Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2633/15.1TDLSB.L2-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FACTOS
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
DECLARAÇÃO DE VOTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: O despacho de não pronúncia que não descreva os factos que considera indiciados e não indiciados padece de irregularidade que, porque afecta o valor do referido despacho, é de conhecimento oficioso (art.º 123º/2 do CPP).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: *

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Na 1ª Secção de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de 21/02/2017, constante de fls. 291294, decidiu-se não pronunciar o Arg.[1] , com os restantes sinais dos autos (cf. TIR[2] de fls. 120[3]), nos seguintes termos:

“… Nos presentes autos os assistentes Sindicato Nacional dos Bombeiros Profissionais, … e …, deduziram acusação particular crimes de difamação e injúrias agravados, p.p. nos arts. 180.° n° 1 e 181.° n° 1 do C. Penal contra o arguido M..., não acompanhada pelo Ministério Público.

Por sua vez, o arguido incoformado com tal acusação requereu a abertura de instrução, alegando que as afirmações que proferiu e constam da acusação particular não integram a prática dos crimes supra referidos, limitando-se a meras críticas à actuação dos assistentes em defesa da actividade profissional de bombeiro e associação que o arguido representava.

Tal actuação enquadra-se no direito do arguido à liberdade de expressão e não tem relevância penal.

Pelo exposto, requerer o arguido que seja proferido despacho de não pronuncia.

Procedeu-se ao interrogatório do arguido.

Realizou-se Debate Instrutório com obediência ao legal formalismo. *

O Tribunal é competente e o processo o próprio.

Não existem nulidades ou questões prévias que obstando ao conhecimento do mérito da causa, cumpra conhecer. *

Atento o preceituado no art° 308.° n° 1 do Cód.Proc.Penal há que apurar se dos autos resultam indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, sendo certo que só se mostram suficientes e prova bastante quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, num juízo de prognose sobre a prova a produzir em julgamento.

Mostra-se, assim, necessário aferir se dos autos resultam indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de facto que determinam a aplicação ao arguido de uma pena pela prática dos crimes de difamação e injúrias.

Em termos fácticos tem relevância para a apreciação da prática dos crimes em apreço, essencialmente a prova documental que consta de fls. 18, 20, 21, 22, 23, 26, 31, 33 e 34, onde o arguido tece várias considerações e comentários sobre a actuação dos assistentes em defesa da actividade profissional de bombeiro, designadamente referindo-se ao assistente Sérgio Carvalho como uma pessoa que não é fiável e reportando-se ao assistente Fernando Curto, declara " fala claro, mixa direito, não sejas parvo ".

Dado que as expressões em causa não foram proferidas perante os assistentes mas perante terceiros na internet, não poderemos em caso algum estar perante o crime de injúrias mas tão só perante o crime de difamação, p.p. no art. 180.° n° 1 do C. Penal.

Analisando tais considerações e afirmações do arguido sobre os assistentes … e … à luz do disposto nos arts. 180.° do C. Penal, apesar de estas serem rudes e desagradáveis, por força do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, necessário é concluir tal como já referido pelo Ministério Público que as mesmas não integram ilícito penal, encontrando-se ainda no âmbito do exercício socialmente tolerável da liberdade de expressão.

No âmbito do ilícito em causa, tem sido entendio que " é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc. que provocam animosidade. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o Direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função" - cfr. Ac. da RP de 19.1.2005, in dgsi.pt.

"Se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo dai resultante e susceptibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada. "1

Na verdade, no caso vertente as expressões utilizadas pelo arguido são algo desagradáveis mas como o próprio referiu em interrogatório judicial, as mesmas tinham um contexto, que era a defesa do que na perspectiva do arguido, eram os interesses de uma classe profissional onde todos se integravam.

As expressões em causa, nesse contexto e na conflitualidade que no mesmo se gerou entre assistentes e arguido, embora rudes e acintosas não atingem núcleo do que em termos gerais na sociedade actual se entende pela honra e consideração dos assistentes.

