Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
366/13.2TNLSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: INDEMNIZAÇÃO POR PERDA DO DIREITO À VIDA
LEGITIMIDADE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O dano morte, ou seja, a perda do direito à vida, confere um direito próprio à indemnização aos familiares do de cujus indicados no art. 496º nº 2 do Código Civil e não lhes é transmitido por morte da vítima.
-O Código Civil, como mostram os respectivos trabalhos preparatórios, afastou o conceito de um direito à indemnização por violação do direito à vida que integraria a esfera jurídica da vítima com a sua morte e seria transmitida aos seus sucessores, em favor da tese de que tal indemnização é atribuída a tais familiares por direito próprio.
-Um dos familiares mencionados no nº 2 do art. 496º tem legitimidade para requerer em juízo tal indemnização desacompanhado dos demais, por não estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário.
-A absolvição da instância por incompetência do tribunal em razão da matéria, leva a que o prazo de prescrição se conte a partir da citação dos Réus nessa acção.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


Veio nos presentes autos F... pedir a condenação dos RR A..., M..., R..., J..., C... Lda, A... SA, R... SA, F... SA e A...SA a pagarem-lhe a quantia de € 100.000,00 pelo dano-morte relativamente ao seu falecido pai, € 25.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pelo pai do Autor entre a ocorrência do acidente e a morte, € 50.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pelo Autor devido à morte do seu pai, € 200.000,00 por danos patrimoniais sofridos pelo Autor até à presente data devido à perda de rendimentos decorrente da morte do seu pai, tudo com acréscimo de juros de mora.

Os RR F..., M..., R..., J... e R..., vieram invocar a ilegitimidade activa, porquanto o Autor pediu a condenação solidária dos Réus no pagamento de indemnização resultante da perda do direito à vida e de danos não patrimoniais do falecido, os  quais constituem objecto de sucessão hereditária e só podem ser exercidos conjuntamente por todos os  herdeiros. Consequentemente, tendo o Autor proposto a acção desacompanhado da mãe, há a preterição de litisconsórcio necessário, sendo parte ilegítima.

Invocaram ainda os RR, a prescrição do direito indemnizatório reclamado pelo Autor. Para o efeito, alegam, em síntese  que, tendo em conta que a data da ocorrência do naufrágio do "Bolama' em 4.12.1991 e ter sido proposta acção pelo Autor e sua mãe a reclamar indemnização contra os RR  apenas em 24.11.1997 na 10ª Vara Cível de Lisboa, decorridos cerca de seis anos do sinistro, já prescrevera o direito reclamado, atento o prazo estipulado no art. 498º nº 1 do CC.

De todo o modo, a 10ª Vara Cível de Lisboa declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu os RR da instância. Esta decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 31.5.2013.

Assim sendo, a não se entender que em 24.11.1997 o direito já prescrevera, o respectivo prazo interrompeu-se em 30.11.1997, nos termos do art. 323º nº 2 do CC, e começou a correr novo prazo a partir desta última data, ao abrigo do  art. 327º nº 2 do CC.

Donde,  desde 30.11.1997 a  4.7.2013, quando deu entrada a nova acção, decorreram mais de três anos.

Por outro lado, não pode o Autor beneficiar do preceituado no art. 327 nº 3 do CC, por virtude da absolvição da instância ser imputável ao Autor ao ter proposto a acção nas Varas Cíveis, sem considerar o art. 70 nº 1 a) da LOTJ na redacção então vigente.
 
Em resposta à excepção de ilegitimidade, o Autor pronunciou-se pelo improcedência da excepção, argumentando litigar em nome próprio para fazer valer os seus direitos.

Em resposta à excepção de prescrição, o Autor aduziu que, inicialmente, deduziu pedido de indemnização cível no processo crime. Mais tarde, instaurou acção na 1ª Vara Cível. tendo os RR sido citados em ambos. Quando o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a absolvição da instância, o Autor interpôs a presente acção. A criação do Tribunal Marítimo coincidiu com o final do processo-crime e o desenvolvimento da acção cível, não existindo então jurisprudência sobre as normas definidoras deste Tribunal. Pelo que não faz sentido afastar a aplicação do art. 327 nº 3 do CC. 

Foi proferida decisão julgando procedente a excepção de ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário, no tocante aos pedidos relativos ao dano-morte e danos não patrimoniais do falecido, absolvendo os RR da instância relativamente a tais pedidos. Quanto à excepção de prescrição, foi a mesma julgada procedente e os RR absolvidos do pedido.

Foram dados como assentes os seguintes factos:

A)Em 4.12.1991, ocorreu o naufrágio e afundamento do navio “Bolama” com trinta pessoas a bordo, incluindo o pai do Autor;
B)Em 14.11.1995, o ora Autor  deduziu pedido de indemnização cível no Processo Crime nº 3583/91 que correu termos no 4º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa;
C)Em 23.8.1996, foi preferida decisão instrutória no processo crime supra citado, arquivando-o;
D)Em 24.11.1997, o Autor interpôs contra os Réus acção indemnizatória na 10ª Vara Cível de Lisboa, a qual correu termos sob o nº 19931/97;
E)Os Réus foram citados em ambos os processos;
F)Por sentença datada de 16.1.2013, proferida neste processo, foi declarada a incompetência em razão da matéria do Tribunal Cível de Lisboa e absolvidos os Réus da instância;
G)Por acórdão de 14.5.2013, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou  a decisão da 1ª instância;
H)Em 28.6.2013, o Autor propôs a presente acção.

Inconformado recorre o Autor concluindo que:

-A Sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do direito, porque em lugar das normas dos arts. 2024º e 2.091º, nº 1 do CC e do art. 33º, nº 1 do CPC, deveriam ter sido aplicadas as normas do art. 496º do CC, nomeadamente do seu nº 2, para o dano-morte, e do nº 3, para os danos não patrimoniais sofridos pelo Pai do Recorrente e por ele próprio. Os direitos de caráter indemnizatório que o Recorrente quer fazer valer assistem-lhe  iure proprio, não lhe advindo pela via sucessória;
-A Sentença recorrida fez igualmente urna errada interpretação e aplicação do direito ao aplicar a norma do nº 1 do art. 498º do CC (prazo de prescrição de 3 anos), pois deveria ter aplicado aquela que consta do nº 3 do mesmo preceito, conjugando-a com a do art. 169º, § único do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante e com o então art. 117º, nº 1 b) e c) do CP de 1982. Tratava-se de um crime punível com prisão até 8 anos, logo o respetivo prazo de prescrição era de 10 anos. Não teve, portanto, lugar a alegada prescrição. Nos diferentes processos referenciados na Sentença recorrida, os Recorridos foram sempre citados, com a consequente interrupção do prazo de prescrição.

Os RR contra-alegaram sustentando a bondade da decisão recorrida.

São duas as questões aqui em causa. Primeira, a ilegitimidade do Autor, por preterição de litisconsórcio necessário, no tocante aos pedidos relativos ao dano-morte e danos não patrimoniais do pai do recorrente. Segunda, a da prescrição dos direitos peticionados pelo Autor.

Quanto à questão da legitimidade.

O Autor peticiona uma indemnização não inferior a € 100.000,00 pelo dano-morte do seu falecido pai, em consequência de naufrágio do navio Bolama, e indemnização não inferior a € 25.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo seu pai entre a ocorrência do sinistro e a morte.

Na sentença recorrida decidiu-se que o dano-morte bem como os danos não patrimoniais sofridos pelo pai do autor, integram a esfera jurídica do de cujus e, nessa medida, são objecto de sucessão hereditária nos termos do art. 2024º do Código Civil, tendo de ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, em situação de litisconsórcio necessário.

O art. 496º nº 2 do Código Civil estipula que “por morte da vítima,o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes (...)”.

A respeito da interpretação deste preceito entendemos ser de citar o Acórdão do STJ de 15/04/1997 – CJ/STJ 1997, 2, pág. 43/44 – face à análise aprofundada que nele se faz e que engloba exactamente a problemática suscitada nos presentes autos.

“A lesão consistente na perda do direito à vida não se confunde nem se dilui no dano próprio que os outros interessados sentiram e sofreram com a morte daquele lesado.
Vale a pena recuar um pouco à génese do preceito no que acompanharemos Antunes Varela: quem acompanhar atentatamente  os trabalhos preparatórios do Código Civil (...) não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no pstrimónio da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição (...) O legislador quis manifestamente chamar estas pessoas, por direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vítima da lesão – e que a esta competiria se viva fosse. (...) Estes danos abrangem, não só o dano da morte, mas também as dores, sofrimentos ou padecimentos que a vítima haja suportado antes de morrer (...)
“Partindo do que ficou referido, a interpretação da expressão «em conjunto» não pode ser a de que a mesma quis ter um significado adjectivo, processual (...) mas apenas um substantivo (...)
Peticionar a indemnização pelo dano da morte pode ser feita por qualquer dos titulares do direito”.

Assim, e a nosso ver, a mais correcta interpretação do nº 2 (conjugado com o nº 3) do art. 496º decorre do que referem Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, I, pág. 341:
Se a vítima morreu em consequência da lesão, são as pessoas designadas no nº 2 que têm direito à indemnização. Nesse caso, o seu cálculo pode fazer-se atendendo aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e, conjuntamente, aos danos sofridos pelas pessoas com direito à indemnização”  
 
Na sua obra “Das Obrigações em Geral” (I) Antunes Varela retoma esta problemática, sublinhando que, no Anteprojecto do Código Civil de Vaz Serra se previa que a morte, mesmo que instantânea, ou seja, sem um período de sofrimento ou angústia entre a ocorrência do dano e a morte, constitui um dano não patrimonial transmissível aos herdeiros da vítima.

Contudo, na versão definitiva do art. 496º nº 2 eliminou-se a referência à transmissão aos herdeiros do direito de indemnização pelo dano morte.

Antunes Varela chega assim à seguinte conclusão:

Nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda da vida, quando a morte da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão. A segunda é que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do art. 496º.”

O entendimento é assim o de que a perda do direito à vida não vai integrar um direito a indemnização na esfera jurídica e patrimonial da vítima na medida em que esta morreu, mas antes constitui um direito próprio na esfera das pessoas indicadas no nº 2 do art. 496º.

Bem sabemos que existem teses divergentes, sustentando a transmissibilidade para os herdeiros – ver Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, 2º, pág. 294 e Leite de Campos “Lições de Direito da Família e das Sucessões” pág. 568/569. 

Continuamos porém a entender como preferível, por mais consentânea com a história do preceito a tese plasmada no mencionado acórdão do STJ de 15/04/1997, além de que evita o recurso a construções extremamente artificiais. Veja-se, a título de exemplo a construção efectuada por Leite de Campos: “penso que o direito de indemnização pelo dano da morte é adquirido pelo de cujus depois da sua morte. A defesa da personalidade jurídica exige uma constante defesa do direito à vida (...)”. Afirmação no mínimo duvidosa, quando se sabe que a personalidade jurídica cessa com a morte, art. 68º nº 1 do Código Civil.

Ora, entendendo-se que o direito a indemnização pelo dano morte, não é transmitido às pessoas mencionadas no nº 2 do art. 496º por via sucessória, mas se constitui como direito próprio na esfera jurídica de cada um, nada impede que alguém, no caso dos autos o filho da vítima, peticione tal indemnização sozinho, inexistindo litisconsórcio necessário.

Por outro lado, nos termos do art. 33º nº 2 do CPC, nada obsta a que a decisão relativa a tal direito produza o seu efeito útil normal, já que, uma vez delimitada a existência e quantitativo das indemnizações respeitantes a danos não patrimoniais sofridos pelo de cujus, a mesma fará caso julgado após o respectivo trânsito, qualquer que seja a pessoa, das elencadas no art. 496º nº 2 do CC que tenha reclamado a mesma.

Por isto, julgamos não existir preterição de tal litisconsórcio, revogando-se a decisão que julgou o autor parte ilegítima, absolvendo da instância os RR relativamente aos pedidos por danos não patrimoniais da vítima.

Quanto à prescrição:

Está provado que o pai do Autor faleceu no naufrágio do navio “Bolama”, ocorrido em 04/12/1991.

Em 14/11/1995 o ora recorrente deduziu pedido de indemnização cível no processo 3583/91 que correu termos no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.

Dada a natureza criminal do processo, aplicam-se os prazos de prescrição dos artigos 117º nº 1 b) e c) do Código Penal de 1982 então em vigor, que fixava um prazo de prescrição de 10 anos para o tipo de crimes indiciado.

Com o processo de inquérito no Tribunal de Instrução Criminal, ocorreu a interrupção do prazo de prescrição.

Assim, ao ser deduzido pedido no processo crime, em 14/11/1995, não havia prescrito o direito do Autor, atento o prazo de prescrição de 10 anos previsto na legislação penal.

A interrupção cessou assim que foi proferida decisão instrutória no processo crime, ordenando o seu arquivamento, em 23/08/1996.
Em 24/11/1997 o Autor deduziu pedido de indemnização em acção cível na 10ª Vara Cível de Lisboa.

Aqui o prazo de prescrição é o da lei cível, ou seja, o prazo de 3 anos previsto no art. 498º nº 1 do Código Civil. O autor já não pode invocar o nº 3 desse preceito na medida em que o processo crime já havia sido arquivado, não sendo pois invocável a natureza criminal dos actos geradores de responsabilidade civil em que se funda o pedido de indemnização.

Durante o decurso desse processo cível com o nº 19931/97, e após a citação dos RR, o prazo de prescrição ficaria, em princípio, interrompido nos termos do art. 323º nº 1 do Código Civil.

Contudo, nos termos do art. 327º nº 2, “quando (...) se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral,o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo.”

Foi proferida sentença no processo nº 19931/97, em 16/01/2013, que declarou o Tribunal Cível de Lisboa incompetente em razão da matéria, absolvendo os RR da instância. Tal sentença foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/05/2013.

Temos pois que desde a data da citação dos RR – que constitui o acto interruptivo – se começa a contar o prazo de prescrição de 3 anos previsto no art. 498º nº 1 do CC.

Como se refere no Acórdão do STJ de 06/05/2003, Sumários, 5/2003, “proferida decisão de absolvição da instância com o fundamento na incompetência em razão da matéria do tribunal onde a acção foi proposta, pode o autor, em nova acção intentada, beneficiar dos efeitos civis derivados da primeira causa, quando seja possível, desde que essa nova acção seja proposta no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado daquela decisão. Contudo, a ressalva prevista no nº 2 do art. 289º do CPC, no tangente ao disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade, não afasta a possibilidade de ocorrer a caducidade do direito que o autor quer ver reconhecido, pois que a absolvição da instância não resulta de motivo processual não imputável ao titular do direito”.

Com efeito, o art. 289º nº 2 do CPC, que regula a manutenção dos efeitos civis da primeira acção e da citação do Réu, se a nova acção for intentada no prazo de 30 dias, exceptua expressamente as disposições relativas à prescrição e caducidade dos direitos.

Partindo do pressuposto que, na aludida acção nº 19931/97, os RR tenham sido citados até 30/11/1997 (face ao disposto no art. 323º nº 2 do Código Civil), o prazo de prescrição de 3 anos conta-se desde tal data. Assim o prazo de prescrição ter-se-ia completado em 30/11/2000. A presente acção foi proposta em 28/06/2013.

Mesmo que o prazo de prescrição fosse, como pretende o recorrente, de 10 anos, por força do nº 3 do art. 498º do Código Civil, tal prazo teria começado a correr em 30/11/1997, completando-se em 30/11/2007, mais de cinco anos antes da propositura da presente acção.

Acrescente-se que a absolvição da instância dos RR, por incompetência do tribunal cível em razão da matéria é inteiramente imputável ao ora Autor. Com efeito, o art. 70º da LOTJ então vigente, dispunha que “compete aos tribunais marítimos conhecer, em matéria cível, das questões relativas a: a) indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito (...)”.

Como se refere no acórdão desta Relação de Lisboa que confirmou a decisão da primeira instância, relativamente à incompetência material do tribunal cível, “resulta assim, de forma cristalina, que os Agravantes pretendem ser ressarcidos, em termos indemnizatórios, dos danos decorrentes do naufrágio e afundamento do navio referenciado, imputando aos Réus a respectiva responsabilidade decorrente da inobservância de deveres a que os mesmos se encontravam adstritos, e que se prendem, claramente, com as condições de navegabilidade do navio (...) Desta forma, configura-se que as questões postas à consideração do Tribunal enquadram-se no âmbito das competências apontadas do Tribunal Marítimo como as enunciadas, desde logo na alínea a) do art. 70º mencionado, no entendimento que, destinado o navio a uso marítimo, a indemnização peticionada deriva de danos causados ou sofridos naquela utilização, ainda que para tanto possa ter relevado a alegada conduta negligente dos RR, o que em si não afasta aquela competência”.

Assim, é do Autor a responsabilidade pela absolvição dos RR da instância, já que não usou da diligência técnico-jurídica devida no sentido de apurar, face à legislação então em vigor, o tribunal competente para conhecer da causa.

Quanto ao invocado instituto da litispendência, entendemos, salvo o devido respeito, que o mesmo é inteiramente irrelevante para os efeitos da apreciação da prescrição.

Com efeito, a litispendência, enquanto repetição de uma causa estando a anterior ainda em curso, art. 580º nº 1 do actual CPC, não pode ser usada no âmbito do art. 306º nº 1 do CC, ou seja, como fundamento para a impossibilidade do exercício do direito.
Na realidade, o direito foi exercido mas na jurisdição errada, por deficiente entendimento da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, imputável ao autor, e de que resultou a absolvição da instância dos RR. O benefício que se concede ao autor de ver o prazo prescritivo interrompido com a citação dos RR é assim retirado em casos em que por responsabilidade do autor, ocorra desistência, absolvição ou deserção da instância.

Não faz sentido o autor alegar que não podia interpôr nova acção (supõe-se que no Tribunal materialmente competente) com aquela ainda a correr termos. Se o autor se apercebeu do lapso e pretendia propor a acção no Tribunal Marítimo, bastar-lhe-ia desistir da instância na primeira acção e deduzir esta nova acção acção no Tribunal Marítimo a tempo de obter nova interrupção do prazo de prescrição pela citação dos RR nesta segunda acção, desde que o fizesse até 30/11/2000 ou 30/11/2007 (consoante se entenda o prazo de prescrição de 3 ou 10 anos).

Pelo que se verifica a prescrição do direito do Autor.

Conclui-se assim que:

-O dano morte, ou seja, a perda do direito à vida, confere um direito próprio à indemnização aos familiares do de cujus indicados no art. 496º nº 2 do Código Civil e não lhes é transmitido por morte da vítima.
-O Código Civil, como mostram os respectivos trabalhos preparatórios, afastou o conceito de um direito à indemnização por violação do direito à vida que integraria a esfera jurídica da vítima com a sua morte e seria transmitida aos seus sucessores, em favor da tese de que tal indemnização é atribuída a tais familiares por direito próprio.
-Um dos familiares mencionados no nº 2 do art. 496º tem legitimidade para requerer em juízo tal indemnização desacompanhado dos demais, por não estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário.   
-A absolvição da instância por incompetência do tribunal em razão da matéria, leva a que o prazo de prescrição se conte a partir da citação dos Réus nessa acção.
                                                                                                                            
Assim e pelo exposto:

-Julga-se o Autor parte legítima no tocante aos pedidos de indemnização pelo dano morte e por danos não patrimoniais sofridos pelo seu pai no naufrágio no navio Bolama.
-Julga-se verificada a prescrição dos direitos peticionados pelo Autor, absolvendo-se os Réus da totalidade dos pedidos.

Custas pelo recorrente.



LISBOA, 07/04/2016


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
                                                                                    
Decisão Texto Integral: