ 246.º, p. 131; de 08-10-2020, Pº 5243/18.8T8LSB.L1.S1, rel. NUNO PINTO OLIVEIRA; e de 21-09-2021, Pº 1480/18.3T8LSB-A.L1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-03-1980, in BMJ 300.º, p. 438 e de 08-03-2018, Pº 908/17.4T8FNC-B.L1-8, relatora TERESA PRAZERES PAIS; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08-07-1982, in BMJ 319.º, p. 343 e de 14-03-2016, Processo 171/15.1T8AVR.P1, relatora PAULA MARIA ROBERTO; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, P.º 983/11.5TBPBL.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES e de 26-10-2018, Pº 121/07.0T8FIG.C1, rel. FELIZARDO PAIVA; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012, P.º 5313/11.3YYLSB-A.E1, rel. PAULO AMARAL; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020, Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA).
Dispõe o n.º 2 do artigo 154.º do CPC que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não se tenha oposto ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se referiu, a propósito desta norma, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020 (Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): “No artigo 154, nº 2, do C.P.C., o legislador afastou a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência a razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pelas partes, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma. Assim, para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente”, sendo também “preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Para além desta previsão normativa, tem-se entendido que a forma de fundamentação – por remissão – é admissível (neste sentido, o Ac. Tribunal Constitucional n.º 147/2000, Proc. nº 56/00, rel. ARTUR MAURÍCIO; o Ac. Tribunal Constitucional n.º 396/2003, de 30-07-2003, proferido no Processo n.º 485/03, rel. PAULO MOTA PINTO, publicado no D.R., II Série, de 04-02-2004; o Ac. Relação de Lisboa 13-10-2004, proferido no Proc. 5558/04-3; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-09-2017, Processo 18/16.1T9MAC-B.G1, rel. ALDA CASIMIRO), não determinando, por si, nulidade por falta de fundamentação, “desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal da fundamentação: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2019, Processo 3689/19.3 T8LRS-F.L1-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO).
De facto, conforme evidencia Rui Pinto (“Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC”, in Julgar Online, maio de 2020, p. 11, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf): “(…) o artigo 154.º impõe ao tribunal o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, a qual fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição da parte. Poderá, porém, consistir numa adesão a outra decisão, em clara economia processual.
Exemplos: é “nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido” (RG 21-5-2015/Proc. 1/08.0TJVNF-EK.G1 (ANA CRISTINA DUARTE)); porém, nada “obsta a que a fundamentação se faça por adesão à fundamentação jurídica de anterior acórdão de tribunal superior” (STA 20-5-2015/Proc. 050/15 (PEDRO DELGADO)) (…)”.
Concretizando a diferença entre falta de fundamentação – geradora da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC – e insuficiente fundamentação, referiu-se – considerações que se subscrevem – no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2020 (Pº 35708/19.8YIPRT.L1-2, rel. INÊS MOURA) que: “A falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e que devem constar da sentença, como expressamente previsto no art.º 607.º n.º 3 do CPC é cominada com a nulidade da sentença no art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC.
Questão diferente da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito na sentença, prevista no n.º 3 do art.º 607.º do CPC, é a falta de fundamentação ou de motivação da decisão de facto, prevista no n.º 4 do mesmo artigo.
Quando está em causa uma deficiente ou insuficiente fundamentação da decisão de facto, na explicação dada pelo tribunal para a formação da sua convicção na decisão que proferiu ao considerar provados e não provados os factos controvertidos em razão dos meios de prova produzidos, tal não determina a nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b), apenas podendo haver lugar à remessa do processo ao tribunal de 1ª instância, para que fundamente algum facto essencial para o julgamento que não esteja devidamente fundamentado, conforme prevê expressamente o art.º 662.º n.º 2 al. d) do CPC ao dar a possibilidade à Relação de, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.””.
De todo o modo, conforme sublinham Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
No caso, a respeito da motivação da decisão de facto operada, verifica-se que a decisão recorrida de 14-06-2021 enuncia o seguinte:
“(…) A matéria das alíneas A) a I) mostrava-se assente por acordo das partes e documentos e assim transitou para a presente sentença.
Na restante factualidade, a convicção de natureza positiva é produto da análise crítica e conjugada da prova testemunhal e documental que foi produzida em audiência de julgamento.
Quanto aos factos vertidos na alínea J) quer o legal representante da Autora, quer as testemunhas inquiridas no essencial referiram que a construção implantada no terreno já havia sido construída pelo anterior proprietário II.
No que tange à matéria fáctica descrita nas alíneas L), N), O), P), Q), R), S), T), U), V) e X) dos factos provados o Tribunal estribou a sua convicção nos depoimentos prestados pelas testemunhas LL (que apesar de ser irmão do Réu AA descreveu a data em que o irmão passou a tomar conta do 1/10 avos do terreno, bem como a residir e a explorar a construção nele implantada e na qual a testemunha residiu e explorou juntamente com o Réu); CC (amigo do Réu que viu as obras realizadas pelo Réu na construção, tendo a testemunha ainda referido que quando vinha a ….. dormia na dita construção); OO (que viveu em união de facto com o irmão do Réu, LL, na construção implantada no terreno, e afirmou ainda que trabalhou no bar/discoteca que, à data era explorado pelo LL, e esclareceu ainda que posteriormente esse bar/discoteca foi arrendado, ao que se recorda, pelo menos por duas vezes); PP (que passou algumas passagens de ano da construção e que tem conhecimento que o Réu procedeu à realização de grandes obras nessa construção, que inicialmente o Réu explorou o rés-de-chão como restaurante e posteriormente como bar/discoteca); QQ e RR (vizinhos do Réu AA conhecem o terreno desde que este era propriedade de II, esclarecendo que depois passou para FF e depois, por volta do ano de 1997/1998 para o Réu AA que se mantém como dono até aos dias de hoje); SS (vizinho do Réu, que conheceu II como dono do terreno e da construção nele implantada, tendo ainda a testemunha esclarecido que era presidente da ….. até 2016, após o que deixou de ser com a constituição organizada da AUGI, e que foi o Réu AA que, até cerca de 2014, pagou as contribuições para o processo de legalização e depois quem passou a pagar foi a sociedade Limageste. Esta testemunha esclareceu que FF comprou a II e depois passou para o Réu AA, isto de acordo com o que FF lhe disse. Desde então o terreno e construção têm sido explorados e utilizados pelo Réu AA e respectiva família e quando questionado se viu alguns editais afixados disse que nada viu); e a testemunha TT (que conheceu o terreno e espaço como sendo propriedade de FF que vendeu ao Réu, pelo menos foi o que lhe foi transmitido porque também esteve interessado na compra); e ainda na testemunha UU que, de modo geral, corroborou que o Réu AA reside e explorou o terreno e construção como dono).
Todas estas testemunhas demonstraram um conhecimento directo e consistente que desde cerca de 1997 o Réu passou a residir e explorar quer o terreno, quer a construção, tendo realizado obras e comportando-se sempre como dono e proprietário, e não como arrendatário, o que foi confirmado por FF a algumas das testemunhas inquiridas em audiência.
No que diz respeito aos factos provados descritos na alínea M) o Tribunal estribou-se nas declarações de parte do legal representante da Autora que confirmou que quando a Autora tentou aceder ao 1/10 do terreno e construção nele implantada constatou que o Réu se encontra a utilizá-los.
Ao considerar como não provados os factos descritos nos pontos 1 e 3 o Tribunal estribou-se na prova produzida e da qual não resultou que FF após 1997 continuou a utilizar sem restrições e como se fosse dono e único proprietário de 1/10 do terreno e da construção nele implantada o que continuou com a Autora, pois tais actos foram desde aquela data praticados pelo Réu AA e não por FF ou pela Autora.
Foram ainda considerados como não provados os factos espelhados nos pontos 2 e 4 uma vez que não foi feita prova segura que foi entregue a chave à Autora e que a Autora tentou entrar no terreno em Dezembro de 2015, uma vez que a testemunha EE não sabia se as chaves foram entregues à Autora e nunca se deslocou ao terreno, sabendo apenas o que lhe foi transmitido por um solicitador que contratou.
Não se provou ainda, com a segurança exigida, que o 1/10 do terreno e construção nele implantada foram à data vendidos por uma quantia desconforme com o real valor. Na verdade, e segundo o depoimento do administrador de insolvência e declarações de parte do legal representante da Autora, aquele esteve muito tempo a tentar vender os 1/10 do terreno, à data de 2015 o mercado estava em crise e ainda havia quantias a pagar à comissão organizada e respectivas infra-estruturas.
Por último, e quanto aos factos constantes do ponto 6 o Tribunal não ficou convicto que FF tivesse vendido o 1/10 do terreno e respectiva construção nele implantada pelo valor de esc: 66.000.000$00 do modo e pela forma como foi descrito pelas testemunhas e que a escritura de compra e venda não se tenha realizado pelos motivos apontados pelas testemunhas.
Esta convicção de natureza negativa é resultado da prova pouco credível oferecida.
Foram ainda apreciados e ponderados os documentos juntos aos autos.”.
Ora, apreciada a decisão recorrida, verifica-se que nesta se especificou que a convicção do Tribunal assentou, no que respeita à alínea J) dos factos provados, desde logo, nas declarações do legal representante da autora e nos depoimentos das testemunhas inquiridas.
Por seu turno, a respeito das alíneas L), N), O), P), Q), R), S), T), U), V) e X) dos factos provados, o tribunal reporta, especificamente, que “estribou a sua convicção nos depoimentos prestados pelas testemunhas LL (…); CC (…); OO (…); PP (…); QQ e RR (…); SS (…); e a testemunha TT (…); e ainda na testemunha UU que, de modo geral, corroborou que o Réu AA reside e explorou o terreno e construção como dono)”.
Para além do mais, certo é que, preliminarmente, a decisão recorrida dá conta de que, na “(…) restante factualidade [para além da aludida nas alíneas A) a I) dos factos provados], a convicção de natureza positiva é produto da análise crítica e conjugada da prova testemunhal e documental que foi produzida em audiência de julgamento”, mas tal menção, se bem que se possa considerar não concretizada no que à prova documental respeita, evidencia a presença de especificação de fundamentos de facto em que assentou a decisão recorrida.
Quanto aos factos não provados, o Tribunal recorrido faz alusão, para além das especificações que efetua, a que, na sua apreciação e ponderação foram considerados “os documentos juntos aos autos”, enunciando-se a fonte probatória em que assentou a convicção do Tribunal para concluir pela ausência de prova de tais factos.
Vê-se, pois, quer num, quer noutro caso, que a decisão não se mostra desprovida de fundamentos de facto.
E, como tal, resta concluir pela improcedência da arguição de nulidade da decisão recorrida, fundada no artº 615º, nº 1, al. b), do CPC.
Já questão diversa é a discordância com os fundamentos sucintamente enunciados, mas aí a divergência não se resolve no plano da nulidade da sentença, antes, no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade.
Improcede, pois, a nulidade arguida.
*
III) Impugnação da matéria de facto:
Conclui a recorrente, na alegação de recurso – conclusões F e G – que os meios de prova constantes do processo, “nomeadamente todos os 59 documentos juntos pelo réu – insusceptíveis de ser contrariados por prova testemunhal – impõem decisão diversa sobre vários pontos da matéria de facto”, nos termos que pugna da forma que mencionada no ponto 19 da alegação.
Com a alegação produzida, a recorrente/apelante pretende colocar em crise a factualidade apurada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Em feliz síntese, expressou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017 (Pº 1426/15.0T8BGC-A.G1, rel. ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA): “I- Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; II- Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. III- Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
*
C) Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
Contesta a recorrente a decisão recorrida dizendo que os meios probatórios constantes do processo”, nomeadamente os documentos juntos pelo réu impõem decisão diversa sobre vários pontos da matéria de facto (cfr. conclusão F da alegação de recurso).
Conforme já se fez alusão, no ponto 15 da motivação da alegação, a recorrente alegou o seguinte: “Dar-se-á conta, a final, daquela que - face à documentação junta ao processo, quer pelo autor, quer pelo réu, e em vista do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, e parte, inquiridas, sumariados na douta sentença a págs. 12 e 13 dela - deve ser a decisão a proferir sobre as questões de facto impugnadas (bem como sobre toda a matéria de facto), em cumprimento do determinado no art. 640º.-1 c) CPC, e guiando-nos pelas letras e números referidos na douta sentença a quo”.
Sucede que, em nenhum ponto da alegação ou das conclusões, a recorrente concretiza os termos dos depoimentos que, em seu entender, inculcariam diversa conclusão.
Vejamos se existe motivo para a rejeição liminar do recurso:
Como resulta do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto.
De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, Relator JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Como se viu, com vista ao cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto acima identificados, questionando-se a conformidade do julgamento de facto realizado pelo Tribunal recorrido, impor-se-ia à recorrente que identificasse os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que – ainda por remissão para um dos pontos da motivação - a apelante fez.
Sucede que, todavia, a recorrente efetuando diversas considerações sobre a formação da convicção acerca da matéria de facto selecionada pelo Tribunal a quo, sobre os termos em que este Tribunal formou a sua convicção, certo é que, não identifica quaisquer segmentos ou partes da prova gravada (ainda que procedendo à transcrição dos excertos respectivos), nos termos que lhe são impostos pelo nº 2 do referido art.º 640º do CPC, apenas assinalando a genérica alusão a que, os meios de prova (entre os quais indica os depoimentos de testemunhas e de parte) em seu entender, determinariam uma diferente apreciação do Tribunal.
Ora, conforme se evidenciou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2015 (Pº 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA): “Não cumpre o ónus de impugnação, referido no art. 640.º do NCPC, o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz” (no mesmo sentido, vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, Pº 3782/18.0T8VCT.G1, rel. MANUEL CAPELO).
Na medida em que a recorrente não deu cumprimento ao preceito legal acima mencionado, quanto à matéria de facto considerada na sentença recorrida como provada e não provada, não cuidando de indicar – quer na motivação, quer nas conclusões do recurso - as partes concretas da prova gravada que impunham a alteração da decisão, há lugar à rejeição imediata do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
*
D) Se deve ser alterada a matéria de facto nos seguintes termos:
De todo o modo, expurgada a apreciação do recurso da consideração dos meios de prova objeto de gravação, certo é que, subsiste a questão invocada pela apelante no sentido de a prova documental junta aos autos, em seu entender, determinar as alterações de facto que identificou.
Alegou a recorrente a este respeito, nomeadamente, o seguinte:
“(…) D) OS FACTOS PROVADOS E A IMPOSIÇÃO DE DECISÃO DIVERSA
9. Não é de crer que a Mma. Juiz a quo se tenha esquecido de analisar os documentos; mais provável, como tentaremos demonstrar adiante, será o facto de os documentos ajudarem à - imporem, mesmo - prova do contrário do que assente ficou.
Decisivos, se bem cremos e com o maior respeito, para a decisão de procedência da reconvenção, estão, nomeadamente os factos:
- E) Os réus comem, dormem, recebem família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ……, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social;
- L) O constante da alínea E) ocorre desde o início do mês de Junho de 1997; e
- P) Desde o início do mês de Junho de 1997 que o réu se comporta como dono dos 1/10 do prédio e da referida construção, tendo procedido à realização de pinturas interiores e exteriores, renovação total das casas de banho, modernização da cozinha, colocação do sistema de exaustão e ares condicionados e reparação de todo o telhado da construção, tendo-se instalado na construção em meados de Junho de 1997, à vista de todos e sem oposição.
10. Com base nestes factos, considerou a douta sentença recorrida, a págs. 19 dela, que o réu praticou, por ele e antecessores, nos 1/10 do terreno e na construção nele implantada, actos de posse, há mais de 15 anos, contados desde a data da propositura da acção (isto é, desde Março/2004), de forma pública, pacífica, sem oposição e de modo ininterrupto.
Mas, dos factos provados, acima transcritos, ou de quaisquer outros aliás, não resulta, não pode resultar, que o réu tenha praticado os mencionados actos "de modo ininterrupto".
Dos elementos dos autos, não resulta nenhuma 'ininterrupção', mas o oposto.
11. O réu juntou aos autos, com a contestação, 54 (cinquenta e quatro) documentos, quase todos impugnados (cfr. art. 3º. da réplica), para tentar a prova, que lhe competia, da ocupação dos prédios.
Juntou:
i) uma caderneta predial, obtida em 17.05.2019, titulada pelo réu - doc. 1;
ii) onze documentos, relativos a planta topográfica, projecto de legalização, traçado de canalização de água, traçado de esgotos, memória descritiva e pedidos de aplicação de cores, com datas entre 1988 e 1992, em nome de II - docs. 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12;
iii) uma inscrição de propriedade a favor de FF, obtida em 2003 - doc. 13;
iv) outra caderneta predial, titulada pelo réu, obtida em 10.02.2005 - doc. 14;
v) um documento de cobrança de IMI, sem nome, emitido em 2005, com referência a imposto de 2003 - doc. 15;
vi) dois documentos, datados de 2009, emitidos pelos Serviços de Água e Saneamento do Município de …, em nome do réu, que se traduzem, cronologicamente, em uma factura, emitida em 14.08.2009, no valor de 24,16 €, em um aviso de corte de fornecimento, de 17.09.2009, com o valor de 24,16 €, por não pagamento da mencionada factura, e em um recibo de cobrança da mesma factura, de 1.10.2009, no valor, não de 24,16 €, mas de 24,64 € (por ter um complemento de 0,48 €) - docs. 16 e 17;
vii) um documento, datado de 2011, emitido também pelos Serviços de Água e Saneamento do Município de ….., em nome do réu, que se traduz, cronologicamente, em um aviso de pagamento de água, emitido em 16.03.2011, e em uma reclamação do réu acerca daquele - doc. 18;
viii) cinco documentos (realmente, só quatro), cinco postais remetidos por correio, um, datado de 29.08.2000, dirigido ao réu para o ‘Restaurante 7º. ……”, outro, datado de Dezembro de 2003, dirigido ao ‘Restaurante 7º. ……’, outro, datado de 30 de Setembro (estando imperceptível o ano), dirigido ao réu, a LL e a VV, para o ‘Bar 7º. …..’, outro, dirigido a LL, para o ‘Bar 7º. ……..’, não se percebendo se com data de 24.01.2002, se com data de 20.01.2001 (parecendo tratar-se de um só documento), e outro, o doc. 27, que é uma repetição do doc. 20 - docs. 19, 20, 21, 26 e 27;
ix) cinco documentos, três notificações judiciais, datadas de 18.06.2001, 4.02.2002 e 24.05.2002, um aviso, de 21.02.2002, e um recibo, de 7.07.2005, todos dirigidos ao réu para o local dos autos - docs. 22, 23, 24, 25 e 28;
x) a matrícula da sociedade ‘Restaurante 7º. ……’, de 6.08.1997, dissolvida em 10.04.2006 - doc. 29;
xi) três documentos, traduzindo um agradecimento da Junta de Freguesia de ……, relativo a um convite para jantar no ‘Restaurante 7º. ……’, de 15.02.1998, idem da Junta de Freguesia do ……, de 17.02.1998, e publicidade ao carnaval no ‘Restaurante 7º. ……’, para os dias 21, 22, 23 e 24.02.1998 - docs. 30, 31 e 32;
xii) uma comunicação sobre afixação selvagem de publicidade, dirigida, em 10.03.1998, por JCDecaux a ‘Restaurante 7º. ……’ - doc. 33;
xiii) um requerimento, datado de 10.02.2000, dirigido pelo ‘Restaurante 7º. ……’ à 3ª. repartição de finanças de ……, e certidão respectiva, emitida em 14.02.2000 - doc. 34;
xiv) a matrícula do contrato de sociedade de ‘Z….., Lda’, de 31.07.2001, sem registos a partir de 2007 - doc. 35;
xv) um contrato de arrendamento de estabelecimento comercial, de 25.07.2001, em que o réu se intitula ‘proprietário de um estabelecimento’ instalado no prédio dos autos - doc. 36;
xvi) doze documentos, datados de 23.01.2002, 14.10.2004, 6.12.2007, 13.03.2009, 27.04.2009, 15.05.2009, 13.04.2010, 29.11.2010, 10.01.2011 e 13.02.2012, todos relativos a requerimentos, facturas-recibo, licenças, memória descritiva e justificativa, seguro e aditamento a alvará, e todos em nome de ‘Z…..’ - docs. 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47 e 48;
xvii) o assento de casamento do réu, de 31.03.2007 e a acta da conferência do divórcio dele, de 1.02.2018 - docs. 49 e 54; e
xviii) quatro documentos, traduzindo um contrato de cessão de exploração, de 12.10.2004, um contrato de locação de estabelecimento, de 18.10.2006, outro contrato de locação de estabelecimento, de 30.09.2007, bem como a revogação deste último, de 8.02.2008, e outro contrato de locação de estabelecimento, de 14.09.2009, em todos se apresentando ‘Z……’ como dona e possuidora do estabelecimento designado por “Sétimo ….”, nos dois primeiros, e por “Sétimo A…..”, no terceiro - docs. 50, 51, 52 e 53.
12. De todos estes 54 documentos, que a douta sentença se absteve de apreciar, e vistos os 15 anos, aludidos no nº. 10, precedente, isto é, desde 2004, só aparece o nome do réu em 3, os três mencionados nas alíneas vi) e vii) do nº. anterior - mas que valem por um -, de 2009 e de 2011, relativos a uma só factura e aviso de corte de água, quanto à mesma instalação - cfr. docs. 16, 17 e 18.
Bem, em rigor, o nome do réu também aparece nas cadernetas prediais que requereu, no assento de casamento e acta de divórcio, e como sócio de sociedades mas, é claro, o aparecimento é inócuo, nestes casos, quer por não conferir quaisquer direitos a titularidade fiscal, quer por estar em causa o réu e não sociedades de que seja (ou tenha sido) sócio e/ou gerente.
Concluindo, vemos, pois, que a douta sentença, para dar por assentes os factos E), L) e P) atrás transcritos, relativamente ao período de 15 anos anterior à propositura da acção, só poderia - mesmo não o tendo dito - ter-se fundado nos 3 (três) documentos mencionados datados, percute-se por não ser excessivo, de 2009 e 2011.
É suficiente, para prova de uma ocupação ininterrupta, desde 2004 até 2019? (…)
13. Mas talvez nem seja o que vem de dizer-se o mais impressivo.
Impressivos - e perturbadores - são alguns outros factos:
i) O ter-se feito prova da ocupação ininterrupta, dos prédios dos autos, desde 2004 e até 2019, sem constar do processo um único documento (em nome seja de quem for), daqueles antes mencionados, posterior ao ano de 2011, isto é - desculpe-se-nos o ênfase -, relativo aos 8 (oito) anos anteriores [e, mesmo que considerássemos todos os documentos juntos com a contestação, nenhum deles é posterior a 2012 (com excepção, é claro, das cadernetas prediais e da acta de divórcio, recentemente obtidos)];
ii) Não haver nos autos senão um documento em nome do réu (o 17, com a contestação), quanto a todo aquele período de 15 anos, de consumo de água, quando se fez prova de que “os réus comem, dormem, recebem família e amigos” nos prédios dos autos - cfr. facto provado E) - e de que lá funcionava um estabelecimento de restaurante e bar - cfr. facto provado S);
iii) Dar-se por assente que, após Junho de 1997, "o réu celebrou contratos de fornecimento de água" quando, relativamente aos anos, relevantes para a sentença (os 15 anos anteriores à propositura da acção), nenhum contrato consta do processo;
iv) Não haver nos autos nenhum documento que comprove ter-se gasto electricidade no local dos autos, em todo aquele longo período de 15 anos (ou em qualquer outro, de resto), quando se fez prova, perdoe-se-nos a repetição, de que “os réus comem, dormem, recebem família e amigos” nos prédios dos autos - cfr. facto provado E) - e de que nestes funcionava um estabelecimento de restaurante e bar - cfr. facto provado S);
v) O de se ter feito prova do facto P) sem que haja nos autos um único documento comprovativo da realização de despesas com pinturas, com a renovação de casas de banho, com a modernização da cozinha, com o sistema de exaustão, com os “ares condicionados”, com a reparação do telhado;
vi) O de se ter demonstrado que quando o Réu foi residir para ….. a construção continuou a ser habitada, no 1º. andar, pelos irmãos, sem que conste de parte alguma a data em que o facto terá ocorrido, sabendo-se, como se sabe, da relevância dos tempos para o direito;
vii) O de o réu não ter impugnado, não se ter oposto, não ter reagido, à inclusão do 1/10 do terreno nos bens que integravam a massa falida do FF, apesar de ter sido feita a legal publicidade - cfr. factos provados A) e B) e doc. 2, com a réplica;
viii) O de o réu, ele próprio, e a sociedade 'Z……' (apesar da irrelevância, no caso desta), não se intitularem, nos contratos dos docs. 36, 50, 51, 52 e 53 com a contestação, donos dos prédios dos autos, mas apenas donos do estabelecimento neles instalado; e
ix) O de se ter dado por assente que "(...) posteriormente, no ano de 2004 e até ao ano de 2010, o Réu AA e irmão decidiram arrendar o espaço comercial sito no rés-do-chão da construção (...)", sem que do processo conste qualquer contrato de arrendamento celebrado entre aquelas datas, mas apenas um, outorgado em 25.07.2011 e, mesmo este, sem intervenção do irmão do réu - cfr. doc. 36 com a contestação.
14. 54 documentos juntou o réu com a contestação. E juntou mais 5, com o douto requerimento de 25.06.2020, referência citius ……, estes últimos absolutamente inócuos, face aos termos da douta sentença.
Percebe-se facilmente que o réu, que anexou, por mero exemplo e entre outros, 11 (onze) documentos em nome de II (docs. 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 com a contestação) - que, por absolutamente inócuos, nenhum relevo têm para o caso que nos ocupa -, não deixaria de juntar também documentos que, a existirem, traduzissem custos contabilísticos numa actividade comercial (a das identificadas sociedades), e traduzissem, sobretudo, ocupação...
Mas não juntou.
Referimo-nos, concretamente, a documentos relacionados com o que retro se refere, por exemplo, nas alíneas ii), iv) e v), isto é, com consumos de água e de electricidade e com despesas com pinturas, com a renovação de casas de banho, com a modernização da cozinha, com o sistema de exaustão, com os “ares condicionados”, com a reparação do telhado, o que tudo isto, sim, poderia traduzir ocupação, desde que relativos a todo o período de tempo pela sentença considerado relevante.
É que, mesmo que o réu os não tivesse - mas existissem... -, com toda a facilidade poderia solicitá-los às entidades competentes, quer às empresas fornecedoras de água e electricidade, quer às empresas prestadoras dos serviços discriminados.
Só pode concluir-se pois que, não existindo tais documentos (ou, ao menos, não havendo prova - que ao réu competia - da existência deles), não foram prestados ao réu quaisquer dos serviços referidos, nos tempos da douta sentença.
15. De realçar que a expressão 'ocupavam', constante do facto M), e as menções, no 'facto U)', de que "a construção continuou a ser habitada, no 1º.  andar (...)" e de que "após o divórcio o réu passou novamente a viver na construção", não traduzem quaisquer factos, antes constituindo meras conclusões, que a sentença não informa de que factos foram extraídas.
Impõe-se, pois, face ao exposto, e mesmo sem o auxílio das gravações dos depoimentos, seja modificada a decisão de facto.
Dar-se-á conta, a final, daquela que - face à documentação junta ao processo, quer pelo autor, quer pelo réu, e em vista do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, e parte, inquiridas, sumariados na douta sentença a págs. 12 e 13 dela - deve ser a decisão a proferir sobre as questões de facto impugnadas (bem como sobre toda a matéria de facto), em cumprimento do determinado no art. 640º.-1 c) CPC, e guiando-nos pelas letras e números referidos na douta sentença a quo.
E) A FANTASIOSA POSIÇÃO DO RÉU
16. Viu-se até aqui, dos factos dados por assentes, que a autora adquiriu, em 27.11.2015, por compra, formalizada por escritura pública outorgada naquela data, à massa insolvente de FF (o titular inscrito no registo predial), que lho vendeu, o 1/10 do terreno (posteriormente um lote) dos autos, pelo preço de 5.100,00 € - cfr. factos A), B), C) e D).
Assente está também que o antecessor da autora, o FF, havia adquirido, em 11.07.1995, também por compra, também formalizada por escritura pública outorgada naquela data, a II e mulher (os titulares inscritos no registo predial), que lho venderam, o 1/10 referido, pelo preço de 725.000$00 (tanto como 3.616,29 €) - cfr. facto I).
A reivindicação, por parte da autora está, pois, sustentada numa compra e venda do 1/10 do terreno, facto considerado provado, como provado ficou que os adquirentes o fizeram dos titulares anteriormente inscritos no registo predial - cfr. factos A) e B).
17. A reivindicação por parte do réu está, também, sustentada numa aquisição ao FF, por compra e venda, verbal, de Junho de 1997, quer do 1/10 do rústico, quer da benfeitoria nele implantada (mas sequer legalizada), pelo preço, alegadamente pago, de 66.000.000$00 (tanto como 330.000,00 € que, já agora, equivaleriam, à data de hoje, a 854.700,00 €, bem pertinho do milhão de euros) - cfr. arts. 36º. e 37º. da douta contestação.
Quanto a esta alegada venda não apareceu nos autos um contrato-promessa de compra e venda, um recibo, um escrito, um extracto de depósito, um documento de levantamento, nada vezes nada.
E recorde-se que, tendo o 1/10 do terreno sido vendido, formalmente, por escritura de compra e venda, pelo II ao FF, já se vê que este podia ter transmitido, também formalmente, para o réu, aquele 1/10.
Mas, nestas alegações, dos arts. 36º. e 37º. da contestação, nem a sentença acreditou - cfr. facto não provado 5.
18. Quer tudo isto dizer que o réu não fez prova da compra dos prédios, único fundamento - já que outro, aliás, não foi invocado -, para a alegada ocupação, por ele, dos prédios dos autos.
Insistindo: o réu ocupou os prédios, porque os comprou, disse ele.
Não tendo provado que os comprou, falece, forçosamente, com o maior respeito, toda a argumentação do réu tendente à demonstração, quer da justificação da ocupação, quer da actuação dele como dono dos prédios.
Aliás, como já se salientou, tanto o réu como a sociedade 'Z….., Lda.', intitularam-se meros donos do estabelecimento instalado no prédio dos autos, que não donos do próprio prédio - cfr. docs. 36, 50, 51, 52 e 53
De resto, sabendo o réu que não os tinha comprado, aos prédios, só poderia estar a ocupá-los de má fé - tanto mais que não pagou a ninguém pela ocupação - cfr. facto X) - e, assim, para que a usucapião se tivesse por verificada teriam de passar, inexistindo quaisquer registos, como é o caso, 20 anos, o que não ocorreu entre os anos de 1997 a 2011 - arts. 1287º. e 1296º. CC.
F) A DECISÃO SOBRE AS QUESTÕES DE FACTO
19. Em atenção a tudo o que precede deverá ser a seguinte a decisão a proferir sobre a matéria de facto, provada e não provada:
Factos provados
- Os factos A), B), C), D), F), G), H), I), J), N), S), V) e X), devem permanecer como redigidos na sentença.
- E) O réu, esporadicamente, comeu, dormiu, recebeu família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ….., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ……, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL.
["O réu" e não "os réus", que ninguém falou da ré, nem ela...]
- L) O constante da alínea E) ocorreu, com intervalos, desde o início do mês de Junho de 1997, desconhecendo-se até quando, mas nunca para além de 2011.
- M) Passaria a facto não provado.
["Ocupar" é um conceito, não um facto...]
- O) Passaria a facto não provado.
[Não pode uma alegada ilegalidade ter-se por validamente demonstrada - cfr. art. 875º. CC - e 'explorar' não configura qualquer facto, antes um conceito]
- P) Passaria a facto não provado.
[Não indica o mês e ano do final do prazo, nem há documentos comprovativos de quaisquer despesas]
- Q) Após Junho de 1997, o réu terá celebrado um contrato de fornecimento de água.
- R) Passaria a facto não provado.
[Não indica o mês e ano do final do prazo, e irreleva a residência de outrem]
- T) Passaria a facto não provado.
["Exploração" é um conceito, não um facto e não há nos autos nenhum contrato de arrendamento celebrado entre 2004 e 2010]
- U) Passaria a facto não provado.
["Residir", "habitada" e "viver" são conceitos, não factos]
Factos não provados
- Os factos 2, 4, 5 e 6 devem permanecer como redigidos na sentença.
- 1. Passaria a facto provado.
[Patente que a autora, não só sucedeu na posse relativamente aos antepossuidores (que eram também os titulares inscritos no registo predial) - o II e o FF (a massa insolvente deste) -, como adquiriu a propriedade desta última]
- 3. Passaria a facto provado.
[Por razões idênticas às do facto 1] (…)”.
O 1.º réu contra-alegou dizendo, em suma, o seguinte:
“(…) 14ª) A Recorrente impugna diretamente os factos E), L), P), M), O), Q), R) T) e U) da matéria provada, e ainda os factos 1. e 3. da matéria não provada.
15ª) No entanto carece totalmente de fundamento para tal impugnação. Senão vejamos.
16ª) No que diz respeito aos pontos E), L) e P), alega a Autora, ora Recorrente, que não consta do processo prova documental suficiente para dar como assentes tais factos, pois o que deles consta só poderia ser extraído de 3 (três) documentos, que só por si não fazem prova bastante.
17ª) Desde logo chama-se a atenção para o facto de o ponto E) se considerar provado por constituir matéria assente por acordo, pelo que a presente impugnação da Recorrente traduz-se num clamoroso venire contra factum proprium, consubstanciando um claro abuso de direito.
18ª) Por outro lado, não se entende a limitação invocada pela Recorrente da prova documental apta para fundamentar tais factos a apenas 3 (três) documentos, nem a razão pela qual a mesma ignora na sua totalidade a vasta prova testemunhal produzida em sede dos presentes autos.
19º) Com efeito, fundamentou o Tribunal a quo os factos L) e P) da matéria provada, com a prova realizada através dos depoimentos das testemunhas LL, CC, OO, PP, QQ, RR, SS, TT e UU.
20ª) Face ao supra exposto, a impugnação da Recorrente carece de qualquer fundamento.
21ª) No tocante aos factos M), O), T) e U), entende a Recorrente que a terminologia utilizada nestes pontos, a saber “ocupar”, “explorar”, “residir”, “habitar”, “viver”, constituem conceitos e não factos, pelo que devem ser considerados como não provados.
22ª) Para além de extemporânea (…), tal impugnação é difícil de entender se atentarmos à definição de cada uma das palavras que fundamentam a impugnação; claramente se verifica que estas constituem ações concretas e reais, e que, portanto, são passíveis de fundamentar um facto.
23ª) Com efeito, confunde a A. “conceito”, que se traduz numa conceção, ideia ou juízo, com verdadeiras ações humanas passíveis de verificação por constituírem comportamentos que realizam alterações práticas.
24ª) Pelo que não poderá caber razão à Recorrente no que diz respeito à impugnação destes factos.
25ª) No que diz respeito ao facto Q), ignora mais uma vez a Recorrente na sua totalidade a prova testemunhal, baseando-se unicamente na prova documental, razão pela qual tal impugnação não poderá proceder.
26ª) Por fim, quanto aos factos R), 1. e 3., alega a Recorrente factos acessórios que em nada contradizem o descrito nestes factos, nem refere qualquer meio de prova do qual resulte um entendimento contrário àquele que nestes se encontra assente.
27ª) Pelo que, em bom rigor, nem se retira do alegado pela mesma uma impugnação de per si, tratando-se apenas de uma manifestação de discordância sem fundamento.
28º) Escusado será dizer o óbvio, tal não poderá proceder.”.
Vejamos cada uma das questões de facto suscitadas pela recorrente:
*
a) A alínea E) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “E) O réu, esporadicamente, comeu, dormiu, recebeu família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ……., união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ….., inscrito na matriz sob o artigo … secção AL”; a alínea L) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “L) O constante da alínea E) ocorreu, com intervalos, desde o início do mês de Junho de 1997, desconhecendo-se até quando, mas nunca para além de 2011”; e a alínea P) deve passar a facto não provado?
Na alínea E) dos factos provados consta escrito o seguinte:
“E) Os réus comem, dormem, recebem família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo … secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.”.
Considera a recorrente que tal alínea deve passar a ter a seguinte redação:
“E) O réu, esporadicamente, comeu, dormiu, recebeu família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL”.
Entende que tal facto se deve reportar apenas ao réu, e não, aos réus.
O 1.º réu contra-alegou pugnando pelo indeferimento do requerido pela autora e dizendo que “os factos vertidos no ponto E) já se encontravam assentes por acordo das Partes, os quais transitaram assim para a Sentença proferida.(…) Pelo que não pode agora a ora Recorrente vir, em sede de Alegações de Recurso, impugnar factos que admitiu anteriormente por acordo, sob pena de tal constituir um inadmissível venire contra factum proprium, resultando assim num claro abuso de direito”.
E, de facto, refere-se na decisão recorrida – na sequência do evidenciado no despacho de saneamento dos autos, de 07-01-2021 - que a “matéria das alíneas A) a I) mostrava-se assente por acordo das partes e documentos e assim transitou para a presente sentença”.
Mas, em virtude de tal menção, será de ter por inadmissível a impugnação recursória quanto à mencionada alínea E)?
Vejamos:
“No direito anterior à Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho, em sede de processo ordinário, a decisão sobre a matéria de facto tinha lugar após o encerramento da audiência de julgamento (cf. anterior artigo 653.º n.º 2). Na nova versão do Código de Processo Civil, o legislador suprimiu a decisão sobre matéria de facto, no termo da audiência de julgamento. Por isso, bem se pode chegar à sentença sem o proferimento de despacho formal sobre factos assentes. Na realidade, a decisão de fixação de factos assentes passou a ser uma decisão formalmente não autónoma — mas decisão, ainda assim…— no seio da fundamentação da sentença, prejudicial do dispositivo desta.” (assim, Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil; vol. II, 2ª edição, p. 77).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315), refere que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Ora, conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 717).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, rel. ROSA TCHING), “[f]actos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma  caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso”.
Conforme sintetiza, nos mesmos termos, Maria dos Prazeres Beleza (“Julgamento de Facto em 1.ª e 2.ª Instâncias”, in JURISMAT, Revista Jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, n.º 12, Novembro 2020, Portimão [em linha: https://www.ismat.pt/images/ficheiros/JURISMAT-12_FINAL.pdf], p. 209): “a eventual organização de uma lista de factos assentes significa apenas uma indicação de que tais factos se consideram relevantes para a decisão da causa e de que o tribunal admite que venham a ser julgados provados ou não provados, no momento em que sobre eles poderá decidir. Tem um significado meramente organizatório e indicativo”.
Ainda na mesma linha, cite-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO) onde se escreveu que: “Sendo certo que a instrução tem por objecto os temas de prova enunciados e que no NCPC estes não se confundem apenas com factos podendo ser conclusões jurídicas ou versões contrárias de factos ou conclusões, é seguro para nós e de acordo com a generalidade da doutrina e da jurisprudência, que a enunciação dos temas de prova não constitui despacho que faça caso julgado formal sobre os factos essenciais, instrumentais ou complementares que interessam à decisão de direito segundo as diferentes soluções possíveis e alegados pelas partes de acordo com as regras dos artº 5º, nºs 1 e 2 e 607º, nº 4, NCPC”.
E, se assim é, verifica-se que não existe obstáculo à modificabilidade da matéria em questão, aliás, objeto de impugnação pela recorrente, nem se pode considerar que esta impugnação se encontra eivada de abuso de direito, pois, não se encontrava precludida a possibilidade de se colocar em questão a motivação decisória do Tribunal sobre tal matéria de facto.
Vejamos, pois:
Conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradicção ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Dito isto, importa evidenciar que a génese da referida alínea E) pode encontrar-se na alegação produzida pelas partes nos articulados.
Assim, desde logo, alegou a autora, no artigo 13.º da p.i. que: “13. Desde, pelo menos, 1 de Dezembro de 2015 que os réus comem, dormem, recebem família e amigos no arrendado, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social, ao menos nos meses de verão, mantendo domicílio fiscal e residência em ……...”.
Depois, na contestação (artigos 10.º a 13.º), o 1.º réu alegou que “é indubitavelmente Verdade que o R. reside no imóvel, comendo, dormindo, recebendo família e amigos, fazendo do imóvel o centro da sua vida doméstica e social, …(…) … não desde 1 de dezembro de 2015 e nunca como “arrendado” conforme alega a A. no artigo 13º da petição inicial, impugnando-se quer a data quer o alegado arrendamento que nunca existiu, …(…)… mas sim desde o início do mês de junho de 1997. (…) Ainda relativamente ao artigo 13º do libelo, repise-se que o 1º R. nunca pagou qualquer renda a favor da A. ou de terceiro”.
No requerimento de 30-09-2019, a autora vem corrigir a referência (“no arrendado”) constante do artigo 13.º da p.i. dizendo que pretendia referir-se a “no prédio”.
Ora, patente é que a menção constante da alínea E) por referência a ambos os réus, (muito embora alegada desse modo, pela autora, no mencionado artigo 13.º da p.i. e desde, “pelo menos”, 01-12-2015) não tem substrato, na prova produzida, não resultando de qualquer dos elementos probatórios produzidos que - para além do réu –e com atualidade, a ré coma, durma e receba família e amigos na construção existente no prédio em questão nos autos, nem que, aí faça o seu centro de vida doméstica e social.
Impõe-se, por isso, a alteração da redação da mencionada alínea E) dos factos provados que contemple a realidade apurada (aliás, plenamente retratada na alínea P) dos factos provados).
Contudo, ao contrário do pugnado pela autora, não se evidenciam elementos apurados no sentido de que o 1.º réu tenha comido, dormido, recebido família e amigos na construção dos autos, apenas de forma esporádica, nem, igualmente, que tal vivência na casa implantada no terreno em questão nos autos tenha ocorrido não para além de 2011.
De facto, com referência - entre outras - às mencionadas alíneas L) e P) da matéria de facto dada como provada, o Tribunal recorrido expressou que a sua convicção sobre a realidade de tais factos assentou “nos depoimentos prestados pelas testemunhas LL (…), CC (…), OO (…), PP (…), QQ e RR (…), SS (…), TT (…) e UU”, tendo o Tribunal recorrido concretizado que, “[t]odas estas testemunhas demonstraram um conhecimento directo e consistente que desde cerca de 1997 o Réu passou a residir e explorar quer o terreno, quer a construção, tendo realizado obras e comportando-se sempre como dono e proprietário, e não como arrendatário, o que foi confirmado por FF a algumas das testemunhas inquiridas em audiência”.
E ouvidos na íntegra os mencionados depoimentos prestados em audiência (sendo que, o depoimento de parte da autora e o testemunho de EE não incidiram sobre esta matéria factual) verifica-se que existe, na realidade, plena compatibilidade entre a conclusão lógica alcançada pelo Tribunal recorrido e o que resulta dos mencionados testemunhos.
As mencionadas testemunhas referiram, cada uma à sua maneira, a forma como percepcionaram a realidade factual que descreveram e, que, de modo convergente, objetivo e incisivo, convergiu na demonstração da realidade do facto enunciado em P) dos factos provados:
- LL, um dos irmãos do réu, salientou o modo como o seu irmão “adquiriu” o terreno, bem como, descreveu a vivência no mesmo, assim como, os trabalhos realizados pelo seu irmão na casa implantada no terreno (trabalhos esses também referidos, no essencial de forma convergente, por CC, QQ, RR, SS, TT e UU), referindo ainda quem foram os sucessivos ocupantes da casa, em termos de habitação no piso superior e que utilização teve a zona inferior. Salientou também que, durante o período que precisou – durante o casamento (entre 2007 e 2017) – o seu irmão AA não esteve a residir em permanência na casa, mas que, aí residiu o depoente e as pessoas que concretizou, manifestando que tal vivência ocorria por disponibilidade ou cedência do mencionado irmão;
- CC, concretizando os termos em que o “negócio” de aquisição do prédio dos autos se verificou por parte do 1.º réu ao “Eng.º FF”, precisando temporalmente o mesmo, com referências que balizou (“…devia ser antes da Expo 98, 1 ano mais ou menos, em 1996 ou 1997…”), bem como, o preço acordado e modo de pagamento, assim como, concretizou os termos em que o acordo para tal aquisição se deu, tudo em termos concordantes e confluentes de sentido com os testemunhos de PP e, em parte (com respeito aos pagamentos acordados, por TT); igualmente referenciando os termos da “instalação” do 1.º réu na casa do prédio dos autos e quem se encontrou, ao longo dos anos, a viver/utilizar a mesma (quer na sua componente habitacional, quer comercial);
-OO, que explicou, de forma clara, objetiva e com a possível precisão, a sua relação com a habitação do prédio dos autos, onde residiu do “final de 2005/2006…e durante 8/9 anos” (tendo ido para ….. em 2014), salientando que o 1º réu e o irmão LL, com quem viveu, ali residiam antes de a testemunha ir viver para essa habitação. Concretizou que na mesma os utilizadores faziam as suas refeições, recebiam correspondência, pernoitavam. Explicitou que, depois do divórcio, o 1.º réu voltou à habitação do prédio dos autos. Evidenciou, de forma concordante com os depoimentos que, sobre esse ponto incidiram, a ocupação que percepcionou relativamente à habitação e à zona do bar/discoteca; foi inequívoca em explicar que a casa não se tornou uma casa de férias, mas não deixou de referir que, todos os anos, durante cerca de um mês, aí se reúne a família em Setembro para passar férias;
- PP, que, com extrema precisão, segurança, objetividade e clareza, relatou o período temporal em que o 1.º réu se instalou na casa dos autos;
- QQ, que reside nas imediações do prédio dos autos, explicou, de forma objetiva e desinteressada, o tempo há que conhece o 1.º réu e qual a sua ligação com o prédio dos autos, esclarecendo que a casa foi ainda construída por II, segundo referiu “em 1982”;
- RR, esposa da testemunha QQ, que foi convergente sobre o conhecimento do 1.º réu e sobre a relação deste com o prédio dos autos;
- SS, relatando circunstanciadamente a relação mantida com o 1.º réu a propósito da associação de moradores criada para legalizar os terrenos em questão, bem como, os pagamentos que os residentes fizeram para tal efeito (aliás, referenciados no documento junto pela autora de fls. 222vº a 237vº dos autos). Circunstanciou a relação do 1.º réu – e da restante família - com a casa dos autos e a vivência que, ao longo do tempo, o mesmo foi tendo na mesma, considerando-o como dono da mesma, salientando que, quando o representante da autora lhe disse que era o dono do terreno, ligou para o 1.º réu para lhe dar conta do sucedido, dizendo-lhe o 1.º réu que ia ver o que se passava; Assinalou, na sua visão, quais os valores de valia dos terrenos em questão, com e sem casa implantada;
- TT referiu qual a sua relação com o prédio dos autos, quais as funções e período temporal que esteve “ligado” ao prédio e o seu conhecimento sobre o arrendamento da zona comercial, que percepcionou; e
- UU, que explicou a sua relação com o prédio dos autos, onde ia fazer a manutenção dos extintores da zona comercial, desde 1997/1998 e durante cerca de 5 anos e os trabalhos – mencionando ter tido intervenção em alguns – que foram desenvolvidos pelo 1.º réu no mesmo.
Todos os depoimentos mencionados foram, no essencial, convergentes e concordantes nas referências que fizeram sobre os períodos temporais em que se processaram as vicissitudes que o espaço foi tendo ao longo do tempo e, bem assim, a vivência que ali o 1.º réu e família foram tendo ao longo dos anos. A prova documental junta nos autos é compatível com os elementos apurados em face dos depoimentos testemunhais, evidenciando que o réu fixou morada na casa dos autos (vejam-se, designadamente, os de fls. 88-89, 91 a 98 e 100 a 105 dos autos), para além de aí se ter situado a sede da empresa Restaurante 7.º ……., Lda., desde 06-08-1997 e até à data da dissolução (cfr. fls. 210vº-211 dos autos).
A data mencionada em L) e P), assim como as considerações efetuadas pelo Tribunal recorrido em sede de motivação de facto, têm plena aderência e sustentação nos aludidos depoimentos testemunhais e documentais, não tendo sido, por qualquer modo, contraditado ou colocado em crise o panorama factual que deles resultou.
De facto, da prova produzida – quer testemunhal, quer documental – não resulta alguma circunstância demonstrativa de que a vivência do 1.º réu tenha sido esporádica ou ocasional, relativamente ao prédio dos autos. O mesmo manteve a disponibilidade sobre a casa, onde permitiu que, a determinada altura, o irmão LL morasse (assim como os demais sucessivos residentes), mantendo-se utilizador e habitante da casa dos autos pontualmente, passando, novamente, a aí fixar residência após o divórcio.
Não se verifica, pois, motivo para que a alteração da matéria de facto pugnada pela autora se opere de acordo com a redação que propôs.
Diga-se ainda que, não poderá a falta de indicação do “mês e ano do final do prazo” na mencionada alínea P) constituir fundamento de procedência da alteração gizada, tanto mais que, a génese dessa factualidade resulta da alegação produzida nos artigos 50.º e ss. e 82.º e ss. da contestação, de onde precisamente resulta inexistir termo final para o período temporal aí reportado, estando, inclusive, já salvaguardada a realidade factual, mediante a alteração a introduzir na alínea L) dos fatos provados, como infra referenciado.
De facto, considerando o acima referido e os elementos de prova supra mencionados, mostra-se, em face da prova produzida, e ora reapreciada, de alterar a redação da alínea L), por forma a que nela se contemple, a circunstância de o réu ter, em determinado período temporal (correspondente ao tempo em que esteve casado, tal como referido em H) dos factos provados), mudado a sua residência para ….., primeiro, e, depois, para ……, tal como, aliás, o referiu nos artigos 69.º e 70.º da contestação.
Em face do exposto, será de:
- Alterar a redação da alínea E) dos factos provados para a seguinte: “E) O Réu AA come, dorme, recebe família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.”;
- Alterar a redação da alínea L) dos factos provados para a seguinte: “L) O constante da alínea E) ocorre desde o início do mês de Junho de 1997 (tendo entre 2007 e 2018 o réu residido noutro local, período em que utilizava a construção pontualmente)”; e
- Julgar improcedente a alteração pretendida quanto à alínea P) dos factos provados.
*
b) As alíneas M), O), T) e U) devem passar para factos não provados?
Na alínea M) dos factos provados consta o seguinte:
“M) Quando a Autora pretendeu entrar na moradia verificou que os réus ocupavam todo 1/10 do prédio, construção e terreno.”.
Considera a recorrente que tal alínea deve passar para o rol dos factos não provados.
Entende a recorrente que a alínea M) deve passar para o rol dos factos não provados, invocando que “ocupar" é um conceito, não um facto...”.
Por sua vez, na alínea O) dos factos provados consta o seguinte:
“O) A construção edificada nos 1/10 do prédio foi também vendida verbalmente a FF e desde então e até Junho de 1997, FF passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário.”.
Considera a recorrente que esta alínea O) deve passar para o rol dos factos não provados, porque, em seu entender, “[n]ão pode uma alegada ilegalidade ter-se por validamente demonstrada - cfr. art. 875º. CC - e 'explorar' não configura qualquer facto, antes um conceito”.
Na alínea T) dos factos provados consta o seguinte:
“T) Posteriormente a exploração deste estabelecimento passou a ser feita pelos irmãos do Réu AA, LL e NN, e posteriormente no ano de 2004 e até ao ano de 2010 o Réu AA e irmão decidiram arrendar o espaço comercial sito no rés-do-chão da construção, recebendo a respectiva renda / retribuição.”.
Entende a recorrente que a alínea T) deve passar para o rol dos factos não provados, invocando que “exploração” é um conceito e não um facto e que “não há nos autos nenhum contrato de arrendamento celebrado entre 2004 e 2010”.
E na alínea U) dos factos provados consta escrito o seguinte:
“U) E quando o Réu foi residir para ….., a construção continuou a ser habitada, no 1º andar, pelos irmãos do Réu, LL e NN e após o divórcio o Réu passou novamente a viver na construção.”.
Pugna a recorrente no sentido de que esta alínea U) passe para o rol dos factos não provados, por considerar que “”Residir", "habitada" e "viver" são conceitos, não factos”.
O 1.º réu contra-alegou dizendo que a impugnação carece de fundamento pelas seguintes razões:
“Impugna ainda o facto M) por considerar que a palavra “ocupavam” constituí um conceito e não um facto.
Antes de mais, tal alegação é completamente extemporânea na medida em que, se porventura a A., ora Apelante, discordasse da construção e da formulação dos temas da prova, teria de reagir de imediato através de uma reclamação para o Juiz a quo, cujo Despacho, esse seria apenas recorrível nesta sede, tudo conforme flui cristalinamente do artigo 596º do Código de Processo Civil.
Por outras palavras, “só após encontrar a casa a arder” é que a Apelante se lembrou que os temas da prova estavam alegadamente mal redigidos / construídos. Pelo que, nem que fosse por esta questão, não assiste qualquer razão à Recorrente”.
Relativamente a este ponto (também invocado pelo 1.º réu, a respeito dos factos O), T) e U) ), não parece que assista razão ao recorrido, uma vez que, a recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada como provada, pelo que, o recurso não incide sobre os temas da prova oportunamente elaborados.
Ora, como se viu, ao recorrente é legitimo impugnar no recurso da decisão final, a matéria de facto selecionada pelo Tribunal, pelo que, não está precludida a possibilidade de o recorrente impugnar a matéria de facto selecionada invocando que a mesma não é matéria de facto, mas matéria conclusiva.
Considera ainda o 1.º réu, nas contra-alegações, que: “Contudo, mesmo ao nível da “substância”, dificilmente se entende este fundamento de impugnação da ora Recorrente, a não ser à luz do desespero e de mais uma “fuga para a frente”… Senão vejamos.
Numa perspetiva de desconstruir o argumento da A. ora Apelante, recorremos a algumas definições.
CONCEITO: nome masculino, opinião ou ideia, juízo que se faz de alguém ou de alguma coisa.(…)
OCUPAR: verbo transitivo, tomar ou estar na posse de; exercer o controlo sobre determinado espaço.(…)
Ora, verifica-se assim que ao dar como assente que “os réus ocupavam todo 1/10 do prédio, construção e terreno”, o Meritíssimo Tribunal a quo concluiu que o R. exercia o controlo sobre determinado espaço, realizando inequivocamente esta ação sobre o imóvel em causa.
Ao tratar-se de uma ação, passível de tradução num comportamento humano efetivo, dificilmente tal poderá ser confundido com uma ideia ou opinião inerentemente subjetiva.
Ora, uma ação humana, ao ser levada a cabo, constitui um facto concreto, não uma ideia ou opinião abstrata passível de discordância.
Não caberá assim qualquer razão à Recorrente no que diz respeito à impugnação do facto M).
(…) Ainda no que diz respeito ao facto O), este é ainda impugnado com base na alegação de que uma ilegalidade não pode ter-se por validamente demonstrada.
No entanto, falha a Recorrente em indicar qualquer base legal para sustentar tal alegação, referindo apenas o artigo 875.º do Código Civil, que diz respeito à formalidade exigida para o contrato de compra e venda de imóveis.
Mais uma vez, e salvo o devido respeito, importará não confundir a matéria de facto com a matéria de direito.
Efetivamente, no domínio da matéria de facto procura-se apurar os acontecimentos ocorridos e relevantes para o litígio em apreço.
Se tais acontecimentos são ou não válidos ou admissíveis à luz do Direito, será outra questão, a qual será apurada a posteriori.
Pelo que mais uma vez, carece a impugnação da Recorrente de qualquer fundamento.”.
Vejamos:
De acordo com o que constava dos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e) e 511.º do CPC de 1961, na redação ultimamente vigente, a base instrutória deveria conter a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual incidiriam as diligências instrutórias de prova e de julgamento. Estas normas harmonizavam-se com a disposição contida no artigo 513.º do mesmo Código (com a epígrafe “Objecto da prova”), no qual se consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
No novo e vigente Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “[r]elativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”.
Ora, conforme se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “Será, pois, admissível que a enunciação dos temas da prova, actualmente prevista no n.º 1 do artigo 596.º do nCPC, assuma um carácter genérico e até, por vezes, aparentemente conclusivo, apenas devendo ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.
Todavia, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, ali se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir.
Não obstante a redacção dada ao artigo 410º do nCPC, nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os factos constante dos articulados apresentados pelas partes que a produção de prova e respectivos meios incidirão, como se infere dos artigos 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do nCPC, e não sobre os respectivos temas de prova enunciados.
São de igual modo os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º do nCPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Acresce que decorre do artigo 413.º do nCPC, que reproduziu sem alteração o artigo 515.º do aCPC, que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, mantendo-se, assim, intocável o princípio da aquisição processual.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos (…)”.
Ou seja: “A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio (…).
Haverá ações em que os temas da prova surgirão com maior concretização, embora não seja necessário (nem sequer aconselhável, na maior parte dos casos) que cada tema corresponda a um facto puro e simples, e haverá ações em que os temas da prova se apresentarão numa formulação de pendor mais genérico ou até mesmo conclusivo (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 699-700).
De todo o modo, como sublinham estes mesmos Autores (ob. cit., p. 701), “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.
Assim, não obstante o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC (onde se dispunha que: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”) não se encontrar no CPC em vigor, certo é que, da fundamentação da sentença devem constar factos, o que, desde logo, deriva da previsão do artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
Contudo, nem sempre, na prática, se torna evidente se estamos perante absoluta matéria conclusiva ou de direito ou ainda em face de matéria de facto.
Conforme se escreveu – ainda no âmbito do precedente CPC - no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2003 (Pº 8271/03, rel. MARIA JOSÉ MOURO, CJ, 2003, t. I, pp. 79-87): “A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei”.
Na mesma linha e também no âmbito do CPC de 1961, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-1992 (Pº 003400, rel. DIAS SIMÃO) que: “Nem sempre é fácil a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, podendo mesmo afirmar-se que a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa (…). Como critério geral de distinção pode dizer-se que é de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica. Acontecendo, porém, que o conceito normativo mencionado na lei seja igual ao conceito empiríco, utilizando aquela expressão de uso corrente na linguagem comum, nesse caso, poder-se-à quesitar empregando-se as palavras da lei, na medida em que, tomando-se esse conceito no seu sentido vulgar para este reservado”.
Em termos gerais, com referência aquilo que se verteu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009 (Pº 08S3441, rel. VASQUES DINIS) pode considerar-se que: “Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”.
Assim, como princípio, não devem enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.
Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.
Isso mesmo tem sido assinalado, em diversos arestos, pela jurisprudência, exemplificativamente se citando os seguintes (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES): “Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2020 (Pº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-11-2019 (Pº 3875/18.3T8MTS.P1, rel. RITA ROMEIRA): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 109/17.1T8ACB.C1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES): “Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Pº 338/17.8YRPRT, rel. FILIPE CAROÇO): “O desaparecimento da previsão do nº 4 do art.º 646º do antigo Código de Processo Civil não significa que a fundamentação de facto da sentença, tal como delineada na primeira parte do n° 3 e no n° 4 do artigo 607º do atual Código de Processo Civil tenha passado a poder incidir também sobre matéria conclusiva e de direito. Em termos gerais, o facto corresponde a um estado ou acontecimento que se configura como uma realidade passível de constatação e apreensão, seja ele um facto do mundo exterior (facto externo) ou um facto da vida psíquica (facto interno: o dolo, o conhecimento de determinadas circunstâncias, uma determinada intenção)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Pº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, rel. ROSA TCHING): “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO): “Face ao Novo Código de Processo Civil é na sentença que o juiz declara quais os factos que julga provados e os que julga não provados. A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017 (Pº 809/10.7TBLMG.C1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA): “A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado. Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2015 (Pº 819/11.7TBPRD.P1.S1, rel. JOÃO TRINDADE): “Em face do NCPC (2013), haverá que considerar, de uma forma inovadora, que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista. É possível agora ao juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no nº 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu nº 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013 (Pº 400/09.0PAOVR.C1.P1, rel. EDUARDA LOBO): “Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2004 (Pº 04B652, rel. FERREIRA GIRÃO): “O vocábulo janela pertence ao mundo dos vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável; Consequentemente, não se deve dar como não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, o vocábulo janela, quando incluído na decisão da matéria de facto sem qualquer discriminação das suas características - tal como, aliás, foi alegado”.
Assim: “Se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas”, estendendo-se as dificuldades de delimitação também no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 4372/09.3TTLSB-A.L1-4, rel. DURO CARDOSO).
Noutros arestos tentou-se mais uma aproximação:
- “É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na percepção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual. Dentro da matéria conclusiva devem distinguir-se os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2014, Pº 2138/10.7TBPRD.P1, rel. CARLOS GIL); e
- “Não são meros “juízos conclusivos” as expressões que têm um sentido perfeitamente apreensível na linguagem comum e cujo significado é totalmente apreendido na linguagem corrente, podendo até dizer que hoje em dia são os mesmos utilizados muitas vezes na vox populi” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 145/18.0T8SRP.E1, rel. ELISABETE VALENTE).
Que dizer das expressões “ocupar” (“…todo 1/10 do prédio”), “explorar” (o estabelecimento comercial), “exploração” (deste estabelecimento) e “residir”, “habitada” e “viver”, constantes, respetivamente, dos factos provados em M), O), T) e U)?
“Ocupar” tem, em termos correntes, os seguintes sinónimos:
“verbo transitivo
1. Tomar ou estar na posse de.
2. Exercer o controlo sobre determinado espaço.
3. Não deixar que outrem utilize algo; tomar para si sem partilhar (ex.: ocupar a casa de banho; não quero ocupar o seu tempo). ≠ DESOCUPAR, LIBERTAR
4. Preencher um espaço ou um território. = ENCHER
5. Estar instalado em determinado lugar. = HABITAR, INSTALAR-SE, MORAR ≠ DESOCUPAR
6. Instalar-se em casa ou terreno sem autorização do proprietário. ≠ DESOCUPAR
7. Exercer, desempenhar.
8. Atribuir tarefas ou dar ocupação a.
9. Embaraçar, estorvar.
10. Ser objecto de.
11. Pejar (…)” (vd. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ocupar).
O sentido da ocupação, refere-se, pois, à execução de actos materiais sobre a coisa objeto de tal situação, o que, tem inequívoco sentido corrente.
O mesmo se diga à palavra “explorar”:
“verbo transitivo
1. Tratar de descobrir, pesquisar, investigar, estudar (regiões, terrenos, etc.) no ponto de vista geográfico, científico, industrial, militar, etc.
2. Percorrer (estudando ou procurando).
3. Tirar proveito de.
4. Fazer produzir.
5. Fazer valer.
6. Cultivar.
7. Especular com.
8. Abusar de alguém, para viver à sua custa (…)” (cfr., o referido Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/explorar).
Trata-se de retirar utilidades da coisa explorada, exercer sobre ela atos de proveito.
Quanto à palavra “residir”, a mesma traduz os actos de “habitar, morar, ter a sua residência em”, “achar-se; estar” ou “consistir” (cfr., Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/residir).
Semelhantes sentidos tem a palavra “habitar”: “1. Ter a sua residência em. = MORAR, VIVER; 2. Prover de população ou de residentes. = POVOAR; 3. Estar presente em” (cfr. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/habitar).
Finalmente, a palavra “viver” tem os seguintes significados linguísticos:
“verbo intransitivo
1. Ter vida. = EXISTIR
2. Passar (a vida). = EXISTIR
3. Passar a vida de tal ou tal maneira.
4. Ter determinado comportamento ou procedimento. = CONDUZIR-SE, PORTAR-SE, PROCEDER
5. Proporcionar-se o alimento e o necessário para a vida. = ALIMENTAR-SE
6. Entreter relações sociais ou amicais.
7. Conservar-se, durar, passar aos vindouros. = CONVIVER
8. Gozar a vida; aproveitar-se da vida; tirar vantagem de tudo.
9. Passar toda ou a maior parte da existência em; não poder existir fora de.
10. Ter habitação habitual em. = MORAR, RESIDIR (…)” (cfr. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/viver).
Pode dizer-se, o que, aliás, constitui uma evidência, que as palavras em questão constituem expressões utilizadas usual e quotidianamente, cujo sentido é imediatamente apreensível, tendo utilização corrente, com um significado unívoco e singular, afigurando-se ainda conterem matéria factual.
Chegando a esta mesma conclusão, citem-se os seguintes arestos:
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021 (Pº 1205/18.3T8PVZ.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES): “A enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa da factualidade provada ou não provada, devendo ser expurgada de locuções genéricas ou conclusivas ou de valorações jurídicas. Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam e a prevenir obscuridade, contradição ou incompletude. A linguística deixou, hoje, de ser confinada às suas duas dimensões primárias – a dimensão gramatical (lógico-sintática) e a dimensão semântica – para se alcandorar, agora, numa nova dimensão, que é a dimensão pragmática, a qual relaciona a linguística com os contextos vivenciais e com as estratégias comunicacionais. Assim, na formulação dos juízos probatórios, devem ser empregues enunciados que sejam portadores de um alcance semântico o mais consensual possível, no contexto relacional em causa, de forma a denotar a correspetiva substância factual, para além das formas meramente epidérmicas da expressão linguística. Para tal não basta apelar ao mero significado linguístico ou etimológico de determinado vocábulo ou locução, de forma atomizada, mas antes considerar o seu alcance semântico e pragmático no contexto narrativo em que se encontrem inseridos. Dentro destes parâmetros, a expressão reportada à utilização pelos autores da construção em referência como parte integrante de determinado prédio, na qualidade de proprietários deste, no contexto relacional com a utilização dessa construção pela R. por mera permissão daqueles, afigura-se suficientemente representativa do domínio empírico dos mesmos autores sobre aquela construção, à luz do consenso social”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2015 (Pº 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA): “A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como de direito é irrelevante – e não determina que se tenham os mesmos por não escritos – se os mesmos forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível. Não é de considerar não escrita (como entendeu a Relação) a resposta a um quesito em que se afirma que «a sociedade D e, depois dela, a ré ignoravam que ao passar a ocupar o prédio lesavam o direito de outrem», posto que o seu objecto constitui um facto e um facto sujeito a prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-11-2007 (Pº 7529/2007-1, rel. MARIA JOSÉ SIMÕES): “É lícita a utilização nos quesitos da BI do termo “habitar” e da expressão “ter a sua casa de habitação”, porque apesar de terem um sentido jurídico têm simultaneamente um sentido comum, sendo de uso habitual na linguagem corrente e vulgar, passando a ter um significado de facto, de morada habitual onde se tem instalada e organizada a economia doméstica, traduzindo-se, ao fim e ao cabo, no conceito de direito de “residência permanente””;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2003 (Pº 02S4071, rel. EMÉRICO SOARES): “Não é conclusiva, tendo antes a natureza puramente factícia a afirmação de que a partir de certa data a autora passou a explorar o estabelecimento por conta própria”; e
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-10-1991 (Pº 0035371, rel. CORREIA DE SOUSA): "viver numa casa com carácter habitual e permanente" não é um conceito de direito. "residência permanente" é um conceito de direito”.
Em síntese: As palavras “ocupar”, “explorar”, “exploração”, “residir”, “habitada” e “viver” (por referência à fruição das utilidades de um prédio) constituem expressões de uso vulgar, comum, que integram realidade concetual fática, na medida em que traduzem o sentido vulgar de uma situação de facto, acessível ao comum dos cidadãos, com um significado preciso e unívoco, cuja apreensão não depende da interpretação ou aplicação de qualquer preceito normativo.
Não existe, pois, motivo para a eliminação do rol dos factos provados de tais expressões, tratando-se de conceitos factualizados e usualmente utilizados na linguagem corrente, passíveis de demonstração probatória.
Para além do que vem sendo referido, ainda duas notas:
Uma primeira nota, para referir que não se vislumbra existir alguma “ilegalidade” que se tenha por “validamente demonstrada”, a respeito da alínea O) dos factos provados. É que aqui estamos no plano do apuramento dos factos, naturalisticamente considerados, independentemente de qualquer juízo sobre a validade da forma de transmissão.
De todo o modo, não se logrou demonstrar, por qualquer meio que a venda a FF, aliás, titulada nos autos, pelo documento que consta de fls. 169-170, referido na alínea I) dos factos provados, que teve por objeto “UM/DEZ avos indivisos do prédio rústico” em questão nos autos, tenha sido efetuada verbalmente, apenas sucedendo que, tendo esta venda ocorrido em 11-07-1995 e que a construção nele edificada foi construída na década de 80 (como referido em N) dos factos provados), se conclui que a referida venda acarretou a transmissão da construção implantada nesse terreno. Mas, não é isso que se encontra vertido na primeira parte da mencionada alínea O) dos factos provados (inexistindo motivo, nem o mesmo sendo invocado pela recorrente, para a supressão da matéria factual vertida na segunda parte dessa alínea O) ).
Assim, será de alterar a redação da alínea O), de modo a dela se suprimir a indevida referência à “venda verbal” da construção.
Uma outra nota, a respeito da alínea T) dos factos provados, para concluir que não procede a invocação da autora no sentido de que, “não há nos autos nenhum contrato de arrendamento celebrado entre 2004 e 2010”. De facto, para o apuramento factual correspondente, em que apenas se enunciou que, no período em questão, o 1.º réu e seu irmão “decidiram arrendar” o espaço comercial, não se mostrava necessário que tivesse que ser junto aos autos documento titulando algum contrato de arrendamento, uma vez que, não existe norma legal que imponha que a prova da existência de uma tal decisão apenas tenha lugar por tal via (sendo certo que, aliás, há nos autos elementos que indiciam e corroboram a existência de uma tal decisão, como sucede com o que consta escrito nos documentos de fls. 96 a 98). E, como já supra se aludiu, se é certo que, uma tal decisão de “arrendar” tem por referência um específico tipo contratual – de arrendamento – certo é que tal expressão tem uma componente conhecida e usual na linguagem corrente, relacionada com a cedência do gozo, mediante uma contrapartida pecuniária, independentemente do tipo contratual escolhido. De facto, tal “decisão” poderia ser, na prática, ser concretizada por outro ou outros modelos contratuais, como aquele em que a cedência do gozo de um estabelecimento comercial ocorre por via de um contrato de cessão de exploração. E, refira-se que, de facto, se mostram juntos aos autos diversos contratos, submetidos a forma escrita, denominados de “cessão de exploração de estabelecimento comercial” e “integrados” no período temporal referido na mencionada alínea T) dos factos provados (cfr. fls. 134vº a 138; 138vº a 142; 143vº a 148; 148vº a 152) e nos quais se prevê uma contrapartida de “renda”. Mostra-se, pois, congruente a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido e os meios de prova produzidos, inclusive atendendo à aludida prova documental, tudo confluindo na conclusão de que inexiste motivo para a alteração da matéria de facto gizada pela recorrente.
Inexiste, pois, motivo para a procedência da alegação da recorrente a este respeito.
Em face do exposto, será de:
- Alterar a redação da alínea O) dos factos provados para a seguinte: “O) Desde a venda a FF e até Junho de 1997, este passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário”; e
- Julgar improcedente a alteração pretendida quanto às alíneas M), T) e U) dos factos provados.
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c) A alínea Q) dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação: “Q) Após Junho de 1997, o réu terá celebrado um contrato de fornecimento de água”?
Na alínea Q) dos factos provados consta o seguinte:
“Q) Após a data a que alude a alínea P) o Réu celebrou contratos de fornecimento de água”.
Considera a recorrente que a redação desta alínea deve ser alterada para a que propõe, entendendo inexistir prova relativamente à celebração de mais do que um contrato de fornecimento de água.
O 1.º réu concluiu que a impugnação deve ser julgada improcedente, considerando a prova testemunhal produzida.
Ora, reapreciados os elementos de prova produzidos, verifica-se que assiste razão à recorrente, uma vez que, quer ponderados os elementos de prova testemunhais, quer os documentos juntos aos autos, neles não se divisa a contratação pelo 1.º réu de outro contrato de fornecimento de água, que não aquele que é reportado em diversos documentos juntos aos autos e a que corresponderá à instalação n.º …… (cfr. fls. 92vº, 93vº, 94, 94vº,95vº, 96vº a 98, 99 e 213vº). Os depoimentos prestados não permitiram concluir de outro modo, pelo que se impõe a alteração da redação alínea Q) por forma a que nela se contemple a celebração pelo réu de um contrato de fornecimento de água, não se justificando outra modificação.
Em face do exposto, será de alterar a redação da alínea Q) dos factos provados para a seguinte: “Q) Após a data a que alude a alínea P) o réu celebrou um contrato de fornecimento de água”.
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d) A alínea R) deve passar a facto não provado?
Na alínea R) dos factos provados consta o seguinte:
“R) A partir do dia 16 de Agosto de 1999, o irmão mais novo do Réu AA, LL passou também a residir na construção a partir desta altura, comendo, dormindo, recebendo família e amigos e recebendo correspondência.”.
Considera a recorrente que a alínea R) deve passar para o rol dos factos não provados, porque nele não se “indica o mês e ano do final do prazo, e irreleva a residência de outrem”.
O 1.º réu contra-alegou dizendo que “tal impugnação não pode claramente proceder, desde logo porque não existe nenhuma obrigação de indicar o final do prazo do facto vertido nesta alínea.
Mais ainda, a omissão desta informação não acarreta como consequência que o facto, nos termos em que está redigido, resulte como não provado.
Mais ainda, a Recorrente não apresenta qualquer fundamento para concluir pela irrelevância de tal facto para a decisão de mérito.
Pelo que tal impugnação não pode, assim, ser considerada procedente, por falta de qualquer fundamento”.
Ora, neste ponto, concorda-se com os argumentos expendidos pelo 1.º réu, no sentido da improcedência da impugnação.
Cumpre referir que a referida matéria factual teve por origem o alegado pelo 1.º réu nos artigos 56.º e 57.º da contestação, sobre os quais a autora tomou a posição que expressou no artigo 3.º do requerimento de réplica apresentado nos autos em 24-06-2019 e no artigo 1.º do requerimento de resposta à exceção de usucapião, apresentado nos autos em 29-01-2020.
E, nessa medida, o facto em questão é pertinente quer para a apreciação da invocada exceção, quer para a reconvenção deduzida, não se podendo concluir que tal factualidade é irrelevante, ponderadas todas as soluções plausíveis da questão de direito.
Refere Paulo Ramos de Faria (“Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, in Julgar on line, Outubro de 2019, p. 52 [em linha: file:///C:/Users/MJ01785/Downloads/20191018-ARTIGO-JULGAR-Solu%C3%A7%C3%B5es-plaus%C3%ADvel-de-direito-Paulo-Ramos-de-Faria.pdf]), em artigo onde aborda a questão da relevância no vigente CPC, da prescrição que antes constava do artigo 511.º, n.º 1, do CPC de 1961 (onde se prescrevia que “o juiz, ao fixar a base instrutória, seleciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”) que: “Os temas da prova devem ser enunciados por um modo que não comprometa o julgamento de todos os factos controvertidos relevantes, segundo as várias soluções plausíveis. Na elaboração desta ferramenta processual, o tribunal não pode desconsiderar nenhuma das diferentes soluções jurídicas que podem vir a ser adotadas pelo magistrado ou magistrados a quem compete definir o direito aplicável, exigindo-se que os factos relevantes à luz de qualquer uma delas se encontrem abrangidos por um dos temas enunciados”.
Ora, ponderadas estas soluções da questão de direito, verifica-se que a invocação da aquisição por usucapião (cfr. artigo 1287.º e ss. do CC) do prédio em questão nos autos, fundada na posse por determinado lapso de tempo, torna pertinente e relevante, a residência e a vivência no mesmo por parte do irmão do réu, ponderando as múltiplas normas que regulam o instituto jurídico em questão (cfr., designadamente, os artigos 1252.º, 1253.º, 1254.º, todos do CC), evidenciando que não é impertinente ou irrelevante o mencionado apuramento factual.
Finalmente, diga-se, sendo referido um facto que se prolonga no tempo, com um determinado termo inicial, atenta a prova produzida, não se impunha, por qualquer modo, a fixação, na referida alínea, de um termo final.
Inexiste, pois, motivo para a procedência da impugnação da recorrente nesta parte, sendo de julgar improcedente a impugnação de facto a respeito da mencionada alínea R) dos factos provados.
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e) Os factos dados como não provados n.ºs. 1) e 3) devem passar a factos provados?
O n.º 1 dos factos não provados tem a seguinte redação:
“1 - A Autora, por ela e antecessores, designadamente por FF, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs de 1/10 do prédio a que alude a alínea A) utilizando-o sem restrições, ocupando-o, cultivando o terreno, nele edificando uma moradia, pagando impostos e contribuições, tudo à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros.”.
E o n.º 3 dos factos não provados tem a seguinte redação:
“3 - Sobre essa moradia a Autora e seus antecessores, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs do 1º. andar da moradia para comer, dormir, receber família e amigos em tempo de férias, e o rés-do-chão como espaço de lazer e discoteca, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros;”.
Considera a recorrente que esta matéria se provou, devendo passar para o rol dos factos provados, por entender ser “[p]atente que a autora, não só sucedeu na posse relativamente aos antepossuidores (que eram também os titulares inscritos no registo predial) – o II e o FF (a massa insolvente deste) -, como adquiriu a propriedade desta última”.
Ora, neste ponto, a convicção do Tribunal recorrido expressou que se estribou “na prova produzida e da qual não resultou que FF após 1997 continuou a utilizar sem restrições e como se fosse dono e único proprietário de 1/10 do terreno e da construção nele implantada o que continuou com a Autora, pois tais actos foram desde aquela data praticados pelo Réu AA e não por FF ou pela Autora”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar que, funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”, o que significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, especificando - tal como o tribunal de 1ª instância - os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (assim, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 22).
Nessa apreciação, o Tribunal da Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime legal que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais (assim, Abrantes Geraldes; Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, 3.ª Ed., 2000, p. 272).
Cumpre ainda considerar, a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto nos artigos 396.º do CC e 607.º, n.º 5, do CPC.
E, “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol IV, p. 569).
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto, quer sobre os factos provados, quer sobre os factos não provados (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão, pois, é através da fundamentação de facto que o tribunal de recurso vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Contudo, nesta apreciação, não pode o Tribunal da Relação ignorar que, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que são intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo exterior do depoente que influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo, assim, actos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2009, P.º 4303/05.0TBTVD.S1, rel. SANTOS BERNARDINO).
Por outro lado, porque se mantêm vigentes no Tribunal da Relação os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deverá restringir-se aos casos em que, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, determinem ou imponham decisão diversa da do tribunal recorrido, por patentearem um erro de julgamento ou de apreciação do julgador, que deva ser corrigido.
Ora, a conclusão a que chegou o Tribunal recorrido não patenteia qualquer erro, antes inculca que se fundou na existência de prova de factos que, em direta e frontal oposição com os mencionados n.ºs. 1 e 3, se lograram provar, levando a concluir que a factualidade inserida nos mencionados n.º 1 e 3, apenas poderia figurar no rol dos factos não provados.
E, de facto, reapreciados os meios de prova produzidos, verifica-se que não foi produzida qualquer demonstração no sentido de que FF, após 1997 tenha continuado a atuar relativamente ao prédio dos autos como seu dono e proprietário. Ela não resultou de qualquer dos elementos documentais juntos aos autos, nem de qualquer dos demais meios de prova carreados para o processo.
Compreende-se, pois, sem existir motivo para o alterar, o juízo emitido pelo Tribunal recorrido a este respeito.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto, quanto aos mencionados n.ºs. 1) e 3) dos factos não provados.
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NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
A) Do documento junto a folhas 05 verso a 07 dos autos, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais consta:
“Compra e Venda
No dia vinte e sete de Novembro de dois mil e quinze, na Rua ….., da cidade de ….., instalações do cartório da notária DD, perante a mesma, compareceram como outorgantes:
Primeiro:
EE, (…), que outorga na qualidade de administrador da insolvência nomeado para os autos de liquidação (CIRE) que corre seus termos pela Comarca de …. – Instância Local – Secção Cível- J…, aí registado sob o número um cinco cinco nove barra um zero ponto ….., em que é insolvente, FF, (…), qualidade e poderes que verifiquei serem os suficientes para a prática deste acto em face de uma certidão judicial, que arquivo.
Segundo:
A) GG, (…); e
B) HH (…),
que outorgam na qualidade, respectivamente, de presidente e administrador do conselho de administração e em representação da sociedade comercial anónima com a denominação “Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.”, (,,,), qualidade e poderes que verifiquei serem os suficientes para a prática deste ato em face da certidão permanente (…).
(…)
Declarou o primeiro outorgante, na focada qualidade em que intervém:
Que, pela presente escritura, pelo preço de cinco mil e cem euros, que declara ter já recebido, vende, à representada dos segundos outorgantes, “Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.”, o seguinte:
Um – Um décimo indiviso do prédio rústico, terreno composto de pinhal, situado no Lugar de ......, lote cento e dezasseis, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número …./......, parte indivisa essa aí registada a favor do identificado insolvente pela apresentação …., inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, com o valor patrimonial correspondente à dita parte indivisa de €2,62, contiguo ao qual não possui qualquer outro de igual natureza, sobre o qual, pela apresentação ……, está registada uma servidão (sem demarcação) – a favor do lote de terreno designado pelo número … compreendido no prédio número ….. a folhas trinta e nove do B-catorze (lote que corresponde à quarta parte do mesmo prédio) – imposta no prédio ….., a folhas cento e setenta e oito do B- trinta e seis (destacado do nº. …..). Encargo: passagem através do mesmo prédio. Causa: divisão e demarcação do prédio nº. …., pela apresentação …., está registada uma servidão (sem demarcação) – a favor do terreno em compropriedade com a área de três hectares compreendido no prédio número ….. a folhas trinta e nove do B-catorze e a favor dos prédios nºs ……, respetivamente a folhas cento e setenta e oito a folhas dois verso do B-trinta e seis, imposta no prédio nº ….. a folhas dois verso do B- trinta e sete. Encargo: passagem através do prédio nº …... Causa: divisão e demarcação do prédio nº ….., pela apresentação …., está registada a declaração de insolvência do mencionado FF.
Declaram os segundos outorgantes, na focada qualidade em que intervêm:
Que, para a sua representada, aceitam este contrato nos termos exarados e que a sua representada destina o prédio adquirido a revenda. (…)”.
B) Da certidão emitida pela ... Conservatória do Registo Predial de ..... referente ao prédio rústico, descrito sob o nº ….., da freguesia de ......, sito na ......, Lote 116, ......, consta sob a AP. … de 2015/12/02; causa: Compra em processo de insolvência; quota adquirida: 1/10; sujeito activo: Limageste – Imobiliária do Lima, S.A.; sujeito passivo: FF (conforme documento junto a folhas 07 verso a 10 verso e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
C) O prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, integra-se numa Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI), denominada Parcela 116, para a qual a Câmara Municipal de ...... autorizou loteamento, tendo emitido o alvará nº .../2016.
D) Nos termos do alvará a que alude a alínea C), foi autorizada a constituição de 10 lotes, num total de 10 fogos, sendo que o lote 1, para além de uso habitacional, inclui também o uso de comércio/serviços (actividades económicas).
E) O Réu AA come, dorme, recebe família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.
F) Da certidão emitida pela ... Conservatória do Registo Predial de ..... encontra-se descrito sob o nº … o prédio rústico, composto de pinhal, com a área de 5.040m2 , lote nº 116, sito na ......, e da qual consta sob a Ap ….., referente a Aquisição de 1/10 a favor de FF por compra a II e mulher JJ, tudo conforme documento junto a folhas 85 verso a 87 verso e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
G) Em 06 de Agosto de 1997, o Réu AA e o irmão LL constituíram uma sociedade comercial chamada “Restaurante Sétimo ….., Lda.” com sede na Rua ……., Lt 1, ……, ……, como objecto de exploração de bar, snack-bar e restaurante, conforme documento junto a folhas 108 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
H) No dia 31 de Março de 2007 o Réu contraiu matrimónio com a Ré, o qual veio a ser dissolvido por decisão transitada em julgado no dia 01 de Fevereiro de 2018.
I) Do documento junto a folhas 169 a 170 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta:
“Compra e Venda
No dia onze de Julho de mil novecentos e noventa e cinco, no … Cartório Notarial de ……., perante mim, Licenciado MM, compareceram como outorgantes:
Primeiro: II (…) e esposa D. JJ (…).
Segundo: FF (…).
Declararam os primeiros outorgantes:
Que, pela presente escritura, livre de quaisquer ónus ou limitações, vendem ao segundo outorgante, pelo preço de setecentos e vinte cinco mil escudos, que declaram já ter recebido, um/dez avos indivisos do prédio rustico com a área de três mil novecentos e quarenta metros quadrados, sito na ......, freguesia de ......, concelho de ......., o qual está:
a) descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ….. do livro B – Trinta e Sete;
b) registada a mencionada fracção a favor dele pela inscrição número …… do livro G-Cento e Trinta e Três;
c) inscrito na respectiva matriz cadastral sob o artigo … da secção AL (…).
Declarou o segundo outorgante:
Que, aceita a presente venda nos termos exarados.
Assim o outorgaram.(…)”.
J) Aquando da aquisição a que alude a alínea A) já estava construída, embora ainda, sobre 1/10 do identificado prédio rústico, uma moradia com dois pisos, destinada a habitação, comércio e serviços, com logradouro, garagem e três lugares de estacionamento, que já foi utilizada para os referidos fins.
L) O constante da alínea E) ocorre desde o início do mês de Junho de 1997 (tendo entre 2007 e 2018 o réu residido noutro local, período em que utilizava a construção pontualmente).
M) Quando a Autora pretendeu entrar na moradia verificou que os réus ocupavam todo 1/10 do prédio, construção e terreno.
N) A construção nos 1/10 do prédio rústico foi construída por II, no início da década de 1980, e a qual se mantém até aos dias de hoje, utilizando-a como habitação própria, nela residindo, e ainda como estabelecimento comercial, mais concretamente como restaurante chamado “T…..”, o qual explorava directamente através da confecção e venda de refeições e bebidas, o que fazia à vista de todos e sem qualquer oposição.
O) Desde a venda a FF e até Junho de 1997, este passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário.
P) Desde o início do mês de Junho de 1997 que o Réu se comporta como dono dos 1/10 do prédio e da referida construção, tendo procedido à realização de pinturas interiores e exteriores, renovação total das casas de banho, modernização da cozinha, colocação do sistema de exaustão e ares condicionados e reparação de todo o telhado da construção, tendo-se instalado na construção em meados de Junho de 1997, à vista de todos e sem oposição.
Q) Após a data a que alude a alínea P) o réu celebrou um contrato de fornecimento de água.
R) A partir do dia 16 de Agosto de 1999, o irmão mais novo do Réu AA, LL passou também a residir na construção a partir desta altura, comendo, dormindo, recebendo família e amigos e recebendo correspondência.
S) Na sequência do constante da alínea G), o Réu AA e irmão instalaram na construção existentes no 1/10 do prédio um restaurante, conhecido como “Sétimo …….”, no qual confeccionavam e vendiam refeições e bebidas e, por volta de meados do ano de 2001, mudaram de ramo de actividade, passando o estabelecimento de restaurante para bar.
T) Posteriormente a exploração deste estabelecimento passou a ser feita pelos irmãos do Réu AA, LL e NN, e posteriormente no ano de 2004 e até ao ano de 2010 o Réu AA e irmão decidiram arrendar o espaço comercial sito no rés-do-chão da construção, recebendo a respectiva renda / retribuição.
U) E quando o Réu foi residir para ......, a construção continuou a ser habitada, no 1º andar, pelos irmãos do Réu, LL e NN e após o divórcio o Réu passou novamente a viver na construção.
V) O prédio a que alude a alínea A) corresponde actualmente à totalidade do lote 1, do loteamento nº …../99, com a área de 322 m2, a confrontar do norte com Particular, do sul com Praceta ……, do nascente com lote 2 e do poente com Rua …., sito no lugar de ......, ......, União de Freguesias de .... e ...., inscrito na matriz sob o artigo … - secção AL, descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o nº …….
X) O Réu nunca pagou qualquer renda quer à Autora, quer a terceiro.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
1 - A Autora, por ela e antecessores, designadamente por FF, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs de 1/10 do prédio a que alude a alínea A) utilizando-o sem restrições, ocupando-o, cultivando o terreno, nele edificando uma moradia, pagando impostos e contribuições, tudo à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros.
2 - Na data da escritura de compra e venda a que alude a alínea A) foram entregues pelo Senhor Administrador da Insolvência, e recebidas pela autora, as chaves da identificada moradia.
3 - Sobre essa moradia a Autora e seus antecessores, desde há mais de 1, 10, 20, 30 e mais anos e até ao presente, de forma ininterrupta, dispôs do 1º. andar da moradia para comer, dormir, receber família e amigos em tempo de férias, e o rés-do-chão como espaço de lazer e discoteca, à vista de todos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser dona e de não estar a prejudicar terceiros;
4 - Em Dezembro de 2015, quando a Autora pretendeu entrar na moradia, verificou que o canhão da fechadura estava mudado e desde então que os Réus vêm prometendo entregar o prédio.
5 - FF vendeu verbalmente ao Réu AA 1/10 do prédio rústico, que corresponde ao lote 01, bem como a construção edificada nesses 1/10 pelo valor de esc:66.000.000$00 (sessenta e seis milhões de escudos), sendo que a escritura de compra e venda não foi celebrada porque a construção não estava legalizada e não possuía licença de utilização, tendo sido acordado entre ambos que logo que tudo estivesse legalizado seria celebrada a respectiva escritura de compra e venda.
6 - A Autora tem perfeita consciência da divergência entre o valor por ela pago e o valor real (de mercado) dos 1/10 do prédio a que aludem os autos.
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II) Mérito do recurso:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, a questão enunciada.
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E) Se a decisão recorrida deverá ser revogada, por violar o disposto nos arts. 7º. CRP, 1253.º, 1265.º, 1287.º, 1290.º e 1296.º do CC?
Alegou a autora, a este respeito, no presente recurso o seguinte:
“(…) F) O DIREITO
F) 1) POSSE VERSUS DETENÇÃO
20. O facto de a alegada ocupação, pelo réu, não poder ser, não ser, mais que esporádica - cfr. redacção, modificada, das alíneas E) e L) -, não ter qualquer fundamento, e não ter passado, aquela dita ocupação, do ano de 2011, permite concluir que não poderia ele ter agido como beneficiário do direito de propriedade.
Quando muito, poderia ele ter agido como simples detentor, ou possuidor precário, dos prédios dos autos - art. 1253º., corpo e alínea a) CC - e, ainda assim, nunca o tendo feito depois de 2011.
Como dizem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, CC ANOTADO, vol. III, 2ª. ed., pág. 7, "a figura do detentor ou possuidor precário corresponde à situação daquele que, tendo embora o 'corpus' da posse, a detenção da coisa, não exerce o poder de facto com o 'animus' de exercer o direito correspondente (com 'animus possidendi')."
21. Por outro lado, a enorme, enormíssima, maioria dos 'actos de posse' dados por assentes na douta sentença, com referência ao período nesta considerado, de 15 anos, contados da data da propositura da acção (entre Março de 2004 e 2019), foi exercida/praticada em nome de outrem, designadamente de LL, de 'Restaurante 7º. ….., Lda." e de "Z……, Lda." - cfr. docs. juntos, pelo próprio réu, com a contestação sob os nºs. 28, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 51, 52 e 53.
Aliás, alguns dos 'actos de posse' referidos nos documentos do precedente número, sequer foram praticados pelo réu - ou tiveram a intervenção deste -, como sucede com as situações a que se reportam os documentos 28, 30, 31, 32, 33, 35, 37, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 46, 47, 48, 50 e 51.
Ora, os que possuem em nome de outrem, "são havidos como detentores ou possuidores precários", não podendo "adquirir para si, por usucapião, o direito possuído (...)" - arts. 1253º., corpo e alínea c), e 1290º. CC.
F) 2) A (NÃO) INVERSÃO DO TÍTULO DA POSSE
22. O referido art. 1290º. CC, no entanto, prossegue, estipulando que "achando-se invertido o título da posse", já há susceptibilidade de os meros detentores ou possuidores precários adquirirem por usucapião; "(...) mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título."
A inversão do título da posse foi o que defendeu a douta sentença recorrida, a págs. 19 dela, para sustentar, quer a improcedência da acção, quer a procedência da reconvenção, apesar de nem sequer ter mencionado contra quem operou a inversão.
Nem diz, também, a sentença, quando terá ocorrido a 'inversão do título', o que seria imprescindível, visto que a usucapião só começa a correr desde a inversão do título - art. 1290º. CC.
23. Ainda assim, e sem prescindir, sempre diremos que, nos termos do disposto no art. 1265º. CC, e para o que nos ocupa, "a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía (...).
Como ensina o excelente Ac. da Relação de Évora, de 14.11.1996, relatado por FERNANDO BENTO, tirado no recurso nº. 628/95, da comarca de Santiago do Cacém, in CJ, ano XXI, tomo V, pág. 263, (...)
II - E para adquirir por usucapião, tem de inverter o título da posse, designadamente por oposição contra o proprietário.
III - Para isso, é necessário que o detentor torne directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito e que tal oposição não seja repelida pelo possuidor.
IV - O acto de oposição deve ser inequívoco, isto é, deve significar que o detentor quer, doravante, possuir para si."
O detentor do direito seria o réu.
Aquele em cujo nome possuía era o FF, de quem aquele alegou ter adquirido o direito de propriedade.
Mas:
- Que oposição praticou o réu contra o FF?
- Quando lhe disse - aquele a este - que, a partir de certo momento, passaria a exercer a posse em nome próprio?
- E quando foi esse momento?
Tudo, já se vê, perguntas sem resposta na douta sentença.
24. Como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pág. 26, "o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito".
Ou, para usar a terminologia do Ac. da Relação de Coimbra, de 17.11.2009, proc. 106/06.2TBFCR.C1, relatado por CECÍLIA AGANTE, "necessário se torna que o detentor expresse directamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de actuar como titular do direito."
No mesmo sentido se pronunciaram, a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ, de 20.03.2014, proc. 3325/07.0TJVNF.P1S2, relatado por NUNO CAMEIRA e da Relação de Évora, de 17.11.2016, proc. 3689/15.2T.STB-B-E1, relatado por BERNARDO DOMINGOS.
Nenhuma destas actuações, do réu contra o FF - ou contra seja quem for - resulta dos autos, como é bom de ver, até porque em parte alguma estão alegadas.
Impossível, pois, ter-se dado a inversão do título da posse.
25. Permite todo o exposto se extraiam as seguintes conclusões:
(…)
C - Está demonstrada nos autos a propriedade, registada, da autora sobre os prédios dos autos, pelo que goza ela da presunção de que aqueles lhe pertencem, presunção que o réu não ilidiu;
D - Dos factos provados não resulta que, desde há mais de 15 anos, contados de 2019 - data da propositura da acção -, isto é, desde 2004, o réu tenha praticado, sobre os prédios, actos de posse, designadamente, de forma ininterrupta;
E - As expressões ocupavam, constante do facto M), explorar, constante dos factos O) e T), e residir, habitada e viver, constantes do facto U) - todos na redacção da douta sentença -, não consubstanciam quaisquer factos, antes traduzindo meras conclusões;
F - Os meios probatórios constantes do processo, nomeadamente todos os 59 documentos juntos pelo réu - insusceptíveis de ser contrariados por prova testemunhal - impõem decisão diversa sobre vários pontos da matéria de facto;
G - A decisão que deve ser proferida sobre a matéria de facto é a constante do nº. 19 desta motivação de recurso;
H - O réu alegou ter comprado os prédios dos autos, compra que a douta sentença teve por não demonstrada;
I - Não tendo praticado actos de posse sobre os prédios dos autos, o réu não podia ser mais que mero detentor, ou possuidor precário, pelo que não podia adquirir para si por usucapião;
J - Como simples detentor, o réu só poderia adquirir os prédios dos autos se estivesse invertido o título da posse, o que não ocorreu; (…)”.
Contra-alegou o 1.º réu recorrido, em suma, com os seguintes argumentos:
- A presunção de titularidade do direito de propriedade de que beneficia a autora (artigo 7.º do Código do Registo Predial) é ilidível, ilisão que o réu efetuou – Conclusões 29ª a 31.ª;
- O réu é o efetivo possuidor da coisa, posse que foi adquirida pela prática reiterada, com publicidade, de atos materiais que correspondem ao exercício do direito de propriedade (artigo 1263.º do CC), por mais de 15 anos, de forma pública, pacífica, sem oposição e ininterrupta, sendo idónea para a aquisição do direito de propriedade por usucapião (artigo 1296.º do CC) - Conclusões 32.ª a 39.ª; e
- A vontade de adquirir o direito reporta-se unicamente ao réu, não sendo o mesmo mero detentor, mas tendo ocorrido inversão do título da posse – Conclusões 40.ª a 48.ª.
Vejamos:
Como resulta do pedido formulado, a autora deduziu, de forma característica, uma acção de reivindicação.
Efectivamente, dispõe o artigo 1311º do Código Civil que:
“1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.
Como referia Manuel Rodrigues (“A reivindicação no direito civil português”, in R.L.J., ano 57.º, p. 144) há “na acção de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há um possuidor ou detentor que não é titular daquele direito, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade do autor e pela entrega do objecto sobre que o direito de propriedade incide”.
“A acção de reivindicação compreende dois pedidos concomitantes: O pedido de reconhecimento de determinado direito; O pedido de entrega da coisa objecto desse direito” (assim, Menezes Cordeiro; Direitos Reais, III Vol., AAFDL, 1978, p. 57).
São, pois, dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade («pronuntiatio») e a restituição da coisa («condemnatio»).
Nesta medida, compete ao autor demonstrar (em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil), em primeiro lugar, que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e, depois, que esta se encontra na posse ou detenção abusiva de outrem.
Um dos requisitos necessários para a procedência da acção de reivindicação é, pois, a prova do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada, pelo que “o reivindicante tem de provar o seu direito real” (assim, Oliveira Ascenção, Direito Civil - Reais, 4ª ed., p. 375).
Como refere José Alberto Vieira (Direitos Reais, 3.ª ed., Almedina, 2020, p. 452), “a prova do facto aquisitivo do direito do autor é feita nos termos gerais. Se o autor beneficia de presunção legal, o ónus da prova inverte-se, cabendo ao réu demonstrar que o autor não é titular do direito invocado (…). Não beneficiando o autor de nenhuma das presunções legais e caso o réu tenha contestado a titularidade daquele quanto ao direito real invocado, o primeiro tem de desenvolver a atividade probatória tendente à demonstração dessa titularidade”.
Nos termos do nº 4 do artigo 581.º do CPC, a causa de pedir na acção de reivindicação (acção real) é o facto jurídico de que deriva o direito de propriedade (teoria da substanciação).
Assim, se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.
Mas, já se a aquisição é derivada, “não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas deste direito. É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam alguns autores. Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse (...) e do registo (...)” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, III Vol., pág. 115 e, entre muitos outros, os seguintes acórdãos: do S.T.J. de 04-05-1976, in BMJ 257º, p. 82, de 18-02-1988, in BMJ 374º, p. 414 e de 17-12-2014, Pº 971/12.4TBCBR.C1.S1, rel. FONSECA RAMOS; da R.C. de 10-01-1989, in BMJ 383º, p. 614; da Relação de Lisboa de 06-07-1977, in C.J., t. 4, p. 926 e de 10-05-1978, in C.J., t. 3, p. 931; e da R.P. de 25/05/95, in C.J., t. 3, p. 223).
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-06-2009, Pº 9769/2008-7, rel. ROSA RIBEIRO COELHO): “Uma das questões de direito a resolver no âmbito de uma acção de reivindicação é a de saber se o autor é titular do direito de propriedade a que se arroga, o que passa necessariamente pela alegação e ulterior demonstração de factos que, vistos à luz das normas jurídicas aplicáveis, permitam concluir pela existência na sua esfera jurídica do invocado direito de propriedade sobre determinada coisa corpórea. Sendo invocada pelos autores uma forma de aquisição derivada da propriedade, como é o caso da sucessão, têm também de invocar factos que demonstrem, através da prova de uma aquisição originária, que do património do transmitente fazia parte tal direito de propriedade”.
Assim, “ao reivindicante, para fazer a prova de que adquiriu a propriedade, não basta alegar que a adquiriu por contrato realizado com o transmitente, insuficiência que decorre do facto de bem poder suceder que este não fosse o proprietário para lhe poder transmitir tal propriedade, exigindo-se que prove as aquisições dos sucessivos alienantes, na cadeia ininterrupta que se mostre existir até que termine na aquisição originária de um deles. Porque essa prova será as mais das vezes extremamente difícil, é entendimento comum doutrinário e jurisprudencial, o de que ao reivindicante basta alegar a presunção derivada do registo para cumprir o ónus da alegação da propriedade na acção de reivindicação, porque a inscrição no registo da aquisição em seu nome faz presumir que o direito registado lhe pertence – art 7º do CRP.” (neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-06-2012, Pº 7213/11.8TBOER.L1-2, rel. TERESA ALBUQUERQUE).
Na mesma linha, cite-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-01-2014 (Pº 224/12.8TBCTB-C.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES): “A norma do art.º 1311.º do Código Civil possibilita ao proprietário do bem exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. Na acção de reivindicação não basta ao autor reivindicante demonstrar a aquisição derivada, provando, por ex., que comprou a coisa, já que a compra não é constitutiva, mas apenas translativa do direito de propriedade, antes se lhe impondo a prova de que o direito já existia no transmitente, anterior proprietário. E daí que se exija ao reivindicante que prove as aquisições dos sucessivos alienantes, na cadeia ininterrupta que se mostre existir até que termine na aquisição originária de um deles, como sucede, para os imóveis, com a acessão e, por excelência, com a usucapião. Porque essa prova será as mais das vezes muito ou extremamente difícil é entendimento comum dos aplicadores do direito de que ao reivindicante basta alegar a presunção derivada do registo para cumprir o ónus da alegação da propriedade na acção de reivindicação. Mostrando-se que, no registo predial, a aquisição do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada se encontrava inscrita a favor do transmitente à data em que o autor dele a adquiriu derivadamente, não necessita o autor de produzir afirmações acerca da aquisição pelo transmitente desse direito, nem de provar essas afirmações. A lei presume, directamente, a existência do direito do transmitente e, assim, ultrapassada está a prova diabólica, porque encontrado o vendedor originário”.
Assim, beneficiando o titular de presunções de titularidade (como a presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no nº 1, do art. 1268.º do CC e a presunção de titularidade derivada do registo predial, prevista no art. 7º do Código de Registo Predial), o gozo de tal presunção faz presumir que o direito invocado existe e pertence à pessoa em cujo nome o registo se encontra efetuado: “A presunção juris tantum de titularidade derivada do registo predial releva em relação ao facto inscrito, aos sujeitos e ao objeto da relação jurídica dele emergente, presumindo-se que o direito existe e pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, emerge do facto inscrito e que a sua inscrição tem determinada substância - objeto e conteúdo de direitos ou ónus e encargos nele definidos (art.º 80º n.º 1 e 2 do Código do Registo Predial)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-05-2018, Pº 276/11.8TBTMC.G1, rel. EUGÉNIA CUNHA).
Ora, na fundamentação da decisão de direito, o Tribunal recorrido expressou-se, quanto a este ponto, nos seguintes termos:
“(…) A Autora tem registada a seu favor a aquisição do direito de propriedade sobre os 1/10 (que corresponderá actualmente ao lote 1) do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, que adquiriu, por compra e venda, em 27 de Novembro de 2015.
Nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Beneficiando a Autora dessa presunção, está a mesma dispensada de fazer qualquer prova dos factos constitutivos do seu direito, incumbindo ao Réu AA a demonstração da matéria com a virtualidade de elidir a presunção (artigo 344º, nº 1 do Código Civil)”.
Trata-se de matéria incontroversa e que não é também colocada em crise em sede de recurso.
Contudo, no caso em apreço, o 1.º réu invocou que adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel (terreno e construção nele efetuada) dos autos por usucapião, pedindo, também, em reconvenção, o reconhecimento de tal direito.
A usucapião é enunciada no artigo 1316.º do CC como uma das causas de aquisição da propriedade, a par do contrato, da sucessão por morte, da ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.
No caso da usucapião, o momento de aquisição do direito de propriedade corresponde ao momento do início da posse (cfr. artigo 1317.º, al. c), do CC).
O artigo 1287.º do CC fornece uma definição de usucapião: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua aquisição (…)”.
“Vários são os elementos da definição normativa, constituindo pressupostos da usucapião: a) a posse; b) o gozo, ou seja, o uso da coisa e a fruição das suas utilidades; c) o decurso de certo prazo; d) a ausência de previsão normativa que exclua a faculdade de aquisição (são, desde logo, excluídos da usucapião as servidões prediais não aparentes e os direitos de uso e de habitação – artigo 1293.º). A norma não esgota, porém, os pressupostos, dependendo, em especial, da remissão operada pelo artigo 1292.º para as regras da prescrição e, claro, das disposições gerais sobre a posse, designadamente, das classificações possessórias” (assim, Henrique Sousa Antunes; Direitos Reais; Universidade Católica Editora, 2017, p. 241).
Dito de outro modo: “A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil).” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-03-2021 (Pº 435/11.3TBVPA.G1.S1, rel. OLIVEIRA ABREU).
Ora, sobre este ponto, a factualidade apurada nas alíneas E), G), L), M), P), Q), R), S), T), U) e X) dos factos provados, tal como resultou da reapreciação de facto efetuada por este Tribunal, nos termos sobreditos, afigura-se-nos inequívoca e demonstrativa de que o 1.º réu se comporta e comportou desde inícios do mês de Junho de 1997 como dono do referido terreno, onde se encontra implantada uma construção, atuando os poderes inerentes aos de proprietário, com a convicção inerente, detendo, pois, desde tal data, a posse sobre o prédio dos autos.
Subscrevem-se, pois, as seguintes considerações constantes da fundamentação de Direito da decisão recorrida, que não nos merecem reparo:
“(…) Demonstrou-se que, desde o início do mês de Junho de 1997, o Réu AA come, dorme, recebe família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.
Da certidão emitida pela ... Conservatória do Registo Predial de ..... encontra-se descrito sob o nº ….. o prédio rústico, composto de pinhal, com a área de 5.040m2 , lote nº 116, sito na ......, e da qual consta sob a Ap ….., referente a Aquisição de 1/10 a favor de FF por compra a II e mulher JJ.
Em 06 de Agosto de 1997, o Réu AA e o irmão LL constituíram uma sociedade comercial chamada “Restaurante Sétimo ……, Lda.” com sede na Rua ……, Lt 1, ….., ……., como objecto de exploração de bar, snack-bar e restaurante.
No dia 31 de Março de 2007 o Réu contraiu matrimónio com a Ré, o qual veio a ser dissolvido por decisão transitada em julgado no dia 01 de Fevereiro de 2018.
A construção nos 1/10 do prédio rústico foi construída por II, no início da década de 1980, e a qual se mantém até aos dias de hoje, utilizando-a como habitação própria, nela residindo, e ainda como estabelecimento comercial, mais concretamente como restaurante chamado “T…..”, o qual explorava directamente através da confecção e venda de refeições e bebidas, o que fazia à vista de todos e sem qualquer oposição. Essa construção edificada nos 1/10 do prédio foi também vendida (…) a FF e desde então e até Junho de 1997, FF passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário.
Mais se provou que desde o inicio do mês de Junho de 1997 que o Réu se comporta como dono dos 1/10 do prédio e da referida construção, tendo celebrado contratos de fornecimento de água e procedido à realização de pinturas interiores e exteriores, renovação total das casas de banho, modernização da cozinha, colocação do sistema de exaustão e ares condicionados e reparação de todo o telhado da construção, tendo-se instalado na construção em meados de Junho de 1997, à vista de todos e sem oposição. A partir do dia 16 de Agosto de 1999, o irmão mais novo do Réu AA, LL passou também a residir na construção a partir desta altura, comendo, dormindo, recebendo família e amigos e recebendo correspondência.
Em Agosto de 1997 o Réu AA e irmão instalaram na construção existente no 1/10 do prédio um restaurante, conhecido como “Sétimo……”, no qual confeccionavam e vendiam refeições e bebidas e, por volta de meados do ano de 2001, mudaram de ramo de actividade, passando o estabelecimento de restaurante para bar. Posteriormente a exploração deste estabelecimento passou a ser feita pelos irmãos do Réu AA, LL e NN, e posteriormente no ano de 2004 e até ao ano de 2010 o Réu AA e irmão decidiram arrendar o espaço comercial sito no rés-do-chão da construção, recebendo a respectiva renda / retribuição.
Também se provou que, quando o Réu foi residir para ......, a construção continuou a ser habitada, no 1º andar, pelos irmãos do Réu, LL e NN e após o divórcio o Réu passou novamente a viver na construção.
Por último provou-se que o Réu nunca pagou qualquer renda quer à Autora, quer a terceiro.
“A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” – artigo 1251º do Código Civil.
Os actos acima enunciados são os correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sobre a totalidade de 1/10 (que corresponderá actualmente ao lote 1) do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL e sobre a construção nele implantada.
Essa posse foi adquirida, nos termos da alínea a) do artigo 1263º do Código Civil, pela prática reiterada, com publicidade, ou seja, perante todos, dos actos materiais que correspondem ao exercício do direito de propriedade.
A prática desses actos materiais (o corpus da posse) faz presumir a intenção de agir como titular do direito (o animus), sendo certo que no caso se demonstrou que o Réu AA agiu sobre a coisa com a convicção de estar a exercer um direito próprio.
A primeira conclusão deve ser, assim, que o Réu AA exercia a posse correspondente ao direito de propriedade sobre 1/10 (que corresponderá actualmente ao lote 1) do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL e sobre a construção nele implantada (…)”.
Em face do exposto, parece-nos, de facto inequívoco que o 1.º réu atuou, desde Junho de 1997, sobre o prédio dos autos, como se fosse dono do mesmo, exercendo atos inequívocos demonstrativos do exercício do direito correspondente ao direito de propriedade (come, dorme, recebe família e amigos na construção existente no terreno em questão, usando, fruindo, ocupando o mencionado prédio, retirando as utilidades inerentes ao mesmo), apossando-se do mesmo (cfr. artigo 1251.º do CC), ainda que não se tenha demonstrado a factualidade ínsita, designadamente, no ponto n.º 6 dos factos não provados e que se tenha provado que, durante o tempo do seu casamento, o mesmo tinha morada noutro local.
A decisão recorrida é clara em apontar que os referidos atos de exercício da posse pelo 1.º réu, demonstram que ocorreu outra via de aquisição da posse (para além da inversão, que é um dos meios de aquisição da posse, tal como previsto na alínea d) do artigo 1263.º do CC):
“Essa posse foi adquirida, nos termos da alínea a) do artigo 1263º do Código Civil, pela prática reiterada, com publicidade, ou seja, perante todos, dos actos materiais que correspondem ao exercício do direito de propriedade.
A prática desses actos materiais (o corpus da posse) faz presumir a intenção de agir como titular do direito (o animus), sendo certo que no caso se demonstrou que o Réu AA agiu sobre a coisa com a convicção de estar a exercer um direito próprio.
Exercendo o Réu AA a posse sobre os 1/10 e construção nele implantada, essa posse é hábil para a aquisição do direito correspondente (…).
Regressando ao caso concreto, temos que o Réu praticou por si (…) os referidos actos de posse, há mais de 15 anos (contados da data da propositura desta acção). Fê-lo de forma pública, pacífica, sem qualquer oposição e de modo interrupto, pelo que, nos termos do artigo 1296º do Código Civil, adquiriu o direito de propriedade sobre 1/10, que corresponde actualmente ao lote 1, bem como adquiriu o direito de propriedade sobre a construção nele implantada.
Assim e em síntese conclusiva, improcede na totalidade a presente acção e procede o pedido reconvencional, reconhecendo-se o direito de propriedade de AA, adquirido por usucapião, sobre 1/10 indiviso do prédio rústico composto de terreno de pinhal sito no lugar de ......, lote 116, que corresponde ao actual lote 1, ......, União de Freguesias de .... e ...., concelho de ......., à Praceta ….., ......, inscrito na matriz predial sob o artigo ... secção AL, e descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ....., sob o nº ….. e no qual se encontra implantadas benfeitorias que correspondem a uma construção descrita na matriz predial urbana sob o artigo ….º da União de Freguesias de .... e ...., tendo origem no artigo matricial …..º da extinta Freguesia de ......, sito na Rua ……, nº 1, no lugar de ......, ......, a qual corresponde à antiga Rua das ……, nº 1, posto que a verdade do registo terá que ceder em função da verdade substantiva”.
Todavia, já não se acompanha a fundamentação da decisão recorrida, designadamente, quando alude a que a prática dos atos materiais pelo réu, fez inverter o título da posse (não se apurando alguma situação de oposição do 1.º réu ou ato de terceiro capaz de transmitir a posse, situações em que, de harmonia com o disposto no artigo 1265.º do CC, ocorreria uma tal inversão), situação que, de facto, não se logrou demonstrar, nem se infere da factualidade apurada.
Mas, com exceção deste ponto - que, aliás, não influi nas demais considerações expendidas na decisão recorrida - a demais fundamentação jurídica merece a nossa total concordância e adesão.
Quanto ao mais, verificam-se ser insubsistentes as invocações efetuadas pela autora no artigo 20º da alegação de recurso, que, para a sua procedência, pressuporiam a integral procedência da impugnação da matéria de facto nos precisos termos que invocou, o que, como supra se viu, não sucedeu.
Por outra parte, não procede também a invocação constante do artigo 21.º da alegação da recorrente, uma vez que, de facto, se é certo que, diversos actos materiais sobre o prédio dos autos terão sido (ao menos, desde que o mesmo aí se encontra a viver) praticados por LL, irmão do 1.º réu, certo é que, tal situação (que não se demonstrou ter feição possessória, mas antes mera detenção – cfr. artigos 1253.º, al. c) e 1290.º do CC), não descaracteriza ou influi, de algum modo, na situação possessória do 1.º réu, que continuou a manter o exercício das faculdades inerentes ao direito real correspondente ao do direito de propriedade, atuando como possuidor.
Mas, diga-se, fora deste específico campo, a consideração do disposto no artigo 1290.º do CC não tem razão de ser em ser convocado para os presentes autos – ao contrário do que pugna a autora - no que concerne à posição possessória do 1.º réu, pois, não está em questão, relativamente a este, uma situação de detenção ou posse precária.
Assim, não procede também o que, em contrário, é alegado pela recorrente nos artigos 22.º, 23.º e 24.º das suas alegações de recurso, improcedendo, igualmente, as respetivas conclusões recursórias.
No mais, verificado o conflito entre a presunção de propriedade decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial – de que beneficia a autora – e a posse do 1.º réu, exercida por mais tempo do que aquele que é exigido na primeira parte do artigo 1296.º do CC (detendo a posse do 1.º réu os caracteres supra mencionados, de publicidade, caráter pacífico, sem oposição e de modo ininterrupto – não colidindo com este aspeto o apuramento factual efetuado quanto à alínea L) dos factos provados, pois, não se demonstrou que, no período aí considerado, tenha havido alguma cessação dos referidos atos materiais sobre o prédio dos autos – cfr. artigo 1257.º, n.º 1, do CC) conclui-se que o réu adquiriu o dito prédio em questão nos autos (na proporção de 1/10 avos), por usucapião (cfr. artigo 1296.º do CC), sendo o direito possessório do réu, que lhe confere o direito de propriedade, prevalecente (cfr. artigo 1268.º, n.º 1, do CC), afastando a presunção decorrente do mencionado normativo do Código do Registo Predial.
De facto, como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-05-2006 (Pº 966/06, rel. CURA MARIANO): “Verificando-se um caso de concurso de presunções (resultantes do registo e da posse – artº 7º do CRP e 1268º, nº 1, do C. Civ.), o mesmo é resolvido pelo disposto no artº 1268º, nº 1, do C. Civ., isto é, prevalece a presunção mais antiga e, em caso de igualdade na antiguidade, prevalece a posse. Sendo a data do registo mais antiga que a data da posse, prevalece a presunção registral”.
Neste mesmo sentido escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-11-2013 (Pº 74/07.3TCGMR.G1.S1, rel. SERRA BAPTISTA) que: “A presunção derivada do registo predial pode entrar em conflito com a presunção da titularidade resultante da posse de outrem sobre o mesmo prédio. Resultando do art. 1268.º do CC que a presunção derivada do registo apenas prevalecerá se for anterior ao início da posse, pois, de contrário, será a presunção a favor do possuidor que prevalecerá”.
E, também na mesma linha, cite-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES) onde se decidiu que: “Do art.º 1268.º do CC resulta que, para que não funcione a presunção derivada da posse, será necessário que exista a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, isto é, havendo conflito de presunções, uma derivada do registo, isto é, do artigo 7.º do Código do Registo Predial e a outra emergente da posse, ou seja, do artigo 1268.º, n.º1, do Código Civil, prevalece esta última, designada por presunção da propriedade, que só cede em confronto com a presunção derivada do registo anterior ao do início da posse”.
É que, a presunção derivada da posse, traduzida nos actos materiais descritos nos autos, exercida pelo réu (em termos de corpus, mas também, em termos de animus, considerando a presunção do artigo 1252.º, n.º 2, do CC, de harmonia com a orientação sufragada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14-05-1996, publicado no DR, 2.ª Série, de 24-06-1996) remonta a inícios de Junho de 1997, enquanto que o direito inscrito no registo em benefício da autora, data de 02-12-2015, pelo que, o mencionado direito aquisitivo do réu é prevalecente sobre o da autora, por a presunção detida pelo mesmo ser mais antiga do que esta.
Pode dizer-se, em síntese e quanto à situação dos autos, que “no conflito entre direitos incompatíveis sobre a coisa, se alguém se fiou apenas na situação registral, nada pode contra a usucapião, ultima ratio na solução dos conflitos entre adquirentes de direitos reais, que o titular verdadeiro pode invocar nos termos gerais” (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2004 (Pº 04B3869, rel. ARAÚJO BARROS).
Em face do exposto, os comandos normativos referenciados, constantes do artigo 7.º do Código do Registo Predial e dos artigos 1253.º, 1287.º, e 1296.º do CC (sendo que, quanto aos artigos 1265.º e 1290.º do CC, como se evidenciou, de acordo com a fundamentação supra explanada, os mesmos não têm aplicação ao caso) não foram, de algum modo, violados ou postergados, antes devidamente considerado pela decisão recorrida.
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Em face do exposto, não se encontra, pois, fundamento para a revogação da decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.° 2 do art. 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve:
“I. O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão.
II. A decisão de facto inserida em sentença ou acórdão não constitui ato decisório autónomo, assumindo antes a natureza de fundamento no quadro e economia da decisão final ali proferida.
III. Assim, o vencimento obtido pelo recorrente na impugnação de determinado ponto de facto, mas sem repercussão na solução jurídica da pretensão recursória, não importa em juízo de procedência parcial da apelação nem releva para efeitos de repartição da responsabilidade pelas custas”.
Em conformidade com o exposto, as considerações expendidas em sede de impugnação da matéria de facto – que determinaram a alteração da decisão de facto prolatada – e os diversos fundamentos – acessórios, com referência, ao sentido decisório do mesmo, em que se ancorou o presente acórdão, não relevam para efeitos de repartição da responsabilidade por custas.
Ou seja: O vencimento obtido pela recorrente na impugnação de determinado ponto de facto ou em determinado fundamento jurídico acessório, que não determinou, todavia, repercussão na decisão da pretensão recursória, não importa em juízo de procedência parcial da apelação, nem releva para efeitos de repartição da responsabilidade pelas custas.
Assim, a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre a apelante, que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em:
I) Rejeitar a impugnação da matéria de facto, no tocante à impugnação relativa a meios probatórios objeto de gravação, por inobservância do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC;
II) Modificar a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1) Alterar a redação da alínea E) dos factos provados para a seguinte: “E) O Réu AA come, dorme, recebe família e amigos na construção existente em 1/10 do prédio rústico, terreno composto de pinhal, lote 116, situado no Lugar de ......, ......, união das freguesias de ...... e ......, concelho de ......., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ..... sob o número ........, inscrito na matriz sob o artigo ... secção AL, deste fazendo o centro da sua vida doméstica e social.”;
2) Alterar a redação da alínea L) dos factos provados para a seguinte: “L) O constante da alínea E) ocorre desde o início do mês de Junho de 1997 (tendo entre 2007 e 2018 o réu residido noutro local, período em que utilizava a construção pontualmente)”;
3) Alterar a redação da alínea O) dos factos provados para a seguinte: “O) Desde a venda a FF e até Junho de 1997, este passou a explorar o estabelecimento comercial instalado pelo anterior proprietário”;
4) Alterar a redação da alínea Q) dos factos provados para a seguinte: “Q) Após a data a que alude a alínea P) o réu celebrou um contrato de fornecimento de água”;
5) Julgar improcedente a alteração pretendida quanto às alíneas M), P), R), T) e U) dos factos provados e quanto aos n.ºs. 1) e 3) dos factos não provados; e
III) Confirmar – salvo quanto ao fundamento atinente à inversão da posse, nos termos supra referidos - quanto ao mais, a decisão recorrida.
Custas pela autora/apelante.
Notifique e registe.
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Lisboa, 04 de novembro de 2021.
Carlos Castelo Branco
Magda Espinho Geraldes
Maria José Mouro Marques da Silva