Entende-se assim que o arguido agiu de forma mais desabrida e incomoda para com os assistentes. Porém, a conduta documentada nos autos não é suficiente para integrar os elementos típicos objectivos do crime de difamação.

Considera-se pois que as expressões descritas nos arts. 7.° a 17.° da acusação particular, não têm a virtualidade de atingir a honra e a consideração dos assistentes, com a intensidade indispensável para fazer actuar o Direito Penal.

Pelo exposto, decido não Pronunciar o arguido … pela prática dos crimes de difamação e injúrias que lhe eram imputados pelos assistentes.

Custas da instrução a cargo dos assistentes, fixando-se a taxa de justiça devida pela instrução em 2 UCs. …”.

*

Não se conformando, o , id. na procuração de fls. 10, interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 304/316, com as seguintes conclusões:

“… 1.  Foi apresentada queixa-crime pelos Recorrentes contra o Recorrido por crimes de injúrias, difamação e ofensas a pessoa coletiva.

2.         O M.P. proferiu Despacho de Arquivamento relativamente ao crime de ofensa a pessoa coletiva e relativamente aos demais notificou o assistente para dedução da Acusação Particular.

3.         O Arguido do Despacho de Acusação Particular requereu a abertura de Instrução que culminou num Despacho de não pronúncia.

4.        Em síntese consta do Despacho de não pronuncia que as declarações proferidas pelo arguido se encontrariam abrangidas pela liberdade de expressão.

5.         No teor do Despacho de não pronúncia omitiu a Meritíssima Juíza de Instrução o conteúdo de todas as expressões proferidas pelo arguido.

6.         Mais ignorou a Meritíssima Juíza do Tribunal de Instrução o facto de o arguido ter referido que até concebia o facto dos assistentes não terem alcançado que o Acordo de empresa poderia ser prejudicial para os trabalhadores, mas mesmo assim não deixou o arguido de proferir tais expressões.

7.         Decorre do Artº 25º e 26º da Constituição da República que toda a pessoa goza do direito à integridade  moral e física e ao bom nome e reputação.

8.         O Direito à liberdade de expressão é um pilar essencial do Estado de Direito Democrático, no entanto, tal direito não pode ser exercido com ofensa de outros direitos, designadamente o direito ao bom nome e reputação.

9.         As expressões proferidas pelo arguido nada têm a ver com um combate político e não veiculam qualquer pensamento ou mesmo facto político ou de natureza política.

10.       De facto os artigos 180º, nº 1 e 2, interpretados e aplicados no sentido da decisão recorrida, ou seja, de que é  permitido a um cidadão imputar a outro cidadão factos ou juízos ofensivos da sua honra, sem que tal conduta seja considerada crime pelo facto de a vítima ser uma figura pública, constitui uma violação do disposto nos artigos 13º, nº 1 e 2, e 26º nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.

11.       A liberdade de expressão na variante do direito de crítica não é um direito ilimitado, absoluto, sem restrições, pois a própria lei lhe estabelece garantias efetivas contra a sua utilização abusiva e contrária à dignidade humana (artigos 37º e 18º nº 2 da CRP).

12.      A interpretação da jurisprudência do TEDH à luz do preceituado no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em particular o nº 2 do preceito, reconhece que o exercício da liberdade de expressão está sujeito a restrições, não deixando o Estado Português de poder atuar ao nível do direito interno vigente em matéria de honra e bom nome decorrente do tipo penal em causa artigo 180º do Código Penal.

13.       O legislador fez depender duas condições cumulativas para que se possa entender não estar preenchido o crime de difamação:

c)        Que a imputação seja feita para realizar interesses legítimos;

d)        Que o agente faça prova da verdade da imputação, ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a considerar verdadeira, sem prejuízo do disposto no artigo 31º nº 2 do Código Penal.

14.      Mesmo que hipoteticamente pudéssemos admitir que o Arguido o fez para proteger interesses legítimos, o mesmo já não se poderá dizer em relação à alínea b) supramencionada, na medida em que o Arguido não fez prova da verdade de imputação nem tinha fundamento sério para em boa fé a considerar verdadeira e isto porque, o Arguido ouvido na Instrução chegou mesmo a referir que os assistentes nem se chegaram a aperceber de que o Acordo de empresa seria lesivo para os trabalhadores, mas mesmo assim não deixou o arguido de publicar tais expressões em ordem a difamar os assistentes.

15.       Decorre do nº 2 do Artº 308º do C.P.P. que o despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. A não descrição dos factos acarreta a nulidade da decisão instrutória (artº 308º nº 2 com referência ao artº 283º nº 3 b) do C.P.P.), por ausência de fundamentação de facto da mesma.

16.       Entende o recorrente que o despacho de não pronúncia é nulo por falta de fundamentação dos factos indiciados e não indiciados.

Nesta medida requerer-se muito respeitosamente a admissão do presente  Recurso, bem como seja declarado nulo  o Despacho de Não Pronuncia por falta de fundamentação e em consequência seja o mesmo substituído por outro que fundamente os factos considerados indiciados e não indiciados que levaram à decisão de não pronúncia do arguido. …”.

*

O Exm.º Magistrado do MP[4] respondeu ao recurso nos termos de fls. 322/327, concluindo da seguinte forma:

“… 1.  Ao contrário do que se afirma no recurso interposto, o despacho de não pronúncia é claro quanto aos factos indiciados e o respectivo enquadramento jurídico.

2.        Como é referido naquele despacho está em causa primacialmente a expressão "fala claro, mija direito, não sejas parvo" e ainda como consta do despacho a factualidade constante dos artigos 7.° a 17.° da acusação particular".

3.        Tal factualidade está correctamente enquadrada juridicamente tendo-se concluído que a mesma não integra qualquer crime.

4.        A este respeito o despacho recorrido entendeu em síntese que tais expressões «não integram o ilícito penal, encontrando-se ainda no âmbito do exercício socialmente tolerável da liberdade de expressão».

5.         Considerou-se que “as expressões descritas nos art.ºs 7º e 17º da acusação particular, não têm a virtualidade de atingir a honra e a consideração dos assistentes, com a intensidade indispensável para fazer actuar o Direito Penal".

6.        Ora, estas considerações estão inequivocamente sustentadas no nosso sistema jurídico.

7.        Como lapidarmente salienta Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, pag. 725), "o juízo de valor desonroso não é ilícito quando resulta do exercício da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e da liberdade de criação artística numa sociedade democrática e tolerante. A crítica pode ser legitimamente exercida no contexto da luta política (...), da luta sindical, ou da crítica de decisões judiciais ou de promoções do Ministério Público, ou, em geral, da crítica a actividade profissional (...)".

8.         E um pouco mais à frente, na mesma obra, o mesmo autor sintetiza que "o juízo de valor é ilícito quando ele consubstancia um "ataque pessoal gratuito" (gratuitous personal attack), porque não é acompanhado de uma explicação objectiva".

9.        Ora, todas as expressões constantes da queixa de fls. 1 e seguintes estão ligadas à assinatura de um acordo de empresa bem patente no ponto 12.° da queixa quando se refere que o denunciado escreveu que "o Sindicato Nacional dos Bombeiros Profissionais está a destruir as Associações Humanitárias que assinaram o Acordo de Empresa e a inquinar os Corpos de Bombeiros. Amigos Presidentes das Associações Humanitárias de Bombeiros Voluntários de Portugal, por tudo o que é mais sagrado e para o bem das Vossas Associações, não assinem o Acordo de Empresa que o Sindicato vos propõe que está todo armadilhado. Com saudações humanitárias sou M…. Presidente enganado de Pombal".

10. Resulta assim que existe em concreto a manifestação de uma opinião discordante e ligada à luta sindical a que estão ligadas as manifestações de desapreço e que foram indicadas na queixa como configurando a prática de crime contra a honra.

11. As expressões não são assim de carácter gratuito de modo a enquadrar o crime de injúrias imputado estando ainda enquadradas nos direitos de liberdade sindical e de expressão, não sendo pois aptas a ferir a honra dos visados.

12. Com efeito, estabelece o artigo 31.° n.° 1 do Código Penal que "o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade".

13. O n.° 2 alínea b) deste preceito estabelece por seu turno que "não é ilícito o facto praticado no exercício de um direito".

14. Ora, a conduta denunciada enquadra estes pressupostos de exclusão de ilicitude.

15. Não foram violadas pela decisão recorrida quaisquer das normas invocadas pela assistente.

Assim, deverá o recurso interposto ser considerado improcedente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA! …”.

*

Neste tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 332, em suma, subscrevendo a posição assumida pelo MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

*
É pacífica a jurisprudência do STJ[5] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[6], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação;

II – Carácter injurioso das expressões proferidas pelo Arg..

*

Cumpre decidir.

I - Entende o Recorrente que o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação, uma vez que não descreve os factos que considera indiciados e não indiciados.

Verificamos que, na verdade, o despacho recorrido não contém a indicação, nem por remissão, sobre quais os factos que considera indiciados e não indiciados.

Como se afirmou no acórdão da RG de 09/07/2009, relatado por Cruz Bucho, no processo 504/07.4GBVVD-A.G1, in www.gde.mj.pt, “…analisando o despacho recorrido o que desde logo dele se retira é que omite a especificação de todos os factos que se consideram suficientemente indiciados e dos que não o estão, sempre por referência à "acusação" deduzida pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução e à semelhança da exigência imposta pelo artigo 374°, n.º 2, do CPP para a sentença (enumeração dos factos provados e dos factos não provados).

O cumprimento dessa exigência é, por conseguinte, essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão.

Na verdade, só após esta actividade processual se poderia seguir a tarefa de decidir se os factos indiciados, de entre os enumerados na acusação, eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento pelos crimes imputados.

Esta é, efectivamente, a posição seguida maioritariamente nesta Relação como se colhe nomeadamente dos acórdãos de 27-9-2004, proc.º n.º 1008/04, rel. Heitor Gonçalves, de 6-4-2004, proc.º n.º 1823/04, rel. Nazaré Saraiva, de 6-12-2004, proc.º n.º 1823/04, rel. Nazaré Saraiva, de 17-10-2005, proc.º n.º 1457/05, rel. Miguez Garcia, de 6-11-2006, proc.º n.º 725/06, rel. Estelita de Mendonça, de 18-6-2007, proc.º n.º 978/07, rel. Tomé Branco, de 12-2-2007, proc. n.º 224/07, rel. Estelita de Mendonça, de 15-6-2009, proc.º n.º 453/07.6TABCL, rel. Cruz Bucho, nos quais se defende que o cumprimento dessa exigência é essencial para a fixação dos referidos efeitos do caso julgado da decisão de não pronúncia, ficando o valor deste despacho, consequentemente, afectado por via de tal omissão, a qual consubstancia irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no n.º 2 do art. 123º do Código de Processo Penal.

Não se vislumbra nenhuma razão para alterar este entendimento.

Note-se que também os acs da Rel. de Évora de 1-3-2005, proc.º n.º 1481/04-1, rel. Orlando Afonso e da Rel. de Lisboa de 10-7-2007, proc.º n.º 1075/07-5, rel. Margarida Blasco, ambos in www.dgsi.pt e o Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 769, se pronunciaram-se, igualmente, pela necessidade de o despacho de pronúncia ou de não pronúncia conter descrição dos factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência dos indícios, embora divirjam na qualificação do vício, que o primeiro daqueles arestos classifica de nulidade insanável.

Como impressivamente se salientou no citado acórdão da Rel. de Évora de 1-3-2005:

«Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmº Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos. corroborados ou não por outros elementos dos autos. decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução (...)

Com efeito, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente.»

Constatando-se a apontada irregularidade, impõe-se, por conseguinte a revogação, nesta parte, da decisão recorrida, a qual deverá ser substituída pelo tribunal a quo, por outra que supra aquela irregularidade, enumerando todos os factos indiciados e não indiciados por referência ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.…”[7].

No mesmo sentido, se pronunciou o acórdão da da RP de 14/06/2017[8].

Subscrevemos inteiramente este entendimento, que tem aplicação directa ao presente caso.

Por isso, há que revogar o despacho recorrido para que seja substituído por outro que supra a apontada invalidade.

Esta conclusão prejudica a apreciação da outra questão suscitada, isto é da existência de indícios dos crimes de que o Arg. foi acusado.
*****
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, revogamos o despacho recorrido e determinamos que seja substituído por outro que enumere os factos que considera indiciados e não indiciados, por referência à acusação particular.

Sem custas.
*

Notifique.

D.N..

*****

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).

*****

Lisboa, 28./09/2017

João Abrunhosa

Maria do Carmo Ferreira

DECLARAÇÂO DE VOTO

Concordo e voto a decisão no seu efeito prático, divergindo apenas na qualificação jurídica, pelos fundamentos que integro na seguinte declaração de voto:

Não tenho dúvidas de que a decisão de que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação de um crime e por isso determina o arquivamento do processo numa decisão de não pronúncia, verte uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata.

Assim, este despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existe, pois só através dessa mostra é possível o conhecimento da questão em recurso.

A omissão daquela matéria/fundamentação do respectivo despacho, integra na nossa perspectiva uma nulidade sanável dependente de arguição.

É, também, como nulidade sanável que a qualifica Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do C.P.P., anotação 3 ao artigo 309.º, p. 779).

É que estando previsto normativamente, que a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta, nos termos do disposto no artigo 311- 3 b) do C.P.P. não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.

Assim, entendo que os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade própria, insanável e de conhecimento oficioso.

Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.

Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”.

Sobre esta questão seguimos de perto o expresso no acórdão da Rel.do Porto, de 07.07.2010 (Des. Jorge Gonçalves).

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Arguido/a/s.
[2] Termo/s de Identidade e Residência.
[3] Prestado em 09/10/2015.
[4] Ministério Público.
[5] Supremo Tribunal de Justiça.
[6]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[7] Contra, vejam-se os 2 acórdãos mencionados por Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pp. 841 e 842.
[8] Relatado por Eduarda Lobo, no processo 5726/14.9TDPRT.P1, in www.gde.mj.pt, do qual citamos : “… O que dizer, então, se o despacho de não pronúncia for omisso quanto à descrição dos factos considerados indiciados e não indiciados?
Como é sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade suscetível de afetar o valor do ato praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º).
Seguindo o entendimento acima expresso, consideramos que a lei não comina como nulidade (sanável ou insanável) a omissão, no despacho de não pronúncia, da indicação dos factos indiciados e não indiciados, pelo que tal omissão apenas poderá constituir irregularidade.
Importa, porém, determinar se tal irregularidade deve ser conhecida oficiosamente ou deve ser precedida de requerimento do interessado, sob pena de se considerar sanada.
Vejamos:
Como dispõe o nº 3 do artº 287º do C.P.P., o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve cumprir três condições essenciais:
a) sintetizar as razões da discordância da acusação ou da não acusação - possibilitando, nesta perspetiva, a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito;
b) narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, delimitando o objeto do processo;
c) especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução.
De notar que, quando a instrução é requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento por parte do Mº Público, o RAI apresentado pelo assistente fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade de investigação do Juiz de Instrução, que fica vinculado ao seu teor aquando da prolação do despacho de pronúncia, não podendo alterar os factos ou aditar novos factos, fora das situações previstas no artº 303º n.º1 do Código de Processo Penal.
Porém, como se realça no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 15.04.2015[4] «o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art. 308.º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos atos decisórios. A sua importância é também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito do requerimento instrutório.
Há aqueles casos em que o tribunal «declara que os autos não fornecem indícios materiais da existência dos factos acusados ou que o arguido os tenha praticado e em consequência não recebe a acusação». Há ainda as situações em que o tribunal declara que os factos descritos no requerimento instrutório, embora indiciados, não são subsumíveis a qualquer tipo legal de crime. «Assim, existe decisão final quando, apesar de indiciados os factos descritos no requerimento instrutório, o Sr. Juiz de Instrução concluir que os mesmos não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos. Nessas situações, transitada em julgado essa decisão, o processo onde foi proferida só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449º, nº2, e 450º, nº1, al. b), do Código de Processo Penal (…), podendo o arguido arguir a exceção do caso julgado em qualquer outro processo que seja instaurado pelos mesmos factos.
Existe decisão final quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se deva à não indiciação de todos ou parte dos factos descritos no requerimento instrutório, os quais se apresentavam como essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime. Porém, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, o processo pode ser reaberto, assim como instaurado novo processo, se surgirem novos elementos de prova que abalem o fundamento da decisão de não pronúncia. Consequentemente, a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respetivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respetivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa» - Ac.R.Guimarães de 27/9/2004, proc.n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves[5].
Como escreve o Cons. Maia Costa[6] «O despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (artº 279º nº 1)[7]. ... A diferença de tratamento das duas situações radica na diferente natureza das decisões: o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do Ministério Público, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário, a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso, a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».
No caso em apreço, a decisão recorrida é completamente omissa quanto aos factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, sendo certo que é o RAI que, como se disse, fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade de investigação do Juiz de Instrução, pelo que a referida omissão afeta intrinsecamente o valor daquela decisão.

Tendo omitido grande parte dos factos alegados no RAI, bem como a ponderação sobre as provas produzidas no inquérito e na instrução, em especial os documentos bancários, e a análise destas à luz crítica das regras da experiência, não é possível verificar e, consequentemente, sindicar o raciocínio feito pela Mmª Juíza a quo na tomada da decisão de facto, traduzindo-se a decisão recorrida tão só na conclusão decorrente da leitura subjetiva que a Srª. Juíza fez dos factos e questões em causa nos autos.
Ora, como se realça no Ac. do TRE de 01.03.2005[8]: «Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmº Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução ... Com efeito, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente.»
Verifica-se, assim, ausência de descrição dos factos indiciados no despacho de não pronúncia proferido nos autos, o que, em nosso entendimento, constitui irregularidade que influi na decisão da causa e que impede uma correta apreciação do recurso, designadamente sobre a existência ou não de indícios quanto aos crimes imputados no RAI apresentado pelo assistente (art.º 123.º do C.P.P.).
Com efeito, para poder fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a considerá-los suficientes ou insuficientes para sujeição do arguido a julgamento, tem o Tribunal da Relação de conhecer quais os factos, dentro do objeto da instrução, considerados indiciados e não indiciados pela 1ª Instância, bem como a fundamentação que subjaz a tal decisão, para poder decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição da arguida a julgamento pelos crimes imputados no RAI, de molde a poder confirmar ou não o despacho de pronúncia ou de não pronúncia[9].
E, influindo na decisão da causa, já que impede o reexame da causa pelo Tribunal de recurso, tal irregularidade poderá ser conhecida oficiosamente e sanada, nos termos previstos no art.º 123.º, n.º 2, do C.P.P., no qual se determina: «pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado»[10].
Fica, deste modo, prejudicada a análise das restantes questões suscitadas no recurso. …”